You are on page 1of 22
BERNARD. CHARLOT: REALIDADES SOCIAIS E PROCESSOS IDEOLOGICOS. - NA TEORIA DA EDUCAGAO Segunda ediga@o eon Ml cuanasara CIP-Brasil. Catalogagéo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores dé Livros, RJ. Chartot, Benard Ca3Sm A mistficagso pedagspica;icalidades s0- 2ed. * ciais e processos idcolégicos na teoria da edu- cagéo/ Bernard Charlot; tradugéo Ruth Rissin- Joset. —-2.¢d. — Rio de Janeira: Guanabara, 1986, . Tradugio de: La mystification’pédago- . pe. Bibliografia ISBN.85-277-0018-2 1, Educagéo — Teoria. 2. Edueagao — ‘Aspectos sociais. I. Titula, 86-1058 cpp ~370.1 cpu —37.01 Titulo original La mystification’ Pédagogique | ‘Tradugao autorizada da primeira edigdo francesa? publicada em 1976 por Editions Payot, de Paris, Franga Copyright © Bayot,, Paris, 1976 Direitos exclusivos para a lingua Portuguesa Copyright © 1986 by EDITORA GUANABARA S.A. Travessa do Ouvidor, 11. Rio de Janeiro, RJ— CEP 20040 Reservados todos os direitos. E proibida a duplicago ou, reprodugdo deste volume, ou de partes do. mesmo, -Sob quaisquer formas ou por quaisquer meios -{eletrénico, mecanico, gravacdo, fotocépia, ou outtos), sem permisso expressa da Editora. ve * eaPiruto 1 | : INTRODUGAO.. . | ‘ EDUCACAO E POLITICA ~ | I a A EDUCACAO TEM ‘UMA SIGNIFICACAO POLITICA DE CLASSE A educacdo é politica : A educagao. é politica. Esta‘afirmagao, ha ainda|poucos anos, passava por uma profissdo de fé revolucion4ria e cau- sava certo escandalo. Opunha-se ‘a ela .a, vocacgéo laica da escola. Era emprestar aos fundadores da escoia laica um anseio de neutralidade politica que estava longe de. ser «4. seu. Jules Ferry,’a, quem nao sé pode negar a representati- vidade nesse dominio, declarava aos. professores primarios: “Bu, nao diréi, e vocés nao ‘me deixariam dizer, que nao deve existir no ensino primario, no ensino de vocés, nenhum espirito, nenhuma tendéncija politica:.. Como vogés nao amariam e n&o fariam. amar no seu ensino a Revalucéo e a Republica 1!?”;" as escolas “devém, desde a infadncia, pre- parar. o consenso dos cidadaos sob o regime da > fete Francesa e da Republica, que é o seu cordamento fefiniti- vo”. © problema politico colocado para a escola laica ‘da Terceira Republica resume-se bem no tema proposto em 1905 aos candidatos ao Certificado de Aptidao. Pedagogica no Departamento de Haute-Loire: “& recomendado aos Profes- sores Primarios, por um lado, .desprender-se dos infcidentes da vida politica cotidiana € local, e, por outro lado|| ensinar ‘a Republica e a democracia. & possivel, para eles, seguir esta coe ; eo + Gitado por Georges Snyoras, Pédagogie progressiste (pur, 1941), p. 182. | rr) A utstrrrcagho PepAcécica dupla direcdo? Por que e como 2?” No espirito dos "funda- dores da‘escola laica, laicidade n4o significa, portanto, neu- tralidade’ pclitica. A escola laica se quer fundamental} ente republicana, em oposi¢ao as opgoes monarquicas da- escola eatolica. Ela associa o engajamento republicano @ recusa de toda intervencdo nas querelas partidarias e eleitorais| Rei- vindicar a laicidade para apresentar a neutralidade politica como fundamento da escola é esquecer a origem dessa pscola. Ela so € neutra no quadro de uma concordancia prévia a respeito de sua vocacdo republicana. Ora, esse quadr é po- litico: A neutralidade politica da escola sé se define, portan- to, em funcdo de um postulado, ele prdéprio, politico. / A consolida¢ao da republica. burguesa e o desenvolvimento de sua escola fizéram, pouco a pouco, esquezer que a escola laica se aueria investida de uma miss&o politica — “esquecirhento” que se assemelha fortemente a uma camuflagem, ela propria, politicamente significativa. Por isso, os tedricos e mili- tantes politicos aue denunciarami como’ burguesa a “ah owes escolar provocaram, de inicio, a indignacao virtuosa de todos os defensores da laicidade. Era ignorar, ainda desta. vez, que, desde 0 inicio do século,.algumas vozes Se levantaram para denunciar a orientacao politica da ‘escola lai¢a: “Ja se obri- gam as criancas & submissdo cega, @ aceitacdo muda |do que existe.. A maior das virtudes. ensinadas: a obediéncia. O maior crime: desobedecer. Um bom estudante, quer dizer, para mais tarde, um bom operdrio, um bom’soldado; um born - escravo. O ensino da laica nao leva a outra coisa. Por toda. . ‘a parte as consciéncias despertam. De.todos.os lados nessoam os germes das revoltas racionais. A escola esta 14, murada, sombria, inabalavel na rotina; ela bloqueia o futuro com o seu perfil negro” (Le Libertaire, de 23 de abril de 1905) a ~ Hoje, com excecéd de alguns resquicios reacionarios (represenitados notadamente entre os professores pela U.N.I. *, pelo S.N.A.L.C.* e pela, Sociedade dos Agregados), culja viru... léncia politica confirma, ‘alids, a tese que combatem) a afir- " macdo de qué a educacdo é politida esta em via de tornanse 4 Cf. Nous les Maitres d'école, autobiographies d'instituteurs de" ia Belle Epoque, aprescntado por Jacques Ozovr (Julliard, 1967), p. 1[15. % .Citado por Mona Ozour, L'Ecole, L'Eglise et la République (4871-1914) “A. Colin, 1963), pp. 240-241. - U.N.I:, abreviatura de Union Nationale des Instituteurs (Unidad Nacional dos Professores Primérios); S.N.A.L.C., abreviatura de Syntlicat. No- tional. Autonome des Lycées et Colléges (Sirdicato Nacional Autonome dos Liceus e Colégios). (N. da T.) sucagho:# POLITICA . 