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RR 5. SABER ANALISAR CRITICAMENTE O “ENSINO TRADICIONAL” A tejeigdo pelo “ensino tradicional” costuma ex- Pressar-se com contundéncia, sobretudo por parte dos pote gm formagio. No entanto, hi evidnein de que, apesar de todas as repulsas verbs, hoje Continua-se fazendo nas aulas de Ciéncias praticamente ges que h GO anos (Yager © Penick, 1980). Or iss0, mostrar aos professores —' durante sua formagio inicial ou permanente — até que ponto ®, insistimos, & margem de atitudes de rejeigao gene. ralizadas, 0 que eles denominam pejorativamente“e sino tradicional” neles esta profundamente impregnado 40 longo dos muitos anos em que, come alunos, acompanharam as atuagées de seus professores, Tratacce de uma formagao ambiental que teve um grande peso Por seu caréter reiterado e por nfo estar submetiva a tuma critica expliita, constituindo-se, por isso, em algo “natural, sem chegar a ser qustionada efetivamente izemos referencia a isso no Capitulo 3, desta Parte 1, a0 abordar as idéias docentes de senso coum. Compreende-se entio a conveniéneia de propor uma formagio dos professores como uma mudanca diddtiea due obrigue a tomar consciénea da formago docente iquirida ambientalmente ¢ a submeté-la a uma reflexto critica (Carrascosa et al., 1985; Gené e Gil-Pérez, 1987 © 1988; He 1993), © Hewson, 1987 © 1988; Santos, 38 ae fea E claro que esta mudanga didatica nao € facil. Nao & apenas questio de uma tomada de consciéncia es- pecffica, mas sim exige uma atengio continua até tornar natural o fato de colocar em questo 0 que na atividade docente parece Gbvio, sua revisio & luz dos resultados da pesquisa educativa etc. Um procedimento que se tem mostrado muito eficaz para mostrar 0 peso da formagio docente ambiental, consiste em solicitar dos professores a andlise critica de materiais didaticos conctetos, exttaidos de livros de texto (introdugio de conceitos que nfo consideram os conhecimentos prévios dos alunos, trabalhos préticos propostos como simples receitas, problemas resolvidos nos quais esto ausentes ‘0s aspectos chaves de toda verdadeira resolugaio de problemas, aplicagdo dos conhecimentos cientificos que ignora os aspectos conflitivos das relagdes Ciéncia/So- ciedade etc.). Através destas andlises — nas quais se solicita a cada professor que indique aquilo que Ihe parece correto, incorreto, as caréncias etc, — mostra-se como a rejeigo verbal do “ensino tradicional” nao se traduz, em capacidade para apontar de maneira concreta as caréncias ¢ defeitos.mais graves que, pelo contrario, silo aceitos acriticamente: os professores limitam-se a assinalar questdes de detalhes, sem questionar as orien- tagdes diddticas fundamentais (Gil-Pérez e Martinez- Torregrosa, 1984; Gil-Pérez, ¢ Payé, 1988). Estes resultados podem ser utilizados posteriormente — quando 0 trabalho realizado permitir aos professores proceder andlises mais corretas — para proporcionar a constatagao do peso do ensino tradicional ¢ até que ponto este impregnou sua ago, devido, de um lado, fa seu cardter reiterativo e, do outro, por sua natureza de exemplo vivo, real, muito mais eficaz que qualquer explicagdo (Furié e Gil-Pérez, 1984). Entende-se, por 39 0 conseguinte, que, na auséncia de alternativas, os pro- fessores fazem uso do que adquiriram dessa forma, mesmo se, quando alunos, rejeitassem esse tipo de docéncia. Isso obriga a que as propostas de renovagio sejam também vividas, vistas em ago: somente assim torna-se possivel que estas propostas tenham efetividade © que os futuros professores (ou aqueles que estao jé em exercicio) rompam com a visio unilateral da do- céncia recebida até 0 momento. De fato, a proposta de uma formagio docente como mudanga diddtica exige, nfo apenas mostrar as insuficiéncias da formagao ambiental recebida, mas oferecer, a0 mesmo tempo, alternativas realmente vidveis. Trata-se, como vemos, de exigéncias semelhantes aquelas que se dio pata uma mudanga de paradigma cientifico (Kuhn, 1971; Toulmin, 1977). Em qualquer caso, € preciso que a0 longo de sua formagio os professores e professoras consigam detectar com preciso insuficiéncias como as que aqui resumimos, a titulo de exemplo, no Quadro 5. 