Jaime Balmes A Igreja Catolica em Face Da Escravidao PDF

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Por mais estapaftirdia que possa parecer esta maneira lesumana de pensar, atualmente no Brasil se esta criando Im outro mito: a necessidade de se preservar a negritude, Jm fato novo surge e sérios podem ser seus resultados, Despertar a consciéncia negra e estabelecer o culto da cor, idolatria da pigmentagao da pele, numa exaltacéo mérbi- la da pretura, € a misséo ingléria dos novos profetas da uta de classes, bem na linha marxiana de desestabilizagéo la ordem social, E um outro tipo de racismo, baseado no also pressuposto de que ainda reina o ideal do branquea- nento ou que perdura uma estratégia de dominagao dos rancos. rtalecer emocional e passionalmente ica cooperar para que no porvir uma E evidente que al movimento sig uta de classes se detone com prejuizos gravissimos para oda @ sociedade, jées de vitimas do racismo, imoladas nos infaustos hol E facil, demagégico provocar o narcisismo oletivo. Ai a razéo pela qual 0 movimento negro cre ssustadoramente, movido por paixdo que the confere inamismo, A porta para a violéncia logo se abre. A animosidade que se esté fomentando é ai fere 0 néicleo da doutrina evangélica, suscitando uma ise em potencial, pois tem caréter segregacionista. Pags. 128/129 VIDIGAL DE GARY, O EM FACE DA ESCRAVIDAO \ A CATOLICA®ESCRAVIDA\ JAIME JAIME BALMES A IGREJA CATOLICA aS 4086 GERALDO VIDIGAL DE AIGREJA E A ESCRAVIDAO NO BRASIL JAIME BALMES A IGREJA CATOLICA. EM FACE DA ESCRAVIDAO Tradugéo de JOSE G. M. ORSINI WWII ADENDO §) JOSE GERALDO VIDIGAL DE CARVALHO A IGREJAE A ESCRAVIDAO NO BRASIL 1988 — CENTENARIO DA ABOLICAO DA ESCRAVATURA NO BRASIL Editado pelo CENTRO BRASILEIRO DE FOMENTO CULTURAL Caixa Postal 9667 CEP 01051 — Sao Paulo — SP NOTA PREVIA DO EDITOR JAIME BALMES URPIA é mundialmente conhecido sobretudo por sua obra El Criterio, um dos mais valiosos guias para a disciplina da mente © organizagio dos estudos, ¢ que em nossos dias continua a ser traduzido para praticamente todas as linguas cultas. Dela — hum testemunho que explica téo marcante éxito editorial — disse outro escritor de génio, Marcelino Menéndez y Pelayo (0 autor da célebre Historia de los Heterodoxos Espafioles), que se trata de uma fonte de “higiene do espirito”. . No entanto, o significado cultural de Balmes ultrapassa de muito ‘0s limites da popularidade. Basta lembrar que, por ocasiio do cente- natio da publicago daquela sua obra, em 1944, 0 Instituto do Livro Espanhol promoveu uma série de conferéncias em homenagem a0 ilustre sacerdote ¢ escritor, conferéncias essas depois enfeixadas num volume editado no ano seguinte pelo Conselho Superior de Invest gages Cientificas, de Madri. E 05 conferencistas que abordaram os aspectos mais salientes de seu pensamento se incluiam entre os ‘maiores Juminares da cultura espanhola, Assim falaram: Juan Zara- gueta sobre Balmes fildsofo, Irenco Ganzalez sobre Balmes socidlogo, Salvador Minguijon sobre Balmes apologista e José Corts Grau sobre Balmes politico. A par dessa amplitude da visualizagéo balmesiana ‘que esses enunciados indicam, muito digno de nota que nosso autor no foi somente fildsofo © soci6logo e apologista ¢ politica: ele f a um 86 tempo e em cada instante, filésofo-sociélogo-apologista-pol tico, pois em todos 0s temas que abordava jamais perdia de vista essis miltiplas facetas da realidade, demonstrando uma sensibilidade apurada para as interagbes ¢ 05 miituos condicionamentos que na ordem tedrica e pritica se estabelecem entre esses virios fatores. Essa compreenstio da integralidade da problematica humana € um dos tragos que mais contribuem para assegurar a vitalidade © a per- manente atualidade de seu pensamento. Contemporineo de Marx ¢ de Comte, mas nutrido em melhor filosofia (estudou a fundo e apreciava muito Santo Tomas de Aquino), sabia vislumbrar as conexoes profundas subjacentes aos aconteci- mentos e por isso teve intuigdes geniais que s6 muito depois a Psicolo- gia, a Sociologia ou a Historiografia vieram corroborar exaustiva~ mente. Quando o calvinista Frangois Guizot publicou na Franca o livro Histoire Générale de la Civilisation en Europe (que logo se tornou uma arma de primeira linha para 0s ataques de protestantes, magons, agnosticos © ateus contra a Igreja Catdlica), escreveu em coniradita sua obra principal, El Protestantismo Comparado con el Catolicismo en sus Relaciones con la Civilizacién Europea (na ‘so original em 4 volumes), na qual perpassa toda a historia da civilizagao ocidental desde os primérdios do cristianismo e analisa detidamente cada um dos grandes problemas e episédios que marca- ram a caminhada da humanidade desde entio, a fim de demonstrar a influéncia benéfica que sobre os rumos dos acontecimentos exerceu a Religido Verdadeira, Mas sempre voltado para as miiltiplas exigéncias dos problemas de seu tempo (que em grande parte continuam a ser os dos dias atuais), escreveu uma Filosofia Elemental (4 volumes) para propor- cionar aos iniciantes uma boa orientagao no estudo dessa disciplina, €.a Filosofia Fundamental (também em 4 volumes), para estudiosos mais avancados, Numa época de florescente impiedade, alimentada principalmente pelos mitos cientificistas entdo em plena voga, escre- veu um notivel trabalho de defesa da fé: Cartas a un Escéptico en Materia de Religién, Inémeros outros estudos ainda produziv sobre Teologia, Histéria Eelesistica e Politica, Sem falar em sua continua atividade como jornalista, em revistas e jornais que fundou ou em que colaborou, influindo consideravelmente nos aconteci edigo completa de seus escritos pela B.A.C., de Madri densos volumes, E é de espantar gue todo esse intenso labor como homem de pensamento ¢ como homem de ago se tenha desdobrado em tio somente 8 anos. Nascido em 1810, publica sua primeira obra (¢ dai em diante desenvolve persistente atuacdo piblica) aos 30 anos ¢ morte em 1848, com apenas 38 anos, vitimado pela tuberculose. De sua fina percepeio das realidades deu abalisado testemunho Leao XIIL, que antes de tornar-se papa o conheceu durante estada de ambos na Bélgica (em 1845) © que 0 qualificou como “o maior talento politico do século XIX © um dos maiores que houve na historia dos escritores politicos”. Ena sua Historia de la Filosofia Espaiiola, 0 categorizado especialista Guillermo Fraile consigna: “Bal- mes preparou o ress:rgimento da filosofia crista no século XIX, Mas mais exato do que consideré-lo como precursor da restauragdo esco listica posterior € enquadré-lo dentro da linha de apologistas caté- licos da primeria metade daquele século, a todos os quais supera ‘em formagio filoséfica, em erudigao hist6rica e em elevagio e solidez de pensamento” 0 texto balmesiano que neste volume se insere, tratando especi- ficamente do problema da escravidio ¢ da influéncia da Tgreja para sua aboligéo, corresponde aos capitulos XIV a XIX de sua magna obra El Protestantismo Comparado con el Catolicismo en sus Relacio- nes con la Civilizacién Europea. Enriquece e complementa este volume o estudo especialmente escrito pelo cénego JOSE GERALDO VIDIGAL DE CARVALHO sobre a mesma problematica no caso patticular do Brasil. Suas ere- denciais para abordar o tema sto bem conhecidas dos especialistas. Mas cabem algumas palavras de apresentagio a um piblico mais amplo. Entre seus titulos e fungées, citem-se 0 de membro do Instituto Historico e Geogrifico Brasileiro, do Instituto Histérico ¢ Geograti de Minais Gerais, da Sociedade Brasileiri de Fildsofos Cat6licos, da Sociedade Interamerica de Filosofia ¢ da “Societa Internazionale Tom- ‘maso d’Aquino”, além de professor de Introducio aos Estudos Hist6- ricos, na Universidade Federal de Ouro Preto (MG), € de Historia da Igreja, no Seminério Maior de Mariana (MG). Espirito voltado para os vérios aspectos da problemética hu- mana em nosso tempo (dir-se-ia que tal como Balmes...), de sua visualizagio abrangente das realidades, de sua erudicio ampla e atua~ lizada, ¢ de sua sélida orientasio doutrinéria, dio testemunho os bem langados estudos que esto reunidos em volumes cujos titulos falam por si acerca das diversificadas preocupagies do autor — uni- ficadas porém pela atengio conferida ao mesmo protagonista que imprime sua presenca em todos esses cenérios: 0 homem concreto, corpo e espitito, inserido no tempo mas votado a eternidade. Bi-los: Temas Histéricos (1980), Temas Oratérios (1981), Temas Sociais (1982), Temas Filosdficos (1982), Temas Pedagdgicos (1984), Te- mas Teolégices (1984) e Temas Marianos (1986), aos quais proxi- mamente se juntaré Temas Biblicos, ‘No campo das. pesquisas histéricas, entre varios outros traba- thos, muitos safdos em jornais e revistas, publicou o volume Jdeologia @ Ratzes Sociais do Clero da Conjuracéo — Século XVIII — Minas Gerais (1978), e no que se refere ao nosso tema, A Igreia e a Escra- vidéo — Uma Anélise Documental (1985) € A Esvravidiio — Con- vergéncias e Divergéncias (1988), A IGREJA CATOLICA EM FACE DA ESCRAVIDAO JAIME BALMES INTRODUCAO Situagio religiosa, social e cultural do mundo 4a época de apariglo do cristianismo. O Direito Romano. Conjecturas sobre a influéncia exer- cida pelas idéias cristas sobre 0 Direito Roma- no. Vicios da organizagéo politica do Império. Sistema do cristianismo para regenerar a so- ciedade: seu primeiro passo se dirigiu & mo- dificagio des idéias. Comparagao entre 0 cris- tianismo © © paganismo no ensino das boas doutrinas. Em que estado o cristianismo encontrou o mundo? Nesta ques- tao temos de fixar agudamente nossa atenclo se quisermos apreciar devidamente os beneficios.proporcionados por essa divina religiio a0 individuo © & sociedade, se quisermos enfim conhecer 0 verda- deiro carter da civilizacdo erista Tnegavelmente era sombrio 0 quadro que apresentava a socie- dade em cujo centro brotou o eristianismo. Coberta de belas apa- réncias ¢ ferida em seu corago por enfermidade mortal, oferecia a imagem da corrupgio mais asquerosa, aureolada por brithante rou- pagem de ostentacio ¢ opuléncia. A moral sem base, os costumes sem pudor, as paixdes sem freio, as leis sem sangdo, a religiio sem Deus, fiutuavam as idéias & mercé das preocupacdes imediatas, do fana- tismo religioso e das cavilagées filos6ficas. Constitufa 0 homem um profundo mistério para si mesmo, e nem sabia ele avaliar sua digni dade, pois consentia em ser rebaixado ao nivel dos brutos ¢, mesmo quando se empenhava em ponderi-la, no lograva enquadré-la nos pardmetros indicados pela razio ¢ pela natureza, Neste sentido é bem significative que, enquanto uma grande parte da linhagem hu- mana gemia na mais abjeta escravidio, se exaltassem com tanta facilidade os herdis e até os mais detestaveis monstros fossem vene- rados nos altares dos deuses ‘Com tais componentes, teria de ocorrer mais cedo ou mais tarde ‘8 dissolugo social. Mesmo que no tivesse sobrevindo a violenta arremetida dos bérbaros, mais cedo ou mais tarde aquela sociedade teria entrado em decomposi¢io, porque néo existia em seu seio nenhuma idéia fecunda, nenhum pensamento consolador, nenhum vislumbre de esperanga que fossem capazes de preservé-la da ruina, ‘A idolatria jé tinha perdido sua forca: mola propulsora desgas- tada pelo tempo e pelo uso grosseiro que dela fizeram as paixdes, exposta sua frigil contextura ao dissolvente fogo da observagio filo- sGfica, estava extremamente desacreditada. E se, por efeito de arrai- gados habitos, ainda exercia sobre 0 animo dos povos algum influxo ‘maquinal, este no era suficiente nem para restabelecer a harmonia da sociedade nem para engendrar aquele fogoso entusiasmo inspira- dor de grandes ages. A julgar pelo relaxamento dos costumes, pela frouxidio dos caracteres, pela efeminagao e pelo Iuxo, pelo com- pleto abandono as mais repugnantes diversGes © aos mais asquerosos prazeres, torna-se claro que as idéias religiosas nada conservavam daquela’ majestosidade que se notava nos tempos herdicos e que, exercendo escassa ascendéncia sobre 0 animo dos povos, agora jé serviam até como lamentaveis instrumentos de aceleragiio do processo de dissolugio. Nem era possivel que acontecesse de outro modo: povos que se tinham elevado ao alto grau de cultura de que se podem gloriar gregos e romanos, que tinham ouvido seus sébios debater as grandes questes referentes & Divindade e ao homem, néo seria normal que permanecessem naquela candidez que sc fazia necesséria para acreditar de boa £6 nos intolerdveis absurdos de que esté satu- rado paganismo; e, seja qual fosse a disposicio de espirito da parte mais ignorante do povo, é evidente que nao podiam concordar com isso todos quantos se algavam um pouco acima da média — eles que tinham ouvido filésofos to sensatos como Cicero e que agora se compraziam com as maliciosas agudezas dos poetas satiricos. Se a religiio era impotente, restava aparentemente outro fator: fa ciéncia. Antes de entrar no exame do que se poderia esperar dela, € necessério observar que jamais a ciéncia fundou uma sociedade rem jamais foi bastante para restituir-lhe 0 equilibrio perdido. Revol- vya-se a histéria dos tempos antigos: sera possivel encontrar & frente de alguns povos homens eminentes, que, exercendo um magico in fluxo sobre o corago de seus semelhantes, ditam leis, reprimem abusos, retificam idéias, endircitam costumes ¢ assentam sobre sébias stituigdes © seu governo, edificando em maior ou menor escala a 2 vanyiiilidade © 9 prosperidade das coletividades entregues & sua dlirego e cuidado, Mas estaria muito enganado quem supusesse que ses homens agiram em fungio do que nés denominamos combi ees cientificas: como regra geral, simples, e até rudes & grosseiros, agiram por forea de impulsos de seu reto coragéo © guiados por aquele bom senso, aquele prudente realismo que marca o pai de familia no manejo dos negécios domésticos; nunca tiveram por norma essas miseriveis cavilacOes que nds apelidamos de teorias, essa mis- celanea indigesta de idéias que nés aureolamos com © pomposo rotulo de ciéncia, Tanto assim que ninguém teré a ousadia de afirmar que os melhores tempos da Grécia foram aqueles em que floresceram 0 Plates ¢ os Aristételes... E aqueles férreos romanos que subju- garam o mundo nao possufam por certo a extensio e vatiedade de conhecimentos que admiramos no século de Augusto; mas quem rocard aquele tempo por este. aqueles homens por estes? Os séculos modernos poderiam também proporcionar-nos abun- dantes provas da estetilidade da ciéncia nas instituigoes sociais, coise tanto mais facil de notar quanto mais patentes se fazem os resultados praticos dimanados das ciéncias naturais. Dir-se-ia que nestas se concedeu ao homem o que naquelas the foi negado, se bem que, examinando-se as coisas a fundo, a diferenca nao € tao grande como & primeira vista poderia parecer. Quando o homem trath de fazer aplicagiio dos conhecimentos que adquiriu sobre a natureza, se ve forcado a respeité-la; e-como, ainda que o quisesse, nio conseguiria com sua débil mio causar-Ihe considerdvel transtorno, se limita em seus ensaios a tentativas de pequena monta e é estimulado, pelo proprio desejo de acertar, a obrar em conformidade com as leis a que estio sujeitos os corpos sobre os quais atua. Jé em se tratando de aplicagdes das cincias sociais tudo se passa de modo muito diferente: © homem pode agit direta e imediatamente sobre toda a sociedade; com sua mio pode transtorné-la. nao se vé constrangido sunscrever suas tentativas a objetos limitados ¢ nem a respeitar as eternas leis da vida social, podendo mesmo imaginar estas dltimas ao seu paladar, proceder conforme suas cavilagdes deflagrar desa: tres dos quais se lamente a humanidade. Recordem-se as extravagin- cias que sobre 8 nutureza correram como muito vélidas nas escolas filosoficas antigas € modernas, e veja-se o que teria sido da admirévet maquina do universo se os fildsofos tivessem podido manejé-la a0 seu arbitrio. Por desgraca, nao acontece assim com a sociedade: os ensaios se fazem sobre ela mesma, sobre suas eternas bases, € ento 3 dai decorrem males gravissimos, a evidenciarem a debilidade da éncia do homem. E preciso no esquecer: a ciéncia propriamente dita vale pouco para a organizacao das sociedades e, nos tempos ‘modernos. em que cla se manifesta tao orgulhosa de sua pretense fecundidade, é bom recordar que se tem atribuido a seus trabalhos © que € fruto do transcurso dos séculos, do sadio instinto dos povos @ as vezes das inspiragdes de um génio: e nem o instinto dos povos nem o génio tém algo que ver com a ciéneia, Mas deixando de lado esas consideracdes. genéricas (sempre muito dteis porque conducentes ao melhor conhecimento do homem), © que se poderia esperar dos falsos vislumbres de cignein que se conservavam sobre as ruinas das velhas escolas ao tempo de surgi- mento do cristianismo? Escassos como eram em semelhantes matérias 6s conhecimentos dos fil6sofos antigos. mesmo dos mais esclarecidos. Indo se pode deixar de reconhecer que os nomes de um Sderates, de uum Platio, de um Aristételes recordam algo de respeitivel, que, em meio a desacerios ¢ aberracies, contém conceitos dignos da elevacao desses génios. Mas, quando apareceu o ctistianismo, estavam sufo- cados os germes do saber espargidos por esses grandes homens:.os desatinos tinham ocupado o lugar dos pensamentos altos ¢ fecundos, (© prurido de disputar deslocava o amor & sabedoria, ¢ os sofismas @ as cavilagdes substituiam a maturidade do juizo e a severidade do raciocinio. Destrocadas as antigas escolas e erigidas sobre seus escom- bros outras tao esdraxulas quanto estéreis, brotava por toda parte um sem nimero de sofistas, como aqueles insetos imundos cuja presenea anuncia a corrupgao do cadaver. A Igreja conservou-nos tum dado preciosissimo para julgar da ciéneia daquele tempo: a histé- ria das primeiras heresias. De fato, se prescindirmos daquilo que nelas causa indignagio (ou seja, sua profunda imoralidade), pode haver coisa mais vazia, mais insipida, mais merecedora de Iéstima? Basta recordar as monstruosas stitas que pululavam por toda parte, naqueles primeitos séculos da Igreja, ¢ que reuniam em suas doutri- ‘nas 0 emaranhado mais informe, mais extravagante ¢ mais imoral que se possa conceber. Cerinto, Menandro, Ebiio, Saturaino, Basil des, Nicolau, Carpécrates, Valentino, Marciiio, Montano € outros sic nomes que recordam nicleos em que 0 delirio andava irmanado com 2 jralidade. Langando uma olhada sobre essas_seitas filos6fico-reli- giosas, verifica-se que no eram capazes nem de conceber um sistema filosofico razoavelmente estruturado, nem de idealizar um conjunto de doutrinas ¢ de priticas que pudesse merecer 0 nome de religido. 4 Distorcem, misturam ¢ confundem tudo. Judaismo, cristianismo, re- tminiscéncias das antigas escolas, tudo se amélgama nas delirantes cabegas de seus adeptos, sem esquecer, porém, de soltar as rédeas para toda linhager de corrupcdo ¢ obscenidade. Abundante campo oferecem, pois, aqueles séculos & verdadeira filosofia para conjectu rar sobre 0 que tetia sido do humano saber se o cristianismo nio tivesse vindo iluminar 0 mundo com stia doutrina celestial! Por sua vez, a legislagdo romana, apesar da justica e. eqiiidade nela entranhadas e do tino e sabedoria que deixa transparecer. ¢ se hem que poss contarse como um dos mais preciosos esmaltes da civilizagdo antiga, nao constituia fator eficaz para prevenir a disso- lugfo de que estava ameacada a sociedade. Esta nunca deveu sua salvagio a juistas, porque obra de tamanha envergadura nfo se cireunscreve ao campo de influéncia de legisladores e magistrados. Que sejam as leis to perfeitas como se queira, que os tribunais se elevem ao mais esplendoroso grau de funcionamento, que os juizes estejam animados dos mais puros sentimentos € sejam guiados pelas mais retas luzes, de que servird tudo isso se 0 coragto da sociedade estiver corrompido, se os prinefpios morais tiverem perdido forga, se 05 costumes estiverem em perpétuo conflito com os ditames legais’ ‘Af esto 05 quadros que dos costumes romanos nos deixaram seus préprios historiadores — e veja-se se neles se encontram retratados a eqiiidade, a justica, 0 bom senso que fizeram com que as leis romanas merecessem 0 honroso epiteto de “razdo escrita” Como prova de imparcialidade, omito de propésito toda refe- réncia as nédoas de que nao estava isento o Direito Romano, para que nfo se me assaque que procirro rebaixar tudo aquilo que nio seje obra do cristianismo. A propésito, porém, no se pode deixar sem registro que nao é verdade que ao cristianismo nao cabe nenhuma parcela de crédito pelo que de admiravel se encontra na legislagio romana. E isto no s6 no perfodo dos imperadores cristios (0 que esté fora de divida), mas também em épocas anteriores. E certo que algum tempo antes da vinda de Cristo jé era considerdvel 0 nimero das leis romanas e que sett estudo e ordenamento mereciam 1 atengdo dos homens mais ilustres. Sabemos por Suct6nio (in Caess., ©. XLIV) que Jillio César se propusera a utilissima tarefa de reduzir a poucos livros 0 que de mais essencial e necessério se encontrava sparramado na imensa abundancia de leis; pensamento semelhante wia ocottido a Cicero, que escreveu um livro sobre a metodologia de redagio do diteito civil (De iure civili in arte redigendo), como 15 atesta Gélio (Noet. Att, |. 1°, c, XXIN; ¢ segundo nos infor Técito (Ann., |. 32, c. XXVIID, esse trabalho tinh ocupado també a atengio do imperador Augusto. Tais projetos revelam que certe- mente jd entiio a legislago no estava em sua infancia; mas nem por isso deixa de ser yerdade que 0 Dircito Romano tal como nos chegou & quase inteiramente um produto de séculos posteriores. Varios dos jurisconsultos © magistrados mais afamados, cujos pare- ceres € sentencas formam uma boa parte desse acervo douirinicio, viveram muito tempo depois da vinda de Cristo, Assentados esses fatos, deve-se ter presente que, da circunstancia de serem pagios determinados imperadores e jutistas, no se infere que as idéias ctistis ngo exerceram influéncia sobre suas obras. O mimero de cristdos era enorme por toda parte e, em meio a crucl perseguisdo que Ihes era movida, a herGica fortaleza com que arros- tavam 0s tormentos e a morte deveria ter chamado 2 atencio de todos, sendo impossivel que entre os homens de pensamento nfo se excitasse a cutiosidade em saber qual era o ensinamento que aquela nova religiéo transmitia a seus prosélitos. E as apologias do niismo escritas j4 nos primeiras sécuios com tanta forca de raciocfnio @ clogiigncia, as obras de varias categorias publicadas pelos primeiros Padres, as homilias dos bispos dirigidas aos povos etc. encerram um caudal to grande de sabedoria, respiram tanto amor & verdade © & justica, proclamam tio altamente os eternos prinefpios da moral que sua leitura no pode ter deixado de exercer influéncia mesmo sobre aqueles que condenavam a religiio do Crucificado. Quando se vio espraiando doutrinas que tenham por objeto aquelas grandes questdes que mais interessam ao homem, se tais doutrinas so apregoadas com fervoroso zelo, accitas com ardor por crescente mimero de disefpulos e sustentadas com talento e sabedoria por homens ilustres, elas lancam em todas as diregdes suleos profun dos ¢ acabam afetando até mesmo aqueles que as combatem zcalora- damente. Sua influéncia nessas circunstincias € imperceptivel, mas nfo deixa de ser muito real e verdadeira. Assemelham-se aguelas exalagées de que se impregna a atmosfera: com o ar que respiramos absorvemos as vezes a morte, as vezes um aroma saudavel que no: purifica © conforta. Nao poderia deixar de verificar-se 0 mesmo fendmeno com peito a uma doutrina pregada de modo 10 extraordinario, propagada com tanta rapidez, chancelada por torrentes de sangue ¢ defend Por escritores to ilustres como Justino, Clemente de Alexandria, 16 Irinea ¢ ‘Tertuliano. A profunda sabedoria ¢ a cativante beleza das doutrinas explanadas pelos doutores cristaos teriam de chamar atet io para os mananciais em que eles se abeberavam ¢ é normal que ssa instigante curiosidade tenha acabado por colocar em miios de muitos fil6sofos e juristas os livros da Sagrada Escritura. Que ha de estranho que Epiteto tenha consumido muitos momentos na leitura do Sermio dz Montane, ou que os oréculos da jurisprudéncia tenham recebido, sem disso se darem conta, as inspiragoes de uma religio que, crescendo de modo admirdvel em extensio © pujanca, estava se apoderando de todos os ramos da sociedade? O ardente amor & verdade e & justiga, o espirito de fraternidade, as grandiosas idéias sobre a dignidade do homem — temas perpétuos do ensinamento ctistio — nao eram para ficar circunscritos exclusivamente a0 &m- bito dos fithos da Igreja. Com maior ou menor lentidéo iam-se inoculando em todas as classes e quando, com a conversio de Cons- tantino, adquiriram influéncia politica predominio pablico, © que se deu nio foi outra coisa senéo a repetigiio do fendmeno de um sistema que, tornado muito poderoso na ordem social, passa a exercer senhorio ou pelo menos influéncia marcante no plano jurfdico. Com inteira confianga deixo estas reflexdes & avaliagio dos homens de pensamento. Vivemos numa época fecunda em transfor- mages e que Ievou a cabo revolucdes profundas. Por isso estamos em condig6es privilegiadas para compreender os imensos efeitos das influéncias indiretas © lentas, a poderosa ascendéncia das idéias @ a forga irresistivel com que as doutrinas abrem caminho nas realidades Voltando a falta de principios vitais para regenerar a sociedade que se registrava ao tempo da aparigo do cristianismo, hi ainda a ressaitar que, aos poderosos elementos de dissolucdo que 0 Império Romano abrigava em seu seio, se juntava outro fator, ¢ nBo de pequena monta, no plano da viciosa organizagio politica, Dobrada a espinha do mundo anie 0 jugo de Roma, viam-se centenas © cente- ras de povos, muito diferentes em usos € costumes, amontoados em. desordem como os vencidos num campo de batalha forgados a uma formagio arbitréria, tal como troféus enfiados na haste de uma lang A unidade no governo no podia ser proveitosa porque obtide com violéncia. Ademais, essa unidade era despética, desde a sede