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stop. bons E DS’ TO; RitaAw ConPO F PSIQUISMO quarto. niimero da colegio MENTE, CEREBRO & FILOSOFIA aponta os caminhos seguides por dois Pensadores alemaes do século XIX: Schopenhauer Nietzsche. A primeira vista, suas concepgdes parecem ab- solutamente opostas. Assim, Schopenhauer sugere como modelos os santos e ascetas, que haviam se desligado do turbilhao de dese- jos que condena os homens ao sofrimento, Nietzsche, por'sua vez, rejeita 0 ascetismo ¢ os demais elementos da moral crista € propoe celebracto da existéncia; seus modelos sto Dionisio, o deus das paixdes, € Zaratustra, 0 profeta que ensinou os homens a dizer “sim” & vida, No entanto, os dois fildsofos se aproximam em varios aspectos, entre os quais um fundamental: 0 corpo, ¢ nao a mente, € © ponto de partida e o fio condutor para © conhecimento. Schopenhauer vé a vontade, conceito crucial de suas reflexdes, se expressar no corpo. Com isso, 0 “Eu penso? caftesiano da lugar a0 “Eu quero’, abrindo espaco part a manifestagio dos desejos inconscientes, E Nietzsche, que descobriv a filosofia pela leitura de Schopenhauer, desenvolve uma concepgio de corpo que abrange as ativie dades mentais ou psicolégicas em todo © organismo. Em outras. palavras, 0s problemas fundamentais do homem encontram-se no interior de seu psiquismo, que é parte da vida comporea Aruptura da antiga oposigao mente-corpo empreendida pelos dois fil6so- fos bastaria para recomendar os artigos desta edigao de MENTE, CEREBRO & FILOSOFIA aos leitores interessados em. psicologia e psicanilise. Mas a influéneia que ambos exerceram sobre esse campo do conhecimento vai ain- da mais longe. Por exemplo, Schopenhauer antecipou varias conclusoes de Freud acerca da teoria do recalque ¢ da loucura e teve um papel pioneiro, admitido pelo fundador da psicanilise, no reconhecimento da importincia do impulso sexual. Quanto a Nietzsche, nilo apenas afirmou que a vida inconsciente € muito mais poderosa do que a consciente, mas também parti- Thou com Freud a crenga de que o proceso civilizatério acarreta a repressio dos impulsos vitais. Além disso, proclamou-se “um psicologo sem igual” e, 4 psicologia, “rainha das ciéncias” ~ ainda que a psicologia fosse, para ele, basicamente um método de reflexao filosofica Emblematicamente, um ano antes dk morte de Nietzsche, Freud publi- cou A tnterpretacao dos sonbos, marco inicial da psicandlise. Os estudos do psiquismo reforcaram sua icentidade, ¢ 0 permanente didlogo entre eles ¢ a filosofia tornou-se ainda mais fecundo, gracas a0 novo interlocutor. ‘CarLos EDUARDO Matos ‘itor MENTE-CEREBRO FILOSOFIA AAEDAGAO MENTE, CEREBRO & FLOSOFIA D 13 AEDAGAO MENTE & céREBRO RATAMENTO DE MAGE: Cava Visa Ment, Crab & Faso Mert &Cérebo fred gla Gs og So ne no 3054210 "0 comm execurwo PUBLICIDAD ‘RCULAGAO E MARKETING mcueo mutrmaio SRENTE Marana Noon We oe Fnancas €cestio SUPER De TESDIARA: Aenea Sta CENTRAL De ATENOWHENTO AO ASSINANTE BRASIL: (17) 3086-6300 atondimento espago © as do entendimento, Estas de toda experigncia, como a c se setrcancialidade, a ago reciproca etc: Schopenhauer conserva dessas categorias ‘apenas 2 causalidade, que juntamente com 92,0 € © tempo formam o principio eeario. Mas essa no € a Gini inovagio ee oferece com relagio a0 pensimento Kant. O filsofo de Danzig consirdi sem losofia original a0 interpretar a coisa == que permanecia para Kant desco- beck, como a vontade, ruiz metafise dewerts realidad A chave para a decifracio do enigma Ssh na expetitncia interna do sujcto. Bis © autor, se 0 priprio filésofo mo Bee madi mais do que 0 puro sujeito see conhece, seria impossivel encontrar a Spicacio propria deste mundo. Mas a Teestade € que nunca se pode ir além da sepecsentagio: cla é uma totalidade fecha SE € milo tem, nos seus proprios meios, Ieeshum fio que conduza a esséncia da “ses em si, que difere dela inteizamen- =O comhecimento, -porém, tem como eecislo necessiria 2 existincia de um SPO, cajas motificagdes io 0 ponto @ panida do entendimento para a in- Se deste mundo. © compo € dado a0 Seto de duas maneiras distintas: como Sepecsentacio no conhecimento feno- Smeal € como principio imeciatamente “Sexbecido, como vontade. E, segundo Sstepenhaver, a vontade hum SEeGmeno mais adequado para represen- [Seo em si" dos objetos do mundo. Para ‘pede falar da coisa em si, Schopenhauer ‘geeedc uma analogia: ele estende a 1s fenvdmenos 0 que acontece com esdmeno humano, pois se eles slo tes 40 corpo. humano como “eprSentagio, 0 reso, pela sua esséncia, Seve ser 0 mestno que em nds chama- Sees vontide, jf que fora da vontade da Sepeesentaglo mio podemos pensar em © flsofo tira a seguinte conchust: “PSo somente as agdes voluntirias do ser ‘seta, mas também © mecanisino ongi- Seo de sua vida comporal, sua figura © sua “eeeformagio, assim como a vegetagio “> mundo das plantas, a cristalizagao no eno mineral e, de uma maneita ger Tet forca original que se manifesta nos os fisicos © quimicos, até mesmo Sr HSGmeno, is0 €, fora do nosso cérebro = & sus representacio ~ é perfeltamente Sewe mentecerehro.com.br Para Schopenhauer, a vontade constitui o fundamento de todas as coisas e, objetivada no corpo, afirma-se na busca da satisfagao das necessidades deste idéntico ao que nds encontrumos em nds sob a forma de Vontade, da qual temos 0 conhecimento mais direto e mais intimo que pode haver’ O CENTRO DE TUDO. A descoberta da vontade como cha para a decifragio do enigma do mundo € abordada no segundo livro de O mun do como vontade e como representagao. Nele Schopenhauer apresenta sua me tafisica da Natureza, na qual a vontade se manifesta. Independente da repre- sentagio € do principio de razio, essa vontade € cega ieracional. As formas rricionais la consciéncia sto meras apa- réncias, € a esséncia de texas as coisas seria alhela a razio, algo sem qualquer ‘meta ou finalkade, um querer ifracional © inconsciente, Segundo Schopenhauer, ‘© erro fundamental em que cairam todos 05 fil6sofos anteriores repousa na visto de que © todo da Natureza saiu de um intelecto, isto € que a realidade € 0 resultado de um plano racionalmente claborado, Para ele, o mundo fisico nao € © resultado de um intelecto criador, ‘mas © conhecimento i € um produto da Natureza, Fundamento de todas as ‘coisas, 4 yontade se expressa no corpo ¢ se afirma na busca da satisfago das ne- cessidlades deste, © primeiro objetivo do individuo € sua propria conservacao, por meio da manutengo da sate corporis quando a realiza, 0 individuo deseja apenas a propagaclo da espécie, A sa- tisfagio da necessidade sexual ultrapassa a afirmagao da exist@ncia particular, vai para além da morte do individuo, é a afirmacao da vida infinic essa forma, apesar da unidade essen ial da vontade em todas as suas manifes- tages, cada individuo se toma pelo centro de tudo, fazendo mais caso da sua exist@n- cia € do seu bemestar que dos de todo 0 resto, Este estado de alma € 0 egoisme, cessencial a todos os seres na Nanureza ‘Com base nesse fato, Schopenhauer cons- tata.a contradiclo intima que a vontade tem consigo mesma: “Ea contradig2o que rasga a propria voolade de viver em das partes inimigas e toma ume forma visivel [MONT BLANC, na Sui Ao contempld-lo, Schopenhauer teve a intulgSo do sublime PENSADORES DA ALMA E DAS PAIXOES 17 gragas a0 principio de individu lo. Esta divisio, este rasglo, € Como a inesgotivel fonte dos so- frimentos, as barreiras que 0 ho- mem imaginou par deté-la sto initeis”. A vontade consiste num esforgo que jamais atinge um alvo verdadero, uma satisfiglo final, em nenhuma parte um lugar de repouso; deseja sempre, sendo © deseo todo 0 seu ser. £ por isso {que 86 polemos conceber os seres do mundo num estado de perpénua dor, sem felicidade durivel. Isso porque todo desejo € sofrimento, enquanto nao € satisfeito, pois nasce duma falta. Como nao existe fim tiltimo para o esforgo, nao existe termo para 6 soffimento. TEDIO, DOR E REDENCAO {4 quem responsabilizava pela morte do pal A. partir dessa impossibilidace de sats to, dessa. perpesua condenazao 20 ce sejo, Schopenhauer estabelece a célebre femula: “A vida oscila, portanto, como uum péndulo, da direta para a esquerda, da dor ao tédio". O movimento da vida est submetido ao movimento do deseo, © 0 fei a alegria de se rec cevitar 0s aborrecimentos. Enquanto de nado pela vontade, ele conhece ap coscilagao en para Schopenhauer, o softimento é dlesejo "tem por principio uma necessida afirma seu pessimismo € critica as filosofias racionalistas crstis como as de Leibniz. e Hegel, que conce- bem a existéncia como a realiza ‘lo de uma idéia preestabelecida Schopenhauer diz ainda, ironi camente, que este € na verdade nelhor clos mundos pos siveis" (expresso de Leibniz. na Teodicéia), « sim o pior, jf que uma outra existéncia ainda mais preciria ilo seria sequer concebivel Apesar desse quadro Sombrio, a filosofia de Schopenhauer ainda abre espago part a beleza ¢ a bondade, No terceiro livro, 0 filésofo considera uma forma de conhecimento que apenas como instrumento para que a vontace atinja seus fins, mas também para 4 pura contemplacao da esséncia efetiva das coisas, das idéias. Essa contemplagio desinteressada das idéias intuiglo anistica e permiira que a vont de chegasse a conhecer-se a si mesma, Na arte, a relagio entre a vontade e a repre sentaglo inverte-se, a inteligéncia passa posiclo superior © deixa de ser ra escrava da vontade para ser sua es dl, uma falta, logo uma dor’. A alegria do trato de tod vida. Com esse raciocinio ele peta ide artistca revelaria as ‘Se Schopenhauer trata com Leibniz ensinou que este 0s padres “por aqui faze a (ANDID0 NA AMERICA tustragdo ironia a afirmagao de Leibniz canaeeice ‘guerra ao rei da Espanta e Sesiie te 1k Ge ‘de que este 6 “0 methor dos As peripécias de Cindido ‘mundos possiveis", algumas —_permitem a Voltaire, décadas antes a trase j representante do pensamento hava nspirado uma stra ——_ihuminista, satrzar alguns impiedosa de Vota: 0 aspectos obscurantistas de Aelcioso romance Céndido ou sua época. Por exemplo, 0 ‘0 otimismo. 0 tivo, pubicado _rapaz e seu preceptor so em 1758, conta a histira ——_condenados a morrer em um de Candido, um rapaz cujo ‘preceptor, o Doutor Pangloss, auto-de-t,organizado pela Inquisigdo portuguesa para incutira no discipulo a crenga _apaziguar os céus, depois, otimista de Leibniz. Voltaire que oterremoto de 1755 ‘conduz seus personagens de destruiu parte de Lisboa. Os ‘desoraga em desgraca, pela _jesuitas também sé vitimas Europa e pela América do da ironia do autor, Candido ‘Sul-mas Candido sempre _visita as missbes jesuiticas argumenta que as coisas ndo na América do Sul, onde seu podem ser tio ruins, pols, guia americano comenta que uum ato de 2 * mundo como vontade e come representagio| {ome 9 Arthur Schope “4 Schopenhauer e 0 conhecimento A razao como instrumento da vontade 70K BOUARDO BRANDKO Un Dos ASPECTOS ORIGINAIS ATRIBUIDOS 2 filosofia de Schopenhauer é @ inversio da relagio entre conhecimento e vontade. Ele proprio nao se cansou de chamar a atengdo para isso: a vontade € 0 prius do intelecto. E nesse sentido, entao, que se pode entender a idéia de que a razo seja instrumento da vontade, Mas, para tanto, € necessério precisar 0 que sto as duas para Schopenhauer. Uma das caracteristicas fundamentais de seu pensamento é a tensio entre representacao ¢ vontade: esta explica aquela, mas 36 por meio da primeira sc chega & segunda, E a representacio, embora indispensivel nessa relagio, 6 secundaria, Como a razio esté no plano da representagio, ¢ ficil deduzir que ela sera subordinada, também, & vontade, esséncia do mundo ~ uma atividade cega, sem fim, que permeia todo fendmeno. No sistema metafisico criado por Schopenhauer, o intelecto, que tem como forma geral o principio de razao, é 0 palco onde pode surgir o mundo na sua conexdo entre representagao e vontade ‘A representaglo. pode estar ou no submetida ao principio de razao. (Nader € sem razdo de ser, na formulagio de Schopenhauer), ¢ por meio de ambas as possibilidades € possivel ter acesso A vontade, ainda que com niveis dife rentes de clareza, Quando se di fora do principio de razio, a representacio = que € uma relagio envolvendo dois polos, sujeito e objeto — & chamada por Schopenhauer de idéia (lermo que © fildsofo remete a Plato, mas que rece- be também influéncias de Aristételes do neoplatonismo, €A morte. Do ponto de vista montade, os individuos sto meras apa- que permanece é a espécie da idea eterna, A morte nao atinge, dessa forma, nem a vontade, 0 ser em si de todas as coisas, as imagens temponiis $e subjetivas de apreensio do sujit {que estd na consciéncia, Eo desapare ‘cimento dessa conscigncia que justifica 1 temor da mo morte duo, 0 que ela proclama © como © individuo é €:0 que nos assusta, na € de fato a desaparicio do indivi 2 propria vontade pjetivaglo. particular toda a sua natureza resiste contra smo penluauer compari a experiéncia da perda da conscigncia ao sono. Para © autor, do sono profundo a mone, além de que a passagem se faz por vezes Inyensivelmente, como nos casos de con. selamer sono, € absoluta fo, a diferenca, enquanto dura o A mor ade ¢ nente nenun te € um sono em que a individu esquecida: tudo 0 mais despena de novo, Du antes, permaneceu acordado.” Par quem remete a identidade de sua pessax somente a sua consciéncia, a morte € com ceneza uma aniquilagdo absohita: do nada e volta part 0 nada, pois tudo © que um dia comega tem de terminar no é posstvel a imortalidade a quem um ia nasceu, Mas a intencao principal de Schopenhauer, com ser a de conduzir 6 leitor a0 desapego da dda identidade subjetividade, no. sentide da vontade sobre o intelecto: "Na palavra 1, entretanto, encontra-se propriamente © maior dos equive nheceri quem tiver presente 0 con- > Ide Mundo como vontade e como representa Gio) ¢ a distingao li efetwads entre as par ies volitiva e cognoscente do. nOsso. set tetido. do nosso segundo I Segundo a maneirt que eu. compreenda A mone é0 meu inteito fim’, ou também: ‘De mesmo modo que sou uma parte o infinitamen: te pequena do. mundo, assim também aquela pakivra, posso dizer esse meu fenmeno pessoal € uma parte gualmente pequena de meu ser verda deiro Mas 0 Eu € 0 ponto obscure nit © ponto de entrada de vo tico que é te insensivel, 0 corpo solar é obscuro © 0 > prio cérebro € tot coho tudo vé, menos a si mesmo’ assim que a metafisiea da. vontade serve como consolo: o homem pode, pela ro, pek cconhecimento. mais objetivo ima de véu de Maia, e ver que a individu € um mero fendmeno, ¢ que, a mote no atinge seu set verdadeiro, Assim, permanece 0 ser em si intocado pelo fim de um fendmeno temporal e conserva sen acquela exisifncia, a qual nao se aplicam as nogdes de comego, fim & doragao. Tal se ‘comhecer, s6 pode consists, segundo © autor, naguilo que em nds € nossa vontade, e no, como se acrediton nna tradkto do racionalismo cristo, 1 ‘conscigncia, ou na alnya imortal. © conso: Jo que se tem com essa doutrina nao se ‘oncle possamos MINIATURA de 0 tv de bons costumes de Jacques Legrand, ‘steulo XV. 0 individuo morre, 2 espécte ¢ eterna pécies. Considerando 0 zelo infat migas © a industriosa atividade das abelhas, entre outras ‘sabedoria da » podemos deixar de ‘gavel das f manifestagoes da Nature ‘nos perguntar pela finalidade de tanto esforgo ¢ de tanta arte. Mas no vemos mais que a satisfagdo da fome e do instinto sexual, € etal Rem ase 4 ace tH Ne We filer alguns cutie comets de uma parte, a engenhosidade inexprimivel do empreendimento, 1 riqueza indizivel dos meios e, de outro, a pobreza do resultado perse temos de admitir que consolar © homem da finitude de sv individualidade, Mas se a vida santida eternamente & vonta vida deve a. qualquer concesso a um sentido aque ultrapasse © mundo, a transcendénciamilhares de sofriment alguma; é a propria vida que justifica a si ‘mesma através da série infindivel de suas manifestagdes. A atividade da vontade, co- ‘mo um impuiso sem consciéncia, é o que Afirmar essa vida é tade de viver, que consiste num impulsc inconsciente pela existencia animal vemos « infinita div formas, as modificagdes incessantes as quais elas se submetem p do. meio, também iqualmente perfeita em tod duos que preside permanece, nao uma alma imonal, jf que © proprio intelecto nilo passa de ume das figuras em que a vontade se manifesta a arte inim FELICIDADE NEGATIVA Essa teoria consoladora da morte, bases idea oriunda das filosofias onientais, pode mecanismo, a inesgotive! q) da no. desapego & nogio de “eu forca que empregam, tu da conservagio de sua O RELOGIO HUMANO miséria universal, fa Jo cujos lucros io cobrem, nem de longe, 08 gastos, A vida do homem também nao: se apresenta como uma didiva, mas’ sim fa, como uma divida da livrar, No todo ou talhe, © que vemos no € senao ga sem uegua, em fim, mas a devemos lidade de tuclo © consiste apenas em assegurar durante um €urto espago de tempo a existéncia de individuos ef: meros e atormentados. A alegria do ho- mem & apenas um felicidade negativa, Para Schopenhauer, tédio, dentro, 60 curso da vada eo curso de sua vida é apenas Macbeth, Ato 5, Cena V, na ‘na qualidade de parte ‘maior parte dos homens. uma um sono cuto ‘qual Shakespeare faz 0 integrante da vida condenada espera tola e preocupante, uma a mais do infin espiito ‘rotagonista afirmar que a ‘a0 sofrimento que éado marcha tubeante através das da Natureza, da obstinada vida é “uma historia contada hhomem, constitu arevelagao quatro idades da vida até a vontade de vive, apenas mais por um iat, chela de som © da incapacidade que este _morte,nacompanhia de uma uma imagem fugidia, que a —_‘furia,significando nada", tencontra para dar um sentido procissdo de pensamentos __brincar ela esboa em sua tela ‘sua existéncia. Uma vez trivia. Els assemelham-se a infinite, oespagoe o tempo, € assegurada, no sabemos —_relégios que so montados © Oe CEtneam 6 i ter ‘que fazer dela, nem em funcionam sem saber por qué; ‘que a empregar. ‘cada vez que um homem € Ofiésofo compara entio _—_gerado enasce oreligio da ‘oser humano a um reldgio vida humana é novamente ‘que segue estupidamente __montado, para repetr mais ‘© curso do tempo. avez seus inumeraveis ““E na verdade inacreditavel 0 estribihos, frase por frase, ‘quanto insignificante e vazio de medida por medida, com sentido, visto de fra, eestinido variagées insignficantes, Cada ‘iefitido, apreendido de ——_indvduo, cada rosto bumano 26 MENTE, CEREBRO 6 FILOSOFIA SSOWO, TELA de Francisco de Goya, c. 1800, : sria do homem “mittee wm eso est em um acto ene 0 tédio © a do € t t snimaissofredores, ¢ um mundo que de felicidac ive poet aaa rece de viver uni mundo, pod mato nto € nko, fudamento 1AVeiS — LiBERTAGAO NA BELEZA ecimento de €, assim, evité dos individuos, aqueles que afismam er. Ea oe sates ‘ontade encontram sempre novos moti 0 sofrimento ta que nos in amc nt pode are Wo no, dos olhos, Quem chega ao conhecimen- sunge apenas con 0 da vo esta Se apresenta se situam 10 Tal ato€ possivel quando nos colocamos dessa liberia alguém que, comprando 0 dos outros, quando considera A satisligio qu ciéncia de si quanto a0 proprio inter. Aquele que atinge tal estado de 0 g otho do mun: nga com a possbiidad onhevimento do mundo nto pode, se- do, enquanto observa como espectado 1 favorivel pela mio do gundo Schopenhauer, deixa desinteress peticulo que the ¢ ice ade todo 10 das coisas, cle conhece su « bilize em agoes traduzs stos do dai, mo pode mais aficmar e ele vé que ela c produz um conhecimento. medi objeto que deixa de estar submetidi mas de conhecimento do temp pago © da causalidade, tran: Jo-se na idéia fora do tempe tiplicidade. © genio constiu aptidio preponderante para tal contem nlagio, pois esta exige um esquecin 10 completo da personal erfeita visio objetiva A P77 Le % s es O ae} Ce ry ea a ee Peer rayon S peepee Toa) dis cbjeos ec © DOS SANTOS 1 nos desviamos ane px : tos adquirem_ um fo Justo e a itGria do in pea atsfch0 ¥ Diante dos hom miséria e os sofrimentos da vida, 0 que 2 recusa da vontade de viver. redencio oferecida pela ane ni PIERRE ALEKANDRE WILLE, 0s sitinos ‘momentos da esposs . a vida, poi mada, 1784. & dor mnomento fugaz. O mundo nao € uma & tem prosenca permanente no otilano, ainda uma libentagdo definitiva » passa de um ver" € verdade; “mas ser é bem ‘e0isa”, Assim, 0 conhecimento da do querer em todos os seus 308 © a percepyao do conjunto coisas, de sua esséncia, ¢ de que ela See num softimento continuo ¢ sem dade conduzem 0 homem ao mais Jgrtu de consciéncia moral: a nega- ‘Gh vontade de viver, “Doravante, a desiga-se da vida: ela estreme- de seus prazeres, nos quais jece uma afirmagio da vida,” cchega a0 estaclo de abnega -soluntiia, de resignacao, de calma €-de estagnagao absoluta do ‘A sua vontade dobra-se, ele ji afirma a sua essencia, representada elho do fenémeno, ele a nega. A homem que, para Schopenhauer, paz de espirito vem com a rentincia "a0 mundo e a todas as suas solicitagdes, como fizeram os € 0S misticos tudo, jé mao basta amar os Bs como a si proprio, e fazer para "© que faria por si mesmo: *Nasce fem desgosto contra a esséncia, de prSprio fen6meno € a expres- fa a vontade de viver, contra a © © miicleo daquilo que € um sepicto de cores’. swendadeira redengio se daria entio cia quitista a0 mundo e todas seliciacdes, na mortiticacio dos ‘na auto-supressio dda vontade -aleangaria uma paz mais precio- fe saxios 08 tesouros da razio, uma t do espirto, uma sere- Sepemurtsivel, tal como Rafael € /pintaram na figura de seus san- jwseeta OW santo que realiza com- # negacdo da vontade de viver ‘viva dessa negaa0 que, no beo.com.br centanto, constitu a viniea possibildade de redengio. O suicidio nao 6 um caminho adequado, pois aquele que se mata, em vez de negir sua vontade, a afirma de ‘modo violento. E precisamente porque rio pode deixar de querer, © no aceita a impossbilidade de realizagto de sua vontade, que 0 homem comete suicidio, AA vontade afirma-se no suicidio pela pro- pria supressto do seu fenmeno, porque Hi mlo pode afirmar-se de outro modo. O hhomem que poe fim aos seus dias leva a violéncia ao auge e acaba apenas com a ‘iusto da individuagto, mas nao convene a vontude. Somente © conhecimento po- dle suprimir « vontade. Schopenhauer faz assim elogio das virtudes criss do ascetismo, da caridade «¢ da castidade, enfim, virtues negadoras da vida, Com essa negaglo total. tudo se precipitaria no nada, O o-querer a exisiéncia tal como ela € nos evoca algo ‘outro, co qual no podemos ter um oo- ‘nhecimento positivo, mas o-s6 negativo. Aqui a filosofia se cala e Schopenhauer abre espago. para o misticismo, tinica tentativa de expressto do inieiramente outro, © mistcismo, entretanto, permeia toda essa filosofia que se baseia na con- viegio de que “0 fundo e o solo no qual todos os nossos conhecimentos e ciéncias repousam & 0 inexplicével”, @ PENSADORES DA ALMA DAS PAIXOES 29 Em sua metafisica da vontade, Schopenhauer se propde “desvendar o enigma do mundo dentro do préprio mundo e nao fora dele” UCLA CACCIOLA profesor astra da lsfia maker tualidade e Schopenhauer OQ "eu quero" abre caminho ao inconsciente om wants Lucia LeVAR EM CONTA HOJE EM DIA A FitosomA de Schopenhauer sig- nifica principalmente repensi-lo a luz das reverberagdes de oud seu pensamento, tanto no Ambito filosdfico, como na toria psicanalitica, ou mesmo. nas artes. Tomar tal partido nao exime porém de uma leitura atenta de seus textos, 0 que exige a busca de sua insergio na hist6ria da filosofia. Mas nao se pode esquecer que, a0 reconstituirmos historicamente os passos da reflexiio do fildsofo, estamos sempre interpretan- do seu dizer de acordo com nossa visada contemporinea. A Partir dai retragamos seu caminho, buscando sua idéiaguia. @ 0 que Schopenhauer traz de modo manifesto para a refle- xo filosofica € a inversio da importancia da razao em relagao & vontade. Sua obra capital, O mundo como vontade e como representacdo, apresenta a vontade como o cere metafisico que se apreende por meio de representacdes que temos dela, Os pontos de vista da vontade e da representacdo esgotam 0 saber sobre 0 mundo ¢, embora de modos distintos, permitem 0 fil6sofo construir um sistema, semelhante a um organismo em que todo ¢ partes se implicam, exigindo-se mutuamente. Essa dualidade, que reproduz aquela entre o fenémeno ¢ a coisa em si, mostra 0 seu apego a Kant, que ele considerava seu génio inspirador. 