40 QUADRO 5 Saber analisar criticamente 0 ensino habitual ‘A, Conhecer as limitagdes dos habituais curriculos en- ciclopédicos e, ao mesmo tempo, reducionistas (deixando de lado aspectos hist6ricos, sociais etc.). Conhecer e ter em. conta que a construglo de conhecimentos precisa de tempo. B, Conhecer as limitages da forma habitual de introduzir conhecimentos (esquecer as concepgées espontineas dos alunos, tratamentos puramente operativos etc.) C. Conhecer as limitagdes dos trabalhos préticos habi- tualmente propostos (como uma visio deformada do trabalho cientffico). D. Conhecer as limitagées dos problemas habitualmente propostos (simples exercfcios repetitivos). E, Conhecer as limitagées das formas de avaliago habituais (terminais, limitadas a aspectos conceituais). F. Conhecer as limitagdes das formas de organizagio escolar habituais, muito distantes das que podem favorecer um trabalho de pesquisa coletivo. No Anexo A, reproduzimos com mais detalhes uma estratégia utilizada para favorecer 0 questionamento critico da resolugio de problemas. Este constitui um bom exemplo de como pode propor-se uma critica fundamentada do ensino habitual e do pensamento docente espontineo e, mais ainda, de como conseguir @ participacdo dos professores na construgao de um modelo alternativo. 41 6. SABER PREPARAR ATIVIDADES CAPAZES DE GERAR UMA APRENDIZAGEM EFETIVA O interesse por saber programar atividades de apren- dizagem manifesta-se como uma das necessidades for- mativas bisicas dos professores. Inclusive aqueles que orientam seu ensino como uma transmissio de conhe- cimentos jé elaborados, consideram muito conveniente poder completar suas explicagées com algum tipo de atividade dos alunos. Esse interesse cresce, é l6gico, quando se pretende organizar a aprendizagem como uma construgao de conhecimentos por parte dos alunos. Neste caso, ja néo se trata de preparar algumas ati dades, mas de desenhar 0 desenvolvimento dos temas A base de atividades a serem realizadas pelos alunos (Gil-Pérez e Martinez-Torregrosa, 1987). Como afirmam Driver © Oldham (1986), talvez a mais importante implicagio do modelo construtivista seja “conceber 0 currfculo no como um conjunto de conhecimentos habilidades, mas como o programa de atividades através das quais esses conhecimentos ¢ habilidades possam ser construidos e adquiridos”. A partir desta perspectiva, saber preparar programas de atividades (programas de trabalho para uma pesquisa dirigida) transforma-se em prioridade na formagao dos professores, para a qual, porém, ndo existe uma resposta simples, nem pode pensar-se em formalizar sua elabo- ragio mediante esquemas mais ou menos rigidos. Con- tudo, necessério evitar também uma elaboragdo a0 42 acaso que falte um fio condutor. Assim, por exemplo, no de Driver © sua equipe da Universidade de Leeds, Inglaterra, (Driver, 1986), os programas de atividades ajustam-se a uma estratégia que pode resu- mir-se em: 1) identificagiio das idéias dos alunos; 2) colocar em questio as referidas idéias mediante con- tra-exemplos; 3) invengio ou introdugaio de novos conceitos e 4) utilizagiio das novas idéias em diversos contextos. Trata-se de uma estratégia de mudanga con- ceitual que — como demonstrou Pozo (1989) — basicamente comum nos modelos de ensino desenvol- vidos nos tltimos anos (Nusbaum © Novik, 1982; Osborne e Wittrok, 1983; Zylbersztajn, 1983). De nossa parte, chamamos a atengio sobre o fato de que esta estratégia deve ser aprofundada para torné-la mais coerente com 0 que supde a construgio de conhecimentos cientéficos, orientando-a ao tratamento de situagdes probleméticas mediante um trabalho de pesquisa (Gil-Pérez, 1991). De acordo com esta orien- tagio, a primeira questao a contemplar seria a elaboragao de atividades que proporcionem uma concepgio e um interesse preliminar pela tarefa (Burbules e Linn, 1991). Isso obriga a considerar as idéias, visio de mundo, destrezas ¢ atitudes que os alunos possam jé possuir, de forma a integré-las com seus interesses (¢ gerar outros novos), tendo presentes os pré-requisitos para o estudo a realizar etc. O essencial, entretanto, € que os alunos adquiram uma primeira concepgao da tarefa a realizar, tarefa esta que deve ser colocada funcionalmente, ou seja, como tratamento de situagdes problemiticas de interesse; situagdes que se liguem ao fio condutor estabelecido para 0 conjunto das disciplinas que proporcionem sentido ao trabalho a ser feito, adquirindo assim o caréter estruturante da tarefa. In- sistimos por isso na importancia desta fase inicial, & a RR qual convém dedicar 