do Império até os iiltimos mandarins, e por isso nao podia produzir outro resultado que nao o abatimento © a degradagao dos povos, aos quois se tornava impossivel desenvolver aquela clevagio energis de finimo que si os frutos previosos do sentimento da propria dignidade ¢ do amor a independéncia da patria. Se pelo menos Roma tivesse conservado scus antigos costumes, se abrigasse em seu seio aqueles guerreitos tdo célebres pela fama de suas vitérias como pela simplicidade e austeridade de sua conduta, entao se poderia conceber 4 esperanca de que se irradiasse para os povos vencidos algo dos predicados dos vencedores, como um coragio jovem ¢ robusto reani- ma com seu vigor um corpo extenuado pelas mais rebeldes doencas Mas desgracadamente no era assim: 03 Fabios. os Camilos, os Cipides nao teriam reconhecido sua indigna descendéncia, ¢ Roma, a senhora do mundo, jazia escrava sob os pés de verdadeiros mons. tros que ascendiam ao trono pelo suborno pela vilénia, macule vam 9 cetro com sua corrupedo ¢ crueldade, ¢ terminavam a vide nas mos de algum assassino. A auloridade do Senado ea do povo tinbam desaparecido: dela restavam apenas vos simulactos, vestigia morientis Iibertatis (vestigios da liberdade expirante), como os chama Tacito, ¢ aquele povo-rei, que antes distribuia o império, os cetros, as legides ¢ tudo, agora ansiava tio somente por duas coisas: pio citco. Panem et circenses (Juvenal, Satyr., 10). Veio por fim a plenitude dos tempos. O cristianismo apareceu sem proclamat nenhume alteracio nas formas politicas, sem aten- tar contra nenhum governo, sem imiscuirse em nada que fosse mundano ¢ terreno, trouxe aos homens uma dupla satide, chamando- 0s a0 caminho de uma felicidade eterna ao mesmo tempo que ia distribuindo a mancheias seja o tinico preventivo contra a dissolucao social, seja 0 getme de uma regeneragao lenta e pacifica, mas grande, imensa, duradoura, & prova dos transtornos dos séculos, E esse pre- ventivo contra a dissolugio social, ¢ esse germe de inestimaveis melhoras, eram constituidos por um ensinamento elevado e puro, derramado sobre todos os homens, sem excegio de idades, de sexos, de condigdes sociais, como uma chuva benéfica que cai em suavissi- ‘ma torrente sobre uma campina murcha ¢ seca Nao hé religiio que se tenha igualado ao cristianismo, nem em conhecer 0 segredo de ditigir o homem, nem em desdobrar nessa diregao uma conduta que seja testemunho mais solene do reconheci- mento da alte dignidade humana, O cristianismo partiu sempre do principio de que 0 primcito passo para apoderar-se do homem todo € apoderat-se do seu entendimento, de que, quando se trata ou de extirpar um mal ou de produzir um bem, € necessério tomar por objetivo principal as idéias, desferindo dessa maneira um golpe ts mortal nos sistemas de violéncia que tanto tém predominado onde quer que ele ndo esteja presente. Proclamando a verdade benéfica tccunda de que, quando se trata de dirigir os homens, 0 meio mais indigno e mais débil € o da forga, 0 cristianismo abriu para a huma- nidade um novo © venturoso porvir. Somente a partir do cristianismo se passou a encontrar cétedras sla mais sublime filosofia abertas a toda hora, em todos os lugares, para todas as classes do povo. As mais altas verdades sobre Deus © 0 homem ou as regras da moral mais pura jé nao se limitaram «1 ser comunicadas a um niimero seleto de discipulos, em ligdes ocul- tas € misteriosas, A sublime filosofia do cristianismo foi mais intré- vida, atraveu-se a dizer aos homens a verdade inteira e nua, e isso cm piblico, em alta voz, com aquela generosa ousadia que € com- panheira insepardvel da verdade. “© que vos digo de noite dizei A luz do dia, ¢ 0 que vos digo w ouvido apregoai de cima dos telhados.” Assim falava Jesus a seus \iscipulos (Mat., X, 27). Logo que se defrontaram o ctistianismo e 0 paganismo, mostrou- se palpavel a superioridade do primeiro, nao s6 pelo conteddo das loutrinas como também pelo modo de propagé-las. Pode-se perceber desde logo que uma religido cujo ensinamento era tao sibio € tio pro, e que para difundislo se encaminhava sem rodeios, em linha fa, ao entendimento e ao coracio, haveria de desalojar bem depressa de seus usurpados dominios a outra religifo de impostura © de mentira. E, com efeito, que fazia o paganismo para o bem dos homens? Qual era seu ensinamento sobre as verdades morais? Que \liques opunha & corrupcdo de costumes? “No que se refere aos costumes, diz a este propésito Santo Agostinho, como nao ws deuses de que seus adoradores no os possuissem em padries tao epravados? O verdadeiro Deus, a quem néo adoravam, os repeliu, © com razio, Mas os deuses, cujo culto esses homens ingratos se syucixam de que hoje Ihes seja proibido, esses deuses por que nao niudaram seus adoradores com lei alguma para bem viver? Ja que vv, homens cuidavam do culto, justo seria que os deuses nao se esque- resem do cuidado com a vida e os costumes. Dir-se-é que ninguém mau senfo por sua vontade, Quem o nega? Mas era funcio dos Le uses no ocultar aos povos seus adoradores os preceitos da moral, sim pregéslos as claras, insistir e repreender por meio dos vates + pecadores, ameagar publicamente de punigdo os que agiam mal ios aos que agiam bem. Nos templos dos deuses, © prometerpré 19 quando ressoou uma yor alta © vigorosa que se referisse a tais temas?” (De Civitate Dei, 1. 2°, c. IV). Traga em seguida o santo Doutor um negro quadro das torpezas © abominagées que se cometiam nos espeticulos e jogos sagrados celebrados em homenagem aos deuses, aos quais ele mesmo havia assistido em sua juventude, e actescenta: “Infere-se disto que nio se preocupavam esses deuses com a vida € os costumes das cidades fe nagdes que hes rendiam culto, deixando que se entregassem a males to horrendos e detestaveis, sem infligir danos nem sequer a seus campos ¢ vinhedos, nem as suas casas ¢ fazendas, nem a0 corpo sujeito & mente, mas ao contrério até permitindo-thes, a falta de qualquer proibisao imponente, que embriagassem de maldade a dire tora do corpo, sua prépria alma. E se alguém alegar que vedavam tais males, que apresente as provas. Hé quem se jacte de ndo sei que sussurros que soavam aos ouvidos de muito poucos, © nos quais, sob um véu misterioso, se ensinavam os preceitos de uma vida honrada e pura; mas ento que se nos mostrem os lugares destinados a semelhantes reunides, nfo os lugares onde os farsantes executavam. (0s jogos com vozes © avGes obscenas, no onde se celebravam festas com a mais desbragada licenciosidade, mas sim onde ouvissem os povos os preceitos dos deuses sobre reprimir a cobiga, moderar a ambigio e refrear os prazeres; onde aprendessem esses infelizes aquela ligio que com linguagem severa thes ministrava Pérsio (Satyr., 3) quando dizia: Aprendei, 6 miseréveis, a conhecer as causas das coisas, o que somos, para que nascemos, qual deve ser nossa conduta, quio incerto & 0 fim de nossa caminhada, qual é a razodvel tempe- ranga no amor ao dinheiro, qual sua utilidade verdadeira, qual a norma de nossa liberalidade para com nossos patentes € nossa patria, para onde vos chamou Deus € qual € 0 lugar que ocupais entre os homens. Esclareca-se em que lugares costumavam os deuses recitar semelhantes preceitos para que pudessem ouvi-los com freqiéncia fs povos seus adoradores; mostrem-se esses lugares, assim como nds mostramos igrejas instituidas para esse fim onde quer que se tenha difundido a religiéo crista.” (De Civitate Dei, I. 2°, c. VI). Essa religido divina, profunda conhecedora do homem, nao olvidou jamais a fraqueza e inconstincia que 0 caracterizam, e por esse motivo teve sempre por invaridvel regra de conduta inculcar-the sem cessar, com incansdvel persisténcia, com pacincia inalterdvel, as saudiveis verdades de que dependem scu bem-cstar temporal © sua felicidade eterna. Em se tratando de verdades morais, © homem 20 sajuece com facili os jade 0. que no ressoa continuamente a seus auvi- mesmo quando as boas mfximas se conservam em sett enten slimento, elas correm 0 risco de permanecer como sementes estércis, vm fecundar 0 coragio. Por isso é muito bom e muito salutar que vs pais comuniquem esse ensinamento a seus filhos; € muito bom © inuito salutar que isso seja_um objetivo preferencial na educacdo privada; mas & necessério que. além disso, exista um magistério iriblico que nio o perca nunca de vista, que se estenda a todas as classes ¢ a todas as idades, que supra o descuido da famflia, que wive & recordagdes ¢ as impresses que as paixOes ¢ o tempo vio continuamente debilitando. FE, pois, sumamente importante pata a instrucio ¢ moralidade los povos esse sistema de permanente pregacdo ¢ ensino praticado cm todas as épocas e lugares pela Igreja Catdlica PRIMEIRA PARTE ‘A Igreja nae foi sé uma grande © fecunds escola, mas também uma associagao regenera- dora, Objetivos que teve de preencher. Difi- culdades que teve de vencer. A escravi Quem aboliu # escravidio. Opiniéo de Guizot. Néimero imenso de escravos. Com que tino se devia proceder na aboligio da escravatura. ‘A aboligio repentina era impossivel. Impugns io de Guizot, Por maior que fosse a importancia dada pela Igreja & propagagaio dla verdade, e por mais convencida que estivesse de que, para dissipar 1 informe massa de imoralidade & degradagio que se oferecia & sua vista nos primeitos tempos, 0 cuidado prioritério devia oriemtar-se no sentido de submeter © erro ao dissolvente fogo das doutrinas verdadeiras, niio se limitow a isso, mas sim, descendo a0 terreno dos fatos ¢ seguindo um sistema pleno de sabedoria e prudéncia, agiv de maneira que a humanidade pudesse saborear 0 precioso fruto que até nas coisas terrenas dio os ensinamentos de Cristo. A Tgreja do foi s6 uma escola grande ¢ fecunda, mas também uma associagio regeneradora; nao espargit suas doutrinas gerais aremessando-as como ao acaso, na esperanca de que frutificassem com o tempo, mas sim as desenvolveu em todas as sas implicagoes, aplicou-as a todos 9s objetos, procurou inoculi-las nos costumes ¢ nas leis ¢ coneretiza- fas em instituigdes que servissem de silenciosa mas elogilente diret para as geragoes vindour Viase desconhecida a dignidade do homem, imperando por toda parte a escravidio; degradada a mulher, espezinhando-a a corrupga0 de costumes e abatendo-a a tirania do vardo; adulteradas as relagées de familia, concedendo a lei a0 pai faculdades que jamais The dera a natureza; desprezados os sentimentos de humanidade, no abandono da infancia e no desamparo do pobre ¢ do enfermo; levadas 20 mai alto grau a barbirie © a crueldude, no dircito atroz que regulava os procedimentos da guerra: ©, por fim, coroando o edificio social, iosa tirania, contemplando com depreciativo desdém os infelizes povos que jaziam a scus pés airelados a miiltiplas correntes. Ante esse quadro, no constitufa empresa féeil banir 0 erro, reformar ¢ suavizar os costumes, abolir @ escravidio, corrigir os vicios da legislacio, moderar o poder © harmonizé-lo com os interes- ses piblicos, dar nova vida ao individuo, reorganizar a familia es sociedade — e, néo obstante, tudo isso a Igreja fez. Tal € 0 caso da escravidio, Esta é uma matéria que convém aprofundar, pois encerra uma das questées que mais podem excitar 4 curiosidade cientifica e falar aos sentimentos do coragio. Quem aboliu entre os povos cristiios a escravidao? Foi o cristianismo? E foi ele $6, com suas idéias grandiosas sobre a dignidade do home, com suas méximas © espirito de fraternidade © caridade, e ademais com sua conduta prudente, suave ¢ benéfica? Sinto-me gratificado por poder afirmar que sim J no se encontra quem ponha em diivida que a Igreja Catélica eve uma poderosa influéncia na aboligio da escravatura: é ume verdade demasiado clara e que salta aos olhos com gritante evidéncia para que seja possivel contesté-la, Guizot, reconhecendo 0 empenhe © a eficécia com que trabalhou a Igreja para a melhoria do estado sccial, afirma: “Ninguém ignora com quanta obstinacio combatcu os grandes vicios daquele tempo, a escravidio por exemplo.” Mas em continuagdo, tal como se Ihe incomodasse estabelecer sem nenhu- ma restrieio um fato que necessariamente teria de carrear para a Igreja Catélica as simpatias de toda a humanidade, observa: “Mil vezes se disse e repetiu que @ aboli¢io da escravatura nos tempos modernos € devida inteiramente &s maximas do cristianismo. Isso é, @ meu ver, um exagero: por longo tempo subsistiu a escravidio em meio & sociedade crist sem que semelhante situacio a confundisse ‘ou iiritasse muito.” Esté errado Guizot ao querer provar que a aboligao da escravatura ndo é devida exclusivamente a0 cristianismo jd que tal-estado subsistiu por muito tempo em meio & sociedade crista. Se se quisesse proceder em boa ldgica seria necessério primeiro considerar se a abolicdo repentina cra possivel, e se o espirito de ‘ordem e de paz que anima a Igrjea podia permitir que se. lancasse numa empreitada com a qual teria transtornado 0 mundo sem alcan- gat 0 objetivo a que se propunha, O nimero de escravos era imenso; a escravidao estava profundamente arraigada nas idéias, nos costu- 4 mes, nas feis, nos interesses individuais © sociais; sistema funesto, sem diivida, mas que era uma temeridade pretender erradicar de tum s6 golpe. pois suas raizes penetravam muito fundo, estendendo-se por largo trecho nas entranhas da terra Contaram-se num censo de Atenas vinte mil cidadios ¢ quarenta mil escravos: na guerra do Peloponeso, passaram para o lado do inimigo nada menos do que vinte mil, segundo narra Tucidides. O mesmo autor diz que em geral era tio grande o ntimero de escravos por toda parte que nio poucas vezes por causa deles estava em perigo a trangiilidade publica. Por esse motivo era necessétio tomar precaucdes para que nao pudessem arreglar-se. “E- muito convenicn- te, diz Platio (Dial. 6.°, Das Leis), que os escravos nao sejam de lum mesmo pais ¢ que, na medida do possivel, sojam discordantes seuls costumes € vontades; pois repetidas experiéncias ensinaram. nas freqiientes defecgdes que se viram entre os messénios ¢ nas demais cidades que possuem muitos escravos de uma mesma lingua, quantos danos dai costumam decorrer. Aristételes, em sua Economia (I. 1.’, c. V), dé varias regras sobre © modo como devem ser tratados os escravos, € € de notar que coincide com Platio ao advertir expressamente que “nio se devem ter muitos escravos de um mesmo pais”. Em sua Politics (L. 28, ¢. VIN, afirma que os tessélios se viram em graves apuros evido & multidao de seus escravos penestas, acontecendo © mesmo com os lacedeménios em relacdo aos ilotas. “Com freqiiéncia, diz ule, tem sucedido que os penestas se sublevam na Tessélia, os facedemdnios, sempre que sofrem alguma calamidade, se véem ameagados por conspiragdes dos ilotas.” Essa era uma dificuldade que chamava seriamente a atengio de politicos, que no sabiam como contornar os inconvenientes que consigo trazia essa enorme multid’o de escravos. Lamentase Aristételes de quio dificil era acertar no melhor modo de traté-los, reconhecendo ser esta uma matéria que dava muitas preocupag6es. Eis suas proprias palavras: Na verdade, 0 methor modo de tratar essa classe de homens é tarcfa trabalhosa e cheia de cuidados, porque, se se usa de brandura, eles se tornam petulantes ¢ querem igualar-se a seus donos, € se se age com dureza, engendram édio e maquinam traigdes.” Em Roma era tal a multidao de escravos que, tendo-se proposto que usassem um traje indicative, 0 Senado se opés a essa medida, com 0 temor de que, se eles chegassem a conhecer a quantos monta- vam, viessem a por em perigo a ordem péblica, E seguramente nio 25 eram vos esses temores pois ja ha tempos vinham os escravos cau- sando considerdveis transtornos na Ttélia. Platdo, em apoio ao con- selho acima citado, recorda que “os escravos repetidas vezes haviam devastado a Itélia com atos de pirataria c latrocinio”; e em tempos ‘mais recentes Espértaco, & testa de um exército de escravos, chegara a constituir-se em verdadeito terror para todo 0 pais, dando muito trabalho a destacados generais romanos. Tinha chegado a tais excessos o ntimero de escravos em Roma que muitos donos os tinham a centenas. Quando foi assassinado © prefeito romano Pedinio Segundo, foram sentenciados 4 morte qua- trocentos escravos seus (Técito, Ann., 1. 14). E Pudéntila, mulher de Apuleu, tinha-os em tal abundancia que deu a seus filhos nade menos do que quatrocentos deles. Esta matéria chegou a constituir demonstragiio de luxo e, por forca da competicfo social, os romanos esforgavam-se em se distinguir pelo néimero de seus escravos. Que- riam que, ao ser-lhe feita a pergunta Quot pascit servos? (Quantos escravos mantém?), segundo relata Juvenal (Satyr., 3, v. 140), pu- dessem osienté-los em grande quantidade. As coisas chegaram a tal extremo que, segundo testemunha Plinio, 0 séquito de uma nobre familia mais se parecia ao desfile de um exéreito, Nao era somente na Grécia © em Roma que abundavam os escravos. Em Tiro, por exemplo, chegaram a sublevar-se contra seus donos e, favorecidos por seu grande nimeru, no puderam ser impedidos de degolar todos eles. Passando a povos birbaros e pres- idindo de outros mais conhecidos, refere Herédoto (1. 3.°) que, ao retornarem da Média, os citas defrontaram-se com os escravos sublevados, que tinham tomado conta da situagdo © banido seus donos para fora da patria, E César, em seus comentarios (De Bello Gallico, 1. 6.%, atesta quo numerosos eram os escravos na Gila Sendo tio vultoso em todas as partes o contingente de escravos, jd se vé que era de todo impossivel pregar sua libertagao sem lancar © mundo em conflagracio. O estado intelectual © moral dos escra- vos tornava-os incapazes de desfrutar de um tal beneficio em pro- veito préprio e da sociedade; ©, em seu embrutecimento, aguilhoados pelo rancor e pelo desejo de vinganca nutridos em seus peitos com (© mau tratamento que Ihes era dispensado, teriam reproduzido em grande escala as sangrentas cenas com que ja haviam deixado man- chadas em tempos anteriores as paginas da histéria. E que teris acontecido entio? Simplesmente que, ameagada por tio terrivel perigo, a sociedade se colocaria em guarda contra os princfpios 2 favorecedores da aboligao, passaria a observé-los com prevengao € desconfianga, e, longe de afrouxar as correntes dos escravos, as reforgaria com mais afinco ¢ tenacidade. Daquela imensa massa de homens embrutecidos ¢ furibundos, era impossivel que, postos sem preparagdo em liberdade ¢ em movimento, brotasse uma organizagao social — porque esta no se improvisa, ¢ muito menos com seme- Ihantes elementos. E em tal caso, tendo-se de optar entre a escra- vatura ¢ 0 aniquilamento da ordem social, o instinto de conservagao que anima a sociedade, como a todos os seres, teria determinado dubitavelmente a continuidade da escravidio onde ela ainda exis- tisse © 0 seu restabelecimento onde tivesse sido abolida. Portanto, os que se queixam de que o cristianismo nao tenha atuado mais rapidamente na abolicgo da escravatura devem tomar consciéncia de que — mesmo supondo-se possivel uma emancipagao repentina ou muito répida e mesmo prescindindo dos sangrentos transtornos que inexoravelmente dai decorreriam — a propria forca das coisas, erigindo obstéculos insuperdveis, teria inutilizado seme- Ihante medida, Deixemos de lado todas as consideragées sociais € politicas, fixando-nos unicamente nas econémicas. De pronto seria necessério alterar todas as relagdes de propriedade; isto porque, figurando nela os escravos como uma parte principal, cultivando eles as terras, exercendo eles os oficios manuais, estando, numa palavra, distribuido entre eles 0 que se chama trabalho, e estando feita essa distribuicto no pressuposto da escraviddo, € evidente que, a0 se retirar abruptamente do sistema a sua base, se provocaria um deslocamento tal que a mente ndo consegue alcangar quais seriam stuas tltimas conseqiiéncias, Se hoje, depois de dezoito séculos, retificadas as idéias, suavi- zados os costumes, melhoradas as leis, amestrados 0s povos © os governos, fundados tantos estabelecimentos piblicos para socorro da indigéncia, ensaiados tantos sistemas para a boa distribuigdo do trabalho, repartidas de modo mais equitativo as riquezas, ainda subsistem tantas dificuldades para que um niimero imenso de homens nao sucumba vitima de horrorosa miséria; se € este o mal terrivel que atormenta a sociedade e que pesa sobre seu futuro como um trigico pesadelo — que teria ocorrido no caso da emancipagao uni- jo do cristianismo, quando os escravos nao eram reconhecidos jutidicamente como pessoas mas sim como coisas, quando sua unio conjugal nao era considerada como matriménio, quando a pertenca dos frutos dessa uniéo era estabelecida pelas 2 mesmas regras que se aplicavam aos animais, quando 0 infeliz es- crayo eta maltratado, atormentado, vendido ¢ até morto conforme 0s caprichos de sew dono? Nao salta aos olhos que a cura para males dessa magnitude tinha de ser obra de séculos? Se se tivessem feito insensatas tentativas, nfo tardaria muito e 5 prdprios escravos estariam protestando contra elas, reivindicando uma escravatura que pelo menos Ihes assegurava pio ¢ abrigo, ¢ desprezando uma liberdade que punha em isco sua sobrevivéncia Pois essa é a ordem da natureza: o homem necesita antes de tudo ter 0 indispensével para viver, e se Ihe faltam os meios de subsistén- cia no The serve de consolo a propria liberdade. Nao € preciso recorrer a exemplos de particulares que nos séo proporcionados em abundancia; em povos inteiros se viu a prova patente dessa verdade. Quando a miséria é excessiva, 6 dificil que nao traga consigo o aviltamento, sufocando os sentimentos mais generosos ¢ desvirtuando 6s encantos que exercem sobre nosso coragio as idéias de indepen- déncia e liberdade. “A plebe, afirma César a propésito dos gauleses (De Bello Gellico, 1. 6°), esti quase na situagio de escravos, e de si mesma ndo se atreve a nada, nem seu voto conta para nada; ¢ muitos que, assoberbados de dividas e tributos, ou oprimidos pelos poderosos, se entregam aos nobres em escravidio.” Nos tempos modernos nao faltam tampouco exemplos andlogos, porque é sabido que entre os chineses abundam os escravos cuja escravatura no tem utra origem sendo que eles préprios ou seus pais ndo se viram capazes de prover sua subsisténcia, Estas reflexdes, apoiadas em dados que ninguém pode contestar, poem em evidéncia a profunda sabedoria do cristianismo em proce- der com tanta circunspeccao na aboli¢ao da escravidio. Fazendo tudo © que era possivel em favor da liberdade do homem, ndo avancou ais rapidamente nessa direcfo porque nfo podia isso ser feito sem ocasionar o malogro de toda a empresa, sem suscitar gravissimos obsticulos & desejada emancipacao, Bis aqui o resultado a que afinal vém dar sempre as criticas que se levantam contra algum_procedi- mento da Igreja: se se examina o problema & luz da razio, se se estabelece 0 competente cotejo com os fatos, acaba-se por concluir que 0 procedimento pelo qual € ela inculpada esta muito de acordo com o que dita a mais alta sabedoria e com 0 que aconselha a mais refinada. prudéncie © que pretende, pois, Guizot quando, depois de ter reconhecido que © cristianismo trabalhou com afinco pela aboli¢io da escrava- 28 tura, the lariga na face o consentimento pela sua longa duragéo? Com que Igica pretende daf inferir que no é verdade que seja devido exclusivamente ao cristianismo esse imenso beneficio di pensado & humanidade? Durou séculos a escravatura em meio ao cristianismo, € certo; mas durante esse periodo foi sendo continua- mente minorada, até chegar & extingio total, ¢ essa duragio foi siria pata que o beneficio visado se realizasse sem s, Sem transtornos, e assegurando sua universalidade © sua perpétua conservacdo, E desse tempo que durou, deve-se ainda deduzit uma parte consideravel, em razo dos trés primeiros séculos, nos quais a Igreja esteve quase sempre proscrita, olhada com aversio © inteiramente privada da possibilidade de exercer influxo direto sobre a organizagéo social. Deve-se também descontar muito dos séculos posteriores, porque havia decorrido pouco tempo desde que @ Igreja exercia sta influéncia pablica e direta, quando sobreveio a irrupodo dos bérbaros do Norte, que, combinada com a dissolucio de que estava contaminado o Império © que o arrastaria & ruina completa, ocasionaria tal transtorno, uma mescla tio informe de Iinguas, de usos, de costumes, de leis, que quase se tornava im vel excreer com muito frufo uma acio social reguladora. Se em tempos mais préximos custow tanto trabalho extinguir o feudalismo; se depois de séculos ainda permanecem vivas muitas de suas mazi las; se 0 tréfico de negros, ape nad paises € a peculiares circunstancias, continua resistindo a0 grito uni- versal de reprovagdo que contra tal infamia se levanta nos quatro cantos do mundo — como pode haver quem se atreva a manifestas estranheza € a inculpar o cristianismo pelo fato de a escravidio ter durado alguns séculos depois de proclamadas a fraternidade entre todos os homens ¢ sua igualdade perante Deus? 29 | | | | SEGUNDA PARTE empregou, para a aboligio da escravatura, no somente um sistema de deutrinas, miiximas © espirito de caridade, ‘mas também um conjunto de meios priticos. Ponto de vista sob 0 qual se deve considerar esse fate histérico, Idéias erradas dos antigos sobre a escravidio, Homero, Platio, Aristé- teles. O cristianismo se empenhou desde logo em combater esses erros. Doutrinas cristis sobre as relagGes entre escravos e senhores. ‘Como a Igreja se dedicou a suavizar o trata- ‘mento cruel que era dispensado aos escravos. Felizmente a Igreja Catdlica foi mais sbia que os filésofos ¢ ‘ube proporcionar 4 humanidade o beneficio da emancipagao dos cseravos, sem injusticas nem transtornos. Ela regenera as sociedades, co faz sem banhos de sangue. Vejamos, pois, qual foi sua conduta cm relacio ao problema especifice de que ora nos ocupamos. Muito ja se enfatizou o espirito de amor ¢ fraternidade que anima 0 eristianismo, e isso basta para que se admita que deve ter sido grande a influéncia que exerceu para que se lograsse aquele resultado. Mas talvez nao se tenha ainda