31 xisténcia do mundo, So assim descar adas ambas as posturas dogmiticas, a ue 86 cré no sujeito como origem € a 1c Ihe € oposta, sustentando-se apenas 1 matéria ou no “objeto”, Para resolver O ENIGMA DO MUNDO A efetivid erigncia € que toma possi dela ¢ este € 0 conhe comm e a base para sal Mas esse saber, referente ai imento, € fugaz, pre cisando dk é, da palavea para fixarse. S guagem nao have ia ciéncia p lita, ji que essa exig fe 0s homens. Para Schopenhau sito, abstrato ma a palavra os daquele conhecime nas 0 poder de pstrait, que ria racionalidade tiva en animais; 0 que Ihe TAXI DRIVER, filme de Martin Scorsese, 1976: a forga dos impulsos na psique xc-los, sem o que nao teriam qualquer al sturo, Alids, as dimensdes do tempo, passado e futuro, nada mais si0 Schopenhaueur inscreve-se no movimen-_ sendo este um produto do organismo, e que ab > & possivel nem to do idealismo alemao, por considerar ainda que a funcio propria do intel imaginé-las, sem pressupor a racionalida: ‘como o primeiro dado 0 sujeito © suas é a preservagio do individuo. Eis ai ode q nte. A propria onganizacio idéias ou representagbes. Ao descrever 0 que leva Schopenhauer a uma visio mais dos entre si, em sociedades ou snhecimento com base em representa- conereta e mais intuitiva do mundo. Isso Estados, depend do universo conceitual (des, oll sefa, naquilo que se apresenta nao o impediu de condenar o materialis- ou da linguagem. mara a percepcio, 0 filésolo se atém mo, que terla ingenuamente conferido 8 Ji_de inicio, pode-se constatar Excitamente A proposta idealista. “O matéria uma primazia causal, forcando a que © propalado itracionalismo de mundo é minha representacto" € pois, _admitir s6 como produto ‘que ji Schopenhauer é, se nao um en para Schopenhauer, a primeira verdade estava seeretamente pressuposto desde pelo menos um equivoco de leitura, que I se impor, No enfanto, a0 propor um 0 inicio, a saber, a consciéncia. Mas faz com que aquilo que ele considera outro ponto de vista, o de que o mundo a contrapartida € igualmente criticada, ineapaz de ser do pela razd0 stade ou quererviver, afista-se pois, para o filésofo de Frankfurt, tam- pela linguagem, a saber, a vontade como p F > a pouco do idealismo, traze én o sujeito que conhece nao pode ser impeto cego, impulso incessante, invada Jqmentos estranhos a ele, como tomado como causa, Isso faria com que indevidamente 0 Aambito da representa © fisiologismo © © psicologismo. Um a -existéncia do mundo dele dependesse, <0, onde vige © conhecimento inmitivo fexemplo disso € a consideragio dle que levando como consequéncia desastrosa_¢ abstrato, referente respectivamente 20 , pensamento tem sua base no cérebro, a um ceticismo solipsista, ou sejt, a0 entendimento ¢ a razio. A filosofia 56 ser um conhecime € um discurso ou log imos BzI0 =, € 0 filésofo & aquele que © se express racionalmente Quanto & vontadk ‘sista sobre © mundo, gundo ponto ‘como querer uma mera atividade cega sem qual: determinagio, contraposta assim Sepresentagio, mesma coisa que o ©, qualificado como algo por meio Suis propriedades e relagdes. Como esa atividade nao poderia ter nome, este tem de se referir sempre a uma sentacio. Porém, Schopenha nomear esse algo em entrapondo-se a Kant, para quem a fem si € uma incognita, O nome made" € tomado de empréstimo a que se di como represer ade humana, mas essa escolha nio ual, ¢ sim emprestaca do fendmeno amiais se assemelha a essa atividade (© querer humano, Pode-se perguntar por que Bopenhauer opiou por dar um nome que € em si, © nessa condigio € minadlo, © $6 na sua manifestagio ia de fato ser nomeado. Quanto a questio, sugiro algumas possibili Em primeiro lugar, 0 fato do em emo vontade ter de fazer parte do puso filosdtico, ja que € a contrapar mnecessiria do fendmeno ou do obje =a outra fuce da ua", no dizer de epenhauer, Em segundo lugar, para rapor-se mais tirmeme nfagdes, sejam elas intuitivas ou © desaii contrapor-se 4 um intelecto ordena: que criasse e regulasse o mundo de dele, confundindo-se assim com o dos metafisicos dogmiticos. Mas onceito de vontade como essén- fe marcar a vontade schopenhaue como coisa em si, eka nao tem quer alvo ou propésito, na r até mesmo por que em geral ela se festa, deixando 0 repouso, o fil6so- ta: essa pergunta transcenderia 0 individuo é constituido pelo sujeito do conhecimento e pelo corpo, onde a vontade se manifesta diretamente: os atos desta e os do corpo $40 0s mesmos qualquer conhecimento possivel ¢, por isso, tem de ficar sem resposta no mbito, a filosofia. © saber filoséfico nao tem 0 direito, nem qualquer credencial sobre algo que nao seja 0 mundo, ou que se situe para aquém ou além dele. Nas palavras de Schopenhauer, trata-se de ‘desvendar 0 enigma do mundo dentro do proprio mundo ¢ nao fora dele’ O ULTIMO VEt Um dos pontos-chave para a _com- preensio dessa filosofia que admite tum dominio. nto consciente, fora da representacio do sujeto, € distingui-la da vontade individual, dirigida pelos ‘motivos apresentados pelo intelecto, De fato, para Schopenhauer, 0 individuo & Ainda 0} igem da primeira neste mpeto da yontade a mer que importa para © afeto A meméria afetiva conser a0 dk lesempenha, de guia lo individuo, o faz dife manutengao da 0 proprio Freud quem Ness «© Fragmentos para a histria da sofia ‘tur Schopenhauer Tradurdo de Maria Lucia | Caccila tuminuras, 2003 | » A fosotia do iuminismo, Est Cass Eounicame, 1982 Compostos em sua maioria por aforismos, os textos de Nietzsche criticam os fundamentos da cultura ocidental POR EDUARDO BRANDAG © PROPRIO Nierzscitt: DeRMNIL-S como um extemporineo. Em certa medida, 0 Contato com suas obras comobora essa imagem: embora nascido em 1844, herdeiro dos temas e problemas do século XIX, cle poderia ser considerado um pensidor do séeulo XX. Nao por acaso, ele € um dos autores mais presentes até hoje Heidegger, Deleuze € Foucault so exemplos recentes. dessa influéncia, que se mostra também em Adorno e Horkheimer, frankfurtianos da primeira geragio, Isso sem contar aqueles que refletem sobre Nietzsche (contra ele, muitas vezes), como Vattimo, Habermas e Sloterdijk. Ou seja, & preciso perceber que Niewsche, filho de seu tempo, também antecipa € configura para © século XX 0 tratamento de certos problemas fllosdficos: como i se ele digerisse (eis uma metifora completamente nietzschiana) os temas de sua época e, com sua filosofia, apontasse para um novo horizonte de tratamento dessas questoes. shite N ietzsche em Nietzsche questiona a filosofia, as artes e até as ciéncias como produtos de uma civilizagao decadente O PENSADOR ERRANTE Nessa diregio, suia obra se assemelha a ‘um labirine ‘mim, sabe Ihante aluno ter, Manifesta-se de © mergulha no de Universidade de Basiléia, na Sulga: On 0, € 188) ele & interac agédia (1872) e Humano, em wm dlinica de Basia, sendo depois (4878-1879) A outta twansferido para Jena sm final de viel s Forster fh image ag falsif xr um livro (A vontade de po ani lL nes dele, Tiste fim para um dos Abruptamente cortada pela doenga idalosa desenvolvida até nta para uma primeira dificul iniclo de uma espé ‘ofia de Nietzsche sera elaborar todas seas faceta vessidade de uma critica x alores, seja da civilizagao © da cultura) € de estatuto dessa critica, Em outros termos: omo a critica radical de Nietzsche pode escapar de si mesma — como evitar que filosofia, Se, por um lado, as questes tradicionais sao rev seu olhar iconoclat surge impetuoso « Nietzsche do século XX =, por outro lado har precisa ser construidlo: CIVILIZAGAO E CULTURA Uma espécie de portal de ingresso seria lerar a critica da civilizaglo, No ra Mundial agdes (por que, a0 a dade, no ¢ superior 0 entanto, 0 que sig sifica a “maturidade de Nietzsche. Nao se deve: per der de vista que tl feritica ndo surge inte ss em suas. primeiras publicacoes fento da tragédia e Konsiderasoes extempo- mineas, escritas sob forte fefluencia da metafisica da Sentade de Schopenhauer © da fenisica de Wagner, que sio ai apr Sentadas como uma espéc e salvagio da cultura alema. A relagio de tibua fom os dois autores serd paradigmatica fpara Nietzsch & contrapartida da radicaliz Eensuri 2 civilizaclo ou. Semmos, 0 efeito necessirio das transfor Seacdes de sua filosofia. Em Humano, Memasiado bumano 0 tom ji 6 outro fembora, é claro, nao se configure uma Septura total com as obras anteriores) © aparecem mais depurados os temas Ipemcipais da critica acida que rou 0 fil6sofo, movimento que cont tus em Aurora ¢ nos quatro primeiros eros de A gaia ciéncia, Nese percurso Seem que Assim falou Zaratustra pode Sr considerado © ponto embiemitico Se consolidacho ~ os ataques tornam-se frais profundos, © entio o anti-hege Geaismo de Schopenha Gsmo de Wagner nao gessiveis. Trata-se de promover uma Setica mais ampla 2 filosofia, & arte, a5 Geacias como produtos de uma civiliza Ge que tein seu modus operand ques Henao. Fis af a critica da maturidade, ie se consolida a partir de 1882. Impde-se ilise dos Eeecanismos que acompanham a civil Isao € a cultura até entdo. E Niewsche, = na filosofia marcado por Sebopenhauer, permanece um antichege Hee, mas a seu modo: a civilizagao & cultura seriam produtos também da Eesonalidade que, assim, & um dos ele- Eesentos cenirais a serem avaliados. Na See nietzschiana 2 rato, combater-se Eeieais que a tom: faculdade’ Hesear de “milagres" como provar a exis € 0 afastamento deles, to de sua [AMOR NO EMARANHADO, aquareia de Edward ‘Burne-Jones em que Aridne aguarda a volta de Teseu do labirinto, século XIX: Imagens recorrentes em Wietzsche téncia de Deus ou chegar ao Absoluto. E como nao se watt ai de recusar a raz30 em bloco, mas de reavalis-la (Niewsche ‘nao €, de modo algum, um imacionalis ta), ela deixa essa instincia que um tanto secretamente, se alojou nut sujelto transcendental ou se desenrolou de modo misterioso na hist6ria 2 busca de sua realizagio, © se tora um instrw ‘mento que funcionou ao longo do tempo para lograr certos resultados. Fla perde assim, o estatuto de guardit da verdade produtora de centezas ou guia infalivel MEeTAFiSICA DA LINGUAGEM Nesse percurso, sero criticados outros aspectos vinculados a articulago entre Gvilizaglo, cultura € razio. A lgica por exemplo, seri para o Nietzsche ¢ maturidade uma convengao: em vez de verdade, fornecedora de critérios de ela € uma ficglo sti, truto humano entre outros, feita para tranqdilizar, para proporcionar uma compreensio conceitual da existéncia Nessa elaboragio de regras, conceitos, juizos, a linguagem tem um papel fun- neio em que tais fic ‘goes se cristalizam e se hipostasiam em. ceritérios da realidade ou. na propria rea lidade (esta propria também uma cons dam éo (0 OVO DA SERPENTE, time de tngmar Bergman, ‘amblentado na Alemanha pré-nazista, 1977 dos alvos principais da critica nieteschiana. O fildsofo escreverd, em varios lugares da obra, deniincias ficgdes que se conso- lidaram através das fun des gram guagem: 0 sujeito © seus (alma, tomo, substincia ete), correlatos. a nogio de sa (e Seus comrelatos: causa sui, causa final ete.), coisa ou objeto, entre outras, Num conhe- cido fragmento de A gaia ciéncia (§ 354) estabelece-se uma correlagao dire- ta entre o desenvolvimento, da lingua- gem e da consciéneia: eis outra nogto que, na esteira da critica a0 sujeito © a razio, € questionada por Nietzsche Assim como alin se desenvolve conforme a necessi de comunicagao que se es um ser humano € outro, Desse modo, todo 0 ideal de conhecimento e verdade ‘que moveu a civilizagio € reconsider do sob uma perspectiva que 0 ¥ de mais nada como uma espéci trumento a cumprir centas fungdes (por exemplo, de dominagao), \gem, a consciéncia tabelece entre Esse proceso nio isolado, Numa espécie de simbiose, vai se eristalizando paralelamen a ele um conjunto. de crengas que, também hipostasiadas, su gem ao mesmo tempo como resultado catalisador da transformacio dag ficgoes em critério da realidade (0 que Nietzsche chamaria de *vontade de ver dade"). Um primeiro conjunto dessas crengas € a metafisica — a gramética € cchamada a *metafisiea do povo’. Nogdes ccruciais da metafisica e da filosofia em varias. €poc sensivel « inteligivel, verdade € aparén ca, fendmeno e coisa em si, liberda de, bem sao, todas elas, tributirias da gramitica. Eu, ser, nada so, no limite, conceitos que constituem as. “malhas da gramitica, que enredam o homem em uma “necessidade metafisica’. Desse modo, forma-se um citculo: © aparat logica/conceitual que possibilita a cons tmugdo de uma metafisica € a0 mesmo tempo erigido em prol dessa metafisica deve Nesse diferengas que possibilitéla sentido, as sxistiriam por exemplo Plato ¢ Kant diluem-se sob um da metafisica nivela a imensa maioria dos filésofos nessa espécie de vala comum demarcada por um processo que s6 estabelece diferencas de superficie. Para poderem iver, os homens tém necessi dade de estipular permanéncia, unidade identidade, substincia etc (eis 0 que semelhantemente, fazem a nogio de idea de Platdo © 0 sujeito transcendental kantiano); mas isso, cristalizado pela lin tasiado em uma “faculdade”, a razao. O NIILisMo Ve-se cultura sto também resultados da racic. assim que, se a civilizaglo © a de consolidagio de certos “desvios da linguag que também produzem, aquilo que se chama metafisica. Mas Niet no mesmo. movimento, outros desdobramentos dese provesso: A ‘razio’ ria linguagem: ob, que velha, enganadora personagem femininal Temo que mio nos desvencilharemos de Deus, pois ainda acreditamos a gramética (Crepnisctlo dos fdoles) Assim, am outro 42 MENTE, CEREBRO € PILOSOFIA Nietzsche associava 0 cristianismo, “platonismo para 0 povo", 4 moral dos fracos e dos escravos cconjunto de crengas que ganham corpo a partir das hipéstases da linguagem so as teligioes, € as diferengas entre clas ser20 também, dese ponto de vista, superti Cais. Existem ainda semethangas entre as religioes e as metafisicas ~ filho de pastor protestante, Nietzsche escreveri que « Cristianismo € o platonismo para o povo: AO sera enflo por acaso que filésofos como Kant, ou mesmo um atew como Schopenhauer, sejam, no fundo, cristios. (© que se explicta, sintomaticamente nas respectivas doutrinas morais Cad rtd exemplo de crengas a serem reavaliadas em sua critica, Por tris, entto, das construgdes da lin guagem ¢ da racionalidade, dos edificios metafisicos ¢ religiosos emente, uma perspectiva moralizante, © 08 textos de Nietesche sempre ecoam esta pergunta: a que moral serve tal ou ‘qual posigao? Eis como se apresenta, na aturidade do filésofo, o tema da moral da décadence lizagio de entio ~ 6 nesse regis, por exemplo, que se deve ler 0 embate entre moral de escravos © moral de senhores da Genealogia da moral, que a mesmo tempo aponta para a saida desse impasse dh civilizaglo “denu nietzschiana. f importante frisar que, no limite, todos os aspectos da critica que ado" pela filosofia a (0s. questionamentos sobre a razlo, a metallica, a Iigica, a ‘Sio muitas as passagens em —_repudia com veeméncia, ‘no Ambito da propria psicologia, com a psicologia ‘que Nietzsche se define como Mas.a procedimento ¢tpico de como uma érea especfica clinica, e nisso lum psicélogo e defende a Nietzsche: ele toma um dado do saber, seja no dmbito de —_se apresenta um desatio ao psicologia como um campo conceito da tradicao filosdfica _outras ciéncias, das artes ‘seu leitor de hoje. Para ele, a fundamental do pensamento. _e the dé um novo sentido, em da filosofia em geral. Um Psicologia era sobretudo um ‘Numa delas, em Além do bem geral uma inversao do antigo. ‘exemplo: embora Nietzsche método de reflexao filoséfica, _ @.do mal, ele “revindica”, na No caso, a psicologia teria no tenia sido 0 nico nem por meio do qual seria ‘de psicdlogo, “que —_ uma funcao similar @ que tinha _0 primeiro a refletir sobre 0 possivel atingir os valores 2 psicologia seja novamente_ antes, de ser um “caminho para inconsciente ~ basta pensar em —_morais atuantes numa dada -reconhecida como rainha das —_os problemas ‘Schopenhauer -; toda a atengo forma de vida (um individuo, ‘ciéncias, para cujo servigo e Mas a dreglo, agora, ¢ oposta que passou a ser dada a essa uma sociedade, um povo), existem as demais & da antiga psicologa racional, esfera pode ser compreendida _¢ a partir cisso possibiltar Pois a psicologia é, porque a prépria nogio de com base nessa influéncia uma transformago * ‘vez mais, 0 caminho para foi inteiramente ‘geral. Afinal, Nietzsche no algo talvez coincidente com _ 08 problemas fundamentais”. 08 problemas cansou de afirmar que a aquilo que ele chamava de _Apprincipio, parece estranho _fundamentais do homem no _consciéncia ¢a mera superficie “transvaloragdo de todos - que ele fale num retorno esto numa alma etérea, que de um processo muito mais 0s valores”. Que Nietzsche _condiedoderainha das futuaseacima do corp, mas amo eprofundo do qual so sire como chave de tur, _ iéncias, pois este era um ‘sim nas profundezas de nossa —_podemas ter uma percep¢ao —_—_—portanto, para pensar as. _ Papel que cabia @ psicologia _vida psiquica, que é parte da —_vaga e indeterminada. A diversas questies que ia qual, como parte vida corpérea. vida inconsciente em outras _subjazem ao viver humano | metatisica, estudava a Tal inversao é, certamente, alavras, é muito mais. em geral, é talvez a melhor _ alma humana entendida ‘uma das razBes pelas quais _—_poderosa do que a consciente. _sugesto para quem queira como um tipo de substancia ‘Nietzsche viria a exercer tanta ‘Nao se deve confundir, entender esse fildsofo que se erode ax corpo siree influéncia sobre a compreensio —_porém, aquilo a que diz um “psicélogo sem ". ‘que Nietzsche ‘do humano no século XX, soja ja ‘FERNANDO COSTA MATTOS stigito, a moral, alinguagem) convergem ge Jogia de Foucault ou ainda a andl © © mostram interligados, como faces Nachgelassene We se da linguagem do Wittgenstein das mesma postr 0 niliomo, marca Investigagoes logicas para atestar isso, sexiirada do que se chamow até entio Tae € na sua superagto (aquilo em nome Srilizicio © cultura, Razio, metafisica, de que se faz tal condenacao da civi fen igo Ce meno 2 ane, oo a DOSE Wille Zur Mace oe acco nctschans sect), caleacas a linguagem, com suas se mostra tibutirio do. século XIX Sspectativas, diccwomias, com seu ideal SATA AME MMOMMNSEERMAEE So onis coe ans c ctcacan, e conhecimento, de verdade, de reden- sua unidade a partir dat Percebe-se So, movermse todas sob uma espécie nn. Bice ent2o que a critica e a saida para seus e comando que nega esta existéncia em ~ impasses tem uma raiz comum, Se aqui some de algo que e © mundo in Mende, 0 Espitio... em fim pessimismo (por exemplo, o de Schopenhauer) que no super a neces além ~ 0 paraiso, a tazto de cheimer, 0 diagnéstico legger, a genea- Friedrich Nietzsche, amie at tg Re e cireulo é poderia mos ilustrar, & partir da Genealogia da ‘moral: assumir uma moral de nobres ou de fortes, Ao se vislumbrar como se da da décadence, escapat de: assumir uma outra postura CRONOLOGIA Nasco be Faiepaicit Wisi Nierzsci et ROBCKEN, YHAREO rexto De Lac 558 Roce > COLEGIO REAL DE PORTA. [sce Na UNIVEREDADE DE BOSS. 65 TeaNSee-sF aka LEG, ONDE 1869 Tomas RORESSOR DE MLOLOI. NA UMIBSINADE DE BAST a 1879. 