0 tempo necessatio para que os alunos cheguem a ter uma certa idéia da problematica enfrentada e do fio condutor para seu estudo. O desenvolvimento de um tema pode ser visto agora como 0 tratamento da problemdtica proposta, um tra- tamento que deve ser inicialmente qualitativo — 0 que constituiré uma excelente ocasifio para que os alunos comecem a explicitar funcionalmente suas concepgdes esponténeas — e que conduza A formulagdo de pro- blemas mais precisos e A construgio de hipdteses que focalizem o estudo a se realizar. E nesta construgdo de hipéteses que as idéias espontineas dos alunos podem despontar com maior facilidade, ao mesmo tempo em que o status de hipétese de trabalho evita a freqiiente sensagtio de questionamento pessoal que a explicitagto das “idéias proprias” posterior confron- tagdo com situagdes “conflito” gera. Ao falar de cons- trugo de hipéteses nao nos referimos tio-somente a pesquisas experimentais: todo o trabalho de construc de conhecimentos pode propor-se como tratamento de situagdes probleméticas. Assim, por exemplo, a intro- dugiio de magnitudes como “quantidade de movimento” ou “intensidade de corrente”, possui inicialmente o caréter de uma hipétese de trabalho destinada a ser contrastada através da validade global do corpo de conhecimentos construido com seu uso. A partir daqui, 0 contraste das hipéteses suporé 0 recurso sistemético a atividades caracteristicas do tra- balho cientifico, como a elaboraco de estratégias de resoluco (incluidos os desenhos experimentais), a rea- lizago de experiéncias ou a andlise dos resultados obtidos. Esta andlise dos resultados obtidos pelos alunos €/ou por outros grupos pode, sem diivida, gerar conflitos cognoscitives e conduzir a formulagio de novas hips- teses que levem & (re)construgiio das concepgGes cien- 44 tificas. Estas se produzem, insistimos, de uma forma funcional, como resultado de um tratamento de pro- bblemas € niio como confrontagio entre conceitos “pes- soais” © “cientificos”. Com efeito, uma caracterfstica fundamental do tratamento cientifico dos problemas é tomar as idéias que se tem — inclusive as mais seguras e ébvias — como simples hipsteses de trabalho que exijam esforgo para questionar, imaginando outras hi- péteses etc. Isso concede um status muito diferente as situagdes de conflito cognoscitivo: ja néio supdem para 08 alunos 0 questionamento externo das idéias pessoais, nem a reiterada aceitagao das insuficiéncias do préprio pensamento (com as conseguintes implicagées afetivas), mas um trabalho de aprofundamento no qual certas idéias (tomadas como hipéteses) so substitufdas por outras (to pessoais como as anteriores). Nao se trata, como se pode ver, de eliminar os conflitos cognoscitivos, e sim de evitar que adquiram o cardter de uma confrontagio entre as idéias prdprias (incorretas) ¢ os conhecimentos cientificos (externos). : ‘A manipulagio reiterativa dos novos conhecimentos em uma variedade de situagdes — incluidas aquelas que permitem detectar a persisténcia de concepgées espontiineas etc. — tornaré possivel aprofundar e afian- gar os mesmos, mostrando seu cardter de corpo coerente. Pode-se para isso recorrer a atividades que vo desde © estabelecimento de semelhangas diferengas, limites de validade de expressdes ¢ leis, estimagao semiquan- titativa de quantidades etc., até a resolugo de problemas com lipis e papel, abordados como situagées. abertas a pesquisa no Ambito do corpo de conhecimentos construido. Por outro lado, & necessirio ter presente em todo este tratamento as complexas relagSes Cién- cia/Tecnologia/Sociedade que demarcam o desenvolvi- mento cientifico (Solbes ¢ Vilches, 1989; Krasilchik, 45 1987; Cobb et at, 1991). Podem incluir-se entéo atividades muito diversas, como a leitura e discussio de noticias cientificas, visitas a laboratétios e fabricas — ou, melhor ainda, estégio de permanéneia para trabalho nesses locais (Penick e Yager, 1986) — estudo de situagdes de interesse na vida pritica, tomada de decisies ¢ dramatizagées em torno de situagdes con- flitivas etc, Referimo-nos, por dltimo, as atividades que pode- rfamos denominar de “recapitulagio e perspectivas” que deveriam conduzir, na medida do possivel, a elaborago de produtos destinados a ser apresentados © comentados na classe e/ou, em certas ocasides ex- postos a outros grupos (Duschl e Gitomer, 1991). Podemos considerar assim a