esmingado devidamente os meios positives, préticos, digamo-lo assim, de que langou mio para conseguir tal objetivo. Através da obscuridade dos séculos, em meio 4 tamanha complexidade variedade de circunsténcias, ser possivel sletectar alguns fatos que sejam como que as pegedas indicadoras do caminho percorrido pela Igreja Catélica para libertar uma imensa porgdo da linhagem humana da escravidéo sob a qual gemia? Seré possivel aduzir algo mais que os encOmios gerais relativos & caridade crist? Sera possivel assinalar um plano, um sistema, ¢ provar sua xisténcia e desenvolvimento apoiando-se nao simplesmente em ma- nifestacdes particulates, em pensamentos altos. em sentiments gene~ rosos, em ages isoladas de alguns homens ilustres, mas sim em fatos marcantes © em documentos irrefutéveis que manifestem qual era o espitito © a tendéncia do proprio corpo da Igreja? A resposta| € afirmativa e, como se verd, em abono dessa tese pode ser invocado © que de mais convincente ¢ decisivo poderia existir, a saber: 0s mo- rnumentos da legislacdo eclesidstica. Antes de tudo, no ¢ fora de propésito ressaltar que, quando ; de tendéncias da Igreja, nio ¢ necessirio presummir que csses méveis © esses _movimentos estejam| presentes por inteiro na mente de qualquer individuo em particular, nem que todo o mérito € efeito de semelhantes procedimentos fossem perfeitamente compreendidos por todos e cada um dos que intervi ham nessas agdes. Assim, pode-se dizer que nao que 0s primeitos cristios estivessem conscientes de toda a forca lar tente no cristianismo relativamente & aboli¢ao da escravatura, O que convém deixar claro ¢ que se obteve o resultado por conseqiiéncial das doutrinas © da conduta da Igreja. Pois no seio do embora se prezem os méritos € @ grandeza das pessoas pelo que valem, quando se fala da Igreja desaparecem os individuos: os. pen- samentos ¢ @ vontade destes so nada, porque o espirito que anima, que vivifica ¢ que ditige a Igreja nio € 0 espirito de nenhum homem, mas sim 0 Espirito do proprio Deus. Os que no participam de nossa fé lancario mao de outras explicagSes; mas estaremos todos concor- des pelo menos em que, vistos dessa maneira, sobrelevados aos. pen- samentes e vontades dos individuos, os acontecimentos revelam muito melhor seu verdadeiro cardter € ndo se rompe, no estudo da histé a cadeia continua dos sucessos. Digase que @ conduta da Igreja foi inspirada ¢ ditigida por Deus, ou prefira-se admitir que foi filha de um “instinto”, que foi o fruto do desenvolvimento de uma “tendén- cia” entranhada em suas doutrinas, empreguem-se estas ou aquelas expressoes, falando-se como catdlico ou como fildsofo, nessa questio nao é preciso deter-se agora, pois o que aqui importa & constatar que esse instinto foi generoso e bem orientado, que essa tendéncia se Girigia a um grande objetivo, e que o alcangou, A primeira coisa que fez 0 cristianismo com respeito aos escra- vos foi dissipar os erros que se opunham no s6 sua emancipagao universal mas também a melhoria de suas condigdes de vida: isto quer dizer que a primeira forca que desencadeou no ataque foi, como de costume, a forca das idéias. Era esse primeiro passo tanto. mais necessirio pata curar © mal quanto com ele acontecia — como s6i se trata de conduta, de designio: tolicismo, 32 wontecer — estar vinculado a um erro, que o gerava e fomentava, Naw s6 havia a opressio, a degradacéo de uma grande parte da hu- manidade, como era muito acatada uma opinido falsa que resultava vm humithar ainda mais essa parte da humanidade. Os escravos, sliciase, constitufam uma raga vil, que no conseguia sequer aproxi arse do nivel da dos homens livres. Era uma Tinhagem degradada elo proprio Japiter, marcada desde © nascedouro com um estigma infamante, destinada de antemao a esse estado de abjesao ¢ vileza. Doutrina perversa, sem davida, desmentida pela natuteza, pela his- © pele experiéncia, mas que nem por isso deixava de contar com destacados defensores, ¢ que, para ultraje da humanidade ¢ ‘selindalo da razio, foi sendo proclamada por séculos a fio, até que © eristianismo veio dissipé-la, tomando a seu cargo a afirmagio dos direitos do homem. Homero nos diz (Odisséia, 17) que “Jtipiter subtraiu aos escra- vos metade da mente". Em Platéo encontramos o rastro da mesma dloutrina pois, se bem que pela boca de outrem (como costumava fazer), nfo deixa de asseverar: “Diz-se que no animo dos escravos nio existe nada de sadio e integro, e que um homem prudente ngo dove fiar-se nessa casta de criaturas, coisa que atesta 0 mais sibio dle nossos poctas”, citando em seguida a passagem de Homero acima Lranscrita (Didl. 6.2, Das Leis). Mas onde se encontra exposta essa doutrina com toda a sua lugubridade e nudez & na Politiea de Aris- tételes. Nao faltou quem quisesse defendé-lo, mas em vaio, porque suas prOprias palavras o condenam sem apelagéo. Explicando, no primeiro capitulo da referida obra, a constituigfo da familia © pro- pondo-se a definir as relagdes entre marido ¢ mulher ¢ entre senhor € escravo, sustenta que, assim como a fémea é naturalmente di rente do macho, o escravo € diferente do dono: “E assim a fémea © o escravo se distinguem por sua pripria natureza.” Tal conceitua- do nio corresponde a um Iapso de Finguagem do fildsofo, mas sim ele @ expressou com plena consciéncia e nio constitui outra coisa que ndo um compéndio de sua teoria. Tanto assim que, no terceiro capitulo, continua a analisar os elementos que compéem a familia fe, depois de consignar que “uma familia perfeita consta de pessoas livres e de escravos”, fixa sua atenc#o em particular sobre estes ¢ comeca combatendo uma opinido que parecia favorecé-los demasia- damente: “Hé alguns que pensam que a escravidio € coisa fora da fordem da natureza, visto que procede somente da lei o fato de este ‘avo e aquele livre, jd que naturalmente em nada se distin- 33 guem.” Antes de rebater essa opinido, explica as relagées entre senhor € escravo, valendo-se de comparagées entre o artifice e seu instru- mento ¢ entre a alma e 0 corpo, prosseguindo: “Se se comparam macho e fémea, aquele & superior € por isso manda, esta ¢ inferior € por isso obedece, © mesmo ocorte com todos os homens. Assim, aqueles que sao to inferiores quanto 0 corpo 0 é em relago & alma e quanto o bruto o & em relagao ao homem, ¢ cujas faculdades consistem principalmente no uso de seu fisico, sendo este uso o maior proveito que deles se pode extrair, estes sio escravos por natureza.” A primeira vista poderia parecer que o filésofo esti se referindo exclusivamente acs mentecaptos, mas veremos em se- guida que no é essa sua intengéo. Mesmo porque, se estivesse falando apenas dos idiotas, nada provaria contra a opinido que se propde a impugnar pois, sendo o niimero destes tao reduzido, nao constituem praticamente nada em comparacdo com a generalidade dos homens. Ademais, se apenas aos néscios quisesse referirse, de que valeria sua teoria, entéo fundada unicamente sobre uma excegio monstruosa ¢ muito rara? Mas no hé necessidade de se perder tempo em conjecturas sobre 0 que teria realmente em mente o fildsofo, Ele mesmo se en- carrega de esclarecé-lo, revelando-nos ao mesmo tempo por que se tinha valido de expresses tio fortes que até pareciam subtrair a questo de seu eixo, Segundo se prope a demonstrar, cabe & natu- reza 0 expresso designio de produzir homens de duas categorias: uns nascidos para a liberdade, outros para a escravidio. O trecho & demasiado importante e curioso para que deixemos de transcrevé-lo: “Bem aprouve & natureza procriar diferentes os corpos dos livres € dos escravos, de modo que os destes sejam robustos e apropriados para os usos necessérios, ¢ os daqueles bem formados, iniiteis sim para trabalhos servis, mas adequados a vida civil, que consiste no manejo dos negécios da guerra e da paz; mas muitas vezes ocorre © contrétio, © a uns cabe corpo de escravo ¢ a outros alma de livres. Nao ha diivida de que, se no corpo alguns se avantajassem tanto como as imagens dos deuses, todo mundo seria de opinigo que deve- riam servir-thes aqueles que nio tivessem alcancado tanta galhardia. Se isto € verdade falando do corpo, muito mais o é em se tratando da alma, se bem que nao é to facil ver a formosura desta quanto a daqucle. Assim nfo se pode duvidar de que hé alguns homens nascidos para a liberdade, enquanto hé outros nascidos para a es cravidio — escravidio que, além de ser Gtil aos préprios escravos, 34 «também justa.” (Politica, 1. 2°, c. VID. Miserdvel filosofia que, para sustentar um estado de coisas de- yradante, tinha de apelar para tamanhas cavilagdes, assacando contra natureza a intengao de gerar diferentes castas, nascidas umas para luoninat, outras para servir! Filosofia cruel, que assim procurava romper os lagos de fraternidade com que o Autor da natureza qui vincular toda a linhagem humana, que assim se empenhava em le- \antar uma barreira entre homem e homem, que assim elocubrava tvorias para sustentar uma desigualdade que nao aquela que resulta necessariamente de toda organizacio social, mas sim uma desigual- shide tho terrivel e avillante quanto a da escravidio! Levanta entio a voz o cristianismo ¢, nas primeiras palavras sine pronuneia sobre os escravos, declara-os iguais em dignidade de natureza aos demais homens; ¢ iguais também na ‘participagdo nas yragas que o Espirito Santo vai derramar sobre a terra. E notével cuidado com que insiste sobre este ponto 0 apéstolo Séo Paulo; esta laro que tinha sob a vista as degradantes diferencas que, por funesto lvido da dignidade do homem, se queriam assinalar; por isso nunca © esquece de inculear a nulidade da diferenca entre 0 escravo © 0 livre, *“Fomos todos batizados num s6 espitito, para formar um mesmo corpo, judeus ou gentios, eseravos ou livres” (I Cor., XII, 15). “Todos vés sois filhos de Deus pela f¢ em Jesus Cristo, pois ‘odos os que foram batizados em Cristo se revestiram de Cristo, Nao hui judeu nem grego. nao ha servo nem livre, nfo hé homem nem muther. Todos vés sois um s6 em Jesus Cristo” (Gél., III, 26-28). “Onde nao hé gentio ot judeu, eircuncidado ou incircuncidado, bar- haro ow cita, servo ow livre, mas sim Cristo € tudo em todos” (Colos., ML, 1D. Parece que 0 coragao se ditata ao ouvir serem proclamados em alta vor esses grandes principios de fraternidade ¢ de santa igualda- tle, Quando acabamos de ouvir os oriculos do paganismo ideando loutrinas para abater ainda mais os desgragados escravos, parce que despertamos de um pesadelo angustiante e nos defrontamos com luz do dia, em meio a uma fagueira realidade, A imaginagio se compraz em considerar tantos milhées de homens que, curvados sob © peso da degradacéo e da ignominia, Ievantam seus olhos a0 eéu exalam um suspiro de esperanca. Acontece com este ensinamento do ci com todas as doutrinas generosas e fecundas: penetram a go da sociedade, ficam af depositadas como um germe precioso ¢, ianismo 0 que acontece desenvoltas com o tempo, produzem uma érvore enorme que abriga sob sua sombra as famflias © as nagdes, $6 que, difundidas entre homens, néio_puderam também escapar de serem mal interpretadas @ de setem distorcidas, nfo faltando quem tenha protendido que a iberdade crista equivalia & proclamago da liberdade universal ‘Ao ressoar aos ouvidos dos escravos as doves palavras do ctistianis- ‘mo, ao tomarem eles conhecimento de que se os prockamava filhos de Deus ¢ irmios de Jesus Cristo, ao verificarem que nio se fazia distingao alguma entre eles © seus amos, nam que fossem estes os mais poderosos senhores da terra, nio & de estranhar que homens acostumados tio somente as correntes, a0 trabalho ¢ a toda espécie de maus tratos e envilecimento exagerassem os principios dessa dou- trina nova ¢ fizessem dela aplicagdes que nem eram em si justas nem tampouco exeqiifveis. Sabemos por Sio Jerénimo que muitos, ao ouvirem que eram chamados & fiberdade cristd, pensaram que com esta se thes estava concedendo @ ruptura dos grilhies da escravatura, E talvez, fosse a esse erro que aludia 0 Apéstolo quando, em sua primeira carta a Timéteo (VI, 1), dizia: “Todos ox que esto sob o jugo da escravidio hontem com todo respeito scus donos para que @ nome e a doutrina do Senhor nao sejam blasfemados.” Tamanho eco enconttara esse erro que depois de trés séculos ainda estava corrente, vendo-se obri- gado 0 Coneflio de Gangra, celebrado por volta do ano 324, a exco- mungar os que, sob pretexto de piedade, ensinavam que os escravos deviam desligar-se de seus amos e retirarse de seu servigo, Nao"era isso 0 que ensinava o cristianismo, mesmo porque ficou jé bem evidenciado que nao era esse 0 caminho que realmente permitiria chegar emancipacio universal Assim € que 0 mesmo Apdstolo que ouvimos empregar a favor dos escraves ami linguagem thes inculea repetidas veres a obedigncis:a seus donos. Mas é notivel que, enquanto cumpre esse dever imposto pelo espirito de paz © de justiga que anima o cristianismo, explica de tal mancira os motivos sobre os quais 52 ha de fundar a obedigncia dos escravos, recorda com tio sentidas © vigorosas palavras as obrigacdes que pesam sobre os donos, & assenta (Go expressa ¢ terminantemente a igualdade de todos as homens ante Deus que transparece nitidamente quao intensa cra sua compaixio para com essa parte desgragada da humanidade ¢ quio diferentes eram sobre esse particular suas idéias comparativamente as do mun- do endurceido e cego cevado pelo paganismo. 36 Abriga-se no intimo do homem um sentimento de nobre inde- madéncia que nao Ihe permite sujeitarse & yontade de outro homem, 1 nfo ser que Ihe sejam apresentadas justificativas legitimas sobre ws quais se apiam as pretenses de mando, Se tais justificativas cotiverem bem fundadas ¢ sobretudo se estiverem radicadas em altos chjetivos que © homem ama e acata, a razio se convence, 0 coracio se abranda e¢ a vontade cede. Mas se 0 motivo do mando ¢ 86 0 querer de outro “homem, se simplesmente se acham colocados face 1 face homem com homem, entéo fervem na mente os pensamentos ic igualdade, arde no coragéo © sentimento de independéncia, » fronte se impée altaneira e as paixGes rugem ameacadoramente. Pot isso, em se tratando de alcangar obediéncia voluntéria ¢ duradoura, mister se faz que quem manda se encubra, desapareea 0 homem © sé se veja o representante de um poder superior ou a personificagio dos mctivos que transmitem ao stidito a justia e a utilidade da submissio: dessa maneira no se obedece & vontade alheia pelo que cla é em si, mas sim porque representa um poder superior ou € 0 intérprete da razio e da justica; entdo quem deve obedecer nio sente ultrajada sua dignidade e a obediéncia se the afigura suave suportével Bem é de ver que no cram dessa indole os titulos em que se fundava a obediéneia dos escravos antes do cristianismo. Os costu mes 08 equiparavam aos brutos € as leis vinham, se € que isso fosse possivel, acentuar a humilhagdo, usando de uma linguagem que nio se pode ler sem indignagio. O dono mandava porque tal cra sua vontade, ¢ © escravo se vin compelido a obedecer, nao por forca de motives superiores nem de obrigagdes morais, mas sim porque era uuma propriedade do seu sonhor, era como um cavalo, comandado pelo cabresto, como uma maquina que devie responder ao impulso do manobrista. Que pode haver de surpreendente, pois, que aqueles infelizes, carregados de infortiinio ¢ de ignomfnia, abrigassem em seus peitos uma profunda e concentrada mégoa, uma virulenta ira, uma terrivel sede de vinganga, prontas para explodir de forma es- pantosa na primeira oportunidade? A horrorosa degola em Tiro, exemplo ¢ terror do universo, na expresso de Justino; as repetidas sublevagées dos penestas em Tessélia e dos ilotas em Lacedeménia; as defecgdes em Atenas, como durante a guetra do Peloponeso; a insurreigio comandada por Herdénio ¢ 0 terror por ela semeado entre todas as familias de Roma; o$ sangrentos episédios propor- cionados pelas hostes de Espértaco e sua tenaz e desesperada re- sisténcia — que foram senfo o resultado natural do sistema de violénicia, de ultraje © de desprezo com que se tratavam os escravos? Tal 6 a natureza do homem que quem semeia ventos colhe tem- pestades. Esta verdade nao escapou ao cristianismo e, por isso mesmo, se ptegou a obediéncia, procurou fundéla em titulos divinos; se resguardou os direitos dos senhores, também thes ensinow com Enfase suas obrigagbes; e assim, onde prevaleceram as doutrinas cristis, puderam os escravos dizer: “Somos infelizes, € verdade; & desgraga nos condenaram 0 nascimento, a pobreza ou os reveses da guerra; mas afinal somos reconhecidos como homens, como irmfos, entre nés © nossos amos hé uma reciprocidade de obrigades e de direitos.” Ougamos, a propésito, 0 que ensinou o Apéstolo: “Esera- vvos, obedecei a vossos senhores temporais com reveréncia e solic tude, na sinceridade do vosso coragao, como a Cristo, ndo os servindo 86 quando sob suas vistas, apenas para agradar aos homens, mas como servos de Cristo fazendo de coragio a vontade de Deus, set vindo-os com boa mente, como se servisseis 0 Senhor © no os homens, sabendo que cada um receberd do Senhor a paga do bem que tiver feito, quer seja escravo ou livre. E vés, senhotes, fazei o mesmo com vossos eseravos, pondo de parte as ameagas, sabendo quie 0 Senhor, tanto deles como vosso, esti nos eéus e nao faz acep- Go de pessoas” (Efés., VI, 5-9). Na carta aos colossenses (c, [I1) volta a proclamar a mesma doutrina da obe: 3 e como que consolando os infelizes escravos Ihes diz: “Do Senhor recebereis a heranga do céu como recompensa. Servi, pois, a Cristo Senhor. E aquele que cometer injustica receber segundo 0 que fez injusta- mente, pois nfo ha acepeo de pessoas diante de Deus” (III, 24-23) E mais abaixo, dirigindo-se aos senhores, acrescenta: “Vés, senhores, tratai os vossos escravos com justica e eqiiidade, sabendo que tam- ‘bém és tendes um Senhor no eéu” (IV, 1). Disseminadas doutrinas to benéficas, jd se vé que teria de methorar grandemente a condicéo dos escravos, sendo o seu resul- tado mais imediato a moderagio daquele rigor to excessivo, daquele crueldade t@o aguda que nos pareceriam incriveis se a respeito nao dispuséssemos de testemunhos irtecusfveis. Sabe-se que o dono tinha 0 direito de vida e de morte sobre os escravos e que abusava dessa faculdade até 0 ponto de maté-los por simples capricho, como o fez Quintio Flaminio em meio de um festim, ou de langé-los as moréias 38 ‘iponas por terem involuntariamente quebrado um vaso, como no cpisédio que narra Védio Poliao. E tamanha crucldade nfo estava citeunscrita a algumas familias que tivessem chefes especialmente sem entranhas, mas sim estava erigida em sistema — resultado fu- hnesto mas inexordvel do extravio das idéias ¢ do desvanecimento dos sentimentos de humanidade; regime violento © que s6 se podia sustentar mantendo continuamente os escravos sob mio de ferro; situagio que s6 se interrompia quando os oprimidos conseguiam prevalecer e lancar-se sobre seus opressores para fazé-los em peda- os. Daf a razio do antigo provérbio: “Tantos inimigos quantos eseravos. Ja vimos os estragos que faziam esses homens furiosos e seden- tos de vinganga toda vez que podiam romper os grilhdes que os oprimiam, Mas nfo thes ficavam atrés os senhores quando se tr tava de inspirar-thes temor. Em Lacedeménia, suspeitando-se um dia das mas intengdes dos ilotas, foram estes reunidos préximo ao templo de Jiipiter © passados todos pelo cutelo (Tucidides, 1. 4.°). E em Roma havia 0 bérbaro costume de, sempre que fosse assassinado algum senhor, todos os seus escravos serem condenados & morte. Causa arrepios ler em Técito (Ann, I. 14, 43) a horrorosa cena ocorrida depois de ter sido assassinado por um de seus escravos 0 prefeito da cidade, Pedinio Segundo. Eram nada menos que qua- trocentos os escravos do defunto e, segundo a norma, deviam todos set levados ao suplicio, Essa perspectiva tao lastimével e cruel de darse morte a tantos inocentes suscitou a compaixéo do povo, que chegou ao extremo de amotinar-se para impedir tamanha carnificina, Perplexo, 0 Senado examinava a questio quando tomou a palavra tum orador de nome Céssio, que sustentou com energia a necessidade de levar a cabo a execugio coletiva, nao s6 porque assim o prescrevia © antigo costume, mas também porque era a Gnica mancira de pre- venit-se a animosidade dos escravos para com seus donos. Em suas palavras s6. se fazem ouvir a injustica e a tirania; vé perigos e traigGes por toda parte; no sabe cogitar de outros preventivos que nfo a forga e o terror; e é particularmente notavel este trecho de seu artazoado, porque €m breve espaco retrata as idéias ¢ costumes dos antigos sobre o assunto: “Suspeita foi sempre para nossos maio- tes a indole dos escravos, mesmo daqueles que, por terem nascido em suas proprias possessdes © casas, poderiam desde o bergo ter engendrado afeigao pelos donos; ainda mais agora que dispomos de escravos de nacées estrangeiras, com diferentes usos ¢ miltiplas re- 39 ligides, © tinico meio de conter essa canalha € o terror." No epis6dio em foco a crueldade acabou prevalecendo: reprimiuse a ousadia do ovo, encheu-se de soldados 0 caminho para 0 patibulo, e os qua- trocentos desgracados foram executados. Suavizar esse tratamento cruel, banir essas horrendas atrocida- des, esse era o primeiro fruto que deveriam proporcionar as doutrinas eristis. E pode-se assegurar que a Igreja jamais perdeu de vista esse importante objetivo, procurando fazer com que a condigao dos es- cravos melhorasse cada vez 0 mais possivel, que em matéria de castigos se substituisse a crucldade pela indulgéncia, e que — o que era mais relevante — a razio passasse a ocupar o lugar do capricho, trocan- do-se a impetuosidade dos senhores pela serenidade dos tribunais, Com isso se iam aproximando os escravos aos livres, passando a reger também em relacdo aqueles néo 0 fato mas si A Igreja no esqueceu jamais a formosa ligéo do Apéstolo quando, escrevendo a Filémon, intercedia por um escravo (¢ escravo fugitivo!) chamado Onésimo, .usando de uma linguagem como nun- a até entio se ouvira em favor dessa classe de infelizes: “Rogo-te pelo meu filho Onésimo, (...) 0 qual outrora te foi indtil (...) que tornei a te enviar, Recebe-o (...) nfo ja como um esctavo mas, muito mais do que isso, como um irméo carissimo, (...) Se me amas, recebe-o como receberias a mim; se ele te causou algum dano ou se te deve alguma coisa, debita tudo em minha conta” (Fil, 10-19). Néo, a Igreja no esqueceu essa liglo de fraternidade e de amor, € procurar suavizar a sorte dos escravos foi uma de suas ta refas. prediletas. © Concilio de Elvira, realizado em prinefpios do séeulo 1V, sujeita a peniténcia a mulher que tenha golpeado e ferido gravemente sua escrava, O de Orleans, celebrado em 549, prescreve (cin. 22) que, se se refugiar numa igreja algum escravo que tenha determi nadas faltas, seja ele devolvido ao seu amo, mas exigindo-se previa- mente deste o juramento de que nfo the faré nenhum mal; e caso tal juramento seja quebrado ¢ 0 escravo submetido a maus tratos, 40 perjuro se aplique a pena de exclusio da comunhio e da mesa dos catdlicos. Este cinone evidencia duas coisas: a crueldade costu- meira dos senhores ¢ o zelo da Igreja em suavizar 0 trato dos escra- vos. Para pér freio a crueldade era necessério exigit nada menos do que um juramento, ¢ a Tgreja, de si muito prudente em matéria de juramentos, considerava 0 assunto de importincia tal que se jus- tificava af © emprego do augusto nome de Deus. 40 © favor ea protegio que a Igreja dispensava aos escravos estendiam-se rapidamente e, a0 que parece, introduziu-se em alguns lugares 0 costume de exigir no juramento que o escravo refugiado no 86 nfo receberia danos pessosis, mas também que nio seria onerado com trabalhos extraordinérios nem receberia qualquer mar ca ov traco distintivo. Desse costume, procedente sem diivida do zelo pelo bem da humanidade, mas que talvez tenha acarretado inconve- nientes a0 afrouxar com demasiada rapidez os lagos de obediéncis © dar lugar a excessos por parte dos escravos, encontram-se indicios numa disposigdo do Coneilio de Epaona, celebrado por volta do ano 517, ena qual se procura atalhar o mal prescrevendo uma prudente moderagao, sem no entanto abrir mio da protegio estatuida. Em seu cénone 39 ordena que, se um escravo réu de algum delito atroz se refugiar na igreja, somente seja ele isentado das penas corporais, nio se obrigando o dono a prestar juramento de que nao the impord trabalho extraordinério ou nfio the raspard os cabelos a fim de que sua condigao fique para todos evidente. Mas note-se bem que esse limitagao se aplicaria somente quando 0 escravo tivesse cometido delito grave e, nesse caso, a faculdade que se deixa a eritério do amo é to somente a de importhe trabalho extraordinério ou distin- guiclo pela raspagem do cabelo. Talvez néo falte quem rectimine semelhante indulgéncia, mas € mister advertir que, quando os abusos sio grandes ¢ arraigados, © empuxo para arrancé-los tem de ser forte e, se bem que & primeira sta pareca ultrapassar os limites da prudéncia, esse aparente ex- cess0 nfo é mais do que aquela oscilagdo que freqiientemente sofrem as coisas antes de encontrar seu verdadeiro equilibrio, Aqui néo tratava a Igreja de proteger o crime, nfo reclamaya cleméncia para quem nio a merecesse; 0 que tinha em vista era por cobro vio- lencia ¢ a0 capricho dos senhores; no podia consentir em que um homem sofresse tormentos e até morie 6 porque assim 0 queria ‘outro homem. O estabelecimento de leis justas ¢ a legitima acao dos tribunais so coisas as quais jamais se opds a Igreja, mas com a violéncia dos particulares nfo pode concordar nunca, Desse espitito de oposigdo ao exereicio da forca privada encon- trase uma mostra que vem muito a calhar no cénone 15 do Coneilio de Mérida, celebrado no ano de 665. E sabido, e jé 0 “deixamos consignado em outro ponto, que os escravos eram uma das partes principais da propriedade e que, estando regulamentada a distribu: ‘¢do do trabalho de acordo com essa base, nao eta possivel prescindit at de ter escravos a quem fosse dono de propriedades, sobretudo se alcangavam estas proporgdes