1872 Punuca. © xascnato na Tend 1873 Islan A FUICAGAO se estinDe are 1876 S578 Pomica, NESTE ANO F NO SHoUTE ‘0s DOS vOUIMES DE HL, 881 Pumice AtwOe 1982 Lane 08 pauminos QUtNO LvROS APARRCRUA ft 8B) PASM ‘OONCALIDA Hs IBBS, 185 Langa AUN D0 mW BO MA 1887 Penica Giearocrs ne onal 1888 Posuca 0 e480 Wace, rear dict ea Dorma 8) ‘Tio wa. onst De peu este movimento no interior da filosofia de Niewsche, enxerga-se em que medi: da ele também é filho de seu tempo. Trata-se, para o fildsolo, de perceber como os mecanismos dé pacificagio da existéneia (presentes na linguagem, na razdo, na metafisiea, na refigiao, na civilizagto. de modo geral) que caracte 1900 MonTE ie: Patric NT2sc, Ex Wena tizam a décadence St enfraquecedo- res da vida (por exemplo, a moral de ‘escravos), escapar disso € optar pela via inversa, que promove a fortificagio da vida (por exemplo, a moral dos nobres). E inevitivel, assim, que Nietzsche recaia mum discurso. que mescla filosofia «, por exemplo, biologia, coisa comum no século XIX, Esse esforgo resulta na ‘RICHARD WAGNER, rotratado por Casar Willi, 11062. Na juventude, Mletzsche fol seu admirador CCRIANGAS BRINCAM com magos de marcos, em 1823, na Alemanha assolads pela Inflagdo teoria do poder: no limite, a tendéne ‘da vida € busca nessa direglo que se encaminham, por exemplo, a moral doy nobres © uma filosofia que no seja decadente 0 sentido da afirmagio da vida (em vex do ressentimento, do pessimismo, da negagio da. vida): para elaborar isso, Nietzsche vincula vida, poder ¢ sua nogio de vontade de poder, que seria justamente © nome dado por ele 4 essa tendéncia a0 acdimulo de poder ‘que caracteriza a vida (boa parte do processo civilizatério, entao, € deca- dente, fraco, sintioma de uma espécie de doenga a saride nietzschiana, assim, ‘exige outra postura), A vida deve passar a ser entendida como um emaranhado de relagoes de poder: ela é vontade de poder. Das diferentes nelagbes que js poder e, assim, € Este se estabelecem surgirio perspectivas distintas (de onde se percebe qu ara tanto, sto sempre necessirios pelo menos dois polos — por exemplo, a moral dos nobres versus a dos escravos) que, por sua vez, tém valores diferentes conforme enfraquecam ou fortalecam a vida (0 critério que, enfim, nos faria optar por algumas dentre todas — é esse registro que surge a genealogia niewschiana). Fis ai 0 perspectivismo do pensador, que € uma filosofia dion. Siaca que prega 0 surgimento de navos valores — novas perspectivas — por todos: ela assume a vontade de poder, Promove o aumento do poder ¢ a forti- ficagho da vida, trazendo a possibilidade de uma nova cultura. Aceiti-la é escapar da perspectiva paralisante da civiliza- Glo que propde a submissio a valores Jf ctiados por outrem, puma postura enfraquecedora da vida, inibidora do mento de poder. &F FLGSOFO NO LABIRINTO. Gom isso, na anilise nietzschiana do inculo entre rizd0 € civilizagio, ocor- se um deslocamento fundamental da mogio de verdade para as de valor ¢ de perspectiva, E assim que de vital de estabelecer nogdes estiveis K2usa, efeito, permanéncia, identidade) necessida Na proposta de uma filosofia dionisfaca, talvez cada um deva ter seu labirinto e sua Ariadne ‘io se hipostasiart em edificios morais, metafisicos ou religiosos. A aceitacao do carter perspectivo da existencia marca, assim, um novo tipo de homem (mais precisamente, de comportamento huma- no) vislumbrado por Nietzsche: 0 além- do-homem, postura diante da razio ¢ da linguagem € sabe evitar suas armadilhas. E se cle se poe diante do mundo assumindo a vontade de poder, ele acimite a idéia de etemo retomo (de luma maneira extremamente simplificada, isso se dit na medica em que niimero de ‘combinagdes de relagdes de poder que caracterizam 0 que podemos chamar de mundo € finito, e nessa medida elas vao se tepetin € ace) tade de poder e tempo. Nas reflexdes sobre vontade de poder Nietzsche também recorre momentos, a informagoes. desenvolvidas fem outras reas, como por exemplo a fisica, a partir do que associa a vontade de poder a forga , de manera contundente, que consegue pensar de 1 mao-metafisica, tem uma outra ao. mesmo tempo, © vinculo entre von ESTOS MORTAIS de soldados trancoses em Verdun, 1916: agonia da civilizagio 40 mundo. Dessa maneira, retoma virios problemas do século XIX, posicionando- se no debate entre que se consolidavam nesse periodo, Mas ‘outros temas — por exemplo, a relagio entre homem e mundo, a idéia de valor, as reflexdes sobre 0 trigico € © dionisiaco, suas relagdes com 0 romantismo atestam ainda com mais forga a insergio na sua dca, Visivel também na maneita como. polemizon com seus contemporiineos ¢ has quesides com. que se envolveu (por ‘exemplo, as andlises sobre a educa Alemanha ou sobre 0 socialistno). Nietasche, assim, pa ece permanecer sempre em um labirinto. Como conci liar uma critica radical da civilizagao, da ruzio, da metafisica, da moral, da ciencia ¢ tempo, escapar do alcance da prépria critica valendo- se de uma cla que faz. uso de dados recothidos na ciéncia da época e de hogdes como vida, valor e forca? Esse, talvez, seja o grande 06 do seu pens mento ~ aquilo que, no icio do texto, chamamos de unidade da filosofia niet zschiana: © ponto de critico ferrenho que parece egresso do século XX € 0 tedrico que se arma para a batalha no mesmo paiol do século XIX daqueles a quem ctitica, A resposta que se da Aquela pergunta — ¢ elas no faltam ~ caracterizam @ modo como um intérprete leu Nietzsche, como encon- ou uma saida de seu labirinto, Resta suber se € preciso sair desse labi- into, Na proposta de uma filosofi nisiaca CE", diz Dionisio a Ditirambos de Dionisio, “sou teu labitin 10°), talvez cada um deva ter seu labitinto © sua Ariadne: a filosofia de Nie seria © exemplo pedagdgico disso, @ dio- acine nos © Grepisculo dos idols. Fiedch Nietzsche, em Obras incompletas Traduedo de Rubens Podhigus Tors Fito. Colao Os pensadores. ‘Abril Ctra, 1978 | + Agaia clncia, Friedrich Nietsche. Taducto ‘Paulo César de Souza. Companhia das Lotras, 2001 (Nietzsche, (swvaldo Giacoa J. Coleco Fata expica Publ, 2000. ° Nietzsche, Biograia de uma tragédla.Ricio=r ‘Safransi Gerago Eto, 2001 Nietzsche leitor de Schopenhauer Substancia, Nietzsche chegou consciéncia a filosofia lendo r Schopenhauer, e repeticao mas divergia do mestre na visio do mundo ena relagao entre ldgica e linguagem POR THELNA LESSK 04 FONSECA HA UM PERSONAGEM DE JoRGE Luts BorGes, Funes, el Memorioso que, tendo sofrido um acidente, perde, nao a meméria, mas a capacidade de esquecer. A partir de entio, todas as suas viven- cias ¢ percepedes so por ele recordadas com toda a vivacidade do momento, de modo que, por exemplo, um arbusto visto ‘agora ja nado é o mesmo de um segundo atris e nem seri exata- mente igual ao do instante seguinte; um cachorto, a6 mover-se um pouco, parece-Ihe absolutamente outro; um vaso observado por um novo ngulo toma-se distinto da primeira visto. Basta uma mudanga minima de posicao, uma imperceptivel alteragio na luminosidade, um piscar de olhos, ¢ Funes retém na memé- ria todas as nuances que diferenciam uma impressao da outra, sendo, portanto, incapay, de forjar uma identidade que percorra ‘0s diferentes momentos perceptivos € Ihe permita reconhecer 0 mesmo entre dois dtimos de segundo. Presa ao instante, sua Ieper ere wisi tage ca experigncia perceptiva é marcada pela mutabilidade constante iene dua ae € Ihe € estranha toda generalizacao. Gummatas 206) eteanutoe ob. © Como no devir de Hericlto de Efeso, para Funes nada permanece: no hi coisa, ser, substincia, mis apenas trans- formagio. No limite, em sua peculiar experiéncia, os substantivos de nada servem e ela passa a organizar 0 mundo através de nomes proprios, mais adequa- dos para expressar a unicidade pois se ‘no ha permanéneia nao Na Filosofia na gregos, Nietzsche ressalta em Hericlito (© elogio da. represcntaclo intuitiva, enquanto diante do mundo dos concel tos ele seria insensivel e mesmo host. E citando Schopenhauer que introduz a idéia de Herielito de que toda efetivida de € apenas vir a ser, € no ha nenhum outro modo de ser. A metifora do fogo A repetigao, poca tragic dos ermamente vivo, que nao. permanece idéntico a si mesmo um instante seq vem apresentar a existéncia ¢ tante mutabilidade, como incessante construgio ¢ destnuigic reprodluz no jogo da crianga € cuja visio criativa ressurge na atividade do artista Para Nietzsche, Hericlito mostra que a idéia de um mundo constituido de seres lassificiveis por meio de substantivos ‘comuns nao provém da vivencia autén- tica, mas € uma construglo_ posterior por uma abstraglo operada pelo pensamento, E como se a persona: gem de Borges, ao perder a capacidade de genenalizagio, tivesse revonguistado a autenticidacle da experiéneia efetiva uja alegria se alcangada FETICHISMO DA LINGUAGEM A crenga na fixidez e na imutabilidade, caracteristicas tanto da nogao de objeto, quanto d como sujeito, aparece como decomente de um pro- substancializaga0. da palavra. Em Niewsche as experiét passam a ser subsumidas aos elementos de sintaxe, isto ¢, qualquer percepgio ou vivéncia € automaticamente reduzida as categorias gramaticais sujeito/predicado ‘no exato momento em que se tornam A linguagem pertence, por sua origem, ao tempo da mais rudimen- tar forma de_psicologia lum grosseiro.fetichismo quando traze mos 2 consciéncia as_pressuposigbes centramos. em, fundamentais da linguagem, ou, dito em alemio, da razao, Essa (..) projeta a 48 MENTE, CEREBRO & FILOSOFIA ‘OESCRITOR argentine Jorge Luis Borges, foto de 1983. Ssemethanga do grego Meraclita, via ‘renga na substincia-eu sobre todas as (Crepiisculo dos solos A critica & attibuigio de un ontolégico & separagio dos termos da proposicio constitai um importante ponte de congrugncia entre os pensimentos de Nietzsche e de Schopenhauer, Cabe detalhar um pouco a argumentacio de Nietwsche no que diz. respeito as relagbes centres partes «la proposiclo as dualidades acima mencionadas, A duatidade agente/agao decorre da separagio entre sujeito © verbo © ger a crenca na cisto entre um substrato perm Habitu inente € seus estados tninsitorios, nelha, © cinabre é amargo. A perg 1e se coloca é: por que a cla- ridade é entendida como adjetivo, ea luz ‘como sujeito, como se houvesse alguma luz que mao fosse ietadiaglo de si pré- pia, ou seja, claridade? Mas, além dessa questo, h uma outra, a saber, a ideia da entre sujeto e objeto, Assim, ‘como objeto ~ irradia uma ade que 1 afeccdo no sujeito perceptivo. ‘Omecanismo capaz de sustentar essas dissociagdes, pensa Nietzsche, pode ser cexplicitado pelo papel da linguagem, As norms responsiveis pelas das. no seguinte sentido; 0 habito instaurado pela iminos por sua vez, provoca fica impte a consciéncia a suposicao de algo fixo, toda vez que uma modificagto, € constatac por ela. Assim, a dualida. de agente/agao, decorrente da dualidade Sujeito/predicado, no apenas nos impe ]@m mero clos em constante transfor ago ou uma mubiplicidade iredutivel sejam percebidos. © prépric > entendimento fi ests operando no aivel da intuiglo sensivel, ao dizer que slo abstragdes feitas a partir eppio sensivel ¢ de nossa afiema de nossa percep auvidade do entendimentc ROUPAGEM DO PENSAR ncontra-se af um ponto de concortin Ba entre Nietzsche e Schopenhauer, refe fente a0 entendimento, do suicito, ser constituinte « objeto" Se nivel da sensibilidade. © fildsofo de ompreende que a sensibili aparece como objeto. Geitica da filosofia kantiana (Schopenhauer. Para Nietzsche, qualquer percepgao é automaticamente reduzida as categorias gramaticais sujeito/ predicado no momento em que chega & consciéncia no hi no nivel da intuiclo sensivel se o entendimente jf nao estiver operando ai, Apenas pela ausalidade. Tal conhect dos sentidos a experién ye a multi: plicidade a difere 1 das impressoes experimentadas subjetivamente $20 uni ficadas como objeto, Por esse caminko, Schopenhauer afirma que a causalidade 10 da intuigao empirica. que Na lingwagem comum diz-se que © objeto és tal ow qual impressto por isso, supde o entendimente e apreendé-io. Mas, aqui, ausalidade jf: estar presente conformagao de algo con ©. sujeito. condiciona invés de ser -meramente recusa dla nogao Schopenhauer neg vel seja constituide apenas pela recept vidade da inqwiglo. Assim, a separaglo a que 0 objeto sensi 50 MENTR, CEREBRO Nietzsche sustenta que a consciéncia seleciona impr a fixadas pela comunicacao. Em geral, "é somente 0 nome que nos faz ver a coisa” centre conhecimento intuitivo © abstrato fica, para ele, estabelecida da seguinte a: © primeiro inchii o entendi mento ¢ © segundo esti circunserito a0 dominio da “razi0", entendida como ‘conhecimento em segundc medida em que seus ‘conceitos - abstra tos ~ consistem em “representagdes de representacdes”, Af se compreendem os conceitos gerais, que supdem as repre sentagdes imeditas ¢ as generalizam por meio de abstrgbes, sendo estas as representagdes mediadas, A linguagem constiui_ um conheci mento desse tipo, ou seja, € uma repre sentagio abstrata por ser a representagio, de uma representagdo intitiva, a qual por sua vez, consiste no objeto constiut do pelo entendimento juntamente com a sensibilidade. Isso faz com que 0 co cimento abstrato (ou reflexive) suponha © conhecimento intutivo, © qual corre indepenceniemente de suas formas abs tatas. O principio de permanéncia da substincia permite pensar a ligi¢o ou 44 incompatibilidade entre os conceitos, mas isso © situa no interior dos limites circunseritas pelo conhecimento abstr to, cuja validade € dada pelo intuitivo, mas que mio pode fornecer principios vilidos para este timo, ‘Tratse de um, principio derivado da ligaglo de dois conceitos tomados como sujeito © predicado, do qual nao se pode extrair ogo nenhum principio. metafisico. angncia da substinci mento transcendente © reduz-se ‘uma simples criaglo humana, Schopenhauer, entretanto, no afirma toe objeto sejam abstragdes spOsicao gramatical, pois, no seu ‘entender, a gramética é somente uma roupager as formas do pensas, sendo que as partes da oragao derivam. dessas mesmas formas. Para ele, a légica 6 determinante da gramética: “Como sujeito e predicado nio hé nada que es pertencem exista: pois estas express exclusivamente ao dominio da légica € designam a relaglo de conceitos absir- 10s". (Critica dla filosofia kantiana) COMUNICAGAO E FIXAGAO Do ponto de vista psicoldgico, 0 que sus tenta a ideia da fixidez como subsistente js transformagées € a experiéncia da fepetigio, pensa Nietwsche, Assim como presumo a existéncia do fogo todas as = pintura de Hendrick ter Brugghen, ‘alten, ponsador do mundo. weRAcLITO, 1628. 0 pai da ‘come um Incessante vir a ser -ALEGORIA DA GRAMATICA, pintura de Laurent de La Hire, 1650. Nietzsche vezes que sinto © calor, quando expe mento de novo 0 amargo que outrora denominei “cinabre”, concluo algo sobre 2 existéncia dessa substincia que, exte n, eauSA-me sempre a mesma modlificago, A da substancia € extraida da sen fentre 05 “efeitos” que me afetam, Para dizer de outro modo, se todas prova” da existéncia elhanga fs experiencias fossem vivenciadas como fédlias 2 cada momento, sem nenhu: Eeprovavel a crenca num substrato per Nietzsche compreende que epeticio de al acters: 2 perguntar pela qualidade essencial” da “coisa. A pergunta €, entao, Belo que seria esse “mesmo” que aplico Spalmente ao cinabre ¢ & luminosidade He remeterse 2 linguagem, Nietzsche SSsbocx uma origem pars a experiencia da Bepeticto que busca meios de entendé-la Ee modo outro que como reflexo de uma Sebstincia existente por si mesma seanente. sper Seas nos leva Para Nietwsche, apenas quando a linguagem’ se firmou como meio. de comunicagio é que a percepgao sen- sivel passou a reconhecer, isto é, que a consciénda, instrument. da com nnicago, passou a operar uma seleg algumas entre indmeras © mutaveis modificagdes em 1n6s procluzidas, Excetuando-se a neces: sidade de comunicagio, nem mesmo a sensibilidade serta capaz de apresentar eaten en sm € Ao hostis ao que & novo. A conscigneia seleciona as impresses ja fixadas pela comunicagio. A. possibili dade do novo, do inédito, & suprimida por ela do campo de nossas percepcoes sensivels, © que faz com que a percep: Go neste nivel seja contemporines © jf que nossos sentidos comprometida com a necessidade de comunicagio: *Originalidade um nome a algo que ainda nto possui um (.\.. Mas é, comumente, son nome que nos faz ver a coisa". (A gaia Wé messe ramo da lingdistica a propria esséncla ds légica VOX _LITTERATA ciéncia) Resukante do habito, surge a sade que a repeticao da vivencia fenha um fundamento externo, sendo wiunda da. substncia unificadora do conjunto le impressbes. No livro Além do bem ¢ do mal, Nietzsche explicita que a percepgao do objeto. sensivel € previamente arranjada na forma de repeticoes: sobre: uma indicagao dada, acham mais facil invocar uma imager com freqiiéncia do que conceber em si a de uma impres Slo: para isso € preciso mais forca (..) Mas aquilo que nos transcorre em nivel consciente € apenas uma pequena parte de nosis vivéncias, um recone que subestima diferencas. para que a expe niéncia possa ser transposta em palavras A consciéncia se desenvolve para a linguagem e permitir a comu para fins utilitirios. De nada adiantaria a reconstituigio fiel de uma experiée cia subjetiva quando se wata de pedi ‘Nossos olhos, divergéncia ¢ a novidad das categorias kantianas admitidas por Schopenhauer) pertencem ao sujeito, no sentido em que sto condigdes formais do objeto, conhecidas aprio risticamente, Nietzsche iri reinterpretar esse @ priori como uma espécie de *teia na qual todos os sistemas filosé- ficos acabam por se enredar também ele tem um histéria que nao. se revela de pronto, “Que os diversos conceitos filosoficos no sejam algo arbitririo, algo que se desenvolva por si, may sim algo que cresce em relagao © parentescos muituos (..) isto € uma coisa que definitivamente se mostra na seguranga com que os filésofos mais diversos preencham um esquem co das flosofias possiveis, (..) Justo ai, isto 6, Para Nietzsche, Os conceitos derivam das regras de sintaxe: a gramatica precede a légica onde existe um parentesco lingiistico € absolutamente impossivel negar que, em decoréncia da filosofia comum nitica — quero dizer, em view: da direcionalizagao rcidos por fungdes ticas =, tudo esteja. se istemas filosoficos. ERBVM TERTIA PARSO GED AR Ationis: elt § cittepore et 2 ura & dul ‘eu2498 s3ua81a aved uingnou thunuony Bewewnentecetebro.com.br aliquid/aut pati Py nia fine caf a EA creasrutet saline Ec Sgurt curper Regen quod Gubiedta fir adiunétum fatis sootusruy byuaned suaSy yeuSyap winquaa xy JA DESTRONADA Tendo em vista a abordagem nietaschia: 1na dos seus antecessores sob a perspec tiva de uma histéria da filosofia, o trecho cima enfatiza 0 papel da imposicio inconsciente dos limites do pensamen: to € também do autoconhecimento da conscigneia como inseritos no alcance das estruturas gramaticais © lingisticas. Por essa rato é que, do seu ponto de vista, um filésofo pode ser esclarecido pelo estudo de outro, € no pelo fato de ele ter sofrido influéncias culturais no) ou ogrificas. Nietzsche ve a historia da filosofia como um grande esquema com possibilidades. limit € que, reiteradamente, toma are © mesmo percurso, ji que tende defrontar com os mesmos. problemas em busca, ¢ isso € 0 mais importante das solugdes semelhantes. Assim € que a critica kantiana 2 metafisica, no se desvencilha da alma platonica a0 atribuir a “consciéncia” papel determinante na atividade do conhecimento, Dessa forma, a0 lado do objeto hi um outro elemento: 0 sujeito do conhe- cer, quer seja ele alma ou consciéncia, ‘que tradicionalmente ¢ interpretado como elemento autOnomo € anterior ao proces 0 do conhecimento. Enfim, impbe-se ai a critica as dualidades cujo questionamento mo ent necessirio para o_platonismo nem para as filosofias da representa- ‘glo, mas tornam-se problemiticas. para 4 Filosofia pds-kantiana. Enquanto leitor de Schopenhauer, uma das tarefas. mais cexpressivas que Nietasche toma para si ‘esti em destituir a consciéncia do estatuto de instincia reveladora PENSADORES DA ALMA Nietzsche: tipos ps icoldgicos O fildsofo entre a moral