reelaboraciio da informagao obtida através da construgiio de esquemas, sinteses ¢ mapas conceituais (Novak e Gowin, 1983) que permitam aos alunos consolidar uma visio global e dispor de um material adequado para as necessdtias revisOes. Pode-se pensar também na confecgao de artigos, cartazes etc., sobre temas cientificos — e, mais precisamente, da relagio Ciéacia/Tecnologia/Sociedade —, a cons. trugao de aparelhos cientificos simples, a organizagao de colegdes de material cientifico etc. Na estruturagzio das atividades, pode-se recorrer ao uso do computador sob diversas formas — simulagio de experiéncias, modelizagoes, exercicios de auto-regulagio e outros (Risley € Redish, 1989; Barberd e Sanjosé, 1990). Nao se trata, € claro, de substituir pelo computador a realizagdo de experiéncias, mas de oferecer novas pos- sibilidades, sem sucumbir — como adverte McDermott (1990) — A pressiio de uma publicidade agressiva ou @ apresentagSes atraentes que possam interferir na apreciagio objetiva do valor dos programas com que se comega a inundar o mercado. 46 . # Convém também ter presente, em todo o planeja- mento de atividades, 0 papel que pode desempenhar a historia das Ciéncias, no sé para contextualizar os conhecimentos cientificos e mostrar sua evolucio ¢ as interagdes Ciéncia/Tecnologia/Sociedade (Moreno, 1990), mas, fundamentalmente, para tornar possivel uma com- preensao profunda da matéria estudada e da propria natureza da Ciéncia (Matthews, 1990). O Quadro 6 resume esta estratégia de ensino como um tratamento de situag6es probleméticas mediante programas de atividades (programas de pesquisa). 47 QUADRO 6 Estratégias de ensino para uma aprendizagem -——______como pesquisa 0 1. Propor situagées problemdticas que — tendo em conta as idéias, visio do mundo, destrezas ¢ atitudes dos alunos e alunas — sejam acessfveis, gerem interesse € proporcionem uma concepgao preliminar da tarefa 2. Propor aos estudantes 0 estudo qualitative das situa- ges problemdticas propostas € a tomada de decisées para estabelecer problemas precisos (ocasitio para que comecem a explicitar funcionalmente suas idéias). 3. Orientar 0 tratamento cientifico dos problemas pro- postos, 0 que inclui, entre outros: + a invengio de conceitos © emissio de hipéteses (opor- tunidade para que as idéias prévias sejam utilizadas para fazer previsdes); + a claboragio de estratégias de resolugo (incluindo, no caso, estruturas experimentais) para contrapor as hipéteses A luz do corpo de conhecimentos de que se dispde; * a resolugao e andlise dos resultados, cotejando-os com 08 obtidos por outros grupos de alunos ¢ pela comunidade cientifica. Isso pode transformar-se em ocasido de conflito cognoscitivo entre diferentes conceitos (tomados todos como hipdteses), ¢ obrigar a conceber novas hipdteses etc. 4, Colocar a manipulagao reiterada dos novos conhe- cimentos em uma variedade de situagdes pata tornar possivel aprofundar ¢ afiangar os mesmos, dando énfase especial nas relagdes Ciéncia/Tecnologia/Sociedade que demarcam o desen- volvimento cientifico (propiciando, a este respeito, a tomada de decisées) © ditigindo todo este tratamento a demonstrar 0 caréter de corpo coerente que toda Ciéncia apresenta, Favorecer, em especial, as atividades de sintese (esque- mas, memérias, mapas conceituais), a elaboragdo de produtos, (Suscetiveis de romper com colocagdes excessivamente es- colares ¢ de reforgar o interesse pela tarefa) e a concepedio de novos problemas. 48 O treinamento dos professores para a estruturagdo destes programas supée, sem duvida, uma das tarefas mais complexas em sua formagio. De fato, & poss{vel pensar apenas em uma iniciagdo, visto que a estrutura de programas de atividades exige um constante trabalho de pesquisa aplicada como parte da atividade docente, A partir desse ponto de vista, um programa-guia surge como um elemento sempre em (re)elaboragio, submetido a retoques, acrescidos e, em geral, com remodelagées totais, fruto da experiéncia obtida em sua aplicagGo e das novas contribuiges da pesquisa didatica, Isso supée, com certeza, mais trabalho para 0s professores, mas ao mesmo tempo concede a tal trabalho todo o interesse de uma pesquisa, de uma tarefa criativa, o que sem diivida € um dos requisitos essenciais para uma aco docente eficaz e satisfatéria (Gil-Pérez, 1985; Rivas, 1986), 49

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