consideraveis. A Igreja se achava neste caso €, como no estaya em suas mos modificar repentinamente a organizagio social, teve de acomodar-se aquela necessidade © pos- suiclos também. Entéo, se com respeito a eles queria introduzit_me- horas, bom scria que comecasse dando ela mesma o exemplo; @ esse exemplo se encontra no cénone conciliar hd pouco citado. Nele, depois de se proibir bispos e sacerdotes de castigar os serventes da igreja com mutilagbes, dispoe-se que, se eles cometerem algum delito, sejam entregues a juizes seculares, mas rescrvando-se & autoridade cclesidstica a faculdade de moderar as penas a que fossem condena- dos. E digno de nota que, segundo se deduz desse cinone, estava ainda em uso 0 direito de mutilagdo aplicado pelo dono particular, e devia tal costume conservar-se ainda muito arraigado, ja que o concilio se limita a vedé-lo aos eclesidsticos e nada diz com relagio 05 leigos. Nessa proibicdo influia sem divide a consideragio de que, mesmo derramando sangue humano, ndo se tinham tornado os eck sidsticos incapazes de exercer aquele clevado ministério cujo ato principal € © augusto sacrificio em que se oferece uma vitima de paz e de amor; mas isto em nada diminui o mérito da decisio ou restringe sua influéneia na melhoria da sorte dos escravos: sempre era substituir a vindita particular pela punigao piblica; era uma nova proclamagao da igualdade dos escravos com os livres, quando se tratava de efusio de sangue; era declarar que as maos que derra- massem o de um escravo ficavam to manchadas como se tivessem vertido o de um homem livre. E se fazia necessério inculear de todos os modes essas verdades salutares, jé que estavam em tao aberta contradigio com as idéias © os costumes antigos; impunha-se traba- Thar assiduamente para que desaparecessem as aberragées._vergonho- sas cruéis que mantinham a maior parte dos homens privados da participacdo nos direitos humanos. No cinone ha pouco citado hé uma circunstincia notavel que atesta a solicitude da Igreja em restituir aos escravos a dignidade e consideragio de que se achavam despojados. A raspagem dos cabclos era entre os godos uma pena muito degradante © que,. segundo in- forma Lucas de Tuy, quase thes era mais temfvel que a morte, Mas compreendase que, qualquer que fosse a preocupacio com esse onto, podia a Igreja permitir a raspagem sem incorrer na ignominia fem que implicava 0 derramamento de sangue, Mesmo assim, niio 42 quis fazé-lo, porque procurava apagar qualquer marca de humilhagéo que se estampasse na fronte do escravo. E entio, depois de ter pres- erito aos bispos © sacerdotes que entregassem a0 juiz os servos culpados, dispde que “no tolerem que sc Ihes raspem os cabelos ‘com oprébio”. Nenhum cuidado era demais nessa matéria: era necessério apro- veitar todas as ocasies favordveis para conseguir algum progresso nna extirpagdo das odiosas aberracoes que afligiam os escravos. Essa necessidade se manifeste bem claramente no modo como se expressa © XI Coneflio de Toledo, celebrado no ano de 675. Em seu cfnone 6 profbe aos bispos julgar casos de delitos dignos de morte, bem como de mandar aplicar a pena de mutilacdo de membros. Mas veja-se que julgou necessério advertir que nao admitia nenhuma excegio, “nem mesmo contra os servos de sua igreja”. O mal cra grave no podia ser curado sendio com solicitude permanente. Desse modo, até em relacdo ao direito mais cruel de todos, qual seja o de vida € motte, verifica-se como extirpé-lo exigia muito trabalho. Em prin- cipios do século VI nio faltavam exemplos de excessos nessa maté- ria, tanto que © Coneilio de Epaona, em seu cfnone 34, dispde que “seja privado por dois anos da comunhio da Igreja o amo que, por propria autoridade, faca perder a vida seu escravo”. Jé iamos por meados do século IX e ainda eram encontradigos atentados semelhantes, que o Concilio de Worms, celebrado em 868, se propos reprimir, sujeitando a dois anos de peniténcia 0 amo que, por sua autoridade privada, tivesse dado morte a scu escravo. a TERCEIRA PARTE A Igreja defende com zelo a liberdade dos alforriados. Manumissio nas igrejes. Saudiveis efeitos desta pritica. Redengio de cativos. Zelo da Igreja em praticar e promover esta obra. Preccupagio dos romanos a respeito deste Ponto, Influéneia que teve na abolilcao da escravatura 0 zelo da Igreja pela redencio dos cativos. A Igreja protege a liberdade dos ingénuos. Enquanto se suavizava 0 tratamento dos escravos ¢ eram eles aproximados 0 quanto possivel dos homens livres, impunha-se nao descuidar da obra de emancipagao universal, pois no bastava me- Ihorar aquele estado mas sim era preciso aboliclo. A forga da dou- trina crista, de per si, € 0 espfrito de caridade que com ela se ia difundindo por toda a terra golpeavam tao vivamente a escravatura que, mais cedo ou mais tarde, teria de sobrevir a completa aboligo deste, porque € impossivel que a sociedade permaneca por longo periodo numa ordem de coisas que esteja em contradi¢ao com as idéias de que uma grande maioria de seus membros se ache imbufda. Segundo o cristianismo, todos os homens tm uma mesms origem € um mesmo destino, todos so irmaos em Jesus Cristo, todos estfio obrigados a amarse desde 0 intimo de seus coragdes, todos devem socorrer-se mutuamente nas necessidades, a todos é vedado ofender- se mesmo por palavras, todos so iguais perante Deus e sero julga- dos sem acepeio de pessoas. Essas’ doutrinas se iam estendendo, arraigando em todas as partes, apoderando-se de todos os ramos da sociedade: como seria entio possivel que continuasse a escravidii. esse estado degradante em que o homem € propriedade de outro, em que € vendido como um bruto, em que ¢ privado dos doces lagos da familia, em que no participa de nenhuim lox enc da sociedade? Coisas tao antagonicas poderiam viver juntas? As leis estavam a favor da escravatura e, na verdade, 0 cristia- nismo no deflagrou nenhum movimento de desobedi¢ncia dircia cessas leis; mas em troca fez 0 que? Procurou apoderar-se das idéi € costumes, transmitiuthes um novo impulso, dew-thes uma di diferente — ¢, feito isso, 0 que podem as leis? Viu-se entdo afrou- xarse seu rigor, ser progressivamente descuidada sua observancia, comecar a ser questionada sua eqiiidade, proliferarem as discussdes sobre sua conveniéncia, agucar.se a consciéncia de seus maus efeitos, fe assim as antigas normas foram caducando pouco a pouco, de maneira que as vezes nem se fez necessério um golpe frontal para derrubé-las: elas simplesmente foram postas de tado © esquecidas por se terem tornado intiteis. Ou, se mereceram 0 trabalho de uma aboligdo expressa, isto foi feito por mera formalidade: como um cadaver que se enterra com honratias, Mas no se infira dai que, por dar tanta importincia as idéies € costumes cristios, se tenha abandonado o éxito da causa aos exclu- sivos efeitos dessa forga, sem que ao mesmo tempo cuidasse a Igreja de, conforme as circunstincias de época e lugar, tomar medidas coneretas conducentes a0 objetivo visado. Nada disso. Conforme jé foi anteriormente referido, a Tgreja lancou mao de vérios metos, os mais apropriados em cada caso para surtir os resultados desejados, Se se queria assegurar a efetividade da obra de emancipacio, era muito conveniente, em primeiro lugar, colocar a salvo de todo ataque a Tiberdade dos escravos alforriados — liberdade essa que era com freqiigncia combatida e que se via gravemente ameacada. Deste triste fenémeno nio € dificil encontrar as causas nos. rest duos de idéias e costumes antigos, na ambi¢io dos poderoso’, no sistema de violéncia generalizada implantado com a irrupgio dos bérbaros, e na pobreza, desamparo e despreparo em que com cer- teza se encontravam os infelizes reeém-saidos da escravatura (porque € de supor que muitos deles no conhecessem todo o valor da liber- dade, nfo se portassem sempre no novo estado de avordo com 0 qué mandam a razo e a justica, © nio soubessem cumprit todas as obrigagdes decorrentes dos direitos de homem livre que tinham abado de recuperar ou dos quais pela primeira vez se tinham. tor- nado possuidores). Mas todos esses inconvenientes, insepardveis da nnatureza das coisas, ndo deveriam entravar a consumacio de uma obra reclamada pela religido © pela humanidade. Era necesséric resignar-se a sofré-los, levando em conta que na patte de culpa que pudesse caber aos manumitidos havia muitos motivos de escuss, 46 porque 0 estado de que acabavam de sair embargava o desenvolvi- mento de suas faculdades intelectuais e morais Cuidou assim a Igreja de colocar a liberdade dos manumitidos a coberto dos ataques da injustica, vinculando @ alforria a objetos que na época exerciam mais poderosa ascendéncia sobre a conscién- cia coletiva €, de certa forma, revestindo de ume inviolabilidade sagrada a emancipacio, Dai o costume que se introduziu de reali- var-se a manumissio no interior dos templos. Esse ato, ao mesmo tempo que revogava e lancava no esquecimento antigos usos, vinha constituirse numa dectaracao ticita do quao agradavel a Deus era a liberdade humana ¢ correspondia a uma procfamacéo prética da igualdade de todos perante o Criador. Tanto assim que a emancipagio xe exeetitava no mesmo local onde com freqiiéncia se liam trechos das Escrituras que falavam que perante Ele nfo hd avepgio de pessoas, onde desaparcciam todas as distinges mundanas, onde ficavam misturados todos os homens, unidos por suaves lagos de traternidade © amor, Efetuada desse modo a manumissio, ficava a Igreja com mais expedito direito para defender a liberdade do ma- numitido pois, tendo sido testemunha do ato, podia dar {8 de todas as circunstincias configuradoras de sua validade c, ainda, reclamar sa observancia sob o argumento de que sua violacdo equivalia de certa forma a uma profanacdo do lugar sagrado, ao descumprimento lo prometido diante do proprio Deus. Nao esquecia a Igreja de aproveitar todas as oportunidades para reafirmar semelhantes circunstincias favoriiveis aos manumitidos. ‘Assim € que oT Concilio de Orange, celebrado em 441, dispde em set canone 7 que € preciso impor censuras cclesiésticas aos que quiserem submeter a qualquer tipo de servidio os escravos emanci- pados na igreja. E, um século depois, a mesma proibigio & repetida no eanone 7 do V Coneilio de Orleans, realizado no ano de 549. A. protecdo dispensada pela Igreja aos manumitidos era tio manifesta e conhecida de todos que se adotou 0 costume de imendé-los particularmente ao seu zelo, Fazia-se essa recomendacio is vezes em testamento, como no-lo indica o Concitio de Orange ha povco citado, ao ordenar que, por meio de censuras eclesidsticas, se impeca que sejam submetidos a qualquer género de servidio os eseravos emancipados recomendados & Igreja por testamento. Mas hem sempre se fazia por testamento essa recomendagao, segundo se infere do cAnone 6 do Concilio de Toledo, celebrado em 589, ¢ onde se dispde que, quando tiverem sido recomendados & Igreja quaisquer ‘manumitides, nio sejam privados da protegdo da mesma néo somente eles mas também seus filhos: aqui se fala em geral, sem se limitar 05 casos em que o instrumento utilizado tenha sido testamento. O mesmo se pode constatar em outro Concilio de Toledo celebrado no ano de €33: af se estabelece que a Igreja receberd sob sua protecdo tunicamente os emaneipados por particulares que a ela os tenham re. comendado. Mesmo quando a manumissio no tenha sido feita no templo nem tenha havido recomendacéo particular, a Igreja no deixava de tomer parte na defesa dos manumitidos quando via perigar sua liberdade, Quem preze em algo a dignidade do homem, quem abrigue no peito algum sentimento de humanidade seguramente no levaré ‘2 mal que a Igreja se intrometesse nessa matéria; nao Ihe desagra- daré saber que 0 cénone 29 do Concilio de Agde, no Languedoc, celebrado em 506, determinou que ‘a Igreja, se necessério, tomasse 4 defesa de todos aqueles aos quais seus amos tinham legitimamente dado a liberdade, Na gtande obra de abolicao da escravatura efetivamente teve relevante participagio 0 zclo que, em todos os tempos ¢ lugares, Igreja despendeu pela redencio dos cativos. Considere-se a propé- sito que uma patcela considerdvel de escravos devia esta sorte a0s reveses da guerra. Ai dos vencidest, podia-se exclamar nos tempos antigos. Para os derrotados nfo havia alternativa além da morte ou da escravidio. Agravava-se 0 mal com uma preocupacio funesta que se havia desenvolvido contra a redencio dos cativos — preocupacio essa que se apoiava em vislumbres de assombroso herofsmo. Admi- ravel é sem divida a extraordindria forga de énimo de um Régulo; arrepiam-se os cabelos quando se 1éem as vigorosas pineeladas com ‘a5 quais o retrata Horicio (1. 32, Odes 5); € 0 livro cai das mos quando se chega ao terrivel lance em que Fertur pudicae coniugis osculum Parvosque natos, ut capitis minor, A se removisse, et virilem Torvus humi possuisse vultum. Mas, sobrepondo-se & profunda impressdio que nos causa tanto heroismo ¢ ao entusiasmo que suscita em nosso peito tudo quanto revela uma grande. alma, nfo podemos deixar de reconhecer que aquela virtude chegava as raias da ferocidade e que, no terrivel dis- 8 curso que brota dos lébios de Régulo, esté consubstanciada uma politica cruel, contra a qual se Ievantariam vigorosamente os senti- mentos de humanidade, se nossa alma néo estivesse cativada € como ‘que subjugada pelo exemplo de sublime desprendimento do homem que fala daquele modo. © cristianismo néo podia pactuat com semelhante doutrina: ndo admitiu que se sustentasse o prinefpio de que, para tornar os homens valentes, era necessério deixé-los sem esperanga; © 0s ade lances de valor, as espantosas cenas de inalterivel fortaleza © constincia que iluminam paginas da histéria de nagbes modernas sio um elogiiente testemunho do acerto da religiso cristi a0 procla- mar que a suavidade de costumes nao exclui o heroismo. Os antigos coscilavam sempre entre dois extremos: a moleza ou a ferocidade; centre esses extremos hé um meio termo, que foi o que veio ensinar sus homens s religifo crista. Covrentemente, pois, com seus principios de fraternidade ¢ de amor, 0 cristianismo teve como um dos objetos mais dignos de seu ritativo zelo 0 resgate dos cativos. E quer contemplemos os for- mosos lances de ages particulares que nos conservou a histéria, quer atentemos para o espirito que ditigiu a conduta global da Igreja, encontraremos um novo e belissimo motivo para que a humanidade tribute sua gratiddo & religido crista Um eélebre eseritor moderno, Chateaubriand, mostrou-nos, no meio dos bosques dos francos, um si rdote que era escravo, € seravo voluntério, por ter-se entregue A escravidio em resgate de tum soldado cristo que gemia no cativeiro e que havia deixado no desconsolo € no abandono a esposa € trés filhos. © sublime espe- ticulo que nos oferece Zacarias, softendo com serena calma a eseravidao pelo amor de Jesus Cristo ¢ daquele infeliz a quem tinha libertado, nao € uma mera ficedo do poeta. Nos primeiros séculos da Igreja, viram-de exemplos semelhantes em abundan ventura tenha chorado a0 contemplar o herdico desprendimento de Zacarias pode estar seguro de que, com suas légrimas, pagow um lributo & verdade. “Conhecemos muitos dos nossos que se entregaram les mesmos ao cativeiro para fesgatar outras pessoas”, conta-nos © papa Séo Clemente (I Cor., LV). ‘A redencio dos cativos era um objetivo tio privilegiado que estava previsto por antiquissimos cinones que, se para isso fosse necessério, se vendessem os adornos das igrejas, até seus vasos sa- grados. Em se tratando dos infelizes cativos, a caridade nao tinha © quem por- 49 limites, 0 zelo transpunha todas as barreiras, chegando-se mesmo a0 ponto de estatuir que, por mais avariada que estivesse uma igteja, antes de sua reparagdo deveria atender-se & redengdo dos cativos (Caus. 12, Quaest. 2). Em meio aos transtornos que consigo trouxe @ irrupgdo dos bérbaros, a Igreja, sempre constante em seu prop6- sito, nfo esmorecea na generosa conduta encetada desde seus pri- mérdios. Nao cafram em olvido nem em desuso os dispositivos benéficos dos antigos cénones, © as generosas palayeas do santo bispo de Milao em favor dos cativos continuaram encontrando um eco que nio se interrompeu nem mesmo com 0 caos daqucles tempos (vide Santo Ambrésio, De Offic, 1. 2°, c. XV). Pelo cénone 3 do Coneflio de Macon, celcbrado em 585, constata-se que os sacerdotes se ocupavam do resgate de cativos, empregando para isso os bens colesidsticos. O Coneilio de Reims, celebrado em 625, impde a pena de suspensio de suas fungdes a0 bispo que se desfaga de vasos sagrados, mas estabelece generosamente esta ressalva: “a nio ser pelo motivo de redimir cativos”, E muito tempo depois se encontta consignado no cdnone 12 do Coneilio de Verneuil, eelebrado em 844, que 0s bens da Igreja tm a serventia de proporcionar a redengio de cativos. Restituido a liberdade 0 cativo, nfo o deixava a Igreja sem protesdo, mas sim a prolongava com solicitude, fornecendo-Ihe cartas de recomendacdo, certamente com 0 duplo objetivo de res- guardé-lo contra novas tropelias durante a viagem & terra natal e de ensejarhe meios com que recuperarse dos danos sofridos no ¢ veiro, Deste tipo de protecdo nos da testemunho 0 cénone 2 do Coneflio de Lyon, celebrado em 583, e no qual se dispde que os bispos devem fazer constar das referidas cartas de recomendagio a data e 0 prego do resgate. De tal mancira se desenvolveu no seio da Igreja o zelo pela redengio dos catives que se chegaram a cometer imprudéneias que as auloridedes eclesiasticas tiveram de reprimir. Mas esses proprios excessos atestam até que ponto chegava aquele zelo, pois era a impaciéncia por resultados mais amplos que gerava os extravios. Assim, sabemios por um concilio celebrado na Irlanda, chamado de io Patricio e que se realizou entre os anos 451 e 456, que alguns clérigos se empenhavam em obter a liberdade de cativos ajudando-os a fugit — comportamento esse que 0 concilio reprime com muite prudéncia, dispondo em seu cénone 32 que os eclesiésticos devem promover a redencdo de cativos por meio do pagamento do resgate 50 vin dinheiro, j4 que seqiiestré-los para dar-thes fuga redundava em uywe os sacerdotes fossem vistos como ladrdes e a Igreja ficasse sksonrada, Documento notével que, embora nos manifeste 0 espirito le ordem e eqiiidade que dirige a Igreja, nao deixa de ao mesmo impo indicar-nos quio profundamente estava gravado nos dnimos como era santo, meritério © gencroso dar liberdade aos cativos: tanto assim que alguns chegavam a persuadir-se de que a bondade da obra sutorizava o emprego da violéncial E também muito louvavel 0 desprendimento da Igreja ness matéria: aplicando seus bens na redencao de um cativo, nao aceitava uenhum ressarcimento, mesmo quando o redimido viesse « reunir condigdes para fazé-lo, Disto temos um claro testemunho nas cartas lo papa Sao Gregério, pelas quais se constata que, estando algumas pessoas liberadas do cativeiro com dinheiro da Igreja receosas de ‘que com o passar do tempo se Ihes viesse a pedir o reembolso quantia despendida, 0 santo pontifice exclui terminantemente essa hipdtese © manda que ninguém se atteva a molestar nem a elas em 4 seus herdeiros, em tempo algum, tendo em vista que os sagrados cdnones permitem que os bens eclesidsticos sejam utilizados para a redengio de cativos (I. 7°, carta 14). © zelo da Igreja por tio santa obra no poderia deixar de con- tribuir significativamente para a diminuigio do niémero de escravos, © sua influéneia foi muito mais benfazeja por terse exercido cabalmente nas épocas de maior necessidade, ou seja: quando, pela issolugio do Impsrio Romano, pela irrupgdo dos bérbaros, pela mobilidade dos povos (que foi o estado da Furopa durante muitos séeulos) e pela ferocidade dos invasores, eram téo freqiientes as guerras, to repetidos os transtornos ¢ to corriqueiro 9 teinado da forga por toda parie. Se nio se tivesse Feito presente a ago educa dora e libertadora do cristianismo, longe de diminuir 0 imenso ndmero de gados pela sociedade velha a sociedade nova, © que se teria € 0 seu continuo creseimento porque, onde quer que prevaleca o direito brutal da forga. se nfo se the antepe nenhum poderoso elemento para conté-la ¢ suavizé-la, a Tinhagem humans caminha rapidamente para o envilecimento, com 0 que a eseravatura incaoravelmente ganha terreno. Esse lamentivel estado de oscilagio © de violéncia era por si 56 muito propicio para inutilizar os esforgos que com vistas & abolicgio da escravatura favia a Igreja, nao the eustando pouco trabalho im- pedir que, enquanto se dava um passo adiante aqui, ocorresse sin escraves k retrocesso acold. A falta de um poder central e a complicagio das relagées sociais (poucas bem definidas, muitas violentas € todas sem cardter de estabilidade) faziam com que estivessem inseguras as pro- priedades e as pessoas, e assim como eram invadides aquelas, eram estas privadas de sua liberdade. De modo que era preciso evitar que nfo produzisse agora a violencia de particulares aquilo que antes era fruto dos costumes ¢ das leis. Dai que o cénone 3 do Coneflio de Lyon, celebrado por volta do ano 566, puna com a pena de excomu- hao quem injustamente submeter & escravidio pessoas livres; 0 canone 17 do Concilio de Reims, realizado em 625, proiba, também sob pena de excomunhao, perseguir pessoas livres para converté-las cm escravos; 0 cdnone 27 do Concitio de Londres, reunido em 1102, fulmine o bérbaro costume de fazer comércio de homens como se fossem animais; e 0 capitulo VII do Concilio de Coblenca, ocorrido em 922, declare réu de homicidio quem seduza um eristao para vendélo — declaragio notavel, na qual a liberdade ¢ tida em tio alto.prego que se a equipara & vida. Outro meio de que se valeu a Igreja para ir abolindo a escra- yatura consistiu em abrir caminho para que os infelizes que por pobreza tivessem caido nesse estado pudessem sair dele. Ja se men- Gionow que a indigéncia era uma das fontes da escravidio ¢ foi até transcrito o trecho de Jtlio César que relata como isso acontecia comumente entre os gauleses. Também € sabido que, pelo direito ‘antigo, quem tivesse caido na escravidio ndo podia recuperar a liber- dade sendo pela vontade de seu amo; isto porque, sendo o escravo tuma auténtica propriedade, ninguém podia dispor dela sem consen- timento do dono, e muito menos 0 pr6prio escravo. Tal era o diteito corrente, baseado nes doutrinas pags, mas o ctistianismo via as coisas com outros olhes. Assim, ainda que juridicamente considerado ‘uma propriedade, nem por isso deixava 0 escravo de ser homer; dai que neste ponto a Igreja nfo tenha concordado em acatar as tsttitas regras aplicdveis @ outras propriedades; ¢, surgindo alguma diivida ou oferecendo-se alguma oportunidade, sempre se colocava ao lado do escravo. No caso especifico ora em referéncia, introduziu a Igreja um principio novo, segundo 0 qual as pessoas livres que tivessem sido vendidas ou penhoradas por necessidade podiam retor- nar ao estado anterior mediante o pagamento do prego pelo qual haviam sido adquiridas. Esse novo direito, que se acha expressamente consignado num concilio celebrado na Franca por volta do ano 616 (segundo parece 32 na localidade de Boneuil), descortinava novos horizontes para 0 eseravo pois — além de manter aces a chama da esperanca em seu coragdo, animando-o a excogitar © executar fSrmulas para a obtencao lo resgate — fazia com que sua libertagdo dependesse de qualquer hyessoa que, compadecida da sorte de um desgracado, se dispusesse " pagar ou etmptestar a quantia necesséria, Recorde-se, a propésito, © que se registrou anteriormente sobre 0 ardente zelo despertado entre os cristdos por obras dessa natureza, assim como sobre 0s ulispositives eandnieos que consideravam bem empregados os bens da Igreja que fossem aplicados com essa finalidade, ¢ se poderé avaliar 1 enorme influéncia que aquele dispositive exerceu na pritica. Ha le reconhecer-se que isso equivalia a estancar um dos mais abun- cies manancinis de eervidSo e » abrir para Hoerdnds um largo wcanuinhe. 