13 uma ‘banalidade pedagdgica. Mas a medalha tem seu rever- so: € tentador pensar que a andlise terminou quando se jun- tou a palavra ‘!politica” a uma realidade pedagogica. Ora, dizer da educagdo, ou da escola, ou dos programas, ou-do controle pedagogico, ete,; que sao -politicos, nao € ainda - dizer grande coisa. Tudo € politica, pois a politica gonstitui uma certa forma de totalizagaa do conjunto das experiéncias vividas numa scciedade determinada, Eleicdes, uma’ greve, a aposta em cortida de cavalos, a seca, um jogo’ de| futebol, uma bofetada, etc. todos esses acontecimentos tem. yma significagaéo politica. Mas. eles nao sao politicos da mesma maneira, Alguns sao politicos por definicao: as eleigdes, por exemplo, Outros sao politicos enquanto sao conseqiiéncias da organizacao econémica, social e politica da sociedgde; uma greve, por exemplo, é, antes de tudo, um. fendmeno econdmi- co, mas tem igualmente um sentido politico na médida em que coloca.em. causa & organizacao social do frabalho. Outros acontecimentos sio politicos porque té conse- qiiéncias paliticas: a seca é um: fato climatico;que co- loca problemas econdmicos com repercussoes ociais @ politicas. Outros acontecimentos, ainda, sé sao | politicos na medida em que desviam os individuos dos problemas politicos, trazendo um exutorio a suas trustracdes sdcio- politicas: aposta em corrida de cavalos ou jjogo de futebol, por exemplo. Finalmente, o sentida politico dé cértos fatos é somente muito indireto: a. bofetada é um ato repressivo, e pode-se considerar que prepara a‘crianga para a obediéncia social e politica, mas sua significacdo politica nao € nem ‘imediata, nem direta. A saturacfo em politica e as modalidades de politizacao dos fendmenos sociais| si, por- tanto, muito. varidveis, apesar de todos, ‘direta. ou/ indireta- mente, terem implicagdes politicas. Nao basta, portanto, afirmar que a educacao é politica, O verdadeiro problema é Saber em que ela é politica, Podem-se dar a idéia de que a educag¢ado é politica, pelo menos, quatro sentidos, que se articulam,, alias, uns com os, outros. . A educacdo transmite os ‘modelos sociars | Primeiramente, a educagao transmité 4 crianta os mo- delos de comportamento que preyalecem numa §ociedade’ 4 : A MIstEFIcacho smi Sao modelos de trabalho, de. vida, de troca, de relacdes dteti- vas, de relacionamento com a autoridade, de conduta|reli- giosa, etc. Definem o comportamento dos individuos em; face dos outros individuos e das instituigdes e regulam sua partici- * pacdo na vida dos grupos sociais. Esses modelos so vfahsm tidos, seja por contato direto com a:sociedade; seja sob a forma de normas teorizadas de comportamento. No primeiro:cdso, a crianca adquire-os por intermédio da influéncia aise do meio, sem que uma intervencdo educativa voluntaria e siste- matica seja necessaria. A crianga assimila esses modelo$ im: tando o adulto, identificando-se com ele e sofrendo a pyessao da sociedade, que reage a toda forma de desvio. A Antropolo- gia Cultural estudou bastante esses fenémenos nas sociedades ditas primitivas. Margaret Mead, por exemplo,-mostrou como essas sociedades formam os adultos dos quais tém necessi- dade, docéis ou agressivos, virilizados ou feminizados; sem “que tais critérios reconstituam sempre as’ qualidades que as sociedades ocidentais consideram como naturais ngs ho- mens e nas mulheres#. Da mesma forma, a, crianca, nas nossas sociedades, aprende “o que sé faz” e “o que rao se faz” nesta. ou naquela determinada circunstancia - vida social. Aprende a controlar e a exprimir suas emoc6es,/a tes- temunhar os marcos sociais de respeito ou de polidez, ‘a observar as normas sociais de limpeza, a utilizar. o dinheiro, etc. Mas os. modelos de comportamento ndo sao assimilados somente .através do contato direto com o meio cet Sao igualmente objeto de uma transmisséo sistematica ¢ mais ou menos racional, sob forma de normas de comportarhentos e de ideais. O adulto comunica & crianga’regras exqlicitas de conduta e tenta mais ou menos justificd-las com referén- cia a alguns ideais: liberdade, honestidade, justica, solidar! dade, etc. A educagéo transmite, portanto, as criancas spodeten sociais de comportamento. Mas todas as criangas nao, adqui- rem os mesmos modelos, pois nem todas séo educadas no mesmo meio social. ,A sociedade nao é um todo homogéneo veiculando modelos de comportamento que fazem a junani- midade de seus membros. A’ sociedade compreénde igripos diferentes, perseguindo suas proprias finalidades, tendo uma 4 Margaret Mean, Movurs et sexualité en Océanie, (Plon, 1969). , EpucacKo £ POLETIcA : | 15 ., . i, organizacéo interna especifica,e elaborando modelos parti- culares de comportamento (grupos religiosos, culturais, sin- dicais, esportivos, polfticos, etc.). O contato da crianga comi esses modelos varia em func&o de sua insercdo familiar. Mas, sobretudo, a sociedade é€ dividida em classes sociais, nao ‘so- mente diferentes, mas ainda antagériicas. Essas classés. sociais tém concepgées diferentes da vida, do. trabalho, das relagdes humanas, etc., e traduzem essas coneepgdes em seus ideais. Ora, a crianga participa dessa divisféo em classes da sociedade, por intermédio da familia a que pertence. Torna- se assim mais ou menos habil para. exprimir seus estados de espirito, para fazer um trabalho manual, para manter certos itipos de relagdes com os outros, etc. Ela compreendp, segun- do o Seu’ meio de. vida, o que é a linha de montagem, uma rela. de arado, um estetoscdépio ou um dicionério. | Concebe o trabalho de forma diferente, segundo seja. filha de |operdrio, de camponés ou de advogado. . t Entretanto, isso nao significa que’ existe no a de. uma sociedade uma simples: jusfaposicao de modelos e de ideais. A sociedade nao é dividida somente em classes distittas, mas também.em classes que sé digladiam. © conflito social do- minante é a luta de.classes, que opée, em ultima ‘analise, uma classe dominante e uma classe dominada, aliando-se as‘¢las- ses intermediarias ora a uma, ora a outrfa.’ Da mesma forma, os diversos grupos sociais nao tém, tdtlos, a mesma impor- .tancia; umi grupo religioso, politico ou, sindical, ppr exem- plo, tem geralmente uma influéncia social maior do que um grupo esportivo ou cultural. Cada classe social ¢ cada grupo social engendra modelos de comportamento ideais. Mas a crianga nao se encontra, por isso, em face de uma! pura:di- versidade de modelos e ideais. Os modelos da classe domi- nante so os modelos dominantes.'Os modelos dds grupos influentes s&o modelos sociais influentes. Cada criqnga assi- mila, antes de tudo, os modelds e os ideais da cl: social a que pertence e dos grupos sociais com os quais esta em contato. Mas toda crianca sofre também a ‘influéncia dos “modelos socialmente ‘dominantes. Por isso, os modelos so- ciais dos quais a crianca se impregna tém. uma significagdio Politica. Refletem, com efeito, as relagdes de fotca entre grupos sociais, e sobretudo entre classes sociais, no seio da. Sociedade global. Ora, a politica é a’ expressao, aa nivel do poder de Estado e da luta para tonquistar esse poder, das 16 A MISTIFICAGKO PEDARSCICA tensdes e dos conflitos, profundos que agitam a sociddade global. Pode-se definir a politica, numa. perspectiva idealista, como atividade de transformagao da realidade social @ luz de ideais, Pode-se também, na tradicio de Maquiavel, definir a politica’ como atividade fundada na forca. Pode-se igual- mente, com Lénin, afirmar, de modo ainda mais justo, que “o Estado é um organismo de dominagdo de classe, um brga- nismo de opressao de wma classe. por outra; é a:criagio de * uma. ‘ordem’ que legaliza e pcouselaes essa opressao, ,tnode- -tando o conflito de classes”5. De qoalquer maneira, a po- litica exprime relag6es de ‘once, inclusive. entre ideais lopos- tos. A dominag&o social de certos modelos de comportamento e de certos ideais traduz essas mesmas relac6es de forca que se. manifestam, também, noutro plano, no dominio: politico. A transmissio de modelos e de: ideais pela educagdo nao tem, portanto, somente uma significac&o social. Tem igual- mente um sentido politico. A educacao forma a personalidade ' t Em segundo lugat, a educacao é politica porque tofrna a personalidadé segundo narmas que refletem as realidades~ soviais e politicas. A educacgdo age politicamente sobre © individuo, fixando, no 4mago mesmo de sua personalidade, estruturas psicologicas de dependéncia, renuncia e idealiza-, . G40. Como escreve Freud, “o edificio da civilizagdo r¢pousa no principio da renincia as pulsGes instintivas” 6. ‘pul- ‘sdes “da crianca chocam-se inicialmente com as projbigdes parentais e’sociais. Depois, por volta dos cinco ot seig§ anos, isto é, no momento da liquidacgéo do complexo de Edipo, a crianca interioriza essas proibigdes. Assim se estabelece, na seio mesmo da_personalidade, o’Superego como instancia repressiva e o Ideal do Ego como representante dos jideais. As normas sociais constituem, entéo, o esqueleto mesmo da personalidade do ihdividuo e nao séo mais vividas} como barreiras externas. As pulsdes sexuais e agressivas que nad correspondem as normas sociais sao ou reprimidas, pu su-' blimadas, Sao.reprimidas no inconsciente quando os qesejos~ sexuais agressivos entram em conflito com as normas sociais > Lining, L'Etat et la Révolution (Gonthier), p.-9. ‘ * 6 Preup, Malaise dans la civilisation (pur, 1971), p- 47. EDUCACKO E POLITICA o 1 _ de satisfagéo da sexualidade e da agressividade. S§o subli- * madas quando podem ser satisfeitas através de formas deri- vadas, mas socialmente reconhecidas e mesmo valorizadas: por exemplo, a’ sexualidade sublima-se em arte ou misticismo € a agressividade em esporte ou.ambicao- politica. Na médida em que essas normas sociais interiprizadas pelo individud traduzem as relagdes de forga no séip da so- ciedade, a formacdo da persdnalidade tem um sentido -polf- tico-7, De maneira. geral, a repressio e a sublimgcao das pulsdes sexudis e agressivas estabelecem a idéia de qué o prazer € um erro fora das normas sociais, que é preciso saber se. resignar e se Contentar com os prazeres.socialmente reco- nhecidos, que a-revolta é uma violéncia inaceitavel, que um ‘ ser civilizado coloca seus deséjos depois de ‘seu ;dever e que todo o mundo, rico ou pobre, obedece a essa’ moral da yentncia. A educac&éo forma assim a personalidade para suportar todas as frustracdes ligadas a vida social, inclusive as que séo engendradas pela injustiga, pela desigualdade e pela dominagao de classe. ‘A educagao é politica nq medida em que constréi a personalidade a partir de bases psicolégi- eas que tém uma significacdo politica. , ‘ | ‘A educacdo difunde idéias ‘politicas Em. terceiro lugar, a educagdo é politica na medida em que transmite as criangas idéias politicas sobre a spciedade, a justica, ‘a liberdade, a igualdade, etc. ‘Essas idéias}politicas impregnam os modelos de comportamento e, as vezts, vemo- las passar do implicito para o explicito, quando adultos explicam as. criangas por que é-preciso partilhar-seus brin- quedos, n&o. hater nos colegas, obedecer aos pais, etc. De- “sempenham igualmente um papel na elaboracdo das regras e dos ideais que regem o controle pulsional. Mas tém tam, bém uma forma propria de existéncia ao nivel das idéias que 7 Marcuse, por exemplo, mostrou como o sistema ee acrescenta & represséio_ civilizadora- das pulsées uma’ super-represséo qué serve 80s interesses, da classe dominante. Da mesma forma, G. Deleuze e F, Guat~ tar! estabelecem um’ parentesco entie capitalismo e estruturas esqui-. zofrénicas da personalidade: “O esquizofrénico coloca-s¢ no limite do capitalismo: ele é a sua tendéncia desenvolvida, o superproduto, a pro- Jetario 0 anjo exterminador.” L'Anti-G@dipe (Editions de Minuit, 1972), P. 18 : ft nirsatprcagio PepaGéarca prevalecem numa sociedade. ‘A educacdo inculca na crianga idéias: politicas sobre a sociedade, sobre seus fundamentos, . Sobre sua organizag&o, sobre suas findlidades, etc. Propée- lhe certas explicagdes concernentés a liberdade, & justiga, as greves; aos patrdes, aos policiais, etc. A ‘crianga assjmila, « assim, idéias politicas que, como os modelos sociais}e os ideais, réfletem as divisdes sociais, as lutas sociais e 26 rela-. gGes de forga no seio da sociedade. Adquire, ao mesmo tempo, as idéias politicas de seu ambiente familiar e social, e as con- cepcdes politicas dominantes, impostas a toda a socikdade pela, classe dominante. A filosofia francesa do século XVI, aue se. diziq filo- sofia das “‘Luzes”, denunciava as idéias falsas difundidas na sociedade ‘pela Igreja e pelos privilegiados para mant¢r um ebscurantismo favordyel a opressio8, De fato, essa hocdo de idéias falsas nao é. muito sdtisfatoria; a nogdo’ del ideo: logia, tal como foi