e a psicologia Em oposigao 0s tipos doentios e decadentes da civilizagio crista, Nietzsche oferece os OR EDUARDO #RAXDIO modelos de um “Que em meus escritos fala um psicdlogo sem igual € tal- viver dionisfaco vez a primeira constatagao a que chega um bom leitor..." assim que se caracteriza Nietzsche em Ecce homo. No mesmo texto, 0 fildsofe escreve que antes dele nao havia psicologia. Convém notar, no entanto, que se filosofia ¢ psicologia sto termos indissociiiveis para o pensador alemao, 0 segundo tem um sentido bastante especifico. £ dentro desse registro que se ‘observa na sua obra a construcao de uma tipologia psicold; a, na qual sio descritos varios tipos humanos, como 0 sacer- dote, 0 detadente, o além-do-homem, Zaratustra, Jesus. A especificidade de cada um decorre, como nao poderia deixar de ser, da concepgio de psicologia de Nietzsche, que fornece © instrumental para a anilise e a classificagao desses tipos: ha ‘0s que devem ser evitadlos © os que representam um avango para a humanidade, Para entender isso, € preciso explorar essa idéia de psicologia. NIETZSCHE A filosofia de Nietzsche tem. um sentido terapeutico, Surge nck © diagndstico, frequentemente repetido, de uma grave doenga: 6 nilismo. E assim que, na his- 16ria da humanidade — nas suas modula ‘es: a flosofia,o cristianismo, a arte etc nna imensi maioria das vezes 0 que se fez foi bombardear os homens com tum modo de pensar que tem tum modus operand comum. © nillismo & 0 nome dessa expécie de ligica, que consiste em nega este mundo em que existimos em nome de outra coisa Cum meino: moral A moda de Kant ou um mundo inteli aivel “platdnico”). # claro que, aqui, a teripia vista filosofia: mao estio em pauta problemas tipicos da psicologia ou ppatologias usuais em medicina, mas sim doeacas que se manifestam nos diversos ‘Hpas da humanidade. Nietzsche, desse modo, apresenta-se como uma espécie de médico de si e da civilizagio. Trata-se, assim, de tomas tanto de doenga (por exemplo, no tipo decadente) quanto de cura (por ‘exemple, no tipo Zaratustra). Tas sinals ‘ao reflexo, para Nietzsche, daguilo que se passa com 0 corpo, e Se cristalizam nas operagdes e valores instaurados pela conscigncla (eujo. indice geral, como vimos acima, pode ser indicado pelo termo nilismo). Sair desse circulo ~ 0 resultado da terapia nietschia advento da grande sauide. contrapartca fisiologica da flosofia dionisiaca que se assume enilo. f nessa medida que 0 fildsofo se faz. psicdlogo PRECONGEITOS DA MORAL © dionisiaco, no Nietsche da maturidade, constrd-se como um avesso do. nilisme ndo se trata mais de negar esta existencia cu esta vida em nome de um “nada” que ‘est além mus, 20 contriio, de afirmar a ‘existincia ¢ a vida tais como se apresen: tam a0 homem, sem apelar a nenhuma outa insincia avalizaclora que as explique © fundamente, ssi airmagio camera aceitar 0 carter perspectivo da existéncia no mesmno movimento em que se admite que a vida se caracterza como wma. ta por mais poder. Nos termas do fildsofo, a vida € ortade de poder: das relagdes de poder que a constituem resultam valores que, em seu confronto, etabelecem 1s reconhecer sin- 56 MENTE, CEREBRO 6 FILOSOFIA diversas perspectivas. Destas, as que mais afirmam a vida, ou seja, fortficamena, no sentido de incrementar e favorecer a sua bbusea inerente por mais poder, 0 as que se escolhem quando se est sadio, curudo daquela doenga, Eis af 0 critério que ‘me uma filosofia dionisiaca ~ uma maneira de encarir 0 mundo que rompe com © modo decadlente de desqualificar a vida Estamos, assim, "no ambito da moral = moral, entenda-se, como a teoria das relagbes de dominagio sob as quals se origina 0 fenémeno ‘vida. E se a pro- posta de uma filosofia dionistaca é nave~ gar sobre a moral ir além dela (ser uma [MORAL CRISTA: Vincent van Gogh, 0 bom samaritano (segundo Delacroix), 1890 especie de tmoratisia), quem assim se fizerflsofo ~ como Nietasche ~ acabari por tornar-se um psicélogo sui generis, “Toda a psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos © temores morais: no ousou descer 2s profunde- zas. Compreendé-la como morfologia © teoria da ewolugdo da vontade de ‘poder, tal como fago ~ isto € algo que ‘ninguém tocou sequer em pensamento: ‘na medida em que € permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui silenciado.” (Além do bem e do mai, § 23) Nessa medida, se a psicologia toma-se morfologia © teoria da evolugdo da vontade de poder, ela envolve 0 diagndstico de for as relagdes entre moral, vida © vontade de poder. Nesse registro, a. psicologia deve escapar dos preconceitos dt moral: “A Circe da humanidade, a moral, falsi- ficou no ceme = mora psychologica...". (Ecce homo, Por que ‘escrevo livros tdo bons, § 5) Assim, se © diagnéstico da doenga (qual 6 este tipo psicoldgico ou moral?) é un etapas da cura, 0 terapeuta no pode ele mesmo, estar doente. Aqui se retra duz 0 grande problema da filosofia de Nietzsche: por que a posicic € sua psicolog! ‘como vida € morais (ou metafisicas? todos 08 do. autor que assumem nogoes le de poder, nto sto TIPOLOGIA E POLITICA Alguns exemplos da anilise uipokigica de Niewsche mostram sua (rama em Em primeiro lugar, 0 tipo humano (que é ‘No livro Além do bem e do mai, Nietzsche dirige uma critica impiedosa as concepgies ‘socialistas @ a seus Nao se trata de negar esta existéncia em nome de um “além” apds a morte, mas de afirmar a vida tal como se apresenta ao homem moral ¢ psicolbgico) representa um com- portamento caracterisico, uma maneira de ver ¢ valorar as coisas, Nesse sentido, bhi pos inferiores tipos. superiones = uma hierarquia, conforme crtéris fist logicos ¢ relatives vida, Os inferior res 0 variantes do tipo que Nietwsche chama decadente, Encontraros, a, tanto casos mais gerais, como 0 filisofo © 0 homem religioso, quanto exemplos par. ticulares — Wagner e Schopenhauer sto paradigmas do decadente (Mi tra Wagner, 0 caso Wagner & focalizam 2 questto). Hi ainda outros tipos, apresentados por Nietesche a0 longo de seus textos. Por exempio, num fragmento péstumo escrito entre novem e homo bro de 1887 € marco de 1888, 0 cético, © esidico, © conseqliente, 0 inconseqdente, © cristao (que num outro fragmento, do mesmo periodo, desenvolve-se como cidadao, soldado, magistrado, filésofo, padre, stbio, entre outros). A idéia de decadéncia remete, por outro lado, a uma perspectiva historica: nesse sentido, num fragmento pastumo escrito entre 1886 ¢ 1887, Nietzsche observa que 0 numanidade da Europa de entao celevaclo que aquele do Renascimento ou da Grécia ~e a. Assim como a religiio © a filosofia sio responsiveis pelo incremen- to do tipo de homem inferior, também alguns tipos de sociedade © formas de governo 0 favorecem. Por exemplo, 0 socialismo, © liberalismo, © proprio regi- me democtitico contribuem para fazer do homem um “animal de rebanho". O rebanho, aqui, ‘pre imagem que acompanha, por exemplo, a moral dos racos e degenerados) escravos. ‘COMUNA DE PARIS: foto trada em 18 de ‘argo de 1871, no nite da insurreigdo de direitos ¢ exigéncias & ‘um animal de rebanho. Por ‘medida em que o homem ‘homens fortes, diante | ‘do ha dividal”, ‘outro lado, Nietzsche (numa forte, para vingar nesse caldo de uma multidao de fracos, Palavras talvez menos espécie de de cultura, tem de ser ainda nao encontrardo muitas ‘apreasivas, mas de toor ‘considera que esse “ambiente mais forte e perspicaz. Assim, _resisténcias - podem -semelhante sé dirigidas 20 gdemocratico” & propicio para @ preciso matizar a critica: um tornar-se, assim, tiranos {iberalismo, apresentado como formagao de tiranos, na risco da democracia ¢ que os “em todos os sentidos”, Ba ie HS DA ALMA # DAS PAIXOES 57 RAFAEL, Ressurreieso de Cristo, 1499-1802. Para Nietzsche, o alve seria Paulo, mals que Jesus, P Psiedlogo Nietsche, ha tipos fortes ¢ fracos: hd que haver dlferengas, ha que haver © pathos da distancia. Com ave nisso € que se entende o tor da mensagem nietzschiana: seja forte, orde- ne ~ ndo se submeta, O que 0 filésofo no concede & que haverd apaziguamen: to no mundo da vida; se isso for inevi tivel, os resultados serao tanto melhores ‘quanto mais fortes ou superiores preten: dam-se 0s tipos de homens visados pe uma sociedacle. Para Nietzsche, 0 tipo de homem livre € guerreiro. A conquista da liberdade € um constante lutar por jamais sua cristalizagio ~ © que ocorre por exemplo, nas instituigdes liberais issim, nivelam os homens, como iso), Ele observa: “O- mais elevado tipo. de homens. livres ser buscado ali onde € continuamente superada a mais alta resistencia: a cineo (que, 58 MENTE, CEREBRO & FILOSOFIA Nietzsche considera que 0 cristianismo foi um dos responsdveis pela degradagao dos europeus e apresenta 0 sacerdote como tipo psicolégico doentio ‘pasos da tirana, junto ao lima elo peri- 20 da servidito, Iss0 € psicologicamente verddeiro se por tirinos’ compreende- ‘mos instintos implaciveis ¢ terrveis, que 1m © méximo de autoridade e dis. ara consigo...". (Creprisculo dos ‘dolos, Incursies de um extempordneo, § 38) A psicologia surge aqui valend do instrumental apresentado no © homem fore aceita o carter da luta a vida, que € no corpo con: siderado fisiologicamente uma luta de impulsos (por isso 0 “tirano” do: homem forte pressupde dominagio sob 0 signo de constantes uta resistencia). is plicta a partir dai a posigio ietesche: “Toda elevagio do momento, obra politica tipo ‘homem foi, até de uma sociedade aristoc pre: de uma socieda de hie necesita da escravidao, ido", Calm do bem e do 10 por caso, 0 aforismo termina com a remissio da casta nobre (ou forte) 2 de barbaros, retomando a imagem da “besta loura’. (Genealogia da ‘moral, Primera dissertagao, § 11) Assim, para 0 fildsofo, 0 que a civi lizago sempre fez foi condenar tipos fortes em prol de fracos, Por exemplo: *O tipo criminoso ¢ o tipo do ser huma- no forte sob condigdes. desfavoriveis, ‘um homem forte que tornaram doen- te... Suas virtudes foram proscritas pela sociedade...". (Crepiisculo dos idolos, Incursoes de um extempordneo, § 45) E esse estado de proscrigao do tipo crimi- noso, vivido por outros tipos (o cient genio, o livre-pensador, c.) € contrapar- tida, também, da consideragto do tipo sacerdote como superior: “Enquanto 0 sacerdote foi considerado © tipo supre- mo, foda espécie valiosa de homem foi desvalorizada...". Desse papel de des: taque dado pela psicologia a0 tipo sacerdote, € possivel como que reencontrar o que talver seja 0 embute fundamental da tipologia do filésofo, 0 que envolve sua disputa fundamental contra © cristianismo, NEGAGAO DA VIDA A moral, para Niewsche, quer discipl nar 0 homem €, na medida em que é deca oi6gica, estabelece 0 tipo degenerado como o normal — mora: lizagio € decadéncia. A moral crista € lapidar nesse sentido: "No fundo' escreve ele em Fece bomo, “sto duas as negagdes que a minha palavra imo- ralista encerra. Eu nego, por um lado, tum tipo de homem que até agora foi tido como © mais elevado, os bons, os enévolos, os benéficos; nego, por outro lado, uma espécie de moral que alcan- ‘cou vigencia e dominio como moral em sia moral de décadence, falanclo de modo mais tangivel a moral crista”, A segunda contestagio, como o filésofo. lescreve na seqidincia, € mais decisiva que a primeini, na medida em que a superestimacao da bondade e da bene: volencia” sto sintomas de décadence. para a afirmagao da vida ~ o inverso da décadence ~ & preciso negar ¢ destruir Gbondade ¢ benevolencia, assim, tém de ser afastadas), Note-se que, com isso, a Psicologia nietzschiana do homem bom critica © tipo buscado pelas religides em geral ¢ pelo cristianismo em particular © § 62 de Além do bem e do mal € exemplar nesse sentido, © ataque a esse homem se di também na medida fem que as condigdes de fomento desse tipo, que sto estimuladas justamente pelas doutrinas religiosas, avessas aos tipos mais elevados. Estes, por seu lado, sto mais dificeis de vingar ~ Nietzsche chega a escrever que so, lexcegdes. A religido, nesse caso, poe-se a servigo do excesso de malogrados, de decadentess 0. para o softimento, part conservagio de uma vida doente, decadente, Note-se que a religiio em si mesma mao é de todo condendvel, podendo ser usa, de outra perspectiva, pelos fortes (§ 61). 0 problema & que, seguindo essa tendeén- cia de conservacio, ela é uma das gran des responsiveis pela manutencio do homem em um grau inferior, na medida em que operou decididamente contra as condigdes dle fomento do tipo superior, conservando. “muito do que deveria perecer” (5 62) Assim, o influente cristia nismo foi um dos grandes responsiveis pela “degradagao da raga européia”. Na mesma direc20, 0 ideal ascético nasce do impulso de conservar @ todo custo uma vida que degenera ~ sua presencia na historia ena civilizagao humana € justa mente um indicio, segundo Nietzsche, da BERNARD PICART, A sala da Inqulscdo romans, ravura de 1722 condigao doentia do tipo de homem «ue prevalecera até ento. Chega-se desse modo.a cos: 0 sacerdote. A especificidade dessa figura sentada com detalhes na Terceira dis: sertagaio da Genealogia da moral ¢ 0 anticristo © semido de uma vida decader ‘opens negando a vida (como dor, soft mento, existéneia sem valla). Assim, ele wis um dos tipos caracterist encama 0 “desejo de ser outro, de ser estar em outro lugar” tipicos dan vidi, Mas 1880, segundo Nietzsche {aBA0E BE BEE, eGo Fernede Mes, 208. Ween vi» tine etninns ome wm hme rts sb ones deters de uma forma paradoxal: a imposicio da negagio da vida que © asceta exige dos fracos ¢ degenerados é também uma afirmagao da Vide 0 uma. form se afirma ao Dai ser o sacerdote Dudlista, mas tam ascético (que pode bem cristao) um curioso tipo doentio. PAULO ou JEstis do mopar ndli do sacerdore que se serve 0 tipo filosdfico, que no § 12 de O anticrisio € apresentado como (© desenvolvimento. do sacerdotal. Ou seja, 0 que este faz com suas doutrinas religiosas - a negagao deste_-mundo, desta vida, em nome de um além, de ‘um “nada” ~ 0 fildsofo faz com suas teo: rias © doutrinas, Assim, a0 criar ficgdes Dionisio contra o { segundo Nietzsche, a sintese do confronto entre a celebragio e a negacao da vida como sujeito, objeto, conhecimento em si, 0 tipo filosdfico chega por suas vias 20 mesmo resultado de um sacerdote que renega © corpo, 0 sensivel, e 08 decreta “erres"; assim como o sacerdote assume para sia tarefa de decidir © que jo-verdadeiro, 0 flésofo Mas nao sao s6 0s defensores de uma. digamos, razt0 ascética (Hegel e Kant seriam exemplos nesse sentido) que s10 atacados por Nietzsche: Schopenhauer, que constréi sua fi ‘contra essa tendéncia, & o alvo principal da Terceira dissertagao. © “sujeito puro do conhe 0" schopenhaueriano — funda s-racional, que chew ‘0. £ sintoma Niewsche opereind do tico, dirfamo hopenhauer um elogio explt cito do ascetisn Seguindo O a considerar tipo sacerdotal também como © resultado da consolidagao do cristianis mo, Nesse proceso, a figura de Cristo no ritual da religito ditundida por Zoroastro — 0 Zaratustra de Nietzsche € a grande vil: € a consins @o do cristianisme que esti ‘em jogo, Segundo Nietzsc tipo psicalégico do Galileu O anticrisio, § 24) € rece ‘cdo sob sua degener tipo psicoKigico do. redentor Em outros termos, seria anes Paulo do que Cristo a set com batido aqui (ef Aurora, § 68 do mal, § 251), Assim, & mi mais aquilo no que tr ‘maram Jesus por exemplo, slém do bem e no redentor, no cnuciicido — que representa € acompanha, como tipo, 0 proceso civilizatGrio europeu (nese sentido, © tipo suce otal no judaismo € no. cris tianismo, segundo Niewsche, tanto anseia por poder como necessia de escravos ¢ fracos). Para total prejuizo do protago- nista, j& que os modos con a0 longo dos séculos Jesus foi escrito (genio, heri, enue ‘ontros) © a tradugo de seus fensinamentos (a mone ¢ seu sentido, por exemplo) falsfc sam 0 sentido de sua doutrina ‘original: centro de Paulo simplesmente deslocou 0 la aquela exis fncia para detris dessa existéncia 2 mentira de um Jesus ‘essuscitado”, (O para fanticristo, § 42) Ora, esse procedimento, € uma espécie de modelo do modus epenandi da cvilizacio, utilizado também pel filosolia e pelo sacendote: “A verdade exis’: isto significa, em qualquer lugar que se ouca, 0 sacerdote mente.,.", (O fanticrsio, § 55) Nos tipos do sicerdote ¢ do filésolo> operam, entac Kb consinigie do tipo psicoldgicn do fexdentor, simbiose catalisida na Europa ipelo cristianismo — pelo platonismo para 0 ovo, na expressio de etasche ZARATUSTRA, O DANGARINO Se esse € um trago fundamental da civil Sago curopéka, € natural que o homem Suis valioso, em Nietzsche, seja pensado fem oposiclo ao cristo, Surge assim uma Sas figuras mais famosas ¢ controvertias SEm um outro sentido, em diferentes Bagares ci terra e sungindo de diferentes SHIVA como Nataraja, ret século XI-KI, Um deus dangarino, como Dion culturas, hi um continuo suceder de casos individuais com os quais um tipo superior apresenta-se de fato: al em. relaglio ao todo-da-humanidade, € uma espécie de além-do-homen”. (O anticrisio, § 4) O além-do-homem € um tipo superior exemplar (@ que jamais significa uma evolugio para uma espécic superior num sentido biologico — qual quer darwinismo, aqui, 6 descartado pelo um decadente, Nese sentido, tem uma condigio fisiolé sgica superior, afirma a vida sem negi-l, cria valores, consegue evitar as teias da wo, linguagem.€ metafisica, Por todos esses motivos, por nunca desvalorizar esta existéncia em nome de outra, 0 cris: tianismo declarard guerra cle morte contra esse tipo superior de homem, Zaratusira, que busca ensinar 0 além: do-homem aos homens, € outro tipo psicol6gico superior. Nao por acaso cle seri um aniquilador da moral: a0 com trdrio do estado de doenga que aflige a humanidade de entao para Nietesche a sua configuragao fisiol6g’ ca seri denominada grande satide (e envolve a aceitacac por exemplo, da vontade de poder como cariter da vid. Nietasche Beco homo 0 tipo. psicol6 co de Zaratustra alguns paradoxais: Como ao, jee Naa a tudo 4 gue allo dig Sle, pode. Bess aes bom a Tidade an aspectos aquele naudito diz Zaratustra € um dangarino,..", (Eece bome falou Zaratustra, § 6) Nao ser por acaso que logo na seqliéncia desse tre cho, ele associa a figura de Zaratustra 4 de Dionisio, 0 deus dangarino, Assim como 0 tipo psico logico sacerdotal remete a0 redentor, 0 tipo. Zaratustra remete a Dionisio: Zaratustra € 0 pro- prio dizersim dionisfaco. Com isso revela-se 0 embate fundamental da sua aay gunta Nietzsche no fim de Ecce homo ~ Dionési Sua filosofia: “Fui compreendido?” contra 0 Crucificado, ologia, desse modo, longe de ser um aspecto localizado e pontual, traduz. nos termos da sua psicolo © 08 contornes de sua filosofia, @ ‘© Albm do bem e do mak Friedrich Netzsche. | Tradugao de Pauo César de Soua. Compania as Letras, 1992, Ece homo. Fedich ietsche. Tacuio | ‘Paulo César de Souza. Companhia das Letras, 195, © Nietzsche como psicblogo. Oswaldo Giacola Jd, Unisinos, 2004, '» Zaratusra, ragédianietzschian, Roberto Machado. dorge Zaar Eto, 1997. ‘© Genealogia da moral. Uma polémica. Fredich Netsche. Tradugio de Paulo César de Souza. Companhia des Letras, 1998. 