53 QUARTA PARTE Sistema seguido pela Igreja a respeito dos es- cercvos dos judcus. Motives que impulsionavam a Igreja & manumissio de seus escravos. Sua indulgéneia neste ponto. Sua generosidade para com seus libertes. Os eseravos da Igreja eram consideredos como consagrados a Deus. Sau- daveis efeitos desta consideracdo. Concessio da Lberdade a escravos que queriam sbracar a vida monéstics. Efeifes deste pritica. Conduta da Igreja na ordenacio de escravos. Repressao de chusos que neste matéria se introduziram, Con duta da Igreja de Espanha a esse resp Nao deixou também de contribuir para a aboli¢fo da escravatura a conduta da Igreja em relacio aos judeus. Esse povo singular, que Jeva em sua fronte a marca de um proserito, que se acha disperso por todas as nagées sem se confundir com elas, tal como sobrenadam num Iiquido os pedagos de um material insoldvel, procura mitigar seu infortiinio acumulando tescuros ¢ parece que se vinga do desde- nhcso isolamento a que o relegam outros povos stigando-Ihes o sangue com incontrolivel usura. Em tempos de grandes transtornos ¢ cala- miidades que necessariamente deveriam acarretar miséria, podia im- perar scm travas 0 detestivel vieio de uma cobica desapiedada, E recentes como eram a dureza ¢ a ctueldade das antigas leis e dos velhos costumes acerca da sorte dos devedores, av mesmo tempo que no faltavam exemplos de quem estivesse pronto a dispor da liber- dade de outrem ou da sua propria para escapar de um apuro, era urgente evitar o perigo que um excessivo ineremento do poderio eco- némico dos judcus poderia acarretar para a liberdade dos cristios. Que nao era imaginério o perigo demonstra a ma fama de que desde époces imemoriais os judeus gozam nessa matéria € com- provam-no fatos que ainda em nossos dias se esto presenciando. O célebre Herder, em seu Andrastéia, no hesita em prognosticar que os filhos de Israel, com 0 correr do tempo © por forga de uma conduta sistemética © calculada, chegarao a reduzir os cristios & condigio de seus escravos. Se, pois, em circunstincias infinitamente menos favorveis aos judeus, personalidades destacadas chegam a abrigar tais temotes, que ndo seria de recear da cobica inexorsvel de membros desse povo nos desgracados periodos a que estamos nos referindo? Por estas consideragdes, um observador imparcial; um obser vador que nio esteja dominado pelo miseravel prurido de advogar a causa de qualquer seita, desde que isto enseje oportunidade de inculpar a Igreja Catélica, mesmo em detrimento dos intetesses da humanidade; um obsetvador que ndo pertenca a classe daqueles que no se alatmatiam tanto com uma irrupcio de bérbaros quanto com um dispositivo legal em que a potestade eclesiéstica parega alargar de alguma forma suas atribuig6es; um observador que nao seja. tio ancor0so, to mesquinho, to desprezivel — vera, nio com escandalo, mas sim com satisfacdo que a Igreja seguia com prudente vigilineia ‘5 passos dos judeus, aproveitando toda ocasido que se oferecia para favorecer os ctistdos seus escravos, até atingirse 0 ponto de proibir aqueles de t€-los © III Coneflio de Orleans, celebrado no ano de 538, em seu einone 15, protbe que os judeus obriguem seus escravos cristios a fazer coisas contrarias & religiao de Jesus Cristo, Esta disposigao, que assegurava ao escravo a liberdade: no santudrio de sua consciéneia, tornava-o respeitvel aos olhos de seu préprio dono ¢ constituia uma proclamacao solene da dignidade do homem, pois deixava evidenciado que a escravatura nao podia estender scus dominios a sagrada regiéo do espfrito. Isto, 0 entanto, no bastava e era necessério Facilitar aos escravos dos judeus a recuperagao da liberdade. Por isso, passa- dos apenas trés anos, celebrou-se 0 IV Concilio de Orleans © & noté- vel 0 quanto este se adiantou com respeito ao anterior, pois em seu eanone 50 permitiu que se resgatassem os escravos cristios que se refugiassem na igreja, desde que fosse pago aos donos judeus o prego correspondente, Bem & de ver que uma disposigdo semelhante teria de produzir abundantes resultados em favor da liberdade, jé que dava 70 a que escravos cristdos fugissem para o interior das igrejas ¢ dali, fazendo apelo a caridade de seus irméos, mais facilmente conseguissem que se Ihes socorresse com a quantia do resgate ‘© mesmo conei Yerta um escravo cris em seul canone 31, dispde que o judeu que per- Jo seja condenado a perder todos os seus 36 eseravos. Nova sango & seguranga da consciéncia do escravo, novo caminho que se abria para dar passagem & liberdade! Ta, assim, a Igreja avancando com aquela unidade de designio. com aquela constancia admiravel que Ihe reconheceram seus préprios inimigos. E, no breve espago de tempo que medeia entre a época indi- cada e 0 iiltimo tergo do mesmo século, s8o considerdveis os progres sos, traduzidos por disposigdes candnicas mais tachativas e, se se pode dizer essim, mais ousadas. No Coneilio de Macon, celebrado no ano de 581 ow 582, chega-se em seu cfnone 16 a proibir expressamente que os judeus tenham escravos eristdos, permitindo que os jé existen- (3 sejam resgatados mediante 0 pagamento de doze soldos. A mesma proibicaio se repete no cinone 14 do Concilio de Toledo celebrado em 589, de modo a deixar bem clara a vontade da Igreja: nao queria absclutamente que um cristo fosse eseravo de um judeu. Constante em seu propdsito, a Igreja atalhava o mal por todos os meios possiveis, inclusive limitando a faculdade de vender os escra- vos se houvesse o perigo de que caissem em macs de judeus. Assim & que © canone 9 do Concilio de Chalons, celebrado no ano de 650, profbe a yenda de escravos cristaos fora do reino de Clodoveu, a fim de que nao venham a ser adquitidos por judeus. Nem todos com- preendiam o espirito da Igreja neste ponto, nem observavam de mente suas determinaces. Mas cla nao se cansava de repel incules-las. Em meados do século VII se constata que nio faltavam Icigos e mesmo eclesidsticos que tinham vendido escravos ctistéos a judeus: prontamente acorre para reprimir esse abuso 0 X Coneilio de Toledo, realizado no ano 656 © em cujo canone 7 se profbe aquela prética, explicando belamente que “no se pode ignorar que esses eseravos também foram redimidos com 0 sangue de Cristo, motivo pelo qual antes se deve compré-los do que vendé-los” Essa inefavel referéncia a um Deus feito homem que verte seu sangue pela redengao de todos os homens era © mais poderoso argu mento que induzia a Igreja a interessar-se com tanto zelo pela manu- missio dos escravos. E, com efeito, néo poderia haver nada mais propicio a engendrar aversdo a desigualdade (a0 afrontosa do que pensar como aqueles mesmos homens, rebaixados até 0 nivel dos rutos, tinham sido objeto do olhar bondoso do Altissimo, tanto como seus donos, tanto como os monarcas mais poderosos da terra. “Ia que nosso Redentor ¢ Criador de todas as coisas — dizia o papa Sao Greg6rio — se dignou tomar carne humana para que, rompido pela graga de sua divindade 0 vinculo de servidio que nos las e mantinha em cativeiro, nos restitufsse a liberdade original, € obra salutar restituir pela manamisséio sua nativa Jiberdade aos homens, pois no principio todos foram criados livres pela natureza e sé foram eles submetidos a0 jugo da escravidio pelo direito das gentes” (L. 5.", carta 12), A Igreja sempre julgou necessério limitar ao maximo a possi- bilidade de alienacao de seus bens, © pode-se mesmo assegurar que em geral foi sun regra de conduta nesta matéria confiar pouco na discricdo de qualquer de seus ministros tomados en particular. Agindo dessa maneira, propunha-se evitar as dilapidagdes que, de outro modo teriam sido freqiientes, face as circunstéi esses bens se encon- trarem espalhados por toda parte © de estarem a cargo de presbi- teros oriundos de diversas classes sociais © expostos & multiplicidads de influéneias derivadas das relagdes de parentesco © amizade, bem como as imprevisiveis comptilsdes de sua propria indole, de seu grau de conhecimentos, de sua maior ou menor prudéncia e de fatores li- gados & época, lugar, clima etc. Por isso a Igreja sempre se mostrou receosa em se tratando de conceder a faculdade de alienar e. dava 0 caso, sabia exercer saudavel rigor sobre os ministros qui enciassem suas obrigacdes quanto & preservagao do patriménio @ eles confiado. Nao obstante, conforme jd se mostrou, esas restrigdes ‘nao subsistiam quando se tinka em vista a redengao de cativos, Ao mesmo tempo, quanto & propriedade constituida por escravos, a Igreja encarava a coisa com outros olhos e trocava aquele rigor por indulgén Assim & que bastava que os escravos tivessem servido bem & Igreja para que os bispos pudessem conceder-thes a liberdade, doando- Ihes também alguma quantia em dinheiro e/ou bens que os ajudasse em sua manutengao. Esse sobre 0 mérito dos escravos estava confiado, segundo parece, ao critério do respective bispo. E pode- desde logo antever como tal disposicao abria uma larga porta & cari dade dos prelados, assim como paralelamente estimulava os escravos a terem um comportamento que os fizesse merecedores de tio preciosa dadiva, Como podia ocorrer que 0 bispo sucessor levantasse chividas sobre a sufi dos motivos que haviam, induzido seu antecessor a dar liberdade a um escravo e pretendesse reabrir a questio, foi determinado que todo prelado acatasse integralmente nesta matéria as disposicdes de seu predecessor, nfo $6 se abstendo de questionar a liberdade dos manumitidos, como também respeitando tudo 0 que Ihes tivesse sido concedido, seja em terras, vinhedos:ou moradia. 1880 58. 6 0 que prescreve 0 cAnone 7 do Concilio de Agde, do ano de 506. Ressalte-se que as alienacdes ou empenhos de bens cclesiésticos feitos por um bispo que nada deixasse a0 morrer deveriam ser revo- gados. Como desde logo se depreende. tal dispositivo se aplicava Aqueles casos em que ocorrera infracdo aos cénones relativos & pre- servagio do patriménio da Igreja. Nao obstante, se entre aquelas de- feccbes patrimoniais se incluisse a manumissio de escravos, abran- dava-se 0 rigor candnico, determinando-se que os manumitidos conti- nuassem em liberdade, Assim ordenou 0 Concilio de Orleans cele brado no ano 541, em seu cénone 9, com a ressalva apenas de que estes prestassem servicos & Igreja — servigos que, & claro, seriam compativeis com a condigao de homens livres e que, ademais, impli- cavam na recompensa da protecio que a Igreja dispensava a todos os dessa classe. Como cutro indicio da indulgéncia com relagdo aos escravos, pode-se citar o cénone 19 do Concilio de Celchite (Inglaterra), cele- brado em 816, 0 qual implicava em nada menos do que no prazo de poucos anos dar liberdade a todos os servos ingleses das igrejas alcangadas por essa disposicao. De fato, estabelecia-se que, quando da morte de um bispo, se desse liberdade a todos os seus servos ingleses, ‘além do que cada um dos demais bispos ¢ abades deveria manumitir ttés servos, doando a cada um deles trés soldos, Semethantes dispo- sigdes iam aplanando 0 caniinho para que se avancasse mais ¢ mais, de modo que, preparados os animos € as coisas, no devido tempo se pudessem presenciar acontecimentos tio generosos como os que mar- caram 0 Concilio de Armach, em 1171, quando se deu liberdade a todos os ingleses que eram esctavos na Irland Essas condig6es vantajosas de que desfrutavam os escravos da Igreja eram de muito maior valor por causa de uma norma adotada € que as colocava a salvo do perigo de virem a ser perdidas. Com efeito, se os escravos da Igreja pudessem passar para as méos de outros donos, ocorrido isto ficariam eles sem direito aos beneficios que cabiam aos que continuassem sob seu podet. Mas felizmente esta- va proibida a permuta desses escravos por outros € os que safssem da jurisdigio da Igreja s6 poderiam ter por destino a liberdade. Deste sistema temos expresso testemunho nas Decretais de Gregorio IX (1 32, titulo XIX, c. 5 e 4). E € notavel que nesses documentos se considerem os escravos da Igreja consagrados a Deus, fundando-se histo a disposigo de que nao poderiam passer para outras mios ¢ de que s6 poderiam sair da jurisdigao eclestéstica para se tornarem 59 livres, Vé-se também nesses documentos que os figis, em recomen- ago de suas almas, costumavam oferecer escravos a Deus e a0s santos, e a0 passarem desse modo ao poder da Igreja ficavam fora do comércio comum, livres da hipétese de retornarem 0 pre fana, Nao é preciso repisar o salutar efeito que necessariamente pro- duziam essas idéias c costumes, em que a religiio se enlagava com a causa da humanidade: basta observar que o espirito da época era altamente religioso e que tudo que tivesse a chancela da religiio estava seguro de ganhar cada vez maior terreno, E acontece que a forga das idéias religiosas que se desenvolviam dia a dia, ditigindo sua acio a todos os setores da vida, se voltava de modo especial para a tarefa de subtrair © homem, por todos os meios possiveis, ao jugo da escravidio. A propésito, 6 muito digno de nota um dispositive canénico do tempo de Siio Gregério, o G Num concilio celebrado em Roma no ano de 597 ¢ presi Papa, abriu-se aos escravos uma nova porta para que safssem desse abjeto estado, ao ser determinado que ganhassem a liberdade todos quantos quisessem abracar a vida mondstica, Sio dignas de atencio as palavras do santo papa, pois nelas se descobre a ascendéncia dos motivos religiosos © a forma como estes. se sobrepdem a todas as consideraydes e interesses mundanos. Esse importante documento se encontra entre as Epistolas de Sio Gregorio e & transcrito mais adiante (no EPILOGO). Seria desconhecer 0 espitito daquelas épocas supor que seme- Ihantes dispesicbes permanccessem estéreis: néo foi assim e, muito 20 contrério, tiveram enormes resultados. Disso nos di uma idéia co que se 1é num decreto de Graciano (Dist. 54, c. 9-12), pelo qual se verifica que a coisa chegava &s raias do escdndalo, pois se tornou preciso teprimir severamente © abuso cometido por escravos que fugiam de seus amos e, pretextando razdes religiosas, iam para os mosteiros. Como quer que seja, © mesmo prescindindo do que possa nio ter sido mais do que uma distorcio abusiva, nao é dificil conjee- turar quio abundantes deve ter sido os frutos colhidos, quer pela liberdade que por esse meio alcancaram muitos escraves, quer pelo efeito que produziu aos olhos do mundo o fato de estes passarem para uum estado que logo foi se expandindo e adquirindo imenso p @ poderosa influéncia, Contribuiré também de forma significativa para que se tenha uma idgia da profunda transformago que por esses meios se ia promovendo na organizacao social considerar 0 que acontecia com igio 60. relagdo a ordenagio de escravos. A disciplina da Igreja sobre este ponto era um cosrente reflexo de suas doutrinas. O escravo era um hhomem como os demais e, portanto, podia ser ordenado tal como qualquer magnata. Mas enquanto estivesse sujeito & potestade de seu dono carecia da independéncia necesséria & dignidade do augusto ministério. Por isso se exigia que 0 escravo s6 pudesse ser guindado ao sacerdécio depois de libertado. Nada mais razodvel, mais justo mais prudente do que essa limitagao num ordenamento que por todos os titwlos se mostrava nobre © generoso; ordenamento que por si s6 era um eloguente protesto em favor da dignidade do homem, tuma solene declaragdo de que, por ter a desgraca de estar sofrendo a escravidio, ninguém ficava rebaixado do nivel dos demais, pois a Igreja nao tinha vergonha de escolher seus ministros entre os que haviam estado sujeitos & servidio; ordenamento altamente humano € benevolente pois que, colocando em esfera tio respeitavel quem tinha sido eseravo, tendia a dissipar os preconceltos contra os que ainda se encontravam nesse estado e engendrava fortes e fecundas relacées entre estes © os membros das mais proeminentes classes de homens, livres. A. propésito, merece atengao 0 abuso que se chegava a cometer © que consistia em ordenar escravos sem 0 consentimento de seus doncs. Por contratiar frontalmente os sagrados cAnones, essa prética foi reprimida com saudivel zelo pela Igreja. No entanto, também esse tipo de desvio é muito ilustrativo para dar a conhecer devidamente © profundo efeito que estavam produzindo as idéias e instituigde: religiosas. Pois, sem que se pretenda relevar 0 que nisso pudesse haver de culpavel, deve-se reconhecer que os abusos muitas vezes nndo so sendo exageros de um bom principio. O que, em iiltima ané- lise, se verificava ¢ que as idgias religiosas repeliam a escravatura, mas esta era sustentada pelas leis, ¢ dai a luta incessante que se apre- sentava sob diferentes formas. porém sempre voltada para o mesmo fim: a emancipagao universal. E muito curiosa a leitura dos documentos que nos chegaram a respeito do tipo de abuso a que se acaba de fazer referéncia, notada- mente 0 j@ citado decreto de Graciano (cujas principais partes sio transeritas, adiante, no EPILOGO). Examinando-os com atencio, ve- rifica-se que: 19) O néimero de escravos que por esse meio (a ordenacio sacerdotal) aleangavam a liberdade era muito grande, pois as queixas © 08 clamores que contra isso se levantavam cram gerais. a 22) Os bispos comumente estavam a favor dos escravos ¢ levae vam essa sua postura as diltimas conseqiléncias, tanto assim que se afirma que quase nenhum prelado podia ser isentado de ter caido em excessiva condescendéncia nessa matéri 3.) Os escravos, conhevendo esse espitito de protegdo, se apres- savam em desfazer-se de seus grilhdes e langar-se nos bragos da Igreja. Esse conjunto de circunstincias teria de produzir nas conscién- cias uma disposigao muito favordvel liberdade. E, entabulada uma tao afetuosa integrago entre os escravos ¢ a Igreja, entio ja bastante poderosa ¢ influente, necessariamente teria de resultar que a escravar tura se fosse debilitando cada vex mais, até chegarem 05 povos & liberdade que séculos adiante estaria plenamente implantada, A Igreja de Espanha, 2 cujo influxo civilizador tributaram tantos clogios homens nada inclinados ao catolicismo, manifestou também nesta matéria sua elevagdo de vistas ¢ sua consumada prudénci Sendo to grande, como se vit, 0 zelo caritativo em favor dos esera- vos e tendo-se tornado tio decidida a tendéncia & sua promogio a0 sacerdécio, era conveniente refrear um pouco esse impulso gencrvso, conciliando-o, na medida do possivel, com 0 que era exigido pele santidade do ministério. A esse duplo objetivo se encaminhavam sem diivida as disposigées adotadas nesse pais no sentido de permitir a ordenagio de escravos da Igreja, efetuando-se previamente sua manu- missio. E 0 que se verifica pelo cdnone 74 do IV Concilio de Toledo, celebrado no ano de 633, ¢ também pelo canone 11 do 1X Coneflio de Toledo, realizado em 655, onde se estabelece que os bispos néo podem introduzir os servos da Igreja no clero sem antes dar-thes a liberdade, Como se nao bastasse, essa disposigao foi ampliada pelo cinone 18 do Coneflio de Mérida, do ano de 666, pelo qual se concede sos pé- rocos a Faculdade de escolher entre seus servos 0s que pudessem tor arse saccrdotes ¢ exercer 0 ministério na propria pardquia, compro- metendo-se porém a manté-los de acordo com suas rendas. Com essa disciplina, sem cometer nenhuma injustiga, evitavam-se os inconve- nientes que podia trazer consigo a ordenagao de esctavos e, ademais, se conseguiam benéficos resultados por uma via mai ordenando-se servos jé radicados na pardquia, era mais facil escolhé: fos com tino, dando preferéncia aos que mais 0 merecessem por seus dotes morais e intelectuais, Com isso também se abria ampla porta para que a Igreja pudesse emancipar seus servos, fazendo-o por tum canal tio honroso como o era inserevé-los no ntimero de seus suave, porque, 62 ministros, E, finalmente, dava-se aos leigos um exemplo muito salutar, pois se a Igreja se desprendia to generosamente de seus escravos © era neste ponto tio indulgente que, nio se limitando aos bispos, tstendia essa faculdade até aos pérocos, aos seculares no deveria parecer descabido o sacrificio de abrirem mio, eles préprios, de set interesses materiais e concederem liberdade Aqueles seus servos que parecessem chamados a0 santo ministério, QUINTA PARTE Doutrinas de Santo Agostinho sobre a escravi- dio, Importincia dessas doutrinas para acar- retar a aboligdo. Impugna-se a opiniio de Guizot, Doutrinas de Santo Tomés sobre a mesma matéria. Matriménio de eseravos, Dis: posigdes de Direito Candnico sobre esse matri ménio. Doutrina de Santo Tomés a esse respei- to. Resumo dos meios empregados pela Igreja para abolicio da escravatura, De como esse resultado € devido exclusivamente a0 cato- licismo. \Vimos assim como a Igreja ia desfazendo por mil ¢ um meios as cadeias da escravatura, sem no entanto ultrapassar os limites assina- lados pela justica e pela prudéncia. Procurava com isso obter que desaparccesse do meio dos cristdos esse estado degradante e que de forma to gritante repugnava a suas grandiosas idéias sobre a digni- dade humana e a seus generosos sentimentos de fraternidade e amor. Porque onde quer que se introduza o cristianismo as correntes de ferro dao lugar a staves lagos © os homens abatidos podem levantar com nobreza sua fronte A propésito, ¢ sobremaneira agradavel ler o que pensava sobre este ponto um dos maiores génios do cristianismo: Santo Agostinho (De Civitete Dei, 1, 19, ec. XIV-XVI). Depois de em poucas palavras deixar assentada a obtigagao que tem todo aquele que manda (seja pai, marido ou chefe) de zelar por seus comandados, com 0 que a obediéncia encontra um de seus alicerces na prépria utilidade que proporciono @ quem obedece; depois de dizer que os justos nfo man- dam por vontade de poder ou soberba, mas sim pelo dever & desejo de fazer o bem a seus stiditos (“Neque enim dominandi cupiditate imperant, sed officio consulendi, nec principandi superbia, sed provi- dendi misericordia"); depois de ter banido com tio sublimes doutrinas toda opinigo que se encaminhasse para a tirania ou que fundasse a cobediéncia em motives aviltantes; € como que temends alguma réplica contra a dignidade do homem — incendeis-se de tepente sua grande alma, aborda entfo de frente a questi, eleva-a a sas alturas culm nantes ¢, deixando aflcrar livremente os nobres pensamentos que fervilhavam em sua mente, invaca em favor de suas teses a ordem da natureza ¢ a vontade do préprio Deus, exclamando: “Assim o pres: creve a ordem natural, assim criou Deus homem: disse-the que domi- naria os peixes do mar, as aves do céu e os répleis que se arrastam sobre a terra, Néo quis que a criatura racional, feita & sua seme- Ihanga, dominasse Sendo ¢ irracionais; jamais os outros homens; os brutos sim.” Essa passagem de Santo Agostink ¢ um daqueles briosos lam- pejos que se encontram nos eseritores de génio quando, atormentados pela visio de um objeto angustiante, soltam as rédeas da. generos dade de suas idéias ¢ sentimentos, expressando-se com ousada valentia. O letor, espantado com a forga da expressfo, passa com grande expec tativa para as Jinhas soguintes, temeroso de que o autor se tenha extraviado, seduzido pela nobreza de seu coragio ¢ arrastado pelo impulso de sua alta inspiragdo; mas logo experimenta um tranqiil- zante prazer ac descobrir que ele ndo se afastou do camino da si doutrina, e tio somente saiu, com a gathardia de um atleta, em defesa da causa da razio, da justica ¢ da humanidade. Assim se nos apre- senta agui Santo Agostinho: a contemplagao de tantos desgracados gemendo na escravidio, vitimas da violéncia ¢ do capricho de seus amos, atormentava sua alma generosa; analisando o homem & luz da razio e da doutrina cristé, no encontrava justificativa para qué wma vasta porcdo da Tinhagem humana tivesse de viver em tanto avilta- niento; €, por isso, enguanto proclama as teses héi pouco mencionadas, esforgarse por identificar a origem de tamanha ignominia — que, G0 se encontrando na natureza do homem, s6 pode decorrer do pecado, da maldicio, “Os primeiros justos, diz ele, foram constituidos: mais como pastors de gado do que como reis de homens, dando-nos Deus a entender com isso 0 que reclamava a ordem das eriaturas © 0 que cxigia a pena do pecado, pois a condigao de servidao foi de fata imposta ao pecadcr © por isso mio encontramos nas Eserituras a palayra ‘servo" até que o justo Nog a langou como um castigo sobre scu filho culpado, Donde se segue que esse nome veio da culpa, no da natureza, Esse modo de encarar a escravatura como filha do pecado, como | 66 Iruto da maldigo de Deus, era da maior importéncia pois que, deixando a salvo a dignidade da natureza do homem, cortava pela ruiz todas as veleidades de superioridade natural que orgulhosamente a si pretendessem attibuir os livres. Desse modo também se despojava a escravatura do valor que se lhe pudesse conferir quando vista como pensamento politico ou meio de governo, pois s6 se devia consideré-la como uma das tantas pragas arremessadas sobre a humanidade pela edlera do Altissimo. Em tal caso, 0s escravos tinham um motivo de resignacdo, mas a arbitrariedade dos amos encontrava um freio e @ compaixao dos livres recebia um estimulo, pois tendo nascido todos em culpa todos poderiam ter-se encontrado naquele estado, ¢ aqueles que se envaidecessem por no terem caido nele agiriam como quem. cm meio a uma epidemia, se vangloriasse de ter permanecido so ¢ se julgasse por isso com direito a insultar os infelizes enfermos. Numa palavra, a escravidio era uma praga e nada mais: era como a peste a guerra, a fome ou coisa semelhante; e por esse motivo era dever de todos os homens procurar de imediato aliviar a sorte dos que a sofriam ¢ tabalhar para aboli-la definitivamente. Semelhante doutrina ndo permanecia estéril, Proclamada & face do mundo, ressoava vigorosamente pelos quatro cantos do orbe caté fico e, além de ser posta em pritica (como se viu pelos intimeros mencionados), cra conservada como uma teoria preciose através do caos dos tempos. Passados oito sécullos, € reproduzida por outro dos luminares mais resplandecentes da Igreja Catdlica: Santo Tomas de Aquino (Summa Theclogize, Pars 1.3, Quaest. 96, Art. 4) Esse grande espirito também nao vé na escravidéo em problema de raga, nem imagindria inferioridade, nem meio de governo, e nio consegue explici-la sendo considerando-a uma praga carreada para humanidade pelo pecado do primeiro homem. pois. que grau de repugnancia suscitava entre os cristios ravatura ¢ como ¢ falso 0 comentatio de Guizot de que a sociedade se teria deixado perturbar nem irvitar com esse estado. Por certo no houve aquela perturbacdo ot irritago cegas que, arremeten- do contra todas as barreiras sem atentar para o que dita a justica € aconselha a prudéncia, procuram atabalhoadamente varrer da face da terra a marca da humilhagio ¢ da ignominia, No entanto, se se falar daquela perturbacio ¢ daquela irritacdo que resultam da contempla- gio do homem oprimido e ultrajado, mas que no excluem uma sania resignaco e longanimidade © que, sem esmorecer pelo zelo caritativo, nao querem pre exemplos j cist na aco inspirads ita inresponsavelmente os acon- 6 tecimentos, mas sim preparé-los maduramente para que no seu devido tempo se aleance resultado mais completo; se se falar desta santa perturbacdo © desta santa irritagio — poderé haver maior prova de sua presenca do que os fates citados e as doutrinas relatadas? Caberia protesto mais elogiiente contra a existéncia da escraviddo do que a doutrina dos insignes Doutores da Igreja hé poupo nomeados © que 1 classificam como fruto da maldi¢ao, como castigo da_prevaricagio da linhagem humana, ¢ que ndo a podem conceber senio colocando-a ng mesmo plano das grandes pragas que afligem a humanidade? ‘As profundas razées que interferiram para que a Igreja recomen- dase aos escravos obediéneia ja foram devidamente expostas e no pode haver ninguém imparcial que as atribua a um esquecimento dos direitos humanos. Mas nem por isso se pode supor que tenha faltado na scciedade crista a firmeza necesséria para dizer a verdade inteira sem subterfiigios, desde que isso fosse salutar. Uma expressiva prova que se pode invocar a respeito é 0 que aconteceu com relacao a0 matriménio dos escravos: sabe-se que ndo era considerada como tal unio entre um casal de escravos, nem podia tal uniao consumar-se sem prévio consentimento dos respectivos donos, sob pena de inteira nulidade. Havia nisso uma arbitrariedade que entrava abertamente em choque com a razio ¢ a justica. Que fez entio a Igreja? Repudiou sem rodeios tal violencia. Sendo vejamos o que proclamou o papa Adriano 1: “Segundo as palavras do Apéstolo, assim como em Jesus Cristo nfo se ha de excluir dos sacramentos da Igreja nem livres nem escravos, tampouco entre os escraves se deve por qualquer modo prcibir os matriménios: e se tiverem sido contraidos sem consenti- mento cu com desaprovacio dos amos, nem por isso deve de forma alguma ser dissolvidos” (De Conj. Serv., 1. 