definida por Marx, é bem mais rita de . sentido. A educagao preenche uma funcao politica fans cadora, menos difundindo idéias falsds do que’ veiculando idéias verdadeiras que, destacadas das realidades ecopdémi- vas, sociais-e politicas das quais emanam, apresentam-se como autériomas*e séo récuperadas por um empreendimento, consciente ou inconsciénte, de camufldgem da realidade. Assim, a idéia de liberdade nao é falsa, mas sua _teorjzacao. burguesa, que impregna a idéia tal como é difundida na’ so- ciedade, deu-lhe uma ‘significagéo que permite fazer) dela :um uso ideolégico. O homem é efetivamente mais ou menos livre’no seu trabalho, em suas relagdes com o proximo, na sua vida cotidiana, etc. Mas essa liberdade apresenta sempre ‘uma. forma determinada, em condicdes soziais determinadas. Por exemplo, o individuo é teoricamente livre para estolher a profissfo que deseja exercer. Mas é, na realidade, submeti- do ao mercado de trabalho regido pelas leis do sistema capi- talista, leis que exprimem a opresséo de uma classe social por outra e que contradizem, assim, o contetido teérico da idéia de liberdade. O uso ideolégico da idéia de liberdade consiste em tratar a Liberdade como uma idéia auténdbma.e De Bry, em 1790; escreve, falando dos déspotas: “Era sobre os vicios ¢ os‘ erros dos povos que ‘estava fundada sua, dominagao; era ‘preciso, portanto, fomentar esses vicios e' reforgar esses erros para Sth G (Essai sur [l'éducation nationale, 1790, p. 3).- Condorcet desenvolveu abundantemente esse tema, muito difundidd na época. EDUCAGAO E POLITICA zt 19 justificar, pela idéia de Liberdade, a auséncia de liberdade efetiva nas condigdes concretas de existéncia. Impondo suas idéias. politicas, a classe. dominante con- segue assim fazer passar idéologicamente suas finalidades, seus interesses e sua concep¢&o da Sociedade para da so- * ciedade global. Essa ideologia da classe dominanite j npregna os modelos culturais dominantes de uma seciedade e confi- ‘gura os sistemas de representacao (moral, direito, feligiao, arte, filosofia, etc.). Seu objetivo ultimo é mascarar, por tras de umia igualdade teérica dos individuos. e uma unanimi- dade social mitica, a desigualdade, a injustica e a opressio que reinam na sociedade e que se traduzem na divisao social do trabalho e na luta de classes. A educacdo €, pprtanto, politica, na medida. em que transmite, sob sua forma’ expli- -cita ou por intermédio’ dos modelos de comportamento e.'dos. ideais, idéias politicas, e notadamente as da classe dorhinante. A educagdo é encargo da escola, instituigdo social | . que @ encargo da escola, instituig&o social cuja organizacao e funcionamento. dependem das relagdes de forga sociais e Ppoliticas. A escola é uma instituigaéo educatiya: esforga-se por colocar em agdo os meios mais eficazes. para alcancar as finalidades educativas perseguidas pela sociedade. Transmite as criangas modelos explicitados e estilizados de cgmporta- Em quarto lugar, a educacdo é politica na rel em -mento, isto é, medelos mais puros, mais esquematizados, do que aqueles que a crianca adquire através de contal social direto. Ensina as criangas a se controlar, isto 6, dominar seus impulsos sexuais e.agtessivos, e facilita A sul limacao inculcando-lhes certos ideais. Explica-lhes, direta jou indi- retamente, o que € a sociedade, como ela funciona’ ‘e quais So os deveres dos-cidadaos. Em suma, a. escola visa & uma transmissio mais eficaz dos modelos ¢ das normas|de com- portamehto, dos fundamentos éticos do.controle pulsional e das idéias sécio-politicas. A escola’ desempenha, portanto, um papel pol itico na medida em que propaga uma educacao que tem, ela propa, um sentido politico, Assim, os grupos sociais“e as classes Sociais procuram fazer da. escola, o instrumento de suas fina- lidades, dé seus interesses e da difusio de suas idéias. A es- 20 . ’ A MISTIFICAGAO PEDAGOGICA® cola é 0 campo de lutas que traduzem as tensdes e os éonfli- tos que atravessam a sociedade, a comegar pela luta af elas- ses. A escola se diz laica e politicamente rieutra, mas|serve, antes’ de tudo, aos interesses da classe dominante — apesar de nao ser totalmente fechada aos modelos, aos ideais e as idéias das outras classes sociais: &, ao mesmo tempo, yitima e fonte de propagacaio da ideologia dominante, pois con- funde os modelos, as nornias e as idéias da glasse dominante eom os da sociedade, e mesmo da humanidade: Nao |cria a ideologia dominante. Esta é engendrada pelas aioe pelas, proprias relages .sociais, € a escola contenta-se em adoté-la. Mas reforga a ideologia dominante dispensando uma educaca&o que se diz humanista, putamente cultural e independente das realidades sotiais. A escola pretende 'prote ger-se das realidades e das lutas sociais e dar.a todos a mesma cultura individual. - Mas, refletindo as finalidades edu¢ativas de uma sociedade de classes, a escola transmite uma cultura individual que tem, uma Signifieagdo politica de classe) Além dissa, na medida em que seu isolamento’com relagdo as rea- lidades sociais Ihe traz uma garantia de objetividade |cultu- ral, ela mascara, ainda melhor, a. Significagéo politica de classe dessa cultura individual do que o faz a formacao por contato social direto. . A escola nao pode escapar a. esse ‘papel politicd, pois depende de muitas formas da sociedade, isto é, quer He um grupo social (Igreja, municipalidade, partido politico}, quer de um poder de Estado que exprime os, interesses daj classe dominante. Depende deles: — para seu financiamento e sua gestao: financidmente privado ou publico, gratuidade total, parcial ou nula; — para seu controle;. controle por um Estadg, uma. Igreja, um ‘Partido, uma.municipalidade, por uma asfolagdo de pais de alunos, etc.; — para o recrutamento de seus professores e de seus alunos: recrutamento local ou nacional; recrutamerto. por simples inscrigéo, por exame.ou por concurso; atrativo finan- ceiro e social da fungao de professor ou diplomas contedidos pela escola, etc.; — para o reconhecimento social do. valor da educacdo que ela