0 IDEAL, pintura da série 0 pooma da aims, rer tera Nao é de hoje, naturalmente mens se debrucam sobre est questo, prova disso € a intermindvel disputa dos filésofos em tomo dela, desde os gregos até os mais recentes pensadores, F ima das tendéncias mais fortes, observads nesse esforco de reflexdo, ligt-se a um tipo de raciocinio que comega por desmembrar ‘98 elementos contidos em oragdes come aquelas mencionadas acima uma coisa € penso”; uma coisa € 0 "eu", outra coisa ¢ fiz", e assim por dante. Ou seja, para a, dev de tudo ac amos ser capazes de separi-lo que pratic nem com os pens mentos Cpenso que as vontades (quero... Tals questOes também foram objeto Este artige visa mostrar como ele abordou o proble- das reflexdes de Nietesche ma da identidade ~ a construgao de uma nova maneira de ver 0 “eu”. Antes de nas, porém, € conveniente verificar como De Descartes A KANT Em tal exame, uma pergunta fundamental 0 que sobra, se separamos 0 “eu” de todos 08 pi Jicaclos que poderiamos Ibe atribuir? Talvez espaco vazio de sujeito da frase — a “subjetividade” -, a ser pre enchido caso a caso conforme a situace concreta? Mas entlo nao poderiamos marcar uma diferenga entre © nosso ‘eu! humana, e os demais sujeitos possiveis, Ito €, todos os seres passivels de ocupar tal posiglo na frase (a pedna ¢ dura’, “0 ‘cachorto late” etc.” Ao fazermos essa pe gunta, na verdade, revelamos um recorte tara presente nas preocupagdes iniciais: aquilo. que buscamos entender no € qualquer “eu' os em nossa linguagem. E-uma possivel especificidade, capaz de defini Jo, estaria talvez naquilo que os gregos sso diferencial em re Parece fazer sentido, Se é no interior do-pensamento humano sque singe 4 per inta “0 que € 0 eu?" ou, mais exatamen- re, “0 que rior que tem de ser huscada & resposta Desde © principio da reflexdo, 0 objeto da pe que buscamos definir nio € 0° dra ou do cachorro, mas 0 “¢ presente quando dizemos “eu quero isso" ‘ou “eu penso que...". Pensando, posso fa zet abstracdo de tudo aquilo que parece subjetividade: as coisas & minha volta eres humanos... Mas © meu corpo? E meus desejos’ E minhas idéias? Posse do “eu? Sim, posso: nad me imped de pensar-me sem vida, sem corpo, sem desejos € sem pensamentos especificos. A tinica coisa sem a qual nao posso pen sarme € 0 proprio “pensar-me”, o ato de A ruptura corpo—mundo assentaria a mente, entendida nic como uma entidade & parte, mas como uum instrumento, um Grglo — 0 cérebre permiti-nos uma melhor adaptagio a0 mundo, em comparaglo com as demais quisessem decifrar sua verdaceira essén-espécies, A uma dessas tentativas liga-se inca que © proprio Kant preferisse 0 nome de Schopenhavet, para quem © “eu inteligivel” ao “eu sensivel", pen vontade, elemento essencial da existén sando sobretudo a filosofia moral, isso cia corprea, seria entio a verdadeira na. nao seria uma verdade teérica compro- tureza do “eu, € uma natureza que na vavel, capaz de pér fim ao problema 4 do mundo material, mas IMMANUEL KANT, gravure som data. Ups a a ele, como parte de um feta com base om retrate de. Wernet EU PENSO” E “EU QUERO’ eneldade seria cada por res estabelece a hase de seu sistema Sisctico, fd a seed De tesciver inte ‘4NJO DISSECADO, ustragdo do tratado de anatomia de Jacques Fablan Gautier famente ao pensamento. um problema por cle colocado, Mas com um custo evi sus volta, do préprio compo inclusive 1 dupla akemnativa deixada por Descartes se “subjetiv ©.0 pn » de p BS medida, tanto no empirismo britinico co- transcendentalisino kant Ao perguntar-se “o que sou eu”, com feito, Kant tem consciéncia de que a sposta pode dar-se em duas diregdes. reproduzindo em novos termos idade alma-corpo da filosofia crit magoes quanto © materia s contas, dependem de estabelecer as “eu”, E justamente isso 0 que Nietzsche vem afirmar com todas as letras, refor ando talvez. uma percepcdo que ja era de Kant, mas recus ae qualqui idéia de uma razao_pritica, ou de uma subjetividade universal, como eventual cchave para resolver o problema Na verdade, para Nietwsche, & per gunta "0 que sou eu?’ nao podemos Quando dizemos “eu penso”, ha um processo em andamento que envolve diversos elementos, inclusive impulsos associados ao querer ornecer uma resposta segura, js ela é equivocada desde © prin. 20 fazer de uma palavra ~ “eu’ lum objeto a ser investigado, teriamos incorrido numa espécie de armadilha da agas iquilo que ele deno: ‘ha gramatica”, Induzidos dia substiuir as circu a vida pelas rela bs, segunde as matica, entre as palavras da Ling ssim a idéia de la deveria corresponder yeto real no mundo, Nietzsche tenta desarticular essa idéia, conhecida na historia da filosofia « verdade nnunciando € abito da humanidade Quando, nos deixamos levar pela logica de um desmembramento das palavras, estiva- ‘orrendo esse I eifeto, por ene ERE alguns parigrafos. atras, relagdes existentes na linguagem entre ‘eu © “quero”, entre “quero” € “isso”, e assim por diante, buscavamos entender sob) Ds supostamente correspon dentes a tais palavras, Para 0 autor de Fece homo, porém, atris de cada um daquelas expressdes hd uma complexi dade de relagoes reais que possibilidades cogni nuos observadores de he, “acreditam OBSESSAO SIMPLIFICADORA Uma falsificago que € basicamente sim: plificaglo, acrescentari 0 que é filésofo: onde dizemos “eu penso”, hi um processo em anclamento que envolve dade de clementos, fisioldgions de cariter \ ha também um com: que envolve elementos plexo proces liversos, inclusive os chamados “pen: Schopenhauer, embora caminhando ex Descartes. quant diregbes_aparentemente opostas, ince m no mesmo tipo de simplificaga ira e oferecerem exemplos de um 0 PENSADOR, de Augusto Rodin, c. 1880-1882. Ines corp parecer se ‘complementar a apeximag gee Nitzsche freveretsete provera 22, do Luchino Visconti, tangado em 1971 instrumentais da referida ampliagio do forma de dar & vida, como que Je sua propria indecifrabilidade significado tiltimo que sempre b realidade, seja enquanto Afinal, essa & uma neces. dade que o homem tem, © sin satisfazé-la, segundo nillismo mente deixar de Nietzsche, implicaria cai num suicida” € abdical lidades criativas e engrandece as que femos 2 frente justamente quando perce ido do mun por bemos que o ser dado, mas deve se Acomes a pretensio de Desca a um conhecimento do “eu em si, como substincia simples & qual pudésser Nietzsche nao preten ora a questo do eu’ se de enfrenti-la nessa nova chave, nessa logica do criar interpretative. que, tendo admitido a complexidade do. “objeto” propoe imagens frutiferas com vistas 2 dupla tarefa de ampliar © dominio sobre a Natureza ¢ dotar a vida de um sentido naior. Dai que Nietzsche descrevesse ¢ sem a qual nem 0s individuos se suster: os demas individuos, nem 0 ser desenvolveu, a0 longo da histéria E dai que ele, logo depois de crticar a nogao cristd de alma, também compro- metida com a idia de uma substincia venha surpreender-n ‘alma mesma s € veneriveis hips. com a afirmagio de que a Esta recriada donada, mas antes r¢ aberto camino para novas.v refinamentos da hipétese da alma: € con- aima mortal pluralidade do syjeito’ e ‘alma como es trutura social dos impulsos rem ter, de agora em diante, direitos de cidadania na ciéncia em lugar da velha representacao simplificadora da nossa subjetividade, que a mundo no fazé-la imortal, imag fazem ao mesmo tempo mais complex, mais aberta a diferentes inter mais préxima do mundo natural Essa passagem € emblemitica do. me [RENE DESCARTES, gravura sem als, c. 1850. Para o fildsofo, 0 do como Nietzsche compreende 0 “eu longe de recusar-se a interpreti-o, ele nos propde seguir um caminho que é inverso 40 daquela tr de caminho que amp universo da subjetividade em vez de dimi- ute por exemplo, equivale a reconbecer que Reconhecer 0 sujeito como plural, Yinico € univoco, mas de uma variedade partir de psicologia sem tentar reczilos a um denominador ‘comum — tal como sempre tentou fazer = tas sim’ expressindo-os em imagens jgualmente plurais e abertas 2 mudanca Caso da ‘alma como estrutura social dos impulsos e afetos, idéia que nos sugere pensar as relagdes entre esses v ‘do Wiliam Holl baseada em pintura de Franz Seria definido pelo pensar rios elementos a partir de uma analogia que faz Nietasche da sociedade, verifica se todo um sistema hierarquizado de re- lagdes de poder, também ki ocorreria 0 do outros impulsos, alguns pensamentos Em vez constituicio da sociedade 1 sociedade como soma de individuos, 40s etc. essa nova chave nos permite pensar também a constitwicdo da. sub- tal como se tornaria habitual depois de jetzsche — 0 individuo como reflex do meio, a vida psiquica como fruto das wt infincia etc © que nao quer dizer que Nietasche se tenha simplesmente convertido num | dogmitico do determinismo social, por oposicdo ao dogmatismo do livre-arbi trio individual. A essa imagem do “eu” como “alma social” poderiamos acres- Centar muitas outras, do vasto repertorio, de tipos nietzschianos, para mostrar co- mo € multifacetada a sua compreensao da subjetividade. Entre elas, por exem: plo, a figura do “espirito livre", descrito como um tipo que nao se prende a nenhuma perspectiva fixa, a um modo Gnico de ver o mundo, mas transita por varios deles acumulando experigncias, materiais que Ihe permitam tornar-se uum “individuo soberano”, capaz de “dar leis a si mesmo" e “criar a si mesmo! Ou seja, um individuo capaz de libertar se, em alguma medida, da condiclo de ‘mero reflexo das condigdes exteriores, ¢ capaz de exercer assim algum controle sobre a sua propria “estrutura social dos impulsos ¢ afetos’ A LIBERDADE DOS FORTES £ interessante notar como essa_figura erve de contraponto & nogo anterior, como ambas se complementam pa formar uma visio mais flexivel do "e rOMEEDITeAs ‘MURO DE BERLIM: gratite, 2006. A busca da Identidade ¢ um processe permanente Nietzsche pretende atribuir ao eu” um novo sentido, sempre problematico, sempre aberto a novas reconstrugdes segundo a qual ele se reconhece tanto como espelho do mundo em que vive, por assim dizer, quanto como individuo capaz de tilhar um caminho proprio, em relativa independéncia dese me: mo mundo. E sua vida poderia ser vista como uma permanente lut para equilibrarse entre: esses dois vetores, ‘uma luta a que Nietzsche dé o nome de “liberdade” e que constitui a marca dos espiritos fortes, que nao se rendem nem. a0 peso da tradicao — como os “crentes de todos 0s tipos” ~ nem ao latsser aller da falsa liberdade pequeno-burguesa = como os *womadores de cerveja", que buscam apoio no dleool, e 0s “fracotes, modernos” em geral No fim das contas, € mesmo futa que parece restar ao homem que perdeu as velhas certezas im afisieas € no. quer ceder a0 mais toseo relativis: Jue © proprio enfrentado, para mo; 6 mesmo essa a luta Nietwsche parece te dar m novo sentido, dar novo sentido — sentido que nao se fecha em féemulas dogmat tico, mpre aberto a novas reo es. Diversas outras imagens poderias ser lembradas, no que diz respeito 40 permanente exercicio reflexive de Nietzsche em torno do “eu” — imay celebrizadas como “vontade de pc ‘além-doshomem”, “auto-supera lo" -, mas © que queriamos salie era sobretudo essa nova atituide d da velha questo, um: mente distinta daquel tre os obsessivos def atitude radical que vigo jddores do sujet entre aqueles que, iludidos pela “crenga ‘ha gramética ‘eu ultimo" que jamais apareceu. E somente a partir de uma tal at tude, com efeito, que 0 “eu” pode ser visio, como procuramos mostrar, tanto como “estrutura social de muitas almas", onde “mandar e obedever” sto os dois Jados de um mesmo e fundamental afeto ~ 0 “afeto do comando” =, quanto como “fruto mais maduro da drvore [da moralidadel, individuo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da._moralidade do costume, individuo autOnomo supramoral (..), em suma, 0 homem da vontade propria’. Sao ima- ‘gens diferentes e contrastantes com que 0 novo filésofo, um “psicologo nato”, se propée a “desbravar” — encerremos com mais uma imagem ~ esse extenso “ter rit6rio de caca” constinuido pela “alma humana © suas fronteiras, a amplitude até aqui aleancada nas experiéncias hw ‘manas interiores, as alturas, profundezas © distincias dessas experigncias, toda a historia da alma até o momento, ¢ as suas possibilidades inexauridas” — possibilida: des que delimitam, para. Nietasche, os horizontes de toda filosofia futura, © GE Nietzsche. Das forgas césmicas 20s valores humanos. Scariett Marton. Ed, UFMG, 2000 ed). PENSADORES DA ALMA E DAS PAIXOE fm Berti, fotografia de Ton! Frisell, 1061. Para onde ‘al a clllzagie criss? A doenca::. da civilizacao Segundo Nietzsche, asociedade ocidental esta infectada por tipos doentios —mas € possivel salva-la pela "transvaloracao de todos os valores" ‘OR PERKANDO COSTA MATTOS No ARTIGO ANTERIOR, vIMos Como Nirtzscur, tendo descartado as visdes dogmiiticas e simplificadoras acerca da subjetividade, propde a continuagio da reflexdio em torno do “eu” em novas bases. Isso significa que-a filosofia, consciente do cariter fun- damentalmente aleg6rico de suas representagdes, deve esfor- ¢ar-se por construir € reconstruir imagens numa espécie de atividade Indica, expressando assim a multiplicidade cambian- te desse seu velho “objeto”, fornecendo-lhe novos sentidos Poderiamos perguntar-nos, porém, quais as regras desse jogo. quais os critérios a observar nesse proceso criativo: trata-se de um vale-tudo desenfreado, em que qualquer um pode pro- por imagens a partir do seu Angulo de visio, ou existe algom propésito geral por tris de sua proposta filoséfica? © SILENCIO, pintura de Henry eC oy Pere enti Peon neeerel try Para que Niesche mo set visto come um apologista ingénuo da criativiade aristocritico, em seus caprichos pessoais wnados ~ opiniao de alguns de seus criticos — € preciso identificar os critérios que, segundo ele, deveriam orientar a compreender © que leva Nietzsche a preferir determinads visdes da subjetividade em detrimento de outras, € © que 6 leva a propor, ele proprio, um certo conjunto de “imagens fem detrimento de outras, Dado o cariter assumidamente combativo de seu pensa agredir é parte de meus instntos”, diz ele em Bece homo —, talvex vas que Nietzsche rejita, por aquelas que seja necessirio comegar pelas persp le se propoe destnuir~ todas elas fiiadas, GENEALOGIA DO NIILISMO © ponto de partida do projeto filosdfico de Nietzsche € mesmo o diagndstico mae, Anegacao da vida, eco principio fundament Je. Foi apenas quando comegamos a representa hhomem modemo: 0 niilismo. Apenas tomamos. capazes ie sp Gidget, poten Gears daquilo a que mits civilizagdes. Para fazé-lo, poten se Nietzsche pretende apontar alguma Uvemos de inventir um “outro. lado saida para essa situagio, oferecer algum Nietzsche chama da animalidade — um espirito, uma remédio" ‘capaz de combater ssa Spe. Sipe ling, uina ra220 — € afiimélo conta doeni4i\Barli ines dapsectaclique (ek 0 “ideal ascético Uiielewldie, recumose 16 peeete comece por explicar também a raxi Bee oe gies en 2 ee estaria na base da Constituicao do‘homem eee i eee eis alga — adenen awe fom? COMO SeT Civilizado etl dal «que Netorhe dans sim de reconstruir hipoteticamente hotnem?,-entendida como. uma repre. A REACAO DOS FRACOS minados “tipos” culturais se feriam tor- auto-intexpretamos, seria um tipo, de se de uma imagem bastante elucidativa nado dominante sobre outros, culmi- carter bastante geral, sem 0 qual no “O mesmo que deve ter sucedido- aos ani nando nesse tipo patolégico do homem —terlamos super 72 MENTE, CEREBRO 6 FILOSOFIA Ge entedeabea grab SINTOMAS DE UMA DOENGA VALORES CRISTAOS na arte: (0 vagdo da tercelra classe, plotura {de Honoré Daumir, 1863-1885. Segundo Nietzsche, os ‘nos antigos gregos, em parte principais sintomas do has lendas germanicas, € nilismo, diretamente sucumbido & mesmice do ligados a falta de ideais e cristianismo); na ciéncia, de conviocdes do homem a erenca positivista no “fato ‘moderno, seriam a fraqueza objetivo” ~ tdo metafisica 0 apequenamento da quanto qualquer outra humanidade, perceptiveis nas crenca ~ ver limitar 0 ‘suas varias manifestagdes _potencial criativo do saber ‘outturais (nas suas varias de inspiragao sensivel; na “imagens” interpretativas). _prdpria religiao, cujos valores ‘Assim, na politica, 0 ‘deal de um povo, unido Por tradigdes proprias, é ‘substituida pelos calculos de manifestacdo do humano utifitarios da economia ou para formas mais contidas, pela abstragao universalista limitadas, apequenadas, a dde uma sociedade igualitaria ‘ransigéo de algum grande {0 ideat cristao do “reino religiosa; e no Ambito da “sentido do homem” dos céus”, transposto para _filosofia, por fim, o sucesso _para sentidos menores, o“reino da terra” na pena de Schopenhauer, com a sua __decrescentes, dos socialistas); na arte, visdo pessimista de negacdo —_e finalmente nulos dai a reinvencao de ideais da dda vida, seria o fecho desse —_decorre o uso da expresso ugar a mera reiteragao ‘esvaziamento geral de “niiismo” (do tatim aii, dos valores eristios do ‘sentido que vinha marcando nada). All onde o olhar Sofrimento ¢ da abnegagdo a pensamento ocidental a0 _iluminista veria avangos {(sendo emblematico o longo da modernidade. = democracia, imparcialidade caso de Wagner, que teria ‘Sem entrar nas do conhecimento, igualdade ~, abandonado 0 ideal de uma _espeeificidades de cada ‘Nietzsche parece ver um nova arte, inspirada em parte um desses sintomas da retrocesso generalizado: 4 tomar-se animais temestres ou perecer, focorret a esses semianimais adaptados de modo feliz & natureza selvagem, a vicka femante, 2 guerra, 2 aventura seus instntos ficaram sem valor e ‘suspen sos. A particle ento deveriam andar com ‘os pé ¢ ‘caregar asi mesmos' enquanio antes eram levados pela gua: havia um ferrivel peso. sobre cles". “Um tentivel eso": © peso dt vida om sociedade, 0 peso da consciéncia que se atém as regras, © peso de viver sob a “suspensio” dos festintos. E nesses temmos que Nietzsche desereve a constituiglo do tipo “homem! fam tipo que nega a forga livre da vida selvagem © se impde a obrigagdo de “car. segar a si mesmo”, a “responsabilidade por S215 atos", 0 permanente prestar contas 40 ssibunal da propria consciencia Mas por que isso teria acontecido? © que teria levado aqueles felizes “semi animais" a trocar a sua vida errante € aventureira por esse sombrio carcere da vida sob regras, da vida domesticada? Parece haver ai algo de antinatural, e isso 0 que Nietwsche procura nos mos- trar quando descreve esse movimentc de transigdo como um movimento lide rado pelos “fracos’, por aqueles que, na Natureza selvagem, eram sobrepujados dominados pelos “fortes”. Enquanto mais bem constituidos fisicamente — mais “saudaveis’ estes. tiltimos, na dominagao algo naturale positi yo, 0s dominados a viam como algo absolutamente tertivel, que deveria ser extirpado, Daf resultam os dois modos distintos de estabelecer valores a. que Niewsche denomina, respectivamente moral de senhores” e “moral de esera vos". No primeiro, os fortes identificam a si mesmos como “bons” ~ valorizan- do assim os impulsos naturais que os conduzem a luta e a conquista -, ¢ 208 inimigos como “ruins”; no segundo, os fracos identificam os fortes, ponque estes faze! dos impulsos naturais 0 “mal” s os dominam, como “maus’ a Tera =, € inventam um padrio de medida artificial, a igualdade univers. para servir como eritério do “be sociedade pacifica e “justa Enquanto os “senhores”, mais ximos da animalidade mente agem seguindo seus impulsos naturais -, 08 “escravos" manifestariam uma postura essencialmente reativa: uma vez que nao suportam a realidade como cla € = jd que nela sio fracos e inventam artificios para poder modifici-la, impedindo os fortes de exercerem a sua forga e buscando com isso equipa dominados = sea eles, E essa reatividade, esse complexo mecanismo de inveja ¢ ressentimento na psicologia do fraco, que constitui para Nietzsche a verdadeira origem do homem civilizado, do tipo *homem’, ist 1o-imagem ficcional com que 6, desta a ‘hos temos representado ha alguns milé nios — uma imagem baseacla sempre na dua corpo, entre bem € mal, entre 0 “reino dos céus” eo “reine da verra Jade eno contraste entre alma ¢ A MORTE DE Deus A. despeito dessa origem na fraqueza, porém, © proceso. civiliz Visto por Niewsche como unicamente negativo: embora tenha ‘© homem na jaula da consciéneia, ele teve a vinude de proporcionar “um sentido A nossa existéncia ~ “qualquer sentido € melhor que nenhum” =, a partir do qual puderam surgir nossas aprisionado grandes realizagdes culturais. forte ‘era mais sauclivel do que © fraco, mas nao tinha um “ideal® e, portanto, nao 74 MENTE, CEREHRO 6 FLOSOFIA 0 maior problema da modernidade ocidental nao seria tanto o pertencimento a tradigao judaico-crista, mas 0 fato de representar o seu melancélico final ‘era capaz de interpretar a vida e doti-la de algum sentido, alguma direeao. Se ficassemos para sempre nesse estigio original, seria-mos talvez mais felizes, mas no nos teriamos aprimorado, nao hos terfamos tornado grandes. criado: res — continuaria a soar, “por tris de cada grande destino humano, um ainda maior ‘Em vao!". Ao contririo, com © ideal ascético” do fraco, passa interpretar a vida, a dar uma resposta pergunta “para que homem?", a ter justificatica para nosso. viver 80 Soffer, nosso querer. "A inter 10 ~ no ha diivida — trouxe consig colocou todo sofrimento sob (0 sofrimento, mais profundo, tiva da culpa... Mas apesar de tudo ~ 0 homem. estava salvo, ele possufa um sentido, a partir de entio nto ent mais ‘uma folha ao vento, um brinquedo do lo, do sem sentido, ele podia que- nao imponando no momento que direca0, com que fim, com clo ele queria: a vontade mesma estava salva, A vontade estava salva’ sarmos no proprio queres peculiar a0 homem, como alga que Ihe permite seres, ir além daquilo a que os instintos sm, entao compreenderemos A diferenga dos. demais © cariter paradoxal desse processo por meio do qual, embora negando a vida, a humanidade a0 mesmo tempo @afirmou. Ter uma “justificativa’, um ideal’, significa ter algum padrio de medida ~ antficialmente inventado, que sejat — para a partir dele exigin mais do homem, exigir que ele deixe de Ser uma *folha ao vento? e assuma um “sentido”, uma. “direc Para sua existéncia, fazendo desta ur movimento ascendente, de “auto-supe- ideal do “reino dos céus” impunha homens, através de uma rigida de deveres: era necessitio sactif hossos elementos naturais, purific dos pecados, para poder ascender ai jo do espiritual, para ali atingir a paz eterna etc. etc. ~ uma forma talvez estranha de dar sentido & vida, mas ainda assim uma forma de fazé-lo, Mesmo isso, porém, parece ter-se perdido na modemidade: com a menor imporincia da religtio e a seculariz geral da vida humana — a “mone de Deus” apontada por Nietzsche -, 08 gran: des “ideais", as grandes. “justificativas’ (os grandes “sentidos” perderam a credi bilidade © se instalou a crise de valores chamada de nillismo. Se a sociedade moderna continua atre do cristianismo, como Niewsche também no se cansa de tiemar, trata-se de um atrelamento muito mais implicito do que explicito: a0 acreditar que, “se Deus nao existe, entio tudo € permitido’ diz a personagem de Dostoiévski -, 0 homem modemo revela uma crenca mais profunda na vinculagao entre a propria possibilidade de um sentido da vida © a existéncia de Deus ~ ou, na falta deste, de algum