4. titulo IX, c. 1). Essa disposigdo, que assegurava a liberdade dos escravos em matéria tao importante, nao deve ser tida como limitada a determinadas circuns- tancias: era uma proclamacéo de alcance geral, pela qual a Tgreja fazia saber que nao consentia em que 0 homem fosse colocado ao nivel dos brutes, vendo-se forgado a obedecer so capricho ou ao interesse de cutro homem, sem atender aos sentiments do coragio. Assim entendia também Santo Tomas de Aquino, pois sustenta abertamente que. quanto a contrair matriménio, “nao devem os esctavos obediéncia a seus donos" (Sum, Theol., Pars 2* 2%, Quaest, 104, Art. 5). 68 No rapido esbogo aqui apresentado procurou-se cumprir o que de inicio foi ressaltado, ow seja: que de nada adiantatia uma proposicao, que ndo estivesse apoiada em documentos irrecusdveis, sob pena de © entusiasmo a favor do catolicismo levar a atribuir-lhe créditos que na verdade nao the pertencem. Velozmente, € verdade, atra © caos dos séculos e, em tempos ¢ lugares muito diversos, deparamos com provas convincentes de que foi 0 catolicismo que promoveu a abolicdo da escravatura, apesar das idéias, dos costumes, dos interesses € das leis que a isso antepunham barreiras aparentemente insuperd- veis. E 0 fez sem injusticas, sem violéncias, sem transtornos. Tudo se consumou com a mais recatada prudéncia ¢ com a mais admi- vel temperanga, Vimos a Igreja Catdlica desfechar contra a escra- vVatura um ataque t80 vasto, to variado, to eficaz que, para romper essa ominosa cadeia, néofoi necessério nenhum golpe violento, mas sim, exposta & acto de poderosos agentes, foi ela se afrouxando, s desfazendo, até cair em pedacos. Primeiro se ensinam em alta voz as verdadeiras doutrinas sobre a dignidade do homem, se estabelecem as obrigagdes de amos € escravos, se declara ambos iguais perante Deus, reduzindo assim a p6 as teorias degradantes que mancham os escri tos dos maiores fildsofos da antigiiidade; logo se inicia a aplicagio das doutrinas, procurando-se suavizar o tratamento dos escravos, mo- vendo-se luta contra 0 atroz direito de vida e morte, abrindo-se para asilo os templos, proibindo-se que & sua safda os refugiados sejam maltratados, e trabalhandose para substituir a yindita privada pela ago serena e justa dos tribunais; ao mesmo tempo, se garante a liberdade dos manumitidos enlacando-a com motivos religiosos, s defende com tenacidade e solicitude a dos ingénuos, ¢ se procura estancar as fontes da escravidio — ora despendendo vivissimo zelo na redengao dos cativos, ora reprimindo a cobica dos judeus, ora abrindo répidos caminhos pelos quais os vendidos pudessem recuperar 2 Tiberdade; por sua vez, a Igreja dio exemplo de suavidade e des- prendimento, facilitando a emancipacao pela admissio. de escravos nos mosteiros e na vida eclesidstica, e por outros meios que a caridade ia sugerindo; © assim, apesar das rafzes profundas que a escravidao ganhara na sociedade antiga, apesar dos transtornos trazidos pela irrup- ‘gio dos barbaros, e apesar de tantas guerras © calamidades de todos (0s géneros que frustravam boa parte dos efeitos de uma benéfica acto reguladora, viu-se a escravidao, essa lepra que infamava as civiliza goes pagis, ir diminuindo rapidamente nas nagdes cristas até desapa- recer por completo. amos 6a Nao se descobre af, por certo, um plano concebido ¢ estruturado pelos homens; mas exatamente porque sem esse plano se nota tanta unidade de tendéncias, tanta identidade de vistas, tanta semelhanga nos meios, é que se esté diante de uma prova evidente do espirito civilizador ¢ libertador entranhado no catolicismo; & os observadores imparciais néo se furtaréo a reconhecer, nesse amplo quadro que se acaba de apresentar, como concordam admiravelmente em coavergit para um mesmo objetivo os tempos do império, os da irrupedio dos arbaros e os do feudalismo — para o que, ao invés de terem sob cs olhos aquela mesquinha regularidade que caracteriza o que é obra exclusivamente do homem, bio de recolher fatos esparramados em aparente desordem desde os bosques da Germania até as campinas da Bética, desde as bordas do Tamisa até as margens do Tibre. Todos esses fatos no foram inventados: indicadas esto as épo- cas, citados os concilios e mais adiante (no EPILOGO) encontrar o leitor 0s textos originais e por extenso dos documentos invocados € resumidos no corpo da exposicio, Chegando-se a este ponto, pode-se perguntar a Guizot quais fo- ram as “outras causas”, as “outfas idéias”, os “outros prinefpios de civilizago” cujo completo desenvolvimento, segundo ele, foi neces- sétio para que “afinal triunfasse a razfo sobre a mais vergonhosa das iniquidades”. Essas causas, essas idéias, esses principios de civilizacaio que, conforme nos diz, ajudaram a Igteja na abolicao da escravatura mister se fazia explicé-los, indicé-los pelo menos, para que o leitor pudesse evitar 0 trabalho de tentar descobri-los como quem adivinha, Se nio brotaram do seio da Igreja, onde estavam? Estavam nos res- tos da civilizagio antiga? Mas os restos de uma civilizagio destrogada € quase aniquilada poderiam fazer o que nio fez, nem pensou jamais em fazer, essa mesma civilizagdo quando se achava em todo o seu vigor, pujanca e loucania? Estavam por acaso no individuatismo dos bérbaros, quando esse individualismo, na verdade, era companheiro insepardvel da violencia e, por conseguinte, devia ser uma fonte de optessio ¢ escravidio? Ou estavam no padroado militar, introduzido, segundo o proprio Guizot, pelos mesos bérbatos e que langou os alicerces dessa organizacio aristocrética que mais tarde se converte no feudalismo? Mas 0 que tem esse padroado que ver com a aboligio da escravatura, quando representava 0 elemento mais propfcio para perpetué-la nos indigenas dos paises conquistados ¢ estendé-la a uma porgio consideravel dos proprics conquistadores? Onde est, pois, ‘uma idéia, um costume, uma instituico que, sem ser filha do cristiae 70 rismo, tenha contribuido para a aboliclo da escravatura? Assinale-se a ppoca de seu nascimento, indique-se 0 tempo de seu desenvolvimento, demonstre-se que no teve sua crigem no cristianismo, e entéo reco- nheceremos que este nfo pode pretender com exclusividade 0 honroso titulo de ter abolido estado tio degradante, sem que por isso deixemos de aplaudir ¢ exaltar tal idéia, costume ou instituigao que tenha tomado parte na bela e grandiosa empresa de libertar a hurmanidade: E agora também se pode perguntar as igrejas protestantes, a essas filhas ingratas que, depois de separar-se do seio de sua mae, se empe- ‘ham em calunid-la e denegrila: onde estiveis quando a Igreja Ca- télica ia exccutando a enorme obra da abolicio da escravatura? Como podeis assacarThe que cla simpatiza com a servido © que trata de envilecer 0 homem e usurpar seus direitos? Podeis apresentar um. titulo que em grau semelhante vos faca merecedoras da gratitude da finhagem humana? Que parte podeis pretender naquela grande obra que constitui o primeiro alicerce que deveria lancar-se para o desen- volvimento ¢ grandeza da civilizacio européia? Sozinho, sem vossa ajuda, leveu-a a cabo 0 catolicismo, E sozinho teria conduzido @ Eurepa a seus altos destinos se vés nao tivésseis vindo torcer a majestosa marcha dessas grandes nacdes, projetando-as desarvorada- mente por um caminho semeado de precipicios — caminho cujo término esti envolto em densas sombras, em meio das quais 36 Deus sabe 0 que as aguarda, m EPILOGO Cfnones ¢ outros documentos que manifestam a solicitude da Igreja em aliviar a sorte dos escravos, bem como revelam os diferentes meios de que ela se valeu para levar a cabo a aboligio da esctavatura na Europa. Posicio atual da Igreja em face do trifico de negros. Parece itil transcrever aqui, na integra, os cAnones ¢ trechos de documentos que foram referidos ¢ resumidos no corpo da expo- siglo anterior. Assim poderdo os leitores inteirar-se por si mesmos de seu contetido © no subsistirdo quaisquer suspeitas de que, 20 apresentar os respectivos teores, se Ihes tenha atribuido um sentido que nao seja 0 auténtico, CONCILIUM ELIBERITANUM, ANNO 305 Impoe-se peniténcia a senhora que maltrata sua escrava: “Si qua domina furcre zeli accensa flagris verberaverit ancillam suam, ita ut in tertium diem animam. cum cruciatu effundat; eo quod incertum sit, voluntate an casu occiderit; si voluntate, post septem ‘anos, si cast, post quinguennii tempora, acta legitima poenitentia, ad communionem placuit admitti. Quod si infra tempora constituta Juerit infirmata, accipiat communionem.” (Cap. V) Note-se que a palavra ancillam corresponde a uma escrava pro- priamente dita ¢ nio a uma servigal qualquer, como se depreende daquelas outras palavras (flagris verberaverit) que indicam castigo proprio de eseravos, CONCILIUM EPAONENSE, ANNO $17 Excomunga-se o senhor que, por autoridade propy eseravo: 13 quis servum proprium sine conscientia iudicis occiderit, ex communicatione biennii effusionem sanguinis expiabit.” (Cin. 34) Essa mesma disposicdo ¢ repetida no cinone 15 do XVII Con- cilio de Toledo, celebrado no ano 694, € no qual praticamente se copia 0 canone acima do Concilio de Epaona, com ligeira variagao, ‘Ainda do Coneilio de Epaona — 0 escravo réu de um delito atroz livra-se de suplicios corporais refugiando-se na igreja: “Servus reatu atrociore culpabilis, si ad ecclesiam confugerit, a corpcralibus tantum suppliciis excusetur. De capillis vero, vel quo- cumgue opere, placuit a dominis iuramenta non exigi.” (Cin. 39) CONCILIUM AURELIANENSE QUINTUM, ANNO 549 Precaugdes muito notiveis para que os amos no maltratassem fs eseravos que se tinham refugiado em igrejas: “De servis vero, qui pro qualibet culpa ad ecclesiae septa con- fugerint, id statuimus cbservandum, ut, sicut in antiquis. constitutio- nibus tenetur scriptum, pro concessa culpa datis a domino sacramentis, quisquis ille fuerit, expediatur de venia iam securus. Enim vero st immemor fidei dominus transcendisse convincitur quod iuravit, ut is qui veniam acceperat, probetur postmodum pro ea culpa qualicumque supplicio cruciatus, dominus ille qui immemor fuit datae fidei, sit ab ‘omnium communione suspensus. Iterum si servus de promissione veniae datis sacramentis a domino iam securus exire noluerit, ne sub ali contumacia requirens locum fugae, domino fortasse dispereat, egredi nolentem a domino eum liceat occupari, ut nullam, quasi pro retentatione servi, quibuslibet modis molestiam aut calumniam patiatur ecclesia: fidem tamen dominus, quam pro concessa venia dedit, nulla temeritate transcendet, Quod si aut gentilis dominus juerit, aut alterius sectae, quia conventu ecclesiae probatur extraneus, is qui servum repetit, personas requirat bonae fidei christianas, ut ipsi in persona domini serve praebeant sacramenta: quia ipsi possunt servare quod sacrum est, qui pro transgressione ecclesiasticam metuunt disciplinam.” (Cain, 22) E dificil levar além a solicitude para melhorar a sorte dos escra- vos do que se deduz do signiticativo documento acima transcrito, CONCILIUM EMERITENSE, ANNO 666 Proibe-se aos bispos mutilar seus escravos e ordena-se que © castigo destes fique a cargo do juiz da cidade, nao se consentindo porém em que tenham os cabelos raspados torpemente: "4 “Si regalis pietas pro salute omnium suarum legum dignata est ponere decreta, cur religio sancta per sancti concilii ordinem non habeat instituta, quae omnino debent esse cavenda? Ideoque placuit hui sancto concilio, ut omnis potestas episcopalis modum suae ponat irae; nec pro quolibet excessu cuilibet ex familia ecclesiae ‘aliquod corporis membrorum sua ordinatione praesumat extirpare, aut auferre. Quod si talis emerserit culpa, advocato iudice civitatis, ad examen eius deducatur quod factum juisse asseritur. Et quia omnino iustum est, ut pontifex saevissimam non impendat vindictam; quidquid coram iudice verius patuerit, per disciplinae severitatem absque turpi decalvatione maneat emendatum.” (Cap. XV) CONCILIUM TOLETANUM UNDECIMUM, ANNO 675 Proibe-se aos sacerdotes a mutilagdo de seus escravos: “His a quibus Domini sacramenta tractanda sunt, iudictwm san- guinis agitare non licet: et ideo magnopere talium excessibus pro- hibendum est; ne indiseretae praesumptionis motibus agitati, aut ‘quod morte plectendum est, sententia propria iudicare praesumant, ut truncetiones quaslibet membrorum quibuslibet personis aut per se inferant, aut inferendas praecipiant. Quod si quisquam horum immemor praeceptorum, aut ecclesiae suae familiis, aut in quibus- libet personis tale quid fecerit, et concessi ordinis honore privatus, et loco suo, perpetuo damnationis teneatur religatus ergastulo: cui tamen communio exeunti ex hac vita non neganda est, propter Domini misericordiam, qui non vult peccatoris mortem, sed ut convertatur et vivat.” (Cap. VI) B de notar que, quando nos dltimos cénones citados se usa a palavra familia, se deve entender os escravos. Que esta é a verdadcira ‘acepeao da palavra, deduz-se claramente do cinone 74 do IV Concilio de Toledo, celebrado no ano 633, € no qual se Ie “De familiis ecclesiar constituere presbiteros et diaconos per parochias liceat... ea tamen ratione ut antea manumissi libertatem status sui percipiant.” ‘© mesmo se deduz do sentido em que emprega esta palavra 0 papa Séo Gregério em sua Epistola 44, livro 4°. CONCILIUM WORMATIENSE, ANNO 868 ‘Impde-se peniténcia ao amo que, por autoridade propria, mata seu escravo: “Si quis servum proprium sine conscientia iudicum qui tale quid 15 commisserit, quod morte sit dignum, occiderit, excommunicatione vel poenitentia biennii, reatum sanguinis emendabit.” (Can. 38) ‘Si qua femina furore zeli accensa, flagris verberaverit ancillam suam, ita ut intra tertium diem animam suam cum cruciatu effundat, 0 quod incertum sit voluntate, cn casu occiderit; si voluntate, septem annos, si casu, per quingue anncrum tempora legitimam peragat poenitentiam.” (Can. 39) CONCILIUM ARAUSICANUM PRIMUM, ANNO 441 Reprime-se a violencia dos que, para se vingar do asilo dispen- sado aos seus escravos, se apoderavam dos da Igreja: “Si quis autem mancipia clericorum pro suis mancipiis ad ec- clesiam fugientibus crediderit cccupanda, per ones ecclesias di- strictissima damnatione feriatur”, (Cén. 6) Também do mesmo concilio — pune-se os que atentem de qual- quer forma contra a liberdade dos manumitidos em templos ou que tenham sido recomendados & Tgreja por testamento: “In ecclesia manumissos, vel per testamentum ecclesiae com- merdatos, si quis in servitutem, vel obsequium, vel ad colonariam conditionem imprimere tentaverit, animadversione _ecclesiastica coérceatur.” (Can. 7) CONCILIUM AURELIANENSE QUINTUM, ANNO 549 ‘Assegura-se a liberdede dos manumitidos nas igrejas © prescre- ve-se que estas se encarreguem da defesa dos libertos: “Et quia plurimorum suggestione comperimus, eos qui in ec clesiis iuxta patrioticam consuetudinem a servitiis fuerunt absoluti, pro libito quorumcumque iterum ad servitium revocari, impium esse tractavimus, ut quod in ecclesia Dei consideratione a vinculo servitutis absolvitur, irritum habectur. [deo pietatis causa communi concilio placuit observandum, ut quaecumque mancipia ab ingenuis dominis servitute laxantur, in ea libertate maneant, quam tunc a dominis “ perceperunt. Huiusmodi quoque libertas si a quocumque pulsata fuerit, cum iustitia ab ecclesiis defendatur, praeter eas culpas, pro quibus leges collatas servis revocare iusserunt libertates.” (Can. 7) CONCILIUM MATISCONENSE SECUNDUM, ANNO S85 Prescreve-se que a Tgreja defenda os libertos, quer tenham sido manumitides no templo, quer o tenham sido por carta ou testamento, quer tenham pasado longo tempo desfrutando da liberdade. Conde- 76 na-se também a arbitrariedade dos juizes que perseguiam esses des- gragados e se dispde que os bispos tomem conhecimento dessas causas: ‘Quae dum postea universo coetui secundium consuetudinem recitata innotescerent, Praetextatus et Pappulus viri beatissimi dixe- runt; Decernat itaque, et de miseris libertis vestrae auctoritatis vigor insignis, qui ideo plus a iudicibus affliguntur, quia sacris sunt com- mendati ecclesiis: ut si quas quispiam dixerit contra eos actiones habere, non audeat eos magistratus contradere; sed in episcopi tantum iudicio, in cuius praesentia litem contestans, quae sunt iustitiae ac veritatis audiat, Indignum est enim, ut hi qui in sacrosancta ecclesia iure noscuntur legitimo manumissi, aut per epistolam, aut per testamentum, ‘aut per longinquitatem temporis libertatis iure fruuntur, a quolibet iniustissime inquietentur. Universa sacerdotalis Congregatio dixit: Tustum est, ut contra calumniatorum omnium versutias defendantur, qui patrocinium immortalis ecclesiae concupiscunt. Et quicumque a nobis de libertis latum decretum, superbiae ausu praevaricare tenta- verit, irreparabili damnationis suae sententia jeriatur. Sed si placuerit episcopo ordinarium iudicem, cut quemlibet alium saecularem, in audientiam corum cccersiri, cum libuerit fiat, et nullus alius audeat causas pertractare libertorum nisi episcopus cuius interest, aut is cul idem audiendum tradiderit.” (Cén. 7) CONCILIUM PARISIENSE QUINTUM, ANNO 614 Encarrega-se os sacerdotes da defesa dos manumitidos: “Liberti quorumcumque ingenucrum a sacerdotibus defensentur, nec ad pullicum ulterius revocentur. Quod si quis ausu temerario cos imprimere voluerit, aut ad publicum revocare, et admonitus per pontificem ad audientiam venire neglexerit, aut emendare quod per- petravit distulerit, communione privetur.” (Cap. V) CONCILIUM TOLETANUM TERTIUM, ANNO 589 Prescreve-se que 0s manumitidos recomendados a Igreja. sejam protegidos pelos bispos: “De libertis autem id Dei praecipiunt sacerdotes, ut si qui ab spiscopis facti sunt secundum modwm quo canones antiqui dant licentiam, sint liberi; et tantum a patrocinio ecclesiae tam ipsi quam sah els progeniti non recedant. Ab aliis quoque libertati traditi, et eelesits commendati, patrocinio episcopali tegantur, a principe hoc spiscopus postulet.” (Cap. VI) ” CONCILIUM TOLETANUM QUARTUM, ANNO 633 Manda-se que a Igreja se encarregue de defender a liberdade ¢ 0 pectlio dos manumitidos a ela recomendados “Liberti quia quibuscumque manumissi sunt, aique ecclesiae patrocinio commendati existunt, sicut regulae antiquorum patrum constituerunt, sacerdotali defensicne a cuiuslibet insclentia protegantur; sive in statu libertatis eorum, seu in peculio quod habere noscuntu (Cap. LXXU) CONCILIUM AGATHENSE, ANNO 506 Dispde-se que a Igreja defenda os manumitidos, © se fala de modo geral, indepedentemente de que tenhum sido recomendados a cla ou nao: “Libertos legitime a dominis suis factos ecclesia, si necessitas exigerit, tweatur, quos si quis ante audientiam, aut pervadere, aut expoliare praesumpserit, ab ecclesia repellatur.” (Cain, 29) S. AMBROSIUS, “DE OFFICHS' Notiveis palavras de Santo Ambrésio sobre a redengio dos cativos. Para atender a tio piedoso objetivo, 0 santo bispo seculariza @ vende vasos sagrados: (L. 2, c. XV, § 70h "8 cripere ex hostium manibus, subtrahere neci homines, et maxime fceminas turpidini, reddere parentibus liberos, parentes liberis, cives patriae restitwere, Not sunt haec nimis Iliriae vastitere et Thraciae: ‘umma etiam liberalitas captos redimere, ‘quanti ubique venales erant captivi orbe.. (Ibid., § 71): “Praecipua est igitur liberalitas, redimere captivos ef maxime eb hoste barbaro, qui nihil dejerat humanitatis ad mi- sericordiam, nisi quod avaritia reservaverit ad redemptionem.”. (lbid., 1. 2, ¢. H, § 13): “Ut nos aliquando in invidiam incidi- rus, quod conftegerimus vasa mistca, ut captives redimeremus, quod arrianis displicere powerat, nec tam factum displiceret, quam ut esset quod in nobis reprehenderetur: Esses nobres e caritativos sentimentos nao eram 6 de Santo Ambrosio: suas palavras sio a expresso dos sentimentos de toda a Igseja Entre as inimeras provas qué se poderiam arrolar a respeito (ademais dos cinones que serio reproduzidos adiante), 6 digna de registro a sentida carta de So Cipriano da qual sao transcritos abaixo alguns trechos © nos quais estdo compendiados os motivos que im- as pulsionavam a Igreja em tdo piedosa tarcfa, bem como vivamente pintados 0 zelo ¢ a caridade com que cla a exerci “Cyprianus Januari, Maximo, Proculo, Victori, Modiano, Nemesiano, Nampulo, et Honorato fratribus salutem, Cum maximo animi nostri gemitu 4 mon sine lacrimis legimus litteras vestras, fraires carissimi, quas ad nos pro dilectionis vestrae sollicitudine de fratrum nostrorum et sororum captivitate fecistis. Quis enim non doleat in eiusmodi casibus, ‘aut quis non dolorem fratris sui suum proprium computet, cum loquator apostolus Paulus et dicat: Si patitur unum membrum, compatiuntur et cetera membra; si laetatur membrum unum, collaetantur et cetera membra (I Cor., 12). Et alio loco: Quis infirmatur inquit et non ego infirmor (11 Cor., 11). Quare mune et nobis captivitas fratrum nostra captivitas computanda est, et periclitantium dolor pro nostro dolore numerandus est, cum sit scilicet adunationis nostrae corpus unum, et non tantum dilectio sed et religio instigare nos debeat et confortare ad fratrum membra redimenda. Nam cum denuo apostolus Paulus dicat: Nescitis quia templum Dei estis, et Spiritus Dei habitat in vobis? (1 Cor., 3), etiamsi charitas nos minus adigeret ad opem fratribus Jerendam, considerandum tamen hoc in loco fuit, Dei temiplum esse quae capia sunt, nec pati nos longa cessatione et neglecto dolore debere, ut diu Dei templa captiva sint; sed quibus possumus viribus elaborare et velociter gerere ut Christum iudicem et Dominum et Deum nostrum promercamur obsequiis nostris. Nam cum dicat Paulus apostolus, Quotquot in Christo baptizati estis, Christum induistis, (Gal., 3), in captivis fratribus nostris contemplandus est Christus et redimendus de periculo captivitatis, qui nos de diaboli faucibus exuit, nunc ipse qui manet et habitat in nobis de barbarorum manibus exwatur, et redimatur nummaria quantitate qui nos cruce redemit et sanguine Quantus vero communis omnibus nobis macror atque cruciatus est de periculo virginum quae illic tenentur; pro quibus non tantum libertati, sed et pudoris iactura plangenda est, nec tam vincula barbarorum quam lenonum et lupanarium stupra deflenda sunt, ne ‘membra Christo dicata et in aeternum continentive honorem pudica virtute devota, insultantium libidine et contagione faedentur? Quae omnia istic secundum litteras vestras fraternitas nostra cogitans et dolenter examinans, prompte omnes et libenter ac largiter subsidia rummaria fratribus. contulerunt, Missimus autem sestertia centum millia nummorum, quae istic in ecclesia cui de Domini indulgentia praesumus, cleri et plebis apud nos consistentis collatione, collecta sunt, quae vos illic pro vestra diligentia dispensabitis. ‘Si tamen ad explorandam nostri animi cheritatem, et examinandi nostri pectoris fidem tale aliquid acciderit, nolite cunctari nuntiare hhace nobis litteris vestris, pro certo habentes ecclesiam nostram et fraternitatem istic universam, ne haec ultra fiant precibus orare, si facta fuerint, libenter et largiter subsidia praestare.” (Ep. 60) Veja-se, pois, como 0 zelo da Igreja pela redencio dos cativos, que tio vivamente desabrochou séculos depois, tinha comesado jé hos primeiros tempos ¢ se fundava nos grandes e clevados motivos Gque divinizam de certo modo a obra, assegurando além disso a quem a exeree uma coroa imorredoura, Nas obras de Sio Gregério se encontram também importantes noticias sobre esse ponto. Vejam-se: 1. 3.°, ep. 16; 1. 4.%, ep. 175 1. 6, ep. 355 1. 7.°, ep. 26, 28 ¢ 38; 1. 99, ep. 17. CONCILIUM MATISCONENSE SECUNDUM, ANNO 585 ‘Os bens da Igreja sio empregados na redencio de cativos: “Unde statuimus ac decernimus, ut mos antiquus a fidelibus re- paretur; et decimas ecclesiasticis famulantibus ceremoniis populus om- his injerat, quas secerdotes aut in pauperum usum, aut in captivorum redemptionem praerogantes, suis orationibus pacem populo ac saluter impetrent: si quis autem contumax nostris statutis saluberrimis fuerit, ‘a membris ecclesiae omni tempore separetur.”" (Can. 5) CONCILIUM RHEMENSE, ANNO 625 VEL 630 Pemmite-se secularizar os vasos Sagrados para emprogi-los na redengio de cativos: “Si_quis episcopus, excepto si evenerit ardua necessitas pro redemptione captivorum, ministeria sancta frangere pro qualicumque conditione praesumpserit, ab officio cessabit ecclesiae.” (Can. 22) CONCILIUM LUGDUNENSE TERTIUM, ANNO 583 Vé-se pelo cinone abaixo que os bispos davam aos cativos resgatados cartas de recomendagio, ¢ af se prescreve que nessas cartas se consignem a data e 0 prego do resgate, bem como as neces- sidades dos libertos: 80 “Id etiam de epistolis placuit captivorum, ut ita sint sancti pontifices cauti, uti in servitio pontificibus consistentibus, qui eorum ‘manu vel subscriptione agnoscat epistolae aut quaclibet insinuationum litrerae dari debeant, quatenus de subscriptionibus nulla ratione possit Deo propitio dubitare: et epistola commendetionis pro necessitate cuiwslibet promulgata dies datarum et praetia constituta, vel necessi= fates captivorum ques cum epistolis dirigunt, ibidem inserancur.” tae q -pisiolis dirigunt, ibidem inserantur. SYNODUS S. PATRICH AUXILI ET ISERMINI EPISCOPORUM IN HIBERNIA CELEBRATA, CIRCA ANNUM 450 VEL 456 Excessos a que eram levados alguns eclesidsticos por um zelo incontido em favor dos cativos: quis clericorum voluerit iuvare captive cum suo praetio ‘ili subveniat, nam si per furtum illum inviolaverit, blasphemantur ‘mudlti clerici per unum latronem, qui sic fecerit excommunionis: sit.” (Can, 32) EX EPISTOLIS S. GREGORIL ‘A Igreja gastava seus bens no resgate dos cativos €, mesmo que com o tempo tivessem eles condigdes de reembolsar a quantia des- pendida, nao desejava ela tal devolugio e generosamente thes dava quitagao: “Sacrorum canonum statuta et legalis permitir auctortas, lcite res ecclesiasticas in redemptionem captivorum impendi. Et ideo, quia edocti a vobis sumus, ante annos fere 18 virwm reverendissimum quemdam Fabium Episcopum Ecclesice Firmanae, libras 11 argent de eadem ecclesia pro redemptione vestra, ac patris vestri Passivi, jrauris et coepiscopi nostri, sunc vero clerii, necnon mauris vestra, hostibus impendisse, atque ex hoc quamdam formidinem vos habere, ne hoc quod datum est, a vobis quolibet tempore repetatur, huis praecepti auctoritate suspicionem vestram praevidimus auferendam; constituentes, nullam vos exinde, haeredesque vestros quolibet tempore repetitionis molestiam sustinere, nec a quoquam vobis aliquam obiici quaestionem." (Decreto de Graciano, parte 28, 1. 