dispensa: valor dos diplomas, adequagao dos progra- mas as necessidades da sociedade, acordo da sociedade no que. concerne ao modo de controle pedagégico, etc. + ras e ~ EDUCAGKO E POLITICA at Essa-dependéncia multiforme ‘da escola com yelagg a sociedade determina, ao mesmo tempo, as finalidades da: instituicgdo escolar (formacéo de crentes, de cidaldaos, dé trabalhadores, de funcionérids, de técnicos, etc.; formacgao de massa ou formacéo de-uma elite) e' sua organizagag interna (poder de decisao e de organizacdo, tipo de ensino, modo’ de controle pedagdgico, forma de selec&o,- etc.). Por jser uma instituigéo social, a escola dispensa, portanto, urna educa- c&o que tem sentido politico’. * A educacao. é bastante politica. Transmite madelos so- ciais e normas sociais de tcomportamento. Inculca ha crian- ca ideais’ sociais que formam sua -personalidade. Propaga idéias sécio-politicas. BE encarge da escola, que é uma insti- tuicdo social. Tudo isso prova que a educac&éo é um fend- meno socialrhente determinado. Mas os modelos ¢ los ideals sociais, assim como as idéias sociais e as presses sdciais que se exercem sobre a escola, sio multiplos e muitas vdzes anta- ~ gOnicos. A educacio efetivamente recebida pela crianca, bem como o poder politico, esta, antes de tudo, a servico!da classe social dominante. Na medida em que traduz as relacdes de forcga no seio da sociedade global, a educacdo é mais do que social, é. politica. Antes de continuar minha reflexdo, gostaria:d@ mostrar que nao se trata, neste caso, de uma descoberta. pesar do que: pensem sobre isso. os partiddrios da laicidade e da néu-. tralidade politica da educacdo, ha. muito tempo que se sabe n&o sé que a educagéo tem um sentido politico, mas ainda que é um fenémeno de classe, . | A significagéo politica da educagdo ] é historicamente conhecida - A significacao politica da educagéo manifesta-se na his- toria das instituigdes e das teorias pedagégicas: Os escribas egipcios e mesopotamicos j4 colocavam seu conhecimento de uma escrita ao mesmo tempo secreta e extremamente com- Pplicada a servico da difusio no império das diretivas impe- . Tiais. Sofistas gregos e retéricos do Baixo Império Romano 2 Tomei o exemplo da escola, porque ela é hoje a principa) instituigdo" educative. Mas poder-se-la fazer uma anélise do mesmo tipo a respelto da familia, - 22 e . .A MISTIFICAGAO. PEDAGOGICA ' ocuparam altas fungdes politicas: O interesse bastante co- nhecido dirigido por Carlos Magno as escolas no deforria apenas de motivos religiosos; era necessdrio, para ele, tratar da formagéo’ dos. homens que assegurariam o bom funcio- namento das instituigdes do Império Carolingio. Na histéria -da Franga, numerosos foram os reis que se interessararn pelo funcionamento da Universidade e, a partir da reform ‘pro- mulgada em 1596 por Henrique IV, até a Revolucdo !Fran- cesa, ndo ha um s6 Soberano francés que nao tenha tomado medidas no. dominio da educacéo. A importancia politica da ‘educacdo foi sempre compreendida pelos politicos. De maneira mais geral, a histéria das idéias pedagégicas mostra que a pedagogia, isto é, a teoria da educacdo, é filha das crises sociais epoliticas. & essencialmente em petipdo de crise social e politica que uma sociedade se interroga| sobre a educacéo que da 4 juventude. As sociedades estaveis des- . critas por Margaret Mead nao se colocam problemas, peda- gogicos, pelo menos enquanto nao estéo em contato tom a edueacao ocidental. A educacao é, para elas; uma atiVvidade . Social evidente, nao-problematica, a tal ponto que os poucos “fracassos da educagao, produzindo individuos atipicos (nao- conformes. as normas de sua sociedade), aparecemj como incompreensiveis, mas: nao fazem emergir teorias pedagégi- cas. Fazer pedagogia, elaborar uma doutrina da educaciio, nao é uma atividade inerente a toda vida social. O. pengamen- to pedagdgico sé nasce numa sociedade atravéssada de con- flitos. Quando uma sociedade coloca o problema da educa- cdo, é’porque se interroga sobre si.mesma, sobre seu passado e sobre seu futuro. Os problemas da. democracia aténiense- geram Socrates e Plat&éd (o que nao quer dizer, evidente- mente, que sejam suficientes para explicar todos os aspectos de seu pensamento!); as guerras ‘religiosas do século XVI d&o nascimento & pedagogia dos jesuitas; Rousséau| pensa profundamente na ascenséo social da burguesia; a, escola laica da Terceira Republica é fortemente marcada pela ‘der- rota de 1870 e- pela escalada da pequena e média bafguesta . radical; o pensamento -pedagégico de Makarenko sem duvida nao existiria sem a: Revolucio- Russa. Poder-se-iam; assim, multiplicar os exemplos. De modo geral, a pedagogia!é filha das ‘crises sociais e politicas.. Quando, numa sociedhde, as tenses érescem e os conflitos se exacerbam, a prépria ‘edu- cago deixa de aparecer como um processd essencialmente Eepucagho E: POL{TiCA . 7 23. cultural e individual, e se reyela explicitamente comojo cam- po das lutas sociais, o que ela é sempre implicitamente. A pedagogia, reflexdo’ sobre a educacao, teoriza entdg o que existe de conflitivo na educacdo. Mas, como yeremos, dentro em’ pouco, ela nfo pensa em termos sécio-politicos as lutas s6cio-politicas que: perpassamt os processos educativos. .Me- tamorfoseia os conflitos . sécio-politicos: em desacordos filo- s6ficos, religiosos, éticos,:culturais e técnicos. A significagao de classe da educagdo : . & histaricamente. conhecida Mas a educag&o nfo tem somente um sentido ‘politico. Tem também uma. significado de classe.. Através das mul- tiplas relacdes entre educacao e politica, 6 sempre uma ldgi- ca, de classe que se manifesta. & ela que impregna os modelos culturafs e os. ideais, que nutre a ideologia dominante vei-. “culada pela educacao, que tird proyeito da repressio das pulsdes.sexuais e agressivas, e qué sé exprime nas finplidades ena organizacdo interna da instituicao educativa. Hissa sig- nificacg&o de classe da edutacao, que, as. vezes, pensqmos' en- contrar apenas em nossa época, sempre foi sublinhada no curso da -histéria, no sé por marxistas, mas também por ‘pensadores burgueses. Quero apresentar aqui ‘algurhas pro- vas, disso. Que me desculpe o leitor’ pela exterlsdo da8 .cita- cdes; elas me parecém ‘iteis para confirmar que toda’ educa- cao é educacdo de classe, e que se sabe disso ha muitp tempo. — N, Krupskdia, em 1926: ; “fnquanto existir. uma, sociedade de classés, a escola ferd ine- vitavelmente escola de classes. Toda a questao esta ai: iqual é a classe que’ esta no-poder e qual a classe que -dirige a escdla, sendo diferentes os objetivos das classes?.,. Estando no poder, a purguesia tenta transformar a escola de massas em Instrumento feapaz de escrayizar os trabalhadores: ensina as ériancas a obédeger, a ser governadas, separddas, eas ludibria éom predonceitos religiosos ¢ hacionalistas. 6 burguesia tem outtas escolas para educar [as erian- qas 10" i — Thiers, em 1849: ‘ “@ preciso evitar abordar na escola, as_doutrinas. sdeiats que devern ser impostas as massas, a religido por exemplo. Hensar em ! 10 N, Krupskala (Julbo de 1926). Citado por Daniel Linpenpinc, LiIn- . ternationale communiste et T'école de classe (Maspero, 1914), P. 7. - t 24 , : a * acmistiricacho PEDacbcica fazé-las aceitar pelo raciocinto essas. grandes verdades’ seria uma Insigne loucura:!!, : — Guizot, em 1816: “Se fosse possivel condenar o povo a uma ignorancia inreyogs- vel, por mais injusta-que fosse tal interdicdo, imaginar-se-la que as classes superiores, na esperanga de assegurar.seu império, tent4ssem pronuncid-la e manté-la. Mas a Providéncla nao permitiu que essa Injustiga fesse possivel; e-ela a ligou a tals perigos, que 0 interesse, de'acordo com o dever, Impede os Governos dé comété-la 12: — Um anénimo, em 1786, e€ Verlac, em 17897 . “N&o, 0 povo néo é nem mau nem idiota, é a ignoraricia que o déprava...; tentemos acalmar seus. murmirios, dando-lhe a/idéia da verdadeira felicidade; iluminemo-lo nesse caminho- fatal gue ,o leva aos crimes; indiquemos-lhe ainda os meios de se pregervar contra tantos males que nao vém nem da natureza, nem de sua condi¢ao, mas apenas de sua negligéncia 13.” * “Esse camponés vai tornar-se Doméstico, Soldado, Artesao} etc, e se sua razio nao foi esclarécida, se, sendo jovem, nao se lhe ins- pirou uma forte inclinagao’ para o bem, se no foi prevenido dontra © funesto perigo das paixdes que nele devem nascer, quanto Wao se déve temer' que seu primeiro passo no mundo nq -seja uma eas i neste mundo onde vera o poder de um lado ec a impoténdia do outro, aqui_a abundancia, e .acola a pobreza, nuns, a. fadigt dor, em Outros, os prazeres e a moleza \4.” . ‘ — Charles Démia, em 1668: co 2 5 i “® alnda dessa falta de boa educacio que nasce a dificyldade que. se tem de encontrar servidores fiéis e bons operdtios; que se véem tantos preguigosos e.vagabundos pelas ruas... um formigueiro de mendigos...", fonte de desordem publica e a cargo. da |Santa Casa 15, E assimy,se poderiam alinhar paginas e. paginas de con- fissdes também reveladoras do carater de classe da educacdo. Que ndo se diga que se trata, nésse. caso, de uma oppsicgaéo caduca, relegada a pré-histéria social por uma democratiza- ¢ao do ensino no final do século XIX e ao longo de todo 6 1 Thiers (Discurso a Assembléia, 1849). Citado por A. Brost, £’Ensei- gnement en France (1800-1967) (A. Colin, 1968), p. 150. i 12 Guizor, Essai sur Uhistoire et sur état, actuel de T'tristruction. pu- blique en France (1816), pp. 4-5. 13 Anénimo, Instruction du ‘peuple divisée en trois. parties: de Ia |morale, des affaires, de la santé (1786), pp. X-XI. ‘Vertic, Nouveau ‘plan d éducation pour toutes les classes de titoyens (1789), pp. 102-103. . . 18 Charles Dims, Remontrances faites a Messteurs les Prévots des Mar- ‘chands, Echevins ‘et Principaux habitants de la Ville de Lyon, tbuchant la Nécessité et U'Utilité des Ecoles Chrétiennes pour Vinstruction des enjants pauvres (1668), p. 61. “ EpuCcACAO E POLITICA : : 2 : 25 século XX. C. Baudelot e R. Establet mostraram jrecente- mente que, por tras da unidade aparenté-da escola francesa atual, encontram-se duas redes de escolarizac&o distintas e praticamente'sém comunicagdo: a rede primario-profissional para os filhos do proletariado. e a rede secundario-superior. para os da burguesia. Por intermédio dessas duas |redes, a escola atual participa da reproducao das oo sociais ¢ ‘da dominagao de classe. 16, b A PEDAGOGIA OCULTA A SIGNIFICACAO POLITICA DA EDUCACAO POR TRAS DE SEU SENTIDO CULTURAL A educagao é, a0 mesmo tempo, cultura e integragdo. social A educagao € politica. A educagéo é um fendrneno de classe.. E essas duas coisas. so. conhecidas ha muitd tempo. No entanto, como vamos ver agora, as teorias pedagdgicas ocultam sistematicamente a significacdo politica 7 educa- ¢4o por tr4s de seu sentido cultural. A educagiio é politica, mas ela nao é a politi¢ta, nem tampouco da politica. &, antes de tudo, um a. poi, ain de formagao das criangas. ‘Essa formacio- desempe! ha dois papéis: por um lado, cultiva o individuo e, por’ puto, asse- : gura sua integracao social. Uma crianga nasce. fa sabe fazer certas coisas, que.apréndeu durante a gestagdo: ma- mar, chorar, agitar-se, etc. Adapta progressivanign| essas condutas 4s novag condigdes. que encontra apés sew nasci- mento. Mas esses comportamentos elementares saq_insufi- cientes para que: possa satisfazer por si mesma suas neces- sidades e se abster da ajuda de outra pessoa. Enconfremo-la _ uma vintena de anos depojs, para determinar em que a edu- ©. Baupetor e R. Esraser, L’Ecole’ capitaliste en France |(Maspéro, 1971). E preciso observar que, se osiresultados estabelecidos |pelos att. tores nfo sfo contestados, sua interpretacdo, entretanto, nao jtem una- ~ nimidade entre os pensadores marxistas; cf. 0 prefacio de Nicos Pou- + lantzas ao livro de D. Lindenberg citado mais aclma: “A reproducdo _ das posigdés nas relacdes de dominac&o ideologica e politica, assim como apela para os aparelhos, apela igualmente para outros aparélhos além dos aparelhos ideolégicos de Estado, notadamente para o préptlo apa~ relho econémico” (p. 13). Retornarei a essa Idéia, fundamental para a Interpretagdo do papel sovia} ¢ politico da escola. 26 4 MISTIFICAGKO PEDAG6GICA cacdo a transformou. Ela adquiriu comportamentos, jonhe-_ cimentos, ideais, técnicas, etc., que fazem com que set con- siderada como educada e que caracterizam sua personalidade. Essa transformagao individual constitui um primeiro !resul- tado da educacaéo: a educag&o cultiva-o individuo. , Além disso, 0 campo de ag4o social desse individuo esta conside- ravelmente alargado. Ele participa agora da atividade de diversos grupos sociais, e sobrefudo esta prestes a “ganhar a . vida”, isto €, a se inserir numa certa posi¢g&o na divisao so- cial do trabalho. Essa, outra transformagao define um egun- do resultado da educagao;.a educacio assegura a. integracao social do individuo. Evolucdo do individuo € modificacio de suas rélacées com o ambiente social, ou ainda cultura e integrago Social: tal é 0 contetido minimo da idéia de educacao, tais Sao os dois aspettos de toda educacao, quaisquer que sejam as teo- vias pedagégicas em que se inspire. O problema é, jentao, saber se é€ a cultura individual que determina o lugar do individuo-na sociedade.ou se é 0 lugar do individuo ng socie- dade que determina a cultura individual. A priori, pode-se ou considerar que a cultura individual é 0 objetivo da edu- cacao e que. a situac&o socia] e profissional nao é sendo uma conseqiiéncia do nivel cultural do individuo, ou colotar, ao contrario, a integracao social como objetivo "efetivo da edu- -cagéo e a cultura como conseqiiéncia individual da formacao social. Sendo.a educac4o, ao mesmo. tempo, integrac&g social e cultura individual, parece que néo ha nenhuma tfazgo para colocar uma como fundamento e outra como ‘conseqhéneia, antes que 0 inverso. i Afirmar que a educacéo é politica é considerar oe éa cultura individual que é determinada pela. situacdo sbcial, e | nao o inverso. Formac&o cultural e integracio social s&o . inseparaveis de.modélos de comportamento e de idedis. for- macéo da personalidade, aquisigaéo de conhecimentos e de idéias sécio-politicas. Ora; vimos que os modelos, os} ideais, as idéias e as normas de comportamento propostos a brianca dependem de seu ambiente social e, antes de tudo, da classe a que pertence. A partir do momento em que cada individuo nado ,se veja oferecer possibilidades semelhantes de jcultura pessoal, em que a cultura que lhe é proposta dependd de sud. origem. social, e em-que seu destino social reproduz ¢ssa ori- -gem social, -€ ‘impossivel sustentar que.as diferencas culttrais EDUCAGKO E POLITICA : : a1 sao a fonte das diferencas sociais; parece, ao contratio, cla-* “-ramente, que as diferencas sociais estéa na base. das | iferen- cas eulturais. A crianca é, antes de tudo, formada, para ter certs com- portamentos sociais e ocupar certo lugar na sociedad :. Numa sociedade dividida em classes, a situagdo social do’ individuo resulta essencialmente de seu papel na divisio ‘social, do tra- balho. &. preciso, portanto, para compreender a significagao politica da éducagdo em nossas sociedades, nao isolar sua fung&o cultural de sua fungdo social e n&o esquecen, sobre- ~ tudo, que a educacdo prepara o individuo para ocupar um lugar na divisdo social do trabalho. Tal é, por tras dos fins ideais.enunciados pela pedagogia, o resultado real njais im- portante da educagio. Os jovens e seus pais nao-se enganam, alia: ésse res- peito. Raros sao os pais que fixam conscienteménte fins para a educac&o que. dao aos filhos. Eles Ihes transmitem espon- taneamente 0s modos de vida e os modelos ‘culturais aos quais aderem também espontdneamente. Dessa maneira, orientam a educagdo dos filhos em fung&o de fins que sio imanentes a sua Sociedade e a sua classe social, e que eles nao teorizam .a nao ser em caso de crise, isto 6, de fracasso ou resisténcia por parte da crianga. Alias, mesmo quando os pais se fixam fins educativos explicitos, seus comportamentos educativos reais, bem mais influentes, que esses fins teéricos, S80 muitas vezes pouco conformes a. esses fins idéais. ‘os pais, 0 problema da educac&o das criancas é, antes de tudo, o de seu-futuro, istd.é, 0 de sua inser¢do profit dentro da’sociedade; quanto ao resto, a edticacdo se curso ‘cotidiano e nao oferece: problema particular enquanto a crianga nao manifestar oposic&o sistematica aos pais e nao se encontrar em posicdo. de fracdsso escolar, Os pais, muito lucidamenite, interessam-se, antes de tudo, pelo que 10 obje- tivo real da educacao catual, isto 6, pelo futuro social e pro- fissional dos filhos. i A pedagogia alega o sentido cultural da educacdo | @ mascara ideéplogicamente sua significacdo politica, , e sobretudo sua significagdo de classe A educagao tem, portanto, um sentido, ao mesmé tempo S6cio-palitico. e cultural. Tomar co: asciéncia da sign}ficagao ‘ t 1 28 A MISTIFICAGKO i a social e politica da educacdéo é compreender que a cultura do individuo é determinada pelas realidades econdticas, sociais e politicas, Mas nao é assim que a pedagogia, isto’é, a teoria da educacdo, julga a educagéo. Ela considera, ao contrario, que a situagdo social do individuo 6 uma ¢onse- qiiéncia de sua formacdo cultural, e que.se pode conceber a cultura do individuo sem referéncia direta 4s realidades so- ciais. A cultura é, para ela, um. processo intelectual, rporal, religioso, estético, etc., que, certamente, tem conseqiténcias s6cio-politicas, mas que nao é, por natureza, um fengmeno social e politico. Pode-se interpretar em dois sentidos muito diferentes a idéia de que a educagiio é politica. A educagao € politica, dissemos nés, porqtie € determinada pelas/reali- dades sociais ¢ pela situagao social do educando. Mas \de-se considerar inversamente, como o faz quase sempre a pédago- gia, que a educagao é politica porque determina as realidades sociais e a situacaég social do educando; por conseguinte, é preciso procurar em outro lugar o determinante da propria educacdo. Uma das express6es mais acabadas desta segunda interpretacdo encontra-se em Romme, que, em 1792, apre- sentou & Convengao Nacional, em nome do Comité de Instru- cio Publica, o Relatério sobre a Instrugéo Publica Conside- rada em seu Conjunto: . - a * “ “Nés representamos.as diferentes profissdes e funghes da sociedade, as mais indispensdveis a nossas necessidades naturais e politicas, ordenadas num sistema geral, segundo o grau de inteligéncia, a natureaa eo grau de instrugao que elas pressupdem, . : . : “A arte da instrucdo consiste em apresentar toflos os conhecimentos humanos ordenados num sistema geral|e cor- respondente, segundo sua natureza e desenvolvimento gra- dual,” que ,se deve estender tanto quanto ‘os progresfos do espirito humano. : “® entre essas duas escalas, de nossos conhecimentos e dé nossas necéssidades, que. todos os cidadaos de todas ps ida- dés e dos dois sexos, exercendo as for¢as que receberam da natureza, e avancando livre e gradualmente, poderdo, pa cada passo, adquirir,.por um lado, novas forgas intelectuais e fisi- cas para aplica-las,:pelo outro,,em sua prépria utilidade ou na utilidade publica. ‘ 7 ' “O nivel em que cada um parara nessa carreira serd aquele que a propria natureza marcou em suas faculdades 7 4 EDUCAGAO E POLITICA | 29 como o término de seus esforgos. .Qualquer outro obstaculo sera um atentado ao direito de todo cidadao de adquirir todas. as perfeigdes de que € suscetivel 17.” - Existe uma escala de cultura do espirito humano, sem outros limites que os determinados pela natureza de cada um, Existe uma escala das profissdes:e das fungdes{na so- ciedade. Essas duas. escalas se correspondem. O na atin-. gido na primeira justifica, portanto, o lugar ocupado na segunda. & nesse sentido que, em Romme, e, de maneira _Mhais geral, na pedagogia, . a ee é considerada como politica.- Os grandes’ pedagogos nao ignoyam que a edudacao é politica. Nao € por acaso que se encontram entre eles pen- sadores que desenvolveram, ‘ao. mesmo tempo, uma teoria po- litica e uma teoria pedagégica, como Platdo, Locke, Ropsseau; Kant, Alain, etc. Esses grandes pedagogos, alias, sublinham, eles mesmos, a importancia politica da ‘educacao, alerh disso, néo abandonam, quando tratam da. educa¢do, toda referén- cia a politica; Rousseau fala da tirania do bebé, Locke trata da educacgéo do sentido da justiga e do sentido da proprie- dade, étc. Mas, no momento em que dao ad proceso! educa- tivo uma interpretacdo politica, julgam ‘esse proprio Hrocesso como cultura intelectual, moral, religiosa, estética, etc., sem nele integrar diretamente elementos politicos. Para/eles, a educagio € politicamente importante porque tem conseqiién- cids politicas, Mas, em sua natureza, a educagdo é um fend- meno cultural determinado por objetivos espirituajs, cujo fundamento 6é filosdfico, e nao sécio-politico. Plata 0, por exemplo, trata da educacgao principalmente em du: ‘obras intituladas (titulos ‘significativos!) a, Repdblica e ds Leis. Sabe que a educaciio tem uma, significacao politica e, afirma que “entre as mais eminentes magistraturas do Estado, a educacdo é, de muito, a magistratura mais importante” (Leis, VI, 765). Mas é porque “O ponto de partida que convém na otdem politica... 6 o' de comegar por cuidar da juyentude, para que ela se torne tao perfeita quanto possivel (Eytifron, 2d): a educagio é politica porque a educacao, “ponto} de ‘par- tida”; tem conseqiiéncias politicas. Por isso, Plataéq define um itinerario pedagégico, nao em termos politicos, mas em 17 © relatério,de Romme é reproduzido, com outros textos, em: Cl Hipeav, L'Jnstiuetion publique en’ France: pendant ta Révoltition’ (1p81-1883), PP. 314-315. i 30 oo : “A MISTIFICAGAO alee termo$ culturais e metafisicos. Bem mais, Platéo dentincla vigorosamente os sofistas que, na Cidade, utilizam a retérica para fins politicos. Da mesma forma, em Rousseau, al edu- ‘cac&o de Emile deve prepara-lo para o respeito ao coritrato social, nias seu grande principio é seguir a Natureza. Quanto ao radical-socialista Alain, considera a poesia de Homero e a geometria-de Tales como as bases de uma educa¢gap que permitiré ao cidaddo. nao abdicar em face do poder. Assim, portanto, mesmo quando os pedagogos tém uma nftida| cons. ciéncia das conséqiiéncias — politicas da. educacio, -o eixo de .sua reflexio pedagdégica nao é ‘politico. Definem a edu 1cagao com referéncia ao muhdo das Idéias, 4-Natureza, & Ra: 280, a0 progresso espiritual e moral, etc. De sorte que sua pi Pee gia é-uma reflexdo sobre a Cultura do Homem, e nao; sobre 2 socializacao politica da crianga.. A pedagogia apresenta, sem cessar, a educagdo, como processo cultural e oculta assim a significagao social] e po- litica da educag&o. De fato, a educagéo néo tem apenas conseqiiéncias politicas. & sccial e politicamente deter: dinada. Nado_sao simplesmente os resultados da educagao que so po- Uticos, é também o proprio Riese 6 educativo. Se a leduca- cao -tem conseqliéncias politicas, € mesmo,’ precisamente, porque € politicamente determinada. Mascarando a signifi- cacao politica interna da educacio, a pedagogia nao é|vitima de um erro, de um esquecimento ou de uma negligéncia; de fato, ela funciona como uma ideologia. A pedagogia damufla ideologicamente a realidade econémica, social e politica da educagéo por tras de -consideracées culturais, espirituais, morais, filoséfitas, etc. O-que ela mascara, antes de tudo, é a significagao politica da educagdéo nuina see onde sevicia'‘a dominacdo de classe, é a influéncia exercida sobre a educagao pela divisio social do trabalho e pela classes, . Meu projeto, nesta obra, é analisar o suncionamento dessa pedagogia ideolégica. Como procede a saeologia para camuflar ideologicamente a significagéo econémica, |social e politica da educacdo? Toda pedagogia € inevitavelmente ideo- légicd? A elaboragao de uma pedagogia nao- -ideo| late é * possivel? Na medida em que a idéia de Cultura serve ad biombo .ideolégico para a pedagogia, comecarei_este estudo pela ana- lise do papel ideolégico desempenhado pela idéia de/cultura. luta de

You might also like