referencial externo ao mundo que servisse de padrao de medida, Uma vex que este nao foi encontrado, uma vez que no hi uma “verdade absoluta’ a amparar-nos, ficou entao. como que decreado: "a vida nio tem sentido”; € para a pergunta “part que © homemy” deixou de (CELEBRAGAO DA VIDA Desse ponto de vista, o maior problema ‘da modernidade ocidental, «principal causa de sua atual doenga, nao seria ‘CARTAZ de propaganda do stalinismo, Duas dimensbes da decadéncia; igualitartsme e trania tanto 0 pertencimento & tridicio judai- co-crista, mas 0 fato de elt representar a decadéncia dessa tradicao, aquilo que seria 0 seu melancdlico final, Como, por outro lado, a origem remota da mokéstia cestatia naquela forma paradoxal pela qual © ideal ascético desde © princi pio den sentido & vida — recorrendo a ‘um outro mundo, inteiramente arti ficial, como. seu padiio cle medida =, entao fica claro, doenga, se houver alguma, poder no. reavivamento dessa) mesma. tra digo, no resgate 0 Congresso brasileiro ‘em marge de 2007, Nietzsche associa regime democratico ‘com nilismo dos seus valores ou algo do género, A tinica forma de “salvar" 0 homem, 0 tinico caminho para voltar a *justficar € darthe uma “diregio ascen seria a instauraglo de um nove a vida dente deal, de novos valores, no interior de uma interpretagao inteiramente nova do mundo, Seria nevessério, em termos cefetuar transvaloragao de todos 0s valores’ nietzschianos, uma completa E justamente isso 0 que Nietesche pretende fazer quando propoe a noc da “vontade de poténcia” como para pensar 0 mundo. Opondo-se compreensio da vida com base no ins tinto de conservagio ou sobrevive —compreensio qu sua época, numa certa combinagio da evolucionista de Darwin < filosofia de Schopenhauer —, 2 vor de poténcia permitiria pensar o “querer Gmplicito no “querer-sobrevive: ‘como base mundana (e no ext dana) daquele mowiment imprescindivel a um viver dota sentido. Nao € porque Deus nos obriga a fazer isso © aquilo que nossa vida adquire uma disegio ascendente, e no € porque Deus esti ausente que nossa vida ndo pode ter tal direglo. f porque 1nOs mesmos Nos representamos, a partir dde agora, como animais essencialmente voltados 20 crescer € 40 auto-superar- se que podemos vishumbrar um novo tipo de sentido da vida, um sentido que nao exige negi-la, que nao se poe em conflito com ela, mas antes a valoriza e celebra Dai que © principio dionisiaco, isto 6,0 principio de uma “afirmago incon: dicional da vida", poss ser visto como © novo eritério, © novo fio condutor a ofientar nosso pensamento criador em sua tarefa de construir perspectivas de interpretagio do mundo ¢ do homem 76 MENTE, CEREBRO 6 FILOSOFIA Combater 0 niilismo significa, para Nietzsche, repudiar 0 ideal ascético e afirmar o ideal dionisfaco as novas “imagens do eu". Se 0 ero. fundamental do principio oposto — 0 apolineo ou ascético ~ estava em assumit ‘uma perspectiva externa ao mundo e A vida para julgi-los, € preciso inverter a Optica assentar no imierior do proprio mundo, nos elementos naturais de nossa existéncia, as bases valorativas partir das quais possamos nao ex tamente julgi-la, mas antes justiici-a, reafimmela © reasseguri-la de suas mais celementares “prerrogativas’ ~ como, por exemplo, 0 “querer mais” do “fone’, aquele egoismo saudivel e aquela naty ral sede de dominagao que se encontea- vam sufocados, reprimidos, sob a titania universal do igualitarismo cristo, uma tirania cujasraizes, como vimos, estaiam, na *rebeliao moral dos escravos’ Nao se trata de fazer a apologin da dominagio e da desiguaklade, em detr mento da defesa ingénua de uma igual- dade ut6pica — como pretendiam os seguidores nazistas de Nietzsche -, mas de efetuar aquilo a que poderiamos chamar uma madanga de etx no modo como o ser humano se comport diate dda questio dos valores morais. Ao pas- sar de um modo espontineo de valo- ago ~ a “moral de senhores” ~ para tum modo reativo, vingativo, taigoeiro = a. “moral de eseraves” =, 0 homem necessitou da crenga em algum padrio de medida exterior ao mundo; de onde a importincia de um Deus alojado no “reino dos céus”, Agora, o homem tem de voltara acreditar no proprio mundo, no “reino da terra" como uum reino cu sentido nao previsi ser dado de fora mas pode ser encontrado aqui mesmo, em nossos impulsos- mais naturais, em nossa propia *vontade de poten- cia". E esse *voltar a acreditar", como ‘uma atitude valorativa.-essencialmen- te distinta da descrenga generalizada que acomete 0 homem moderno, seria para Nietzsche tinica forma de curi-lo da sua doenca, Mas insista-se: jamais um voltar a acreditar em algo externo, em alguma verdade absoluta, atemporal € uni versal, que pudesse substituir © yelho Deus cristdo, e sim um voltar a acreditar em “nds mesmos", isto ¢, na singulari- dade das vivencias que nos constituem —a cada um de nds ~ como uma fonte propria de valores. Quando Niewsche faz a defesa do “egoismo dos for como uma nova forma de “ust € justamente isto o que ele tem em mente: contra © anterior padrio de medida, que exigis a supressto do sin- ular em nome do universal, € preciso DDETALNE de 0 sitimo julgamento, plntura de Giotto di Bondone (1266-1336) ‘www. mentecerebro.com.bi Ceo roster ree Jades internas, em virudes pe apazes de dara cada vida individual un sentido proprio, singular, inimitivel Dai a peculiaridade de Zaratustra profeta niewschiano, que, a difereng: cessores, pede cus discipulos que nao 0 sigam | Assim © quero. Em verdade eu vos aconselho: afastai-vos de mi € defendei-vos contra Zaratustra! Aind: no vos havieis procurado a vés mes: MOS: enti me achastes, Assim fazem jodos os crentes; por isso valem ta Pouco todas as crengas. Agora, eu nesmos; € somente depois que tod me tiverdes renegado, eu voltaei 6s". Em outras. palavras, para quem recorrer, senio a si proprio ~ é ele que cabe encontrar, na singula le de suas vivéncias mais pessc fundamentos de um novo ¢ revi agora. suprimir © universal em nome ©) PROFETA SOLITARIO sentido para a existincia, a indicar subjetividade, © direito A criagao, 0 necessario & prdpria constituicao do satide” de um viver autentico. @ 8, sua rigidez, © freio tornou-se obsoleto, TUN nn voltar a0 estigio de animais aqui & no entanto possivel tomar mais Ieve, © os homens a ele apegados tomaran- [5 ggueoga de moral a pldmcn mais vida, ‘sua existéncia sobre a se ultrapassados ~ decadentes, doentes. | Piet etch: Maden oo Pass Olsar terra; sem 0 peso do universal abstrato, Curar a humanidade significa, agora, | de Souza. Companhia das Ltas, 1990, sem a violencia do ideal ascético, seria livrila desse mal, significa combater | * Nietzsche. A tranevaloragéo dos valores. Possivel restabelecer um minimo de ideal ascético ¢ defender 0 ideal dioni- | _ Seafett Marton. Modema, 1993, Cspontanellade no Mxo interior de Saco, combatet 4 crn riots: |” Moree ee Tradugo de Peto Masset Marin Clare nossos impulsos e vivencias. externas © defender a crenga em ve Da fé em Deus a fé em si mesmo (b A coragem de dizer “sim” a vida Para Nietzsche, 0 essencial, em uma idéia, oR FERNANDO coSTA MATTOS nao é 0 fato NUM PARKGRAFO POUCO EXPLORADO de Além do bem e do mal, de ser ou nao ietasche discute © que move os artistas ¢ sébios em sua verdadeira, atividade de criagao, diferindo cena necessidade de tornar-se e sim 0 de servir “nobre” daquilo que caracterizaria as “necessidades da verda- de estimulo deira alma nobre”, que € nobre no porque assim se tornou, a vida mas simplesmente porque o € “O que € aqui determinante, nao sao as obras, mas a fé, para retomar uma antiga formula profundo sentido: uma espécie de certeza fundamental que a alma nobre possui com relago religiosa com um novo e m a si mesma, algo que nio pode ser procurado ou encontrado, € que talvez nao possa também ser perdido. A alma nobre Jem reveréncta por si mesma.” @ Nietzsche prope, assim, um novo sentido para a palavra “fé” ou “crenga”. Trata-se de um procedimento que the € tipico: utilizar conceitos tradicionais com um sentido inteiramente modificado, em geral invertido. E 0 biisico da inversio, no caso da fé, parece claro: em lugar da certeza, da confianga e da veneragio projetadas num ser externo ao individuo ~ Deus -, a certeza, a confianga e a veneracio voltadas a si mesmo. Em vez de © ponto de sus- tentagio da vida individual localizar-se fora do individuo, em algo diverso de si mesmo, passa a estar nele proprio (no caso, naturalmente, de quem tenha esse outro tipo de f6). E 0 que Nietzsche ja dissera, com palavras ‘um pouco distintas, a0 afirmar, “sob 0 isco de incomodar ouvidos inocentes", {que 0 egoismo seria constitutive da alma nobre. Egoismo no sentido de uma “fé inamovivel em que outros seres devem estar subordinados, por sua propria natu reza, a sefes como ‘nds somos’, ¢ devem nO sacrificar-se. A alma nobre aceita festa circunstincia do seu egoismo sem rnenhum ponto de interogagio, e tam- bem sem sentir nisto nenhuma sever dade, constrangimento ou capricho, mas apenas algo fundadlo na lei primeira das coisas, Se ela procurasse um nome para le, diria que ‘ele € a propria justca ‘Tambeém no intuito de virur pele 80 a visio cristt € ocidental de mundo, essa passagem aponta para o desdobra- ‘mento natural da inversio operada ‘no ‘conceit de f8, Se, a0 pautarse por uma verdade exterior absolu via naturalmente forgado a conter os seus impulsos. egoisticos, reconhecendo no ‘outro 0 mesmo valor que reconhecesse fem si mesmo ~ ou até maior, no caso dda figura divina -, a0 pautarse pel “verdade interior absoluta" ele tende a ver em si 0 maior valor possivel. E trata se de uma tendéncia que a alma nobre rem sequer questiona, sentindo-a antes como “algo fundado na lei primei coisas’, como “a propria justica” ~ o que confirmaria a radicalidade da inversaio de perspectivas, a abarca s6 tempo religito, conhecimento das moral PARA QUE SERVE UM DEUS E evidente que nos referimos aqui a tum movimento geral do pensamento de Niewsche, movimento que se efetua por melo de diversos conceitos “mansvalore dos" e que i foi explorado por muitos de seus inéxpretes, Parece-n0s, po ceonceito def, tal como aqui apre Consiuiia um anjgulo peculiar, imporan: te¢ nao muito explonido, para pensar (ou repensit) esse movimento geral de inver S80 da visto de mundo ocidental. Ainda que a freqiéncia com que Niewsche recomre ostensivamente a tal conceto, ou ‘com que emprega a *nova féemul’ seja to grande nos textos posterions 2 sua primeira reflexio em Além do bum ¢ cdo mal, ek nos parece uma boa chave 80 MENTE, CEREBRO '6 FILOSOFIA UNIVERSIDADE MEDIEVAL. Em Laurentius de Vottolina, Liber ethicorum des Henricus de Alomarnie, ©, 1950, Para Mitzsche, as grandes construgées Ideoldgicas do cidente, embora falsas, ‘reforgaram a coesdo social , por isso, nio podem ser Intelramente desprezadas, [Pant pensar e nomear esse estado da vida, por assim dizer, que tem como centro de immadiaglo a propria “individualidade” (que ‘pode ser no s6 a individualidade do indi- vviduo, mas também de uma comunidade de um povo etc), © que nos & sempre apresentadlo em relaco de oposicio com toxios aqueles estados cujo suposto centro de iadiagio esteja nao apenas num Deus fextemo, mas em qualquer objeto ou ver- dade exterior 20 inclividuo, Pensemos, por exemplo, na compa- raglo que Nietzsche faz, sobretudo em © anticrisio, entre 0 Deus ti deuses pagios em genil, Ele procy mostrar que, enquanto aquele € projetado fora e acima do povo que nele acredita, consituindo-se num olhar extemo que © julga segundo padres pretensamente tuniversais (€ portanto superiores as suas tradigdes contingentes), 0s sltimos refle tem valores que seria. proprios do povo, deitando raizes nos seus costumes mais auténticos, Servem, desse modo, para que © povo se afirme por meio deles, part sua fem si mesmo se veja refor ‘Um povo que ainda eré emt sf mesmo inda 0 Seu proprio deus, no qual as condigdes por meio das quais rosperou, suas virudes ~ ele projeta sua allegria consigo mesmo ¢ seu sentimento de poder num ser ao qual pode ser grato, ‘Quem € rico quer doar, um povo ongu- thoso necessita de um deus para poder sacrificar... Nos limites de tais pressupo- sigdes, a religio € uma forma de gratidao. Para que se possa ser grato a si mesmo: para isso se necessita de um deus. como se percebe, & exata- mente a mesma que se apresen descrigio da f€ que a alma nobre tem em Si propria, Isso corrobort a afirmagao de ale tanto para individuos como para povos, « mesmo, se quisermos, para ‘grupos ou comunidades que no che- ‘Buem a se caracterizar como “poves": 0 {que importa nao é a delimitagao quantita- tiva,¢ sim 0 movimento pelo qual a pers- pectiva valonativa, nesses casos, emana fespontaneamente do. ‘si imporse coativamente a partir do outro (al como ocorreria na visto de mundo ‘asta, mais do que em qualquer outta) E € também esse movimento que caracter: za a moral de senhores em sua oposico a moral de escravos, tal como desenvoivida por Nietzsche na’ Genealogia da moral anto 0 “modo eseravo de valorar se assenta nat negago dos valones senho- fais, o “modo nobre de valorat” é funda- mentalmente uma auto-afirmagio partic do seu “conceto positvo hisico": ‘nds, os rnobres, nds, 0s bons, belos e felizes’ A avaliaglo que a alma nobre fz de si mesma, considerada isoladamente, © 2 eligiosidade dos povos pasgios, vem assim somarse, no sentido de reforgar 1 idéia de uma {€ posiiva centrada no *si', 0 modo de valorar que € proprio do senhor na tipologia moral nietzschiana Isso significa que € visto como positiv, no sentido sobretudo de natural © sau divel, ese impulso espontineo de pers pectivagio valoratva a pair de “dentro por oposicio ao impuilso do eseravo, cujo onto de partida € © senhor, Ou Sei, um ‘em ver de ‘outro extemo, ¢ que se constitui na inven: lo de padres. igualmente externos, capazes de inverter imaginariamente (0 hierdrquica existente — 0 primero, tum impulso ativo, que se expande & partir de si; 0 segundo, uum impulso reative (res sentido), que se empenha originarkamente ‘em impedir a expansio do primeiro, Que o senhor, poranio, ou a alma nobre, ou 0 povo que acredita em. si mesmo, afirmemsse contra o outro, numa [perspectiva hierarquizante-em que se véem como superiores, nilo ¢ fruto de odio, res- sentimento ou desejo de vingan, mas uma decoréncia natunil e espontinea do seu modo de ver 0 mundo, Nao hd *maldade” em tal atitude (@0 contririo do que ocorre na moral de escravos, em que a “maldade” — 0 édio reativo do. ressen: timento ~ seria um elemento fundante). Trata-se daquela auséncia de “ponto de interrogago”, “severidade” ou “constrangi _mento’, com relagdo ao egoismo € a0 sen- timento de supetioridade, de que 0 vimos falar hé pouco, € que também se mostra fem diversas outras instineias do pensi- mento de Nietsche que ele parece ter a respeito de si préprio, como o atestam os tantos “autorelogios’ do Fece bomo, a comegar pelos titulos de seus ‘capinulos iniciais ~*Por que sou to sibio' Por que escrevo livros 120 bons" etc ‘Em homem que vingou”, diz ee nesse fivro, “inventa meios de cura para injrias, lutiliza acasos mains em seu proveito; 0 que no © mata o fortilece. De tudo 0 que ¥@, ouve € vive forma instintivamente sua soma: ele € um principio. seletivo, muito deixa de lado. Esti sempre em sua companhia, lide com homens, livros ou paisagens: honna na medida em que elege, concede, confia (..) € forte o bastante para que tudo tena de resultar no melhor para si” E em seguid cle: acrescenta bem, ett sou 0 oposto de um décadent ® acabo de descrever a mim mesmo’ inclusive na. visio O AJUSTE DO MUNDO Se hi uma expressio que parece adequa da para deserever © sentimento que tais © palavras manifestam, tal expresso ¢ sem = divida a “veneracio por si mesmo”. Endo © 6 de estranhar que assim seja: reconhe- ceendo-se como um expinito superior, uma Palma nobre, Nietzsche nao poderia ser Daag po Um povo que ainda cré em si mesmo projeta seu sentimento de poder num ser ao qual pode ser grato mais coerente com essa idéia a0 escrever um livo como © Ezce homo, revalidando ‘com ongulho, conti cada paso de seu percurso intelectual Também em si, afinal, terse-ia revelado aquela sauckivel precominancia do impul- 0 que se radia a partir de si mesmo; tam- bem em si terse-ia revelado, sobre © pano de fundo da formago crista que recebeu ~ dal a perspectiva permanente de uma “transvaloragio dos valores 1 moral de senhores, a prevalecer sobre a moral de escravos de seu tempo; também em si ter-se-ia revelado, enfim, uma nova religido de sentido inveride, a fuze-lo perguntar-se, no insta livro autobiogrifico, “como nao deveria ser fgrato 2 minha vida inteira” Também na fala de Nietzsche sobre si mesmo, portanto, encontramos os tragos da atitude que vimos descrevendo como uma f€ em si que seria propria de toda alma elevada, 0 que mostrt © quanto a “fGrmula” pode ser till para compreen- der 0 espirito da obra nietzschians € curioso observar como ele préprio parece adoti-la, em perfeita consonancia com 0 parigrafo de sAlém de bem e mal citado no principio do artigo (no qual 0 que estava em jogo, nao nos esqueca mos, era discussio de um critério. para julgar os artistas e sibios de seu tempo), ne de abertura desse > tever consideragdes sobre 0 resultado a criagio de um dos maiores escritores de todos os tempos. “Goethe concebeu tum ser humano forte, altamente cultiva do, talentoso em todos 0s atributos fisi- cose que, controlando-se & venerando si mesmo, ovsa permititse todas. as possibilidades de riqueza © naturalidade sendo forte 0 bastante para essa liber dade; um homem tolerante no por fea ‘queza, mas por forea, porque sabe como ‘empregar em proveito proprio aquilo que destruiria uma natureza média; um homem para o qual nada € proibido, a ‘FE, Nendrik Goltzius, ¢. 1600. Para Nietzsche, ‘amoral crista era “de escravos" > ser a fraqueza, no imponando se esta € chamada de vicio ou viewde.” Aparece novamente a idéia da veneri- servindo para caracterizar ceno tipo de ser humans io a si mesme que. em lugar de ajustar-se normativamente a algum ser 00 conceito extesior que the sense de ideal — algum critésio definidor da virmde © -do vicio -, como que ajesta © macndo {si mesmo, aproveitando tox © qualquer experigncia em pespac. Ora isso € algo que ele 56 pode fazer na medida em que tome a si como pace de medida, na medida em que cresa em si mesmo, antes de tudo, © ve como um conjunto de possibiidades 2 seu dispor - sem qualquer hestag3o diivida ou sentimento de culpa mans Jvizos FALSOS MAS UTEIS Devemos agont perguntar-nos, ‘em que medida a fé em si mesmo, com« essa fé que se caracteriza pela autovene Fag@lo, conflanca espon superioridade ete:, seria preferivel i £6 em Deus, numa verdade exterio mesmo numa suposta verdade interior de um, sujeito absoluto universal (que por isso mesmo seria falsamente interior, pressupondo uma universalidade que no se encontra em nosso “lato espiri- tual”), Mas isso $6 poderd ser respondlido se antes nos perguntarmes: se a verdade ‘nao pode mais funcionar como eritésio para tal escolha entre perspectivas, que critério & apresentaclo como altemnativa? E talvez seja interessante comevar a dis eussio do problema trazendo ao texto © primeiro parigrafo de Além do bem do mal, em que Nietasche procura justa- ‘mente desmascarair 0 critério da verdade (ou a vontade de verdade) “0 que em nés quer realmente ‘a ver dade? — De fato, nés fizemos uma longa aust diante da questi da cause dessa vontade, ~ até que nos vimos finalmente, inteiramente parados, diante de uma ques: ‘Ro fundamental. NOs nos perguntamos acerca do calor dessa vontade. Suporido ‘que queiramos a verdade: por que ndo a inverdade? Ea inceneza? Mesmo a igno- rincia? ~ © problema do valor da verdade se colocou diante de nés — ou foros nbs ‘que nos colocamos diante dele?” © que Niewsche parece sugeris € lume mudanga de foco: e se, em vez de seguirmos obstinadamente a nossa busca da verdade ~ como teriam feito todos os na propria 82 MENTE, CEREBRO & PILOSOFIA fil6sofos até aqui -, passissemos a discutir idéias © conceitos segundo 0 seu valor para nds? £ muito comum, por exemplo, que uma idéia supostamente falsa tena utiidade para nds, ou-mesmo que nos seja simplesmente agradavel ou bela: por que nao. escolhé-la com hase nisso? Por {que preteri-la em nome de certo ideal de verdade cuja pertinéncia até hoje nao foi nem de perto estabelecidhi? Ou_mesmo {que queiramos manter este tiltimo como vilide, para nds: por qué? © que hi nele para justificar essa nossa escotha E preci- so, enfim, discutir os motivos ou valores que nos levam a aderic a esta ou aquela ‘ou a esta ou aquela perspectiva, antes de tomarmos efetivamente deci ses a respeito. E uma tal diseussi0 nado precisa ser conduzida segundo 0 critério tradicional da. verdade ou falsidade dos os, podlendo até subvené-4o, Nietsche afirma, de fato, que “2 falsidade cle um juizo no & para nds uma objecio contra ele". © que verta- deiramente importa é “o quanto € ele Aen eat amirroeritnd a ro erry fomentador da vida, conservador da vida da especie, tilvez até eriador da espécie AGS. somos essencialmente: inclinados @ afirmar que os mais falsos juizos (aos quais.pertencem os juizos.sintéticos. @ _prior® io os mais imprescindiveis, qu sem deixar valerem as ficgdes da logica, sem medir a realidade através