7, ep. 14, et hab. Caus, 12, quaest. 2, cap. XV) CONCILIUM VERNENSE SECUNDUM, ANNO 844 (Os bens da Igreja serviam para o resgate de cativos: “Keclesiae facultates quas reges et reliqui christiani Deo voverunt, 81 ad alimentum servorum Dei et pauperum, ad exceptionem hospitum, redemptions captivorum, atque templorum Dei instaurationem, nunc in usu saecularium detinentur. Hire multi servi Dei pecuniam cibi et clus Ge vestimentcrum patiuntur, pauperes consuetam eleemosynam non accipiunt, negliguntur hospites, fraudantur captivi, et fama om nium merito laceratur.” (Cap. XH) E digno de nota no cinone acima o uso que fazia a Igreja de seus bens, pois vé-se que, a par da manutengao dos clérigos © do cusieio do culto, serviam para socorro a pobres © peregrinos, bem como para resgate de cativos. Esta observagdo € feita aqui para aproveitar a oportunidade de chamar atencio para este ponto, ¢ no porque seja o referido canone o nico texto em que se pode fundar a prova do bom uso que fazia a Igreja de seus bens. Na verdade, sio muitos os cfinones que poderiam ser citados, a comecar pelos que datam dos tempos apostélicos, sendo de ressaltar a expressio que af € comumente empregada para classificar a ago dos que se opederam de bens eclesidsticos ou os administram mal: “pauperum necatores” (matadores de pobres), 0 que dé bem a entender que uma das prin- cipais finalidades desses bens era 0 socorro aos necessitados. CONCILIUM LUGDUNENSE SECUNDUM, ANNO 566 Excomunga-se quem atentar contra a liberdade das pessoas: “Et quia peceatis facientibus multi in perniciem animae suae ita conati sunt, aut conantur assurgere, ut animas longa temporis quicte sine ulla status sui competitione viventes, nunc improba prodi- tione atque traditione, aut captivaverint cut captivare conentur, si iuxta praeceptum domini regis emendare distulerint, quosque hos quos obduxerunt, in loco in quo longum tempus guiete vixerint, restaurare debeant, ecclesiae communione priventur.” (Can, 3) Do cénone acima se deduz que era comum o abuso de particula- res que recorriam A forca para reduzir a escravos pessoas livres. Tal cra naquela época a situagio da Europa, por causa das irrupcdes de birbaros, que se pode dizer que © poder civil era extremamente débil ‘ou praticamente inexistente. Por isso é muito gratificante ver a greja sair em apoio & ordem piblica ¢ em defesa da liberdade, excomungan- do os que atentassem contra os direitos humanos, CONCILIUM RHEMENSE, ANNO 625 VEL 630 Reprime-se 0 mesmo abuso a que se refere 0 céinone an- terior: 82 quis ingenuum aut liberum ad servitium inclinare voluerit, un fortasse iam fecit, et commonitus ab episcopo se de inquietudine vius revocare neglexerit, aut emendare noluerit, tanquam calumnize reum placuit sequestrari.” (Can, 17) CONCILIUM CONFLUENTINUM, ANNO 922 Declara-se réu de homicidio quem seduz um cristo e 0 vende: “Item interrogatum est, quid de eo jaciendum sit qui christianum hominem seduxerit, et sic vendiderit: responsumque est ab omnibus, homicidit reatum, ipsum hominem sibi contrahere.” (Cap. VIL) CONCILIUM LONDINENSE, ANNO 1102 Proibe-se 0 comércio de homens que se fazia na Inglaterra, ven- dendo-os como se fossem animais: “Ne quis illud nefarium negotiunr quo hactenus in Anglia, sole- hant homines sicut bruta animalia venundari, deinceps ullatenus facere praesumat.” (Cap. XXVH) Vé-se pelo canone a it quanto se adiantara a Igreja em tudo © que concerne a verdadeira civilizagio. Em nosso tempo, considera se como um notével passo dado pelo mundo moderno que as grandes hag6es européias assinem tratados para reprimir o tréfico de negros. Pois bem, o cinone em foco mostra que, em prinefpios do século XII © exatamente na cidade de Londres (onde se firmou recentemente o famoso convénio sobre aquela matéria), se proibia o trafico de ho- mens, qualificando-o como merece. “Nefarium negotium” (detestavel negécio), 0 chama o concilio; “tréfico infame”, o chama a civilizagio ‘moderna, encampando, sem dar-se conta disso, os pensamentos © até as palavras daqueles homens a quem denomina de “bérbaros”, da- queles bispos aos quais calunia pintando-os como quase uma turba «le conspiradores contra a liberdade ¢ a felicidade do género humano. SYNODUS INCERTI LOCI, CIRCA ANNUM 616 Determina-se que as pessoas que se tenham vendido ou empe- nhado retornem sem demora ao estado de liberdade assim que re- embolsem a importincia paga, no se Ihes podendo exigit mais do {que © que foi despendido na compra: “De ingenuis qui se pro pecunia aut alia re vendiderint, vel “ppiqnoraverint, placuit ut quandoquidem praetium, quantum pro ipsis datum est, invenire potuerunt, absque dilatione ad statum suae condi- tionis reddito praetio reformentur, nec amplius quam pro eis datum 83 est requiratur, Et interim, si vir ex ipsis, uxorem ingenuam habuerit, ut mulier ingenuum habuerit maritum, fil qui ex ipsis nati fuerint in ingenuitate permaneant.”” (Can, 14) B tio importante 0 eanone do concilio acima citado, celebrado segundo parece em Boneuil, que sobre ele cabem algumas reflexdes, Em tiltima andlise, essa disposicdo tio benéfica — em que se concedia ao vendido © retorno & liberdadle, uma vez ressarcido a0 comprador 0 prego por este pago — cortava pela raiz um mal que devia estar muito arraigado nas Galias, pois datava de muito tempo: jd Jalio César nos informava que ali muitos eram ox que, acossados pela necessidade, se vendiam para sair da situacdo de aperto. E também muito digno de nota o que se dispoe no referido enone a respeito dos filhos da pessoa vendida: quer esta seja o pai ow a mie, prescreve-se que em todos os casos os filhos sejam livres, derro- gando-se assim a conhecida regra do dircito civil “partus sequitur ventrem’ CONCILIUM AURELIANENSE TERTIUM, ANNO 538 Proie-se a devolugio a judeus de escravos que se tenham asilado em igrejas, se buscaram este reffigio ou porque 0 amos os obrigam a fazer coisas contrarias & religito erista on porque foram maltratados depois de terem sido a eles devolvidos apés asilo anterior: “De mancipiis christianis, quae in iudaeorum servitio detinen- tur, si eis quod christiana religio vetat, a dominis imponitur, aut si eos quos de ecclesia excusatos tollent, pro culpa quae remissa est, ajfligere aut caedere fortasse praesumpserint, et ad ecclesiam iterato confugerint, mullatenus a secerdote reddantur, nisi praetium oferatur ac detur, quod mancipia ipsc valere pronuntiaverit iusta taxatio.” (Céin, 13) CONCILIUM AURELIANENSE QUARTUM, ANNO 541 Manda-se observar © que foi determinado no precedente con: no enone acima citado: “Cum prioribus canonibus iam fuerit definitum, ut de mancipiis christianis, quae apud iudacos sunt, si ad ecclesiam confugerint, et redimi se postulaverint, etiam Gd quoscumque christianos refugerint, et servire indacis noluerint, taxato et oblate a fidelibus iusto praetio, «ab corum dominio liberentur, ideo statuimus, ut tam tusta constcutia ‘ab omnibus catholicis conservetur.” (Clin, 30) 84 Ainda do mesmo concilio — castiga-se com a perda de todos os eseravos 0 judeu que perverta um esctavo cristio: “Hoc etiam decernimus observandum, ut quicumque iudaciis proselytum, qui advena dicitur, iudaeum facere praesumpserit, aut christianum factum ad iudaicam superstitionem adducere; vel si iudaeus christianam ancillam suam sibi crediderit sociandam; vel si de paren- tibus christianis natum, iudaeum sub promissione fecerit libertatis, ‘mancipiorum amissione multetur.” (Can. 31) CONCILIUM MATISCONENSE PRIMUM, ANNO 581 Proibe-se aos judeus doravante adquirir escravos cristios e, quan- (o aos ja existentes, se permite a qualquer cristéo resgaté-los mediante pagamento de doze soldos ao dono judeu: “Et liceat quid de christianis qui aut de captivitatis incursu, aut fraudibus iudacorum servitio implicantur, debeat observari, non selum canonicis statutis, sed et legum beneficio pridem fuerit consti- ‘tun; tamen quia nunc item quorumdam querela exorta est, quosdam jiudacos, per civitates aut municipa consistentes, in tantam insolentiam et proterviam prorrupisse, ut nec reclamantes christianos liceat vel practio de corwn servitute absolvi: idcirco praesenti concilio, Deo auctore, sancimus, ut nullus christianus iudaeos deinceps debeat deservire; sed datis pro quolibet bono mancipio 12 solidis, ‘ipsum mancipium quicumque christianus, seu ad ingenuitatem, seu ad servitium, licentiam habeat redimendi: quia nefas est, ut quos Christus dominus sanguinis sui effusione redimit, persecutorum vinculis ma- neant irretiti, Quod si acquiescere his quae statuimus quicumque iudaeus noluerit, quamdiu ad pecuniam constitutam venire distulerit, liceat mancipio ipsi cum christianis ubicumque voluerit habitare. Hud etiam specialiter sancientes, quod si qui iudaeus chrstianum mancipium ad errorem iudaicum convictus fuerit suassisse, ut ipse mancipio careat, t legandi damnatione plectatur.” (Can. 16) © cénone acima equivale praticamente a um decreto de inteira emaneipagio dos escravos cristios porque, se os judeus ficavam impedidos de adquirir novos escravos cristios ¢ os que eles jé tinham podiam ser resgatados por qualquer cristio, claro esté que a porta ficava de tal forma aberta & caridade dos figis que necessariamente teria de diminuir em grande escala o niimero de escravos cristios que xemiam sob o poder dos judeus. E isto no quer dizer que essas dis! posigdes candnicas surtissem desde logo todo o efeito que a Igreja se propunha, mas sim que, sendo ela 0 tinico poder que na época 85 permanecia de pé @ exercia influéncia sobre 08 povos, teriam de ser suas disposig6es sumamente proveitosas para aqueles em cujo favor se estabeleciam, CONCILIUM TOLETANUM TERTIUM, ANNO 589 Proibe-se aos judeus adquirirem escravos cristios. Se induz ao judaismo ou circuncida um escravo cristo, este fic mente livre, sem necessidade de pagar-se nada ao dono: “Suggerente concilio, id gloriossimus dominus noster canonibus inserendum praecipit, ut iudceis non liceat christianas habere ixores, neque mancipia comparare in usus proprios. “Si qui vero christiani ab eis iudaico ritu sunt maculari, vel etiam circumcissi, non reddito praetio ad libertatem et religionem redeant christianam.” (Cap. XIV) E notivel esse cinone, tanto porque defendia a consciéncia do escravo, como porgue impunha ao dono uma pena favordvel & liberdade. Devsa classe de penas destinadas a reprimir a arbitrariedade dos amos que violentavam a consciéncia dos escravos encontra- plo muito significativo no século seguinte, numa colegio de leis de Ina, rei dos saxdes ocidentais. Ei-lo: LEGI S INAE REGIS SAXONUM OCCIDUORUM, ANNO 692 Se um amo faz um escrayo trabalhar no domingo, esse escravo fica livre: ‘Si servus operetur die dominica per praeceptum domini sui, sit liber.” (Leg. 3) Outro exemplo curioso. CONCILIUM BERGHAMSTEDAE, ANNO 097 Se um amo di de comer carne a seu escravo em dia de absti- néncia, este fica livre “Si quis servo suo carnem in ieiunio dediderit comedendam, servus liber exeat.” (Can, 15) CONCILIUM TOLETANUM QUARTUM, ANNO 633 Proibe-se totalmente aos judeus terem escravos cristéios, dispon- do-se que, se algum judeu desrespeitar esse mandamento, the sejam tomados 0s escravos € estes sejam libertados: ‘Ex decreto gloriosissimi principis hoc sanctum elegit concilium, ut iudaeis non liceat christianos servos habere, nee christiana mancipia emere, nec cuisquam consequi largitate: nefas est enim ut membra Christi serviant Antichristi ministris, Quod si deinceps servos christia- nos, vel ancillas iudaei habere praesumpserint, sublati ab eorum dominatu libertatem a principe consequantur.” (Cap. LXVI) CONCILIUM RHEMENSE, ANNO 625 Profbe-se vender cristfos aos gentios ou judeus, e anulam-se as vendas desse tipo que se fagam: “Ut christiani iudacis vel gentilibus non vendantur; et si quis christianorum necessitate cogente mancipia sua christiana elegerit venundanda, non aliis nisi tantum christianis expendat. Nam si paganis aut iudacis vendiderit, communione privetur, et emptio careat firmi- tate.” (Can. 11) Nenhuma precaugio era excessiva naqueles calamitosos tempos. A primeira vista poderia parecer que semelhantes disposicées eram fruto da intolerdncia da Igreja em relacao aos judeus. No cntanto, era na reatidade um dique contra a barbarie que s¢ infiltrava por toda parte, uma garantia dos direitos humanos mais sagrados — garantia tanto mais necesséria quanto se pode dizer que todas as outras tinham desaparecido. Leia-se, a propésito o documento que se segue @ pelo qual se constata que em alguns casos se chegava ao horroroso extremo de vender escravos aos gentios para que fossem sactificados: GREGORIUS PAPA III, EPISTOLA 1 AD BONIFACIUM ARCHIEPISCOPUM, ANNO 731 “Hoc quoque inter alia crimina agi in partibus illis dixisti, quod quidam ex fidelibus ad immolandum paganis sua venundent mancipia, Quot ut magnopere corrigere debeas frater commonemus, nec sinas fieri ultra; scelus est enim et impietas. Eis ergo qui haec perpetrave- runt, similem homicidae indices poenitentiam.” Tais excessos deviam alcancar grandes proporgdes pois vé-se que © Concitio de Liptines, celebrado no ano 743, volta sua atengao para © problema e proibe que escravos cristdos sejam entregues a gentios: “EC ut mancipia christiana paganis non tradantur.” (Cén. 3) 87 CONCILIUM CABILONENSE, ANNO 650 Profbe-se a venda de escravos ctistdos fora do territério com- preendido no reino de Clodoveu: “Pietatis est maximae et religionis intuitus, ws captvitais. vine culum emnino a christianis redimatur, Uunde Sancta Synodus noscl- tur censuisse, ut nullus mancipium extra fines vel terminos, qui ad regnum demini Clodovei regis pertinent, debeat verundare ne quod absit, per tale commercium, cut captivitatis vineulo, vel quod peius est, iudaica servitute mancipia christiana tencantur implicit.” (Cén. 9) Esse cinone que se acaba de apresentar, no qual ¢ proibida 2 venda de escravos cristios fora do reino de Clodoven por temor de que caiam em poder de pagdos ou judeus, e 0 do Concilio de Reims transcrito mais acima, no qual consta disposi¢ao semelhante, sio noté- veis sob dois aspectos: 1.9) Manifestam o sumo respeito que se deve ter pela alma do homem, mesmo que este seja escravo, pois que se proibe vendé-lo para local onde sua consciéncia possasofrer constrangimento — respeito que era muito importante sustentar, tanto para erradicar as cerrdneas doutrinas antigas sobre esse ponto, como por ser o primeiro so na diregao da emancipagio. 2.°) Ao limitarem a faculdade de vender escravos, introduzem na legislagdo uma novidade quanto a esse tipo de propriedade, distin- guindo-a das demais ¢ colocando-a numa categoria diferente € mais clevada — 0 que constitufa um pesso muito importante para a decla- ragio de guerra contra ela ¢ a preparago de sua aboligio por meios legitimos. CONCILIUM TOLETANUM DECIMUM, ANNO 656 Repreendem-se severamente os clétigos que vendiam escravos ‘0s judeus ¢ se thes cominam severas penas: “Septimae colletionis immane satis et infandum operationis stu- dium nunc sanctum nostrum adiit concilium; quod plerique ex sacer dotibus et Levitis, qui pro sacris ministeriis, et pietatis studio, guberncticnisque augmento sanctae ecclesiae deputati sunt officio, ‘malunt imitari turbam malorum, potius quam Sanctorum patrum insistere mendatis: ut ipsi etiam qui redimere debuerunt, venditiones facere intendant, quos Christi sanguine praesciunt esse redemptos; ita dumtoxat, ut eorum dominio qui sunt empti in rite iudaismo conver- tantur oppressi, et fit execrabile commercium, ubi nitente Deo iustum BS est sanctum adesse conventum; quia maiorum canones veluerunt ut ‘nullus iudaeorum coniugia vel servitia habere praesumat de christia- norum coetu. Continua repreendendo energicamente os culpados, ¢ arremata: “Si quis enim post hanc definitionem talia agere tentaverit, noverit se extra ecclesiam fieri, et praesenti, et futuro iudicio cum Iuda simili poena percelti, dummodo Dominum denuo proditionis pretio malunt tad iracundiam provocare.” (Cap. VII) S. GREGORIO PAPA 1 Manumissio que efetua papa Séo Gregorio I dos escravos da Igreja Romana, texto notdvel em que 0 pontifice explica os motivos que induziam os cristios a Tibertar seus escravos: “Cum redemptor noster totius conditor creaturce ad hoc propitia- ‘us humanam voluerit carnem assumere, ut divinitatis suae gratia, dirato que tenebamur caplivi vinculo servitutis, pristinae nos restitueret libertati; salubriter agitur, si homines quos ab initio nawura creavit liberos et protult, et ius gentium iugo substituit servitutis, in ea natura in qua nati fuerant, manumittentis beneficio, libertati reddantur Atque ideo pietatis intuitu, et huius rei consideratione permoti, vos Monta- nam atque Thomam famulos Sanctae Romanae ecclesiae, cui Deo adiwore deservimus, liberos ex hac die civesque Romanos efficimus, ‘ommneque vestrum vobis relaxamus servitutis peculium." (S, Greg., l 5, @p. 12) CONCILIUM AGATHENSE, ANNO 506 Manda-se que os bispos respeitem a liberdade dos manumitidos or seus predecessores. Ao mesmo tempo, deixa-se consignada a facul- dade que tinham os bispos de manumitir os escravos beneméritos, € fixa-se 0 quanto podia ser-lhes doado para sua subsisténcia “Sane si quos de servis ecclesiae benemeritos sibi episcopus libertare donaverit, collatcm libertatem a successoribus placuit custo- diri, cum hoc quod eis manumissor in libertate contulerit, quod tamen iubemus viginti solidorum numerum, et modum in terrula, vineola. vel hospitiolo tenere. Quod amplius datum fuerit, post manumissoris ‘mortem ecclesia revocabit.” (Can. 7) CONCILIUM AURELIANENSE QUARTUM, ANNO S41 Determina-se que seja devolvido Igreja tudo o que tenha sido empenhado ou alienado pelo bispo que morrer sem deixar bens pro- 0 prios, mas excetuam-se dessa regra os escravos manumitidos, os quais deverio permanecer livres: “Ur episcopus qui de facultate propria ecclesiae nihil relinguit, de ecclesiae facultate si quid aliter quam canones eloquuntur obli- gaverit, vendiderit, aut distraxerit, ad ecclesiam revocetur. Sane si de servis ecclesiae lbertos fecerit numero competenti, in ingenuitate permaneant, ita ut ab cfficio ecclesiae non recedant.” (Can. 9) SYNODUS CELICHYTENSIS, ANNO 816 Ordena-se que, A morie de um bispo, se dé liberdade a todos os seus eseravos ingleses, Também se especifica a solenidade que se hé de realizar no respectivo funeral e prescreve-se que, ao término dela, cada bispo e abade liberte irés de seus escravos, concedendo a cada um deles pecillio de trés soldos: “Decima iubetur, et hoc firmiter statuimus esservandum, tam in nostris diebus, quamque etiam futuris temporibus, omnibus suc- cessoribus nostris qui pest nos illis sedibus ordinentur quibus ordinati sumus: ut quandocumque aliquis ex numero episcoporum migraverit de saeculo, hoc pro anima illius praecipimus, ex substantia uniuscumque rei decimam partem dividere, ac distribuere pauperibus in eleemosy- nant, sive in pecoribus, et armentis, seu de ovibus et porcis, vel etiam in cellariis, nee non omnem hominem Anglicum liberare, qui in diebus suis sit servituti subiectus, wr per illud sui proprit laboris fructum reiributionis percipere mereatur, et indulgentiam peccatorum. Nec ullatenus ab aliqua persona huic capitulo contradicatur, sed magis, prout condecet, a successoribus augectur, et elus memoria semper in posterum per universas ecclesias nostrae ditioni subiectas cum Dei Iaudibus habeatur et honoretur. Prorsus orationes et eleemosynas quae inter nos specialiter condictcm habemus, id est, ut statim per singulas parochias in singulis quibusque ecclesiis, pulsato signo, omnis famu- lorum Dei cvetus ad basilicam conveniant, ibique pariter XXX psalmos pro defuncti animae decantent. Et postea unusquisque antistes et abbas sexcentos psalmos, et centum viginti mixsas celebrare faciat, et tres homines liberet, et corum cuilibet tres solidos disttibuat.” (Can, 10) CONCILIUM ARDAMACHIENSE IN HIBERNIA CELEBRATUM, ANNO 117i Curioso documento, ne qual se ao tomada no Concilio de Armach (Irlanda), de da todos os escravos ingleses: referéncia A generosa resolu- liberdade a 90 “His completis convocato apud Ardamuchiam totus Hibeniae clero, et super advenarum in insulam adventu tractato diutius et deliberato, tandem communis omnium in hoe sententia resedit: propter peccata scilicet populi sui, eoque praecipue quod Anglos olim, tam a ‘mercatoribus, quam praedonibus atque piratis, emere passim, et in servitutem redigere consueverant, divinae censura vindictae hoc eis incommodum accidisse, ut et ipsi quoque ab eadem gente in servitu- tem vice reciproca iam redigantur. Anglorum namque populus adhue integro corum regno, communi gentis vitio, libercs suos venales exponere, et priusquam inopiam ullam aut inediam sustinerent, filios proprios et cognatos in Hiberniam vendere consueverant. Unde et probabiliter credi potest, sicut venditores olim, ita et emptores, tam enormi delicto iuga servitutis iam meruisse, Decretum est itaque in pracdicto concilio, et cw universiatis consensu publice statutum, ut Angli ubique per insulam, servitutis vinculo mancipati, in pristinam revocentur libertatens.” (Ex Giraldo Cambrensi, cap. XX VIL Hiberniae expugnatae) Nesse documento, ¢ especialmente digno de nota 0 modo como as idéias religiosas influiam no sentido de suavizar os fero dos povos: sobrevém uma costumes, miidade pablica © eis que logo se aponta como causa desse infortinio a indignagio divina diante do trafico que faziam os irlandeses, comprando escravos ingleses aos metca= dores, bandoleiros e piratas, Nio deixa também de ser curioso constatar que naqueles tempos os ingleses.eram to barbaros que vendiam seus proprios filhos © parentes, & maneira dos alticanos de nosso tempo, E tal procedimento devia estar bem generalizado pois se consigna no documento acima transerito que isso era um vicio comum daqueles povos (” gentis vitio"). Desse modo se avalia melhor quiio necessiria era a dlisposigao tomada no Concilio de Londres de 1102 ¢ transerita ante- riormente, proibindo © infame teifico de homens. EX CONCILIO APUD SILVANECTUM, ANNO 864 Os excravos da Igreja ndo devem ser permutados por outros, Jo ser que dessa forma se thes conceda liberdade: “Mancipia ecclesiastica, nisi ad libertarem, non convenit com- ‘mutcri; videlicet ut mancipia, quae pro ecclesiasticn homine dabuatur, in Keclesiae servitute permancant, et ecclesiasticus homo, qui con muiatur, fruatur perpetua libertate. Quod enim semel Deo consecratwn on est, ad humanos usus transferri non decet.” (Vide Decreto de Gregs- rio IX, 1. 3.2, tit, 19, ¢. M1) EX EODEM, ANNO 864 Coniem a mesma matéria do documento anterior e, ademais, daqui se deduz que os figis, em recomendagéo de suas almas, costu- mavam oferecer seus escravos a Deus € aos santos: “Iniustum videtur et impium, ut mancipia, quae fideles Deo, et Sanctis eius pro remedio animae suae consecrarunt, cuiuscumque muneris mancipio, vel commutationis commercio iterum in servitu. tem secularium redigantur, cum canonica auctoritas servos tantum- ‘modo permittat distrahi fugitivos. Et ideo ecclesiarum Rectores ‘summopere caveant, ne eleemosyna unis, alterius peccatum fiat. Et est absurdum, ut ab ecclesiastica dignitate servus discedens, humanae sit obnoxius servituti.” (Ibid., ¢. 1V) CONCILIUM ROMANUM SUB S. GREGORIO 1, ANNO 597 Ordena-se que se dé liberdade aos escravos que queiram abracar a vida monéstica, com as precaugGes prévias que permitam constatar ‘a autenticidade da vocagio: “Multos de ecclesiastica seu sacculari familia, novimus ad om- nipotentis Dei servitum festinare ut ab humana servitute liberi in divino servitio vateant familiarius in monasteriis conversari, quos si passim dimittimus, omnibus fugiendi ecclesiastici iuris dominium ‘occasionem praehemus: si vero festinantes ad omnipotentis Dei ser- vitium, incaute retinemus, illi invenimur negare quaedam qui dedit omnia. Unde necesse est, ut quisquis ex iuris ecclesiastici vel saecu- laris militiae servitute ad Dei servitim converti desiderat, probetur prius in laico habitu constitutus: et si mores eius atque conversatio bona desiderio eius testimonium jerunt, absque retractatione servire in monasterio omnipotenti Domino permittatur, ut ab humano servitio liber recedat, qui in divino obsequio districtiorem appetit servitutem. (S. Greg., Ep. 44, lib. 4) EX EPISTOLIS GELASH PAPAE Reprime-se 0 abuso que se sem 0 consentimento dos donos: “Ex antiquis regulis et novella synodali explanatione compre- hensum est, personas obnoxias servituti, cingulo coelestis militiae ‘non praecingi. Sed nescio utrum ignoratia an voluntate rapiamini, ita difundindo, de ordenar escravos 2 - cena arabes antares et tut ex hac causa inullus pene Episcoporum videatur extorris. fa enim nos frequens et plurimorum querela circumstrepit, ut ex hac parte nihil penitus putetur constitutum.” (Dist. 54, c, IX) [Martytio et Tusto, epise.] “Frequens equidem, et assidua nos querela circumstrepit de his ontificibus, qui nec antiquas regulas nec decreta nostra noviter directa cogitentes, obnoxias possessionibus obligatasque personas, vew nnientes ad clericalis officit cingulum non refutant.” (Ibid., c. X) [Herculentio, Stephano et Iusto, episc.] “Actores siquidem filiae nostrae illustris et magnificae feminae, Maximae petitorii nobis insinuatione conquesti sunt, Sylvestrum atque Candidum, originarios suos, contra constituiones, quae supra dictae sunt, et contradictione praeeunte a Lucerino Pontifice Diaconos ordi- natos.” (Ibid., c. X1) [Rufino et Aprili, epise.] “Generalis etiam querelae vitanda praesumptio est, qua prope- modum causantur universi, passim servos et originarios, dominorum ura, possessionumaue fugientes, sub religiosae conversationis obtentu, vel ad monasteria sese conferre, vel ad ecclesiasticum famulatum, conniventibus quogue praesulibus, indifferenter admitti. Quae modis crnibus est amovenda pernicies, ne per christian nominis institut cut aliena pervadi, aut publica videatur disciplina subvert” (Ibi. . XH) [Ad episc. Lucaniae] Ping es (de CONCILIUM EMERITENSE, ANNO 666 Permite-se aos pirocos excolher entre os servos da Igreja alguns que se tornem clérigos: “Quidquid unanimiter digne disponitur in sancta Dei ecclesia, necessarium est ut a parochitanis presbyteris custoditum maneat, Sunt enim nonnulli, qui ecclesiarum suarum res ad plenitudinem habent, et sollicitudo illis nulla est habendi clericos, cum quibus onmipotenti Deo laudum debita persolvant officia. Proinde instituit haec sancia synodus, ut omnes parcchitani presbyter, iuxta ut in rebus sibi a Deo creditis sentiunt habere virtutem, de ecclesiae suae familia clericos sibi faciant; quos per benam voluntatem ita nutriant, ut et officium sanctum digne paragant, et ad servitim suum aptos eos habeant, Hi etiam victum et vestitum dispensatione presbyteri merebuntur, et domino et presbytero suo, atque uiilitati ecclesiae fideles esse debent. Quod si inutiles apparuerint, ut culpa patuerit, correplione disciplinae Jeriantur: si quis presbyterorum hanc sententiam minime custodierit, 93 et non adimpleverit, ab episcopo suo corrigatur: ut plenissime custo- diat, quod digne iubetur.” (Cap. XVII) CONCILIUM TOLETANUM NONUM, ANNO 655 Dispoe-se que os bispos déem liberdade aos escravos da Igreja que vio ser admitidos no clero: “Qui ex femiliis ecclesiae servituri devocantur in clerum ab Epis- copis suis, necesse est, ut libertatis percipiant donum: et si honestae vitae claruerint merits, tune demum maicribus. fungantur officis.” (Cap. X1) CONCILIUM TOLETANUM QUARTUM, ANNO 633 Permite-se ordenar escravos da Tgreja, concedendo-Ihes antes a liberdade: “De familiis ecclesiae constituere presbyteros et diaconos per parochias liceat; quos tamen vitee rectitudo et probitas morum com mendat: ea tamen ratione, ut antes manumissi libertatem status sui percipiant, er denuo ad ecclesiasticas honores succedant; irreligiosum fest enim cbligaios existere servituti, qui sacri ordinis suscipiunt dig- nnitarem.” (Cap. LXX1V) Vista qual foi a conduta da Iyreja com respeito & escravidio na Europa, excita-se naturalmente a curiosidade de saber como ela se tem conduzido em tempos mais tecentes com relago aos escravos de outras partes do. mundo. 'A esse propésito, nada melhor do que transcrever um documen- to que, além de expressar quais so nessa matéria as idgias © 08 sentimentos do atual pontifice Gregorio XVI, contém em povcas palavras uma interessante hist6ria da solicitude da Sé Romana em favor dos escravos de todo 0 universo. Trate-se de uma carta apo télica contra o tréfico de negros, publicada em Roma no dia 3 de novembro de 1839. Recomenda-se encarecidamente sua leitura, por Que ai se tem uma confirmagio auténtica e decisiva de que a Igreja rmenifestou sempre © manifesta ainda, nesse gravissimo assunto da sscravidio, o mais acendrado espirito de caridade, sem ferir em nada 4 justica nem desviar-se do que aconselha a prudéncia, Eis a integra desse documento: “4 GREGORIO PP. XVI, AD FUTURAM REI MEMORIAM. ‘Elevado ao grau supremo de dignidade apostéliea ¢ sendo, na terra, embora sem merecélo, vigirio de Jesus Cristo Filho de Dens, que.por sua caridade excessiva se dignou Jazer-se homem e morrer ara redimir o género hnumano, acreditamos conesponier & nova pastoral solicitude fazer todos os esforcos para afastar os eristios do Ic gue ete fst cam os neo car ats homens shan da espécie que forem. Tao logo comegaram a difundir-se as luzes do Evangelho, os desvenurads que alan a ras tra eerovdie cm meio das infnitas guerras daquela época, viram ir melhorando sua situasdo porque os apéstolos, inspirades pelo espivto de Deus, indcaram ns Servos a miima de ohedecer ao senhores temporal como ao préprio Jesus Cristo e de resignar-se com todo coraeao a Ventede de Deus, mas ao mesmo tempo inpunham 0s dows o receito de se mostrarem humanos com seus escravos, concedendo thes tdo 0 ae fsse uso e equitatvo, e de no ‘maltraté-los, sabendo seo Ser deans ures esd ns hs para Ee no hs ce “A Lei Evangélica, ao estabelecer de uma mancira hada cate snr pera com tates, C0 Sento ao ae tlarar que veria come feitos ow negados @ Si préprio todos os ato de beneicénia e de misercordia fetos ou nega sos pobre & debeis, produziram nawralmente o resultado de os cristaos nao s6 ‘ncararem como irmaos seus escravos (sobretudo quando estes se tinham convertde ao cristcnismo), como tambim se sentrem inl rnaios a dar liberdade agueles que por sua conduta dela se mostravam merecedores — coisa que costumavam fazer particularmente nas fests solenes de Pascoa, conforme nos informa Sao Gregério de Ni- vias Mais do que iso, howve os au, iflamades pla caidade mas srdente, se sujeteram eles préprios aos gilhdes da eseravatura para libertar seus irmios, @ um homem apostélico, nosso predecessor 0 rapa Clemente I, de santa memdria, atesta ter conhecido muitos dox tae fizeram essa opeao de misericirdia, E essa é a razao pela ut, tendozse dissipado com 0 tempo as superstigdes pagds ¢ tendo-se izedo os costumes dos povos mais barbaros, gras aos beneficos ua f6 movida pela caridade, as coisas chegaram ao ponto de que ha ‘muitos séeulos jd nao hujaescravox na maior pare das macoes esta No entonto, € dizemorlo com a mais projunda dor, depos slsso ainda. se viran homens, mesmo enire 0% crits, que, vergon 8 nhosamente cegados pelo descjo de um ganho sérdido, nio vacilaram em redusir @ escravaiura, em terrax remotas, os indios, ox negros é outras desverturadas ragas, cu em colaborar com tao indigna mal- dade, instituindo ¢ crganizando 0 tréfico desses infelizes aos quais outros tinham imposto as correntes, Muitos pontifices romanos, nossos predecessores, de gloricsa memérie, no deixaram de, dentro do que estava co seu alcance, procurar pér termo a semethante conduia desses homens, facendo ver quiio contréria era & sua salvagdo € quio degradante para 0 nome de cristéo — constituindo esta uma das causas que mais influem parc que as nacdes infigis nutram um édio constante & verdadeira religiao, “A esse fim se dirigem a carta apestélica de Paulo IM, de 20 de maio de 1537, enviada ao cardeal-crcebispo de Toledo e selada com 0 selo do Pescador, bem como outra carta mais ampla de Urbano VIM, de 22 de abril de 1639, enderecada ao coletor dos direitos da Camera Apostolica em Portugal — cartas nas quais se contém as mais sérias e fortes recriminagdes contra os que se atre- vem a reduzir @ escravidio os habitantes das Indias Ocidental ou Meridicnal, vendé-los, compré-los, troci-los, dé-los de presente, se~ pard-les da mulher e des filhos, despojd-los de seus bens, levé-los ou énvid-los a paises estrangeiros, privicloy de qualquer modo de sua liberdede e manté-los na servidao, ow prestar ausilio € favor aos que fazem tais coises, sob qualquer motive ow pretexto que seja, ow ainda sustenter ow ensinar que isso € licito, ou, por tiltimo, cooperar com isso de qualquer modo. Benedito XIV. poste- riormente confirmou e renovou tais prescrigées dos papas jd men- cionados, por intermédio de nova cartu apostdlica aos bispos do Brasil e de algumas outras regides, em 20 de dezembro de 1741, na qual conclama para o mesmo objetivo a solicitude desses bispos. “Muito antes, outro de nossos predecessores mais antigus, Pio I, em cujo peniificede se estendew 0 dominio dos portugueses a Guiné e a terra dos negros, dirigiu, em 7 de outubro de 1462, carta apestélica &e bispo de Ruvo, entao prestes a partir para aquela regiao, na qual nia se limita 0 pontifice @ éar a esse prelado os poderes convenientes para Id exercer 0 santo ministério com os maiores frie tos, mas também aproveita @ ocasido para censurar yeveramenie a conduta dos cristacs que reduziam os nedfitos & escravidao. “Enfim, Pio VII, em nossos dias, animado do mesmo espirito de caridade ¢ de religido de seus predecessores, interpds com zelo 96 seus bons oficios junto a homens poderosos no sentido de fazer cessar inteiramente 0 trdfico de negros entre os cristaos. “Semethantes prescricdes ¢ solicitude de nossos antecessores nos verviram, com a ajuda de Deus, para defender os indios ¢ outros povos acima mencionados da barbirie, das conquistas e da cobiga de mercadores cristaos. Mas ainda ndo pode a Santa Sé regozijar-se de completo éxito de seus esforgos e de seu zelo, uma vez que, se 0 trdfico de negros foi abolido em parte, ele ainda € exercido por um grande niimero de cristéos. Por isso, desejando extirpar semethante cprébrio de todas as regides eristas, depois de ter conferenciado detidamente com muitos de nossos venerdveis irmaos, os cardeais da Santa Igreja Romana reunidos em consistorio, e seguindo os pasos de nossos predecessores, com base em nossa autoridade apos- tlica advertimos € admoestamos com a forca do Senhor todos os cristéos de toda classe e condicio, e os proibimos de molestarem injustamente os indios, os negros ou quaisquer outros homens, sejam quais forem, de despojarem-nos de seus bens ou de reduci-los & escraviddo, bem como de prestarem ajuda ou favor a quem se dedi- que a semelhantes excessos, ou de exercerem aquele trijico tao de- sumano pelo qual os negros —- como se nio fossem homens, mas sim verdadeiros ¢ impuros animais, reduzidos como estes & servidao sem nenhuma distincdo, e contra as leis da justica e da humanidade — so comprados, vendidos e encaminhados aos trabathos mais duros, € por causa do qual se excitam desavencas e se fomentam continuas guerras entre aqueles poves mediante 0 incentivo do lucro proposto aos aprisionadores de negros. “Por essa razdo ¢ em virtude de nossa autoridade apostolica, reprovamos todas essas coisas como absolutamente indignas do nome de cristo; ¢ em virtude dessa mesma autoridade, proibimos inteira- mente e advertimos todos os eclesidsticos ¢ leigos de que nao se Gtrevam a susientar como conduta permitida ¢ trificc de negros, sob rnenhum pretexto ou causa, nem a pregar e ensinar em piiblico ou reservadamente qualquer fese que seja contréria ao que se prescreve neste carta apostélica, “E para que esta carta chegue ao conhecimento de todos, ninguém possa alegar ignordncia, decretamos ¢ ordenamos que seja publicada e afixada, segundo 0 costume, por um de nossos oficiais, nas portas da Basilica do Principe dos Apdstolos, Chancelaria Apos- t6lica, Palacio da Justica, monte Citério e campo de Flora, “Dado em Roma, em Santa Maria Maior, selado com o selo do Pescudor, a 3 de novembro de 1839, 9.° ano de nosso pontificado.” Pode-se dizer que 0 documento que se acaba de transcrever coroa magnificamente o conjunto de esforcos feitos pela lgreja para a abolicio da escravatura, Por isso convém que nos detenhamos um pouco refletindo sobre o contetido dessa carta apostélica do papa Gregério XVI. E digno de nota, em primeiro lugar, que jé em 1462 0 papa Pio II dirigiu uma carta apostslica ao bispo de Ruvo, as vésperas da partida deste para aquele destino, na qual nao se limitou a dar a esse prelado os poderes convenientes para li exereer 0 santo minis- tério com os melhores frutos, mas aproveitou a ocasid para censurat severamente a conduta dos cristéos que reduziam i escraviclio os recém-batizados (nedtitos). Vé-se assim que, em fins do século XV, quando praticamente chegavam ao seu término os trabalhos da Igreja para expungir 0 caos em que tinha submergido a Europa por causa da irrupeao dos barbaros, quando as instituigdes sociais e politicas se iam desenvolvendo cada vez mais ¢ j formavam um corpo em bow medida regular e eGerente, comeca a sua luta contra a barbarie que se reproduzia em terras longinquas, pelo abuso que 0s conquis- tadores faziam da superioridade de forcas e de inteligéncia sobre as populagdes aborigines. S6 este fato jd seria suficiente para indicar como, para a verdar deira liberdade © bem-estar dos povos, para que o direito prevalega sobre 0 fato © no se entronize © mando brutal da forga, nao bastani as luzes cientificas, ndo basta a cultura, mas € preciso a religido. Em tempos antigos viram-se nagoes extremamente cultas que praticavam as mais inauditas atrocidades; e nos tempos modernos os europeus, tufanos de sc saber € de seus progressos, levaram a escravidio as desgragadas gentes que cairam sob seu dominio. E quem foi 0 pti- meiro a levantar a voz contra tamanha injustica, contra tio horrenda barbaric? Nao foram os politicos, que talvez até no levassem a mal que por esse meio se assegurassem as conquistas; nao foram os homens de negécio, que viam nesse tréfico infame um meio expedito de obter sérdidos mas gordos Iucros; nio foram os fil6sofos, que, ocupados em comentar as doutrinas de Platio ¢ de Aristételes, por certo nao tardariam muito em ressuscitar para os paises conquistados a degradante teoria das “racas nascidas para a escravidao”. Quem 9B arn LAR levantou a voz para protestar foi a religido catélica, falando pela boca do Vigirio de Crist. E certamente um espeticulo gratificante para os catélicos 0 que oferece um pontifice romano condenando, ainda nos estertores do séeulo XV, © que a Europa, com toda a sua civilizagao e cultura, vem reprovar agora, e a duras penas, © mesmo assim sob suspeita de objetivos interesseiros da parie de alguns dos promotores. Sem daivida que nfo conseguiu o papa produzir todo o bem que desejava, mas as douirinas no permanecem estéreis quando brotam de uma fomte a partir da qual podem derramar-se até longas distdncias e sobre pessoas que as recebem com acatamento, quando mais nao seja pelo respeito que thes inspira aquele que as ensina. Os povos conquistadores eram na época cristaos, € eristZos sinceros; assim & indubitavel que as admoestacdes do Vigério de Cristo, retransmitidas pela boca dos bispos e sacerdotes, nao poderiam deixar de surtit saudaveis efeitos. Em casos semethantes, quando se registra uma providéncia dirigida contra um mal e se verifica que este continuow, € comum que se cometa o equivoco de supor que ela foi indtil © que quem a adotou nao produziu nenhum bem. Esquece-se que sio coisas distintas extirpar um mal ou diminuélo. E nao ha divida de que, se as bulas papais no surtiam todo 0 efeito desejado, contribuiam para pelo menos atenuar o dano, fazendo que nic fosse tio desas- trosa a sorte dos infelizes povos conquistados. © mal que se previne © evita no se vé, porque nfo chega a existir; mas o mal existente, este nos toca, nos afeta, nos arranca queixas; © entio freqtiente- mente olvidamos a gratidao devida a quem evitou que ele tivesse atingido proporgées maiores. Assim costuma acontecer com a reli- gio: cura muito, mas previne muito mais, porque, apoderando-se do coragio do homem, sufoca no nascedouro muita maldade. Imaginemos os curopeus do século XV invadindo as Indias Orientais ¢ Ocidentais, sem nenhum frefo, entregues unicamente is instigagdes da cobiga, aos caprichos da arbitrariedade, com todo 0 orgulho de conquistadores e com todo o desprezo que deviam ins- pirar-Thes 0s indios, devido a inferioridade de seus conhecimentos € 0 atraso de sua civilizagio e cultura: que teria acontecido? Se, apesat dos gritos incessantes da religiio, apesar de sua influénci tias leis © nos costumes, 0s povos conquistados tamo sofreram, a que proporgées teria chegado 0 mal se nao interviessem essas pode rosas causas que 0 arrostavam permanentemente, ora expulsando-o, ow ofa atenuando-o? Por cerlo, ei massa os povos conquistados teriam sido reduzidos & eseraviddo, em massa teriam sido condenados a uuma degradacio perpétua, em massa teriam sido privados para sem pre até da esperanga de trilharem um dia © caminho da civilizagio, Deplorivel 6, sem divida, © que fizeram os curopeus com os homens de outras racas; deploravel também o que ainda estio fa- zendo alguns deles; mas nio se pode dizer que a religiio catélica no se tenha oposto com todas as suas forcas 1 tamanhos excessos, nio se pode dizer que a Cabecu da Igreja tenha deixado passat qualquer desses males sem contra eles levantar a vor, sem recordar os dite sm condenar a injustica e sem execrar a eruel- dade — numa palavra, sem advogar a causa da linhagem humana, sem distinedo de ragas, cores ou climas. De onde provém esse pensamenio elevado, esse sentimento ge- neroso gue inspira a Europa a declarar-se terminantemente contra © trifico de homens © a impele a completa aboligo da escravatura nay coldnias? Quando a postenidade recorde esses fatos io gloriosos pera Europa, quindo os assinvle para finar uma nova época mos anais da civilizagao mundial, quando busque © analise as causus que foram conduzinde a Iegislagio © os costumes europeus até ese nivel; quando, clevando-se acima de fatores pequenos e passugeiros, acima de ciieunstincias de pouca monta, acima de agentes nuito secun- davies, queira identificar o prinefpio vital que impulsionava 4 civili- zacio européia para meta (40 magnificente — encontraré © erist nismo, E quando trate de aprofundar-se mais © mais nessa materia, quando investigue se foi o cristianismo sob uma forma geral e vaga, © cristianismo sem autoridade, © cristianismo sem o catolicismo, eis aqui o que easinari a historia: © catolicismo sozinho, imperando com exclusividade na Europa, aboliu escravatura nay nagdes euro péias. O catolicismo, pois, introduziu na eivilizagao européia 0 prin- cipio da abolicao da escravatura, demonstrando na pritiea que esta instituigho ndo era necessiria & sociedade, como se acreditava anti- gamente, © que para se plasmar uma civilizagdo slide e saudivel era preciso comegar peli santa obra da emancipagiio. Ese o catoli- cismo inoculow oa civilizagie curopsia © principio da_aboligio da escravatura, a ele também se deve que onde quer que essa civilizagio tenha coexistido com escraves tenha sentido sempre um_ profundo mal-estar, que indicava claamente que, dois. prinefpios opostos, dois elementos em luta e que teriam de no funda das coisus, havia hove e + combater-se sem cessar, até que, prevalecendo 0 mais podervse, © mais nobre ¢ fecundo, acabasse por aniquilar por completo © outro. E ainda mais: quando se investigue se ma realidade os fatos vem confirmar essa influéncia do catolicismo, nao $6 no que se refere 4 civilizagdo da Europa, mas também avs paises conquistados pelos europeus nos tempos modernos, tanto no Oriente como no Ocidente se reconhecera desde logo 0 papel que desempenharam os prelados ¢ sacerdotes catélicos em suavizar a sorte dos escravos nas coléni se render 0 devido tibuto as misses catélicas, € se enaltes cartay apostolicas expedidas por Pio Hem 1462, por Paulo IIT em 1537, por Urbano VIII em 1639, por Benedito XIV em 174) © por Gregirio XVI em 1839 Nesses documentos se encontrari jé ensinauo © definido tudo quanto se disse ¢ se possa dizer nessa matéria em favor da humani- dade. Neles se encontraré repreendido, condenado, castigado 0 que a civilizagao européia se decidiu afinal a repreender, condenar © castigar. E quando se recorde que foi também um papa, Pio VIL quem, no proprio século XIX, interpés com zelo sua mediagio € seus bons oficios junto a homens poderosos com vistas a fazer cessar inteiramente © trafico de negros entre os eristéos, nao se poder deixar de admitir que 0 catolicismo teve a principal parte nessa grandiosa obra, dado que foi ele que assentou o principio sobre 0 qual cla se funda, estabeleceu os precedentes que a norteiam, pro- clamou sem cessar as doutrinas que a inspiram, condenow sempre as teorias que a contrariam, declarou em todos os tempos guerra aberta A crueldade ¢ a cobiga que vinham em apoio ¢ fomento da injustiga ¢ da desumanidade, © catolicismo, portanto, cumpriu perfeitamente sua missiio de paz ¢ de amor, rompendo sem injustigas ¢ sem catéstrofes as corren- tes sob cujo peso gemia uma grande parte da linhagem humana, ¢ as romperia de todo, nas quatro partes do mundo, se pudesse reinar por algum tempo na Asia e na Africa, fazendo desaparecer também ai a abominagio e 0 envilecimento introduzidos e enraigados naque~ las desufortunadas regides pelo maometismo e pela idolatria pag tor eat tem eR NE A IGREJA E A ESCRAVIDAO NO BRASIL JOSE GERALDO VIDIGAL DE CARVALHO. Introdugio. — Dois relatos. significativ. 1. Depoimento de Koster; 2. Testemunho de Tollenare, — O tréfico. — Palmares. — Ge. neralizagdes te6ricas. — Ex-eseravos na Afri« ca, — As alforrias. — Neo-racismo. — Epilogo, INTRODUGAO Neste trabalho aspectos da influéncia libertadora da Igreja no Brasil durante o perfodo esctavocrata so enfocados, a partir de alguns ngulos_significativos 1. Os testemunhos de dois observadores estrangeiros, Henry Koster © Louis-Frangois de Tollenare, profundamente expressivos e que ‘mostram como 0 espirito cristo dulcificou as agruras do escravismo. 2.0 tréfico merece especial atengao pois, além de ser a mola mestra da estrutura esclavagista, é um dos pontos mais distorcidos até por certos historiadores 3.Destaca-se Palmares pela sta importincia como simbolo das aspiragdes de liberdade que os escravos albergavam. 4. Duas correntes que analisam a escravidio no Brasil sio lembra- das, ilustrando-se o texto com observagées de Charles, Wagley ¢ Henry W. Hutchinson 5. Fendmeno significativo abordado em seguida: convertidos a0 catolicismo, depois exilados, muitos descendentes dos africanos im- plantaram a religido de Cristo na Africa, numa demonstragao de que estavam conscientes do quanto deviam aos prinefpios libertétios do Evangelho. 6. Os equivocos sobre as alforrias sio apresentados ¢ fulge o papel ‘que a Igreja exerceu nesta obra humanitéria. 7.Evidentes perigos do neo-racismo emergente so também foca- lizados 8.Como epilogo, comentirio de um documento, destacado entre centenas de outros, o qual traduz 0 pensar ¢ 0 agit da Igreja diante da escraviddo e consiste, na verdade, em manifestagao de ilustre N. do E, — Os mimeros entre parénteses que aparecem no texto remetem as nnotas que figuram no final. 105 Episcopo bem na linha de Balmes (ef. 1 parte deste volume) Tais estudos deve ser aprofundados, pois a Entidade que mais lutou contra 0 sistema escravocrata em todo o mundo ¢ mais tem feito pela liberdade do homem é sempre objeto das mais soezes ca- Inia. Prosseguem, de fato, infelizmente, sobretudo pela imprensa, as diatribes de sanhudos inimigos da Igreja no que tange 8 atuagéo desta Instituigdo em relaggo a eseravidao. Sem nenhum pudor cien- tifico, afirmativas genéricas e profundamente injustas vio sendo langadas, ferindo abertamente a verdade dos fatos. Dada a comple- xidade do tema, cumpre, realmente, anélises bem detalhadas para a compreensiio do sistema esclavagista em determinado tempo lugar. Aqui, como alhures, a generalizagao € condendivel © conduz a erros primétios. No caso especifico do Brasil, hd que se distinguir as ocorréncias no setor agroindustrial de exportagio, nas minas, no sertio de gado fe nas regides urbanas, nestas ocupando um lugar privilegiado os escravos domésticos. A’ mobilidade social variou profundamente em cada uma destas situagdes, As condigées de relacionamento senhor/ escrayo também foram muito diferenciadas, Para se entender a posigéo da Igreja em terras americanas preciso um estudo sério da formacio © evolugio desta parte do mundo, Com efeito, € impossivel um juizo sobre a escravidio neste vasto continente sem se levar em conta o sistema econdmico curopeu contemporineo a0 surto esclavagista nas Américas. Observa Ciro Flamarion S. Cardoso que “a colonizagio da América esteve indubi- tavelmente vinculada & expanséo comercial © maritima da Europa, nna época em que a constituiggo de um mercado mundial — pela primeira vez na histéria — dava seus primeitos pasos”. Naquele momento recrudesceu a escravidio, sistema sempre pre- sente na histéria humana, inclusive registrada na Biblia sagrada, e, por forca das circunstincias, a Africa se tornow o empério mundial de cativos. Cumpre se lembre que 0 tréfico se inseria num processo tipico de acumulagio de capitais, caracteristica marcante do “capita- lismo comercial”. Foi esta mercdncia que incrementou a escravidio colonial. Assim, nio foi a colonizagao em si que agravou 0 processo de cativeiro, mas sim a traficdncia, objetivando lucros comerciais imediatos, © trabalho compulsério a que foram sujeitos os afi avolumou ante as levas de cativos que chegavam as Américas. 106 A Igreja NUNCA aprovou tal comércio de seres humanos © sob este ponto de vista ndo tem que se penitenciar de NADA. Ante a realidade sécio-econémica implantada no Novo Mundo, ou os cclesiésticos possufam escravos ou a evangelizacio teria que ser abolida. Naquele momento, em tal contexto, nao havia lugar para © trabalho assalatiado. A Igreja combateu por todos os meios 0 fema escravocrata €, nfo o podendo liquidar logo — como alias ‘nao 0 conseguitam os proprios Apéstolos no seu tempo, recomendando inclusive So Paulo obediéncia aos senhores — ela tudo fez para duleificar a andmala situagio dos cativos. No hé como pregar peniténcia para esta Igreja que se opds tenazmente 2 escravidio e que foi quem mais operou no sentido de dissclver a fmpia organizagao. Se é certo que houve elementos do cleto que agiram desumanamente, as crénicas das Ordens Religiosas, os testemunhos de historiadores da época, o relato de cientistas sociais estrangeiros af esto mostrando aos espiritos néo obnubilados pelo Sdio € pelo preconceito © quanto os religiosos e sacerdotes do clero secular fizeram pela causa dos escravos, seguindo Evangelho, as diretrizes de sabios Papas, as orientagdes de denodados Bispos . ‘Ao fazer um exame de consciéncia, a Igreja perceberé que fez © que pode num regime de