do mundo puramente inventado do incondicionado €¢ idéntico a si mesmo, sem uma conti falsificagio do mundo por meio de néime- os, « homem no conseguiria viver; que renunciar aos falsos juiaos seria renunciar a vida, seria negar a vida’. (© que esti em jogo, portanto, é uma questo de vida ou morte: sem fiegdes fakificadoras da realidade, “0 homem no cconseguiria viver’; abrir mo de taisfiegbes setia abrir mio de viver. Pois 0 proprio falsificar, na_verdade, ou 0. perspectivar = para refomar um termo fundamental do. vocabuliio nietwschiano = 6 essen: cialmente constitutive da vids, que por sua vez também se poderia definir como vontade de-poténcia: viver & ajustar 0 'SACRIFICIO de animais em louvor do deus Marte, friso do templo de Netuno, em Roma. Mietrsche mundo a si, visando a conservaga0 ou 0 incremento ca propria poténcia. E esse ajuste se faz, como dito, por meio de flogdes: idéias, conceitos “ldgicos", juizos, imagens, padres de medida, nimeros. Instrumentos de representagio, enfim, que nos permitem interpretar a realidade, pro- duzindo assim 0 “mundo” em que vivemos no qual nos situamos, enquanto repre- sentagdes que fazemos de nés mesmos O CRITERIO DA VIDA Isso nilo quer dizer, no entanto, que toda € qualquee fiogio sein @ualmente valida ou eficaz nessa sua funglo de presenvaca0 1 fomento da vida. A nova questio, que agora se apresent, diz respeito justamente uma comparagao possivel, entre juizos ou ficgbes, que permita aferir 0 quanto eles 0 fazem, ou qudo bem o fazer. B se a resposta a que Nietzsche se sente inclinado aponta desde logo para os mais falsos, € porque ele tem em vista todas as grandes construgdes flosicase religiosas do Ocidente, Mesmo sendo to flagrant mente falsas (como a prépriahistéra da Filosofia ¢ das eiéncias, ou da “Vontade de verthide’, teria cuidado de demonsirat), ‘1 justamente por iso, a espécie humana conseguit conservarse e até, num cero sentido, incrementar-se. Ra cient, portanto, para que as suas ficgdes ou cren: 2s mo sejam inteiramente desprezadas por Nietzsche: © seu projeto de “trans ~ PROCISSAO da Semana Santa om Ouro Preto, Minas Gerais: platonismo para 0 pova? No texto de Nietzsche, Zaratustra probe que seus discfpulos o sigam, para que tenham confianga em si mesmos valoraglo" 56 pode realizarse com esse pano de fundo, contra o qual havert de Construir 2 sua propria perspectiva jamais poder, contudo, furtar-se & cons: iénca, ort tomada, dessa relagtio “nao verdadeira” entre filosofia ¢ realidade E para quem admite, assim, a inexis- téncia de qualquer relagio entre vida e vertade, percebendo antes uma relacio intrinseca entre vida e énverdade, & preci so detxar de lado os “sentimentos habinuais de valores”; & preciso, em outras palavras, abandonar a perspectiva da moralidade ‘ocidental, justamente porque esta, centra- da no valor absoluto da igualdade entre (os homens, 56 encontraria contrapartida ‘num conhecimento lastreado em alguma verdade universal, vilida igualmente para toxlos, Ficaria assim descartada, portanto, ¢ Jogo de saida, a velha alianga entre o bem a verdade: a escolhi de um novo critério part © nosso pensar, ou am bilidade de um ritério. distin, teria de passar antes de mais nada por essa rupturat fundamental. Sem ela, nio seria passivel /erguntarmo-nos, com tanta trangiilidade ‘por que ndo isso?"; "por que nao aquile? = no seria. possivel, em outras palavras, experimenta des do pensamento, poss sem culpa novas possibilila Pols foi isso, justamente, 0 que Nietzsche ousou fazer, colocando-se do bem © do mal’, E a primeira possi bilidade a experimentar, como ji ficou insinuado, seria a substinigae do crtério da verdade pelo critério da eda: 0 que aconteceria se, em vez de medir 0 valor de nossas idias pela sua suposta veracidade ou falsidade, 0 mediasemos em fungio do quanto elas favorecem (ou desfavo- recem) 4 conservagio © a expansio da vida? Nao teriamos talvez mais sucesso, ou sobretudo mais felicidad do. que tivemos enquanto. buscivamos obstinadamente a verdade (que encontramos), proibindo tudo que nao estivesse vinculado a esse fim? Nao seria ‘© mais satide final nao, essa, talvez, a melhor resposta a0 proprio fracasso de nossi civlizaglo, nessa. sua historia de reveses, inclusive na busca por uum progresso fundado na verdade & no bem? Sio questies como essas, enfim, {que Nietsche se permit fazer, assna do 0 catiter essencialmente experimental do seu pensar fllosdfico, sempre empe nhado em moverse na contramao dc pensar tradicional Um pensar tradicional cus crengas basilares foram sempre, diteta ou indire- tamente, fem figuras ext como deuses idolos ~ algo em que © proprio Nietzsche receava se. tomar, 00- ‘menlando que os discipulos de Zaratusea enconirassem a si mesmos, part somente assim, a partir de suas verdades singulares realizar a virude que © proprio mesie definira como a “virude de voltar tera sim, de voltar a0 corpo e 2 vida". Se a to, era antes subordinad a céu divino, onde tinha seu fundamento se iso implicava 0 desprezo pela tema © por tudo © que € copéreo, por onc siglo 2 imateriaidade da alma imortl, a Unica forma de “transvalorar” essa nog’ dando-the um sentido radicalmente: now € afimi-a por mei redimindo assim a dual contingente: a vida se afirma ‘por meio da fé do indiexduo (ou do gre ‘ou do povo etc,)em si mesma, @ vida, com ef da terra ¢ do compe ons RE '* O antcrsto e Ditrambos de Dionisio. Feri Nietzsche. Trad de Paso César {e Souza. Compania das Letras, 20 ‘+ Nietesche: cvlizagio e cultura. Coos ‘Averto Moura. Martins Fates, 2005 + Nietzsche ea verdade. Robert Macros Graal, 2002. NAA i ay Gis. ie tee a eo . Nietzsche fils como a Na filosofia de Nietzsche, a nog: de corpo abrange as atividades mentais ou psicolégicas em todo o organismo Ac MCEMER. Coronte est aa eanneneny ‘QUEM, ENTRE 05 FILOSOFOS, FOL ANTES DE MIM Psicélogo, € no O seu opos to, ‘superior embusteiro’, ‘idealista? Antes de mim nao havia absolv mente psicologia.” (Ecce homo, Por que sou um destino, § 6) @ Escritas em 1886, as palavras de Nietzsche marcam a ruptura de sua perspectiva psicolégica em face da psicologia racional, dominante na historia d pensamento desde os gregos, Corrente propria das filosofias vincu a metafisica tradicional, a psicologia racional remonta a Aristote tem por objeto “a natureza, a substincia ¢ as determinagdes acidentais da alma’, (Sobre a alma, 1, 1) A alma € tratada como su corpo € este como um instrumento da primeira, de modo que « tos da consciéncia sio considerados puramente mentai NIBTZSCHE A oposicio de Nietasche a esas Con- cepodes fez dele um dos precursores da revolugito no campo da psicologia, a qual se consolida com Freud. Ao eriticar 4 psicologia racional, 0 filésofo tem por alvo, sobretudo, a nogio de vontade ‘como faculdade racional «a alma/mente como eapacidade de eseotha ou delibe- ragao livre. Seguindo a critica iniciada or Schopenhauer, recust qualquer defi- nigo de livre-arbitni, transformando @ exptessio vontade de poténcia 0 ‘conceito-chave de seu. projeto filoséfico turdio, Este € um procedimento tipico da filosofia de Nietesche, desterrtorializar uum termo imporante para a. tradicio ‘com a qual pretende romper, propondo lum sentido novo, aparentemente inver- so. Assim, a yontade, que era um termo vinculado a0 Ambito da mente © da sicologia racionalista, passa a. ser con- cebida como a pluralidade de impulsos constitutiva da multiplicidade cle corpos. PLURALISMO Na verdade, vontade de poténcia & um conceito complexo, tendo varias defini- ges que se complement, © mundo € concebido como vontade de poténcia: isso significa que todos os tipos de cor- pos Sto constituides por vontadkes de poténcia. Esta, porém, no € a esséneia do real, tiem a substincia de todas as coisas, pois nilo existe @ vontade de poténeia no singular, mas sim uma ple- ralidade de vootades de poténcia em relagio, © dinamismo eo pluratismo so caracteriaicas inerentes 40. conceie to. Quando Nietzsche define © mundo, 4 vida como vontade de poténcia, “e nada, além disso" (lem do. bem e do ‘mal, § 36), € preciso levar em conta que a vontade de poténcia como impilso ‘constitutivo dos corpos 56 se efetiva nas relagoes de forca com outros impulsos. le ultrpassa Schopenhauer, jf que a vontade mio seria a esséncia do mundo, nem como coisa em si, nem como repre- sentaga0 do sujeito do conhecimento, pois 0 dinamismo. € 0 pluralismo cas vontades de potencia se efetiva de tudo, como interpretagdo, nao exclu- siva do sujeito racional, Todos os corpos participam da dinamica da interpretacto, que significa, principalmente, a relagho 86 MENTE, CEREBRO 6 FILOSOFIA Na concepgao nietzschiana, 0 corpo é"um edificio social de muitas almas", ou seja, uma pluralidade de vontades de poténcia ‘entre os impulsos que mandam e os que ‘obedecem, Nietzsche iiverte 0 caminho dominante na tradiga0 filossfica, pois, ‘em ver de a psique ser 0 guia para alcan- ‘car © conhecimento das idéias verdadei- as, © compo passa a ser 0 fio condutor para 0 conhecimento. E preciso observar que ele segue, aqui, 9 caminho abero por seu antigo imestte (Nietzsche declarou abertamente {que fomou contato com a filosofia com a leitura da obra de Schopenhauer). Este cescreveu, no Livro 1 de © mundo como vontade e como representacaer “Aqui, © compo nos € objeto imediato, isto €, aquela representagio que constitu para 0 sujeito © ponio de partida do conhecimento’ Nao se trata, contudo, de mera inversio de prioridades, de substiuir a primazia da ‘mente pela do corpo. A inverso € apenas aparente, visto que Nietzsche desenvolve Juma concepsa0 de corpo a qual subsume as atividades mentais ou psicol6gicas em todo 0 organismo, isto €, 0 corpo € defic nnido como uma pluralidade de impulsos ‘ou “almas"; “Nosso corpo € apenas. um eclifcio social de muitas almas". CAlém do bem e do mai, § 19) Ou, como vimos, ‘uma pluralidade de vontades de poténcia. ‘Assim como nao foi acaso © desiocamen- to do termo vontade, tampouco € fortito ‘© emprego do termo “alma” para definir 4@ phiralidade de impulsos, ja que € um dos termos centrais na psicologis racional, relacionado a ideais superiones, a valores clevacos © a esfera cognitiva. Ao desterr- torializar esse termo, transferindo-o para 0 Ambito do onganismo como um todo, seu ‘objetivo € mostrar que o conhecimento & proxhuzido em toxlo 0 corpo € niio apenas ‘na mente, pois cada impulso fisiopsico- ggico sente, pensa quer, nao havendo separagao das fungdes por Orggas espe- cificos. Desse modo, Nietzsche critica ‘perspectiva ddos que denomina despreza- dores do corpo ¢ ultramundanes. SINTOMAS FISIOLOGICOS © registro fisiolégico permite, portant, diferenciar a psicologia nietzschiana da racionalista, Segundo 0 fAilésofo, esta nao ‘se separa da perspectiva moral e metafi- sca, pois falsificou € moralizou as ques- tes de psicologia: “A moral é a ‘Circe da humanidade’ que falsificou no ceme — moralizou ~ todos os paycbolagica tas questoes de psicologial’. Gece homo, Por que escrevo livros ido bons, § 5) A = falsificago ¢ a moralizago decorem da oposigdo metafisica dos valores, de ~ modo que 0 ideal de ascese da alma ou = da mente racional é promovide por meio do desprezo pelo corpo, pelos instintos aturais, considerados © lado “mau ¢ = ‘CORPO HUMANO. Paolo Mascagn! (anatomista) = ‘© Antonio Serantoni (artista). Anatomia ‘universale, 1833 woew.mentecerebro.com.br pecaminoso”. Para Nietasche, a psi cologia antes dele 86 servia para difamar, crucifi uspeito tu € humano; Em varias passagens, fil6sofo destaca a fisiologia como. perspectiva privil UM FILOSOFO, Pintura de Jea-Honers sew scrs la f juan. ee volver dda consciéncia > que do comegamos a cc Jer em que sua fisiopsicologia experim medida podiame ar a conscién: cific de seu projet ay a fisi pea agora no inicio este pode conheverse e por isso julgarse, Desse modo, a anilise d pe 354), Para Nietesche ibilidade de julgar-se) ao aspecto tedrico de corpo, possiilita inclutda enire as “atividades instinivas’; (possibilidade de ca hecerse), Em uma tot mais efetivo para suas goes resultam das exig clas passagem de Além do bem e do mal formulando assim um_ procedimen fisioligicas e niko da faculdade de est ), ele chega a afirmar que a maior met Delecer julgamentos moras. Iss ka sua filosofia das perspectivas que que a consciéncia nao € pensada como entre as atividades instintivas, Acrescenta de metafisica, idealista € moral na acepgio tradicional de atividade purs- que € fast a opasiglo entre conscitn-método de andlise ~ que parte mente mental ¢ ricional, como relaglo da cia e instintos, j4 que até 0 pensame alma consi na, relago interior e consciente de um filésofo é lo por forma a p ja. de um individuo, n, pela qual seus instintos. E conclui que por tris de um povo ou de uma civilizagio cor FILOSOFOS ENFERMOS "Na concepgio de Nietzsche, morte como ibertago do _—_despertaram a indignagao 0 “desprezadores do corpo _—_pensamento¢, por conseguinte, de Nietzsche contra os da terra” so aqueles que da alma: “Durante todo o tempo desprezadores do corpo, inventaram um além-mundo, em que tivermas o corpo, @ “esses negadores da vida" ry ‘S40 0s uframundanos, aqueles nossa alma estiver misturada que reconhecem que seu ‘que inventaram uma estera para com essa coisa ma, (.) N20 corpo éenferma ¢, por isso, ‘além e para fora da vida, como somente mile uma confuses “do ouvidos aos pregadores ‘se fosse superior para negar'e nos so efetivamente suscitadas da morte e pregam 0 além- ‘desprezar a exsténcia eft. pelo corpo quando camam mundo”. E, em outra passagem: a verdade, esses ‘as necessidades da vida, mas _“Enfermas e moribundos, eram pensadores tio critcados ‘ainda somos acometidos pelas os que desprezavam 0 corpo = pelo autor de Assi folou doencas (.) 0 corpo de tal ‘ea terrae inventaram 0 céu < Zaratustraeram herdeiros de modo nos inunda de amores, as gotas de sangue redentoras; = uma tradigéofloséfica que pabxbes, temores, imaginagées mas também esses doces remontava a Sécrates e Patio. de toda sorte, enfim, uma « sombrias venenos eles os No didlo patinico Fédon, infra de bagatelas(.)".__traram do corpo e date”. oe Sécrates sustenta a tese da (Plato, Fon, 66b-c) (Assim fou Zaratustra\,§3, So Sevonarla seele 0. o> Jimortaidade da alma, definindo ——_Textos desse teor os ultramundanos) "altramundano”infoerante MASCARAS. Nietzsche considera que, dissimulados sob a supremacta do racional,relnam impulsos doentios que negam a vida base nos valores que orientam todo agir pensar — nao € out senio 0 método ‘genealogico exposto, sobretudo, com a Genealogia da moral. Com ele, 0 autor busca a hist6ria de formagio dos valo- res, dos ideais ¢ das idéias dominantes na cultura ocidental, ou a origem do modo de ser © pensar, ou a psicologit do homem europeu nos sintomas revelados pela fisiologia dos corpos, sobretudo, a partir dos estados extremos de satide ¢ de doenga, de fraqueza ou de forga, de poténcia ou de decadéncia, A ARTE DA TRANSMUTACAO Nao se trata, entretanto, da busca dle um a crenga na verdade cientifica como um novo idolo, desde que considerada como tum valor absoluto ¢ nao como mais uma lo conhecimento. nao defende um ponto de vista objetivo no sentido de ser neuiro ou impessoal (ou no-subjetivo, ¢, por isso, universal e abstrato, A com © esquema dualista sujeito-obje- to, subjetividade-objetividade, particu larniversal, concreto-abstrato, mente: corpo, levando os pares de opostos 20 ntrario, procura romper 88 MENTE, CEREBRO € FILOSOFIA Nietzsche afirma que os fil6sofos deve “parir seus pensamentos com sua dor" e transmiti-los com sangue, coracao, prazer, paixao e tormento paroxismo, exagerando © fundinde os registros a ponto de explodilos por dentro, procurando mostrar, com. isso, a complementaridade das perspectivas reunidas em um campo de forcas. possivel un visio do todo, ‘objetivo e subjet sofi como criagao de uma pessoa. (CF. A gata ciéncta, pref. § 2). Isso nao significa do subjetivismo, 0 que se apenas a inversto do dualismo, © méto- do que segue © fio condutor do corpo rompe com a tradiglo n pociendo ser reduzide itracional, da fisiologia Jégico. Nietzsche € eritico da con de’ objetividade enquanto neutralidade cientifica — derivaga0, por sua vez, da concepgio moderna de subjetividade, ou de sujeito cuja esséncia € a razio ‘auto-suficiente, auténoma, auto-regulada © condicionada por si mesma Esta dupla recusanio representa apenas uma critica negativa e destruti vva, pois afirma a possibilidade de outra experiéncia filosofica desde que nao se separem razio e instintos, consciéneia € inconsciéncia, mente e corpo, sujeito € objeto; evitando-se a censura do que € problematico, dor e sofrimento, A for mula nietzschiana para essa nova expe riéncia com o ser ¢ © pensar € a trans eduzida Por isso, mastagao. preficio de A gata ci ‘que nés fildsofos na de separar “alma © corpo” nem © espirito”, comparando aqueles. qu buscam a neutralidacle com “aparelbos de objetivagao & maquinas registradoras com visceras congeladas”. Enfatiza que 05 filésofos tém de parir seus pensamen tos com sua dor e transmitie tudo 0 que tem de “sangue, coragho, fogo, prazer paixdo, tormento, consciéncia, destinc faulidade”. A Alona. experimentada dente, modo’ € compara com ut dane da transmutagao, pois possi "rananudarcondantemente tide © ae somos em ity e chama Tilosola experimental, experimen- tallsmo out “mint experienc asim Niewsche designa seu proto floso- co at maturdide. Profto” que perse ave um fost da trns-mutag, da transalragao dos valores, da ane (fo da vida, A flooofianictschiana se Dropoe a ess dia tari: de um lado hi a eitea radical os valores, sos, concetos cents da tradi do pensa- mento cident, de utr, ho Projo afrmati experinental de wansvalo. Tapio dos valores, de tansmutagao, m0 sentido da supersao da fraquera pe fora, da doen. pela sue da neg 30 da vide pel afrmacto. © cleo dees fon experinental 6 4 penpectia de adie fsopicloges fo metodo geneiouxn de nepcao, A Bdologa © 0 corpo sao 0 pone de partida para proceder a aniilise da psico- fogs, to dor indvidues quand dos ponen eves, io 6, primo ha © dagntico pela itr do sins manifestos nos mais variados tipos de corpos, depois Io progntico ou as possbiidadesterapouticas de como che. gar & cura no sentido da transmutacio. £ pre lembar que 0 objeto de anise nao est contapono 46 oslo palo sogenedog, ps exe no ravindcs 5 tips neu ou decreas B ho contro, quanto mas weinado ra If suwandise, mais cork ato a praca E foots experimen. Asim, una das IS auesves que nis incre 20 psc o 80 fildsofo-experimental é a relagao rare mie, cocoa ofa. S Invesigaremos a sequr um texto THEPROOUCAD www mentecerebro.com.be chave que aborda tais questoes, 0 j4 referido prefiicio de 1886 a segunda edigo de A gaia ciéncta ‘TRANSFORMACOES 1. A relagao entre satide, doen, filoso- fia ¢ psicologia. “Um psicdlogo conhece PoUcas quesioes Wo atraentes quanto a da relagdo entre sutide ¢ filosofia, e para © «aso, em que ele proprio fica doente ele traz toda a sua curiosidade cientifica ‘consigo para sua doenga.” (Pref. § 2) Hi uma relago intrinseca entre sadde, doenga ¢ filosofia, relaglo esta que deve ser entendida no sentido de a filosofia ser ‘uma arte da transfiguracao, tl como explicitado no § 3: “Um fil6sofo que passou por mutas sstides, € que sempre passa de novo por elas, também atra- Yessou outras tantas filosofias: nem pode ele fazer de outro modo, Sendo. wanspor cada vez seu estado para a forma e distancia mais espirituais — essa arte de transfiguragao € justa- ‘mente filosofia”. (O que € transfigueado, 0 que wansformado com a flosofia? A doenga € tansfigurada em saide, ou melhor, a doenga ‘opera como motivador para a produgio de uma filosofa que busca a side, Saide, dentro desse projet filossfico, significa afirmagio da vida, aceitagio € transmutago dos limites. Assim, Nietzsche declara que 0 tempo fem. que sofreu. grave enfermi- dade foi um periodo de muitos _zinhos do ponto de vista de sua producac filoscfica, manifestando gratidao pelo fat de sua side ser tho mutavel © que se pode inferr até esse ponto ¢ ‘que a psicologia é um registro imponante pana esi filosofia da transfiguragto, Qual Psicologia? A. psicologia que € sindnimo de filosofia experimental, ito &, a expe rigncia de filosofar que no separa compe € alma, que parte da leitura dos sintomas fisiologicos manifestos no corpo para bus car a gencalogia dos valores, dos ideais das ideias, dos sentimentos, das paixdes fem suma, da psicologia escondida. sob milscaris de moraldade. © escopo da filosofia experimental 6 justamente tornar se a ane da transfiguragio, transformando perspecivas: “A pani da Optica do doen te, olhar para os conceitos e valoves mais adios ¢, inversamente, da plenitude ¢ ccerteza da vic rica, olhar para baixo e ver ‘ secreto trabalho do instinto de décacen: ce ~ ese foi 0 meu mais longo exercic, ‘minha experiéncia.propriamente dita, se em algo vim a ser meste, fo nisso”. (Ecce homo, Por que sou tao sdbio, § 1) PENSAR-SENTIR-QUERER 2. Toda filosofia & uma fi sofia expe= rimental., “Ou seja, pressuposto que se € uma pessoa, tem-se também, neces ament por uma hierarquia de que mandam e 0s que obedecem. Ha a recusa dos modelos de objetividade © de verdade fund de sujeito enquanto ‘ondicionada por si mesma. Dai que © conhecimento surja como produto de um corpo que pe como fruto de uma complexid em expandir sua poténcia, neutros. A vontade pode querer 0 nada, mas nunca pode nada qu de. impulsos. fisic jamais 90 MENTE 0 corpo é fio condutor do conhecimento, que surge como fruto de uma soma de impulsos conscientes e inconscientes tido de set neutra, imparcial ¢ liberta das paixdes. Afirmar que toda filosofia € experimental, experiencia de inter- pretagio de uma pessoa, nao significa que ha um eu-sujeito, uma unidade que se condensa em torno de uma individualidade racional para_coman: dar © processo de forma autnoma & auto-suficiente, Nietzsche rompe com o discurso da representagao caracteristico da cor de. interpretagao produzida pelos im pedo moderna de subjetivida. 10 de todo fendmeno derivar da ‘constitutives dos. corpos que hau eucunidade, de uma singularidade psi colgica que interpreta Em um fragmento pos tumo de 1884, intitulado O homem como mult plicidade’ a fisiologia apenas indica intérprete no sentido de um © deslumbrante comércio entre esta -multiplicida. de que € © homem ¢ 0 arranjo das partes sob € dentro de um tode Entretanto, observa que ‘essa multiplicidade, com parada a um Estado, seja controlada por um monarca absoluto, isto ainda nogio do. 0 se trata de reduzir a ‘homem come multiplic @ uma massa ind ferenciada de impulsos. Cuida-se, sim, de compre ender qual a bierarquia ‘iscOBULG. Copia romana em ‘marmare da pega em bronze do eseultor grogo Hiren. Século Va.c. que obedece arbiteiria ou ilusoriamente uma falsa s que mandam © os em vez de estabelecer © compo, entre de te © conhecimento de como se estabelece a hierarquia entre a multiplicidade de impulsos que nos comandam ~ sem mis caras € sem auto-engano possibilitara a arte trangfiguratoria, Para Nietzsche a questio da hierarquia € central. Em walia gem, por exemplo, afirmativamente sua doenga como um instrumento de descoberta da vida € tomando possivel uma percepgio mais pequenas coisas; “Fiz da minha vontade de satide, de vida, a minha filosofia Cece homo, Por que sou tao sdbio, § 2) Nao se trata, portanto, de uma filosofia da resignacao © do conformismo, nem do elogio ao imacional, & Joucura, ow as “paixoes” cegas, mas de mostrar que sob a mascara da supremacia do racio. ral reinam impulsos fracos © doentios que ne m a vida, O que se pretende um caminho que possibilite transmu Jar ¢ transfigurar a vontade que nega a vida, a vontade de nada, © pessimismo a fraqueza em vontade de vida, em vontade de sate, em filosofia. O fildso. forpsicdlogo declara que aprendeu com autog auto-experimenta olho mais refin stionamento, de essa especie de ‘a olhar com um > para tudo © que em geral foi filosofado até agora’, pois toda ética. com uma concepgao negativa do conceito de felicidade ¢ fisica que conhecem um term estético ou religioso por um re, um além, um fora, um acima, ibilitam formular a pengunta: se na foi a doenca, Faqqueza que inspirou a maioria dos filésofos. AMPARO OU GRATIDAO. 3. Nem ik transfign 8 baisicos de filosofia: a flosofia da doenga, das vida © desprezam © corpo; ¢ a fil vunas, dos que negam a filo sofia como gratidao triunfante, come afirmagio da vida, Enquanto o primeirc necessita de sua filosofia “como ampa: medicamento, reden. io, clevacao, alheamento de si”, para © segundo, cla € apenas um “belo luxo, uma gratido triunfante” pelo espeticu- ro, tranquilizante lo espantoso que € a vida, mesmo com ieee Pt te SS eaten Tab Hono, todo sofrimento, Nietzsche avalia o pri meiro caso como o mais habitual, tipico dos pensadores doentes, “estados de Indigéncia que fazem filosofia”. O que diferencia os dois tipos, pontanto, ¢ exa- a relaglo estabelecida com a doenca. tamente Enquanto uns negan tem culpa pela dor, ele propoe um elogio da doenca to de autognose Termina gem relacionan. do filosofia experimental © a psicologia busca der 0 sentido exis tencial da doenga m como pura debilidade _fisica vine: O que seri do pensamen. to mesmo, que é posto sob a pres a passa- que compreen 20 divino: sto da doenga? Esta é a pergunta importa aos psicdlogos: e aqui é p: Pref. § simples sc vel a experimentagao’ Tal _esquema vezes dogmitico, reducionista © pr que nietzschianos: transformar sua polémica porém & preciso consid esta & uma estratégia dos tex com 0s valores herdados e cristaliza culturalmente em uma guerra (p entre tipos que ganham corpo pa da riqueza de imagens fortes « tas vezes desconcertantes. Levando em conta que ele luta com valores erguid hd mais de 2.500 anos, somente a fore de um contradiscusso, ou de uma filos: fia que apresente contravalores pode: iniciar 0 processo. de_transvalor que € a tarefa central assumida filosofia como arte transfigurat6ria. @ + Samtlehe Werke. Fetch het | "em ktsche Strange. 5 wk | _ Water ae Grater, 1960 + Obra ncompletas. rch Wetscne Tracugis de RutersRoergues ares Cals 0 pnsacres AraC + gaia lei. rch Nn Tran de Pal Cesar de Ss Comganna ds Letras. 2 + mundo como vontage «como ropresentagaa Ans Sonoma Tago de ae Bator. Usp 2005 PENSADORES DA AS PAIXORS OF tzsche le N Q questionamento da moral vitoriana “ie artes, a ciéncia da psique humana — todos esses campos foram objeto das reflexdes de Nietzsche POR MARIA LCIA caCctOLA Freeniuct Nurtzscur £ sem ptvipa um filésofo da naptura, no s6 no Ambito te6rico da filosofia, mas, e principalmente, na moral. Exibe a Crise © a decadéncia dos tempos modernos sem se deter em nenhum terreno proibido. Por isso mesmo, foi cooptado por ideslogos que manipularam seu pensimento para justificar posigdes politicas madi cais. Nietusche e filosofia do martelo, que visa restituir os instintas suprimidos pela civilizagao, tomou-se presa ficil do nacional-socialis ‘mo, que adotou © que imaginava serem suas crengas para embasar filosoficamente o “Reich dos mil anos’, E claro que 0s nazi-fasciseas “esqqueceram” dle modo deliberado as acerbas criticas do filésofo aos anti-semitas © & mentalidade alema forjada no ressentimento. Talvez © que facilitou a tarefa de amesquinhamento desse grande pensador tivesse sido tanto o seu estilo aforismatico, que permitia cones arbi- Imirios na exposigaio de suas idéias, como a propria nogio, central em Nietzsche, de vontade de poténcia, que foi lida por alguns comenta- lores como “vontade de dominagio”, no sentido do tomar posse do ‘outro, impondo-the seus valores. 98 Enire 6s, Nietzsche foi brilhantemente defendido de tais acusagdes por Antonio Candido, que, num texto de 1943, afron- tou a opiniio de seus companheiros de esquerda, a0 mostrar 0 carter exitico do pensamento do filésofo que denunciava “as hipocrisias’ da moral de seu tempo, buscando um novo feitio para a. vida No entanto, as opinides hicidas submer- gam, na €poca, diante da ofensiva geral dos idedlogos nazistas, Estes. reforgaram © cariter belicoso © ariano da flosofia niewschiana, fazendo da vontade de ppoténeia, na sia interpreacao, «just ‘80 da idcologia dominante, Assim o cereo estiva montado, indluindo mele a misica ‘de Wagner, a quem Nietzsche se ligara de inicio, apesar do rompimento posterior. ‘Um outro acontecimento politico que talvez tenha levado a diminuir © precon- ceito contra 0 “flisofo. de ultrdineta”™ foram os levantes de maio de 68, na Franga, na Alemanha, na Iklia e em virios ‘outros paises, inclusive no Brasil, eno fem plena ditachura, Na sua ansia liberi tia, 08 estudantes viram em Niewsche 0 Na tragédia grega Nietzsche vé configurar- se 0 equilibrio entre a beleza que transfigura e aembriaguez das paixdes profeta de novos tempos, o grande eritico ‘da moral burguesa e da universidade e de seus métodos arcaizintes. Niewsche foi novamente “politizado”, ficando, agora, junto com os freuido-marxistas, na maioria adeptos de Marcuse, do lado de cit das barricadas levantadas pela juventude intelectuais de esquerda, que nas manifes- tagdes de mia chegaram a embates violen- (os com as autoridades, exigindo fim da repressdo © a mudanca dos costumes na vide em sociedade ¢, pois, na cultura APOLO OU DIONISIO De fato, Nietzsche faz a eritica da moral vigente na €poca vitoriana (ou 0 seu. equivalente germanico), que trouxe com seus valores cristlos © desprezo por esta NIETZSCHE E 0 ANTI-SEMITISMO vida, mera aquisicio de eréditos. para garantir a imortalidade. Volta-se com imaginagio e erudigio para a Grécia habitada por deuses dotadas de vicios Virtudes humanas, apesar de livres da mone e da comupgao. F na arte grega da tragédia que ele vé configurarse 0 equi- librio entre as forgas dominantes no ser hhumano, a beleza que transfigura, simbo- lizada pelo deus Apolo, e a embriaguez de impetos indomados, sobre os quais reina Dionisio. Os gregos teriam eriado Para si, no enfrentamento das agruras da existéncia, a tragédia que, a0 exibir © império do destino, a0 mesmo tempo mostrava a grandeza do herdi a0 ten- tar superiilo, “A vida vermelha, sada que dominava a Grécia, veio A tona Com 0s filbsofos pré-socriticas, como, por exemplo, Hericlito, Empédocles ¢ Anaximando, que viam nos elementos ‘em Itita ou oposicao as forgas formado- rs da Natureza, entendida como algo viyo € em plena transformacio, a pbisis, ‘© homem fazia parte dela, despontando ‘como um ser em atividade. Em sous esforcos para “esses novos especuladores dos equivocos de letura cchamou de A vontade fazer de Nietzsche um ‘em idealismo, os anti-semitas, —_ cometidos contra os textos: de poténcia, Publicados apés precursor das concepedes que hoje reviram os olhas de do Nietzsche, destaca-se 0 a morte do fildsofo os textos, nazistas, os adeptos de Hitler modo cristio-ariano-homem- francés George Bataile.No__tais como foram preparados, cconvenientemente esqueceram de-beme, aravés do abuso artigo Nietzsche e o nacional- _podiam bem servir de arma diversas passagens de suas _exasperante do mais barato _sacialsmo, Bataille mostrou_te6rica para o nazismo. ‘obras que denunciam o anti- meio de agitagao, a afetagao as mutilagdes e rearranjos semitsmo. Por exemplo, na moral, biscam inctar © gato dos aforismas do fidsofo, eneslogia da mora, 0 filgsofo de chifres que hd no povo..”._realizados por sua md, investe com desprezo contra Na mesma obra, ele afimma Elisabeth Forster Nietsche ‘~casada com um ant-semita_improbidade intelectual € partidério do nazismo que mesmo moral de Elisabeth, hhavia inclusive se empenhado que, depois da doenca e ‘em formar uma comunidade morte do irmao, passou 8 hitlerista no Paragual. Durante —_dirigir 0 Arquivo Nietzsche. ‘anos, ela cuidou do irmio Em 1932, ao visité-la em Aoente,o que, na sua opinido, Weimar, 0 Fhrerrecebeu the deu direitos sobre cle ede presente a bengala do ‘sua obra. Elisabeth elaborou _fildsofo; trés anos depois, ‘por sua propria conta, a partir os funerais de Elisabeth de tragmentos esparsos de. ‘Nietzsche contaram com a Nietzsche, colados a seu ‘resenga de Hitler e outros bel-prazer, um tivo que dirigentes nazistas. wow mentecerebro.com br ‘CENA DO FILME 300, baseado na graphic novel 300 de Esparta, no historiador erédoto e na tragédia Os persas, de Esqui Sécrates € 0 predomini er sobre at vontade ou 0 instintual oz Nietzsche, « de natural ¢ © domi prador 20 devedor, que exigi dese dt sua obr aca mais que uma divida material inte cespiritualizadk a mesma palavra em alemao que divida © culpa ~ Shuld. Nesse de animizagio, surge a conscié a divida cresce agora em progenitores e ancestrais, jorizada isto. sem esquecer que dizer iscendendlo por fim até o Deus que more para saldi-la E dessa divida que nés nao podemos em absoluto pagar que se engendra a alma” do he mesmo, e que faz dele algo digno de ser um espeticulo para os deuses Assim, ¢ a ps de dominacao, Giéncia moral, que se toma possivel a época ir desse procedimento elevado a uma cons. fracos contra os fortes, ¢ dos doentes contra os sadios, Essa talvez seja uma das razbes pelas quais Nietzsche f como propiciador do busca de uma “raga pura”. Se virmos essa polarizacio entre *nobres’ ¢ “escravos’ ‘como referencia as classes sociais um capitalismo nascente, nao ha como rebater as acusagdes contra o pensacor. Porém, se pensirmos em tipos ou pari: metros de atitudes diante da vida, ou seja, de um lado, aquele que a nega e, de outro, © que tem a coragem de dizer sim, tal como os gregos, essa visio. se fusca ¢ tomamo-nos aptos a entender © clogio que Nietzsche faz de Epiteto, que apesar de escravo, era filésofo e nobre pela liberdade para Nietzsche, quem ganhou a parada até agora na nossa cultura foram os escravos, 08 fricos ¢ os doentes, ji que vivemos numa Epoca doentia ¢ civilizagto que desvaloriza a vida, © a de seu pensar. poe a perder. Nao s6a moral, mas a arte seu desinteresse pelo sensivel, tal ‘omo foi caracterizada pelas filosofias de Kant e Schopenhaver, se igu: tarefa de amesquinhar 0 nosso dia-a-dia, expondo tédio 0 sofrimento e, por fim, a abnegagao, E na Ghtima parte da Genealogia da moral que surge a figura do padre ascé tico a conduzir o rebanho de sofredores, a dor pela compaixao, A filosofia é 0 alvo predileto de Nietzsche No padre sacerdote, também 0 filésofo que, ape sar de ateu, guardou escondidos no seu discurso os pressupostos morais do cris tianismo > nillista. Apesar do Nietzsche devota fande respeito que lugar para a vontade em detrimento da azo © por ter reconhecido produto da Natureza, como out qualquer, Nietzsche tre, tal rompe com Wagne nismo e ak obra. © niilismo que Nietzsche condena € 0 que leva a passividade, a0 ressen mento e conseqiente abnegacic Vemos que, por seu foco permanente mesmo admite, a0 critic ainda falando como um “moralista reno da moral, Isso mostra a sua preocup: 0 fundamental © guagem a abstragto dos conceitos, ual ¢ quase impossivel jue surge importineia em situd-lo diante da © na histéria da flosofia, que d curso 0 sentido propriamente inovador. E dessa critica implacivel 3 desvalorizagio da vida, pela qual so responsabilizadas certas correntes da filosofia, af comp endido o idealismo alemio, na sua ansia de tudo reduzir ao pensivel, que samento de Nietasche se amplia, atingin do outros dominios da ciéneia da psique humana. © pen: INTERPRETACOES: proprio movimento, A interpretagio nao é uma dec cengendrar que obedece a forgas dom nantes que impdem uma direcao a um processo de desenvolvimento, como na formagio de um érgie ou de um todo orginico. Se mlo ha uma finalidade 96 MENTS, cE (0 ESTADO TOTALITARIO © o rebanho humane: cona do filme 1984, de Michael Radiord, 1964 previamente: estabelecida, o fazer inter pretativo é formas ¢ re produ (Ou seja, no ha um pi as este se desenha no pro- config e bu pr prio duclo entre as forgas que buscam a supremacia: assim ¢ sempre uma “vontade de poténeia” que ‘ao traduz uma unidade ou a manifesta Para Nietzsche, ter a coragem de dizer "sim" a vida, mesmo com todas as suas dores e sofrimentos, constitui a marca dos fortes ‘gio de uma vontade una, mas expressa a uta pela poténcia em que se empenham essas milhiplas vontades. A vida no se cexplica pelo instinto de conservagio, mas pelo auto-engendramento, que obedece ‘a uma hierarquia de forcas. O tipo “fraco” fou ressentido nada mais significa que uma forgt que se uma forga.teativa, O “forte partida, revela uma forca em expansio, ma forca ativa, Nictzsche ve a sua epoct come na qual predominam as debilitando 0s instinios por meio da des valorizacio desta vida, em troca de umet promess. de uma “outra vida". Quem inoculou tal veneno foi a interpretagao cristt do mundo, que dominow uma epoca da décadence, as demais ‘com 0 seu poder de negagiio e cujo sin- toma é uma vida doente. © filésofo francés Michel. Foucault, um ensaio intitulado Merasche, Freud @ Marx, afiema que 0 que une esses pensadores é 0 emprego de uma deter de interpretagio. que a velha, desconfianca ignificado daquilo que le imediato e que go outro —a figu: desconfianca se res de um modo cults o seria agora infinita, no se renhum subsolo firme. De > proprio Niewsche quem diz: alos, apenas intespretagdes. O 2 Foucault seria justamen- rpreta, sem que esse quer onfiguram em. tal interps 10 das forcas seativas teria como sintoma o homem decadente, © homem do rebanho conduzido pelo “padre ascé: tivo", que se empenha em conservar @ qualquer prego essa vida doente, Essa seria uma interpretagto que, a0 mostrar se, poderia engendrar outras paralela, que trouxessem a tona, por exemplo, uma outa valorago da_vida, ainda uma interpretacao, mas que revelaria dominio de forgas de outra natureza, as ativas. Assim, a mudanga dos valores, 2 transvaloragao”, seria também ela uma nova interpretagao, desta vez afirmativa Para Niewsche, 0 poder ‘dizer sim” 2 m todas as suas dores © softimentos, seria a marca do. fe querer viver tudo ainda mais uma vez pod suportar tal pensimento terrivel sono, como estado de relaxamento ¢ permite que certos con tetidos recalcados, impossibilitados de atingir a consciéncia no estado de vig lia, encontrem uma “passagem” pant se apresentar; jamais, porém, tais contet dos surgem de modo transparente, mas, para romper as barreiras do sistema pre Consciente, emprestam restos. diurnos, surgindo ainda ocultos. Quando Freud descobre 4 importincia dos sonhos para desv clinica, tr imobilidade, ndar as patologias mentais na se de reinterpretar a inter 10 que thes foi dada n arelho psiquico. Assim, ao interpretar proprio lum sonho, jf estamos diante de uma interpretagdo que nao € gra foi o travestimento imagetico. necessi io part que os contetidos represados no inconsciente pudessem vir 2 tona, Parte desses conteddos foi recaleada por meio de proibigdes do superego, ocasionando perturbagdes funcionais ‘no psiquismo, as neuroses. Essas situ acoes traumdticas, agora suscetiveis de 98: MENTE CEREBRO € FILOSOFIA Nietzsche e Freud véem no processo civilizatorio a domesticacao (ou represssao) dos impulsos vitais interpretaglo, € trazidas & meméria do paciente, podem ser assim dissipadas, © valor terapeutico da intervengao interpretativa, AL Sea as barreiras que separam o inconsciente do. pré-consciente e do consciente tém de ser ultrapassadas, © as. “traumas produzidos pelo recalque dissipados, a interpret lase de Fundamental imponancia. A questo aqu é se edo sempre remete a ‘uma outra indefinidamente, ou se, por fim, esbarra num anteparo, numa “ver dade” ow fundamento. Mesmo que essa questao_pem 20 interfere na busca de proximidades entre Nietzsche e Freud, ainda que por utras vias: Nietzsche se intitulava médl coffilésofo, pretendendo diagnosticar as ccausas da decadéncia da eivilizagio euro- péia, atribuindo A coergio dos instintos, proxiuzida pela desvalorizacio doenga da civilizagao, Freud, pritica clinica, de onde decorreram st descobertas tedricas, monta o quad de ‘uma historia da cultura, desde seus pri mérdios, que espelha 0 desenvolvimento do individuo neurético, 0 qual, por sua vez, traz em si as marcas do processo dt evolugle da espécie. Baseando-se tam bem em descobertas cientifieas, antropo- logicas e etmoldgicas do seu tempo, ele as ‘confere com seus achados clinicos, abrin= do assim a possibilidade de encontrar um caminho paralelo entre a evolugio da cultura e a do individuo, Tal como Nietasche, Freud yé no proceso civilizatério a domesticagao dos mpulsos vitais, ou, melhor dizendo, a sua repressio, No texto Mal-estar da ciiliza: (0, ele constata que a vida em sociedade exige pelo menos alguma repressio dos impulsos naturais para que seja vié vel. Sunge daf um desconforto inevitavel, mostrando-se a FRAMENTO idade € a cura, e se para isso 2. interpe Jmpossivel de ser sanado por completo. Para Niewsche, o adestramento do indivi duo necessirio para © convivio surge da necessidade de uma linguagem que pe mita a comunicago com os demais; dai é que surge a consciéncia de si, resultado, por cuja genese esti na centre os individuos. A vida em sociedade embora tolha os instintos mais primérios, tem uma ambigtidade fundamental, ji perceptivel na Genealogia da moral, saber, © hom m SO se toma alguém por melo desse processo de adestramento: é responsivel, parém nao como culpado sem também culpar um outro, Por fim, ainda no MaLestar, Freud parece aludir diretamente a Niewsche © A sua génese da consciéncia moral, quando expde Ultima, antecedida pelo surg fo da culpa. Para Freud, renuncia-se as ppulsdes de inicio por medo da agressto de uma autoridade exterior, que pode digno de interesse, um “espirito livre a seqiiencia cronolégi fem seguida, transformar-se numa auto- ridade interior, a consciéneia moral, $0 equiparadas a ago ma a mé intengao, surgindo dai o sentimento de culpa e a necessidade de castigo, Freud acrescenta ainda algo que teristico da psicanilise; se a consciéncia pulsdes, toda por sua vez, 6 uma fonte dint ‘consciéncia moral, provocando assim um aumento da infolerincia ago reciproca moral € a repressio aos instintos, ape- sar de ser marcadamente psicanalitica, Hf se encontra, por certo, presente em Nietzsche. Em ambos pode-se detectar, ‘como diz Gérard Lebnun, uma dialética, que, no entanto, no encontra solug: puma sintese ‘dialética pacificadora” de Hegel, mas mantém a ensio entre seus termos, @ acredita ser bem carac ‘moral causa a rentincia da mica da a modo da + Crepisclo dos idols Ou cam se sola | "com omar. Fern Netace Teco Se Pao Care Sou Conga das | | tees, 208 | | + NetteUie fosofa 2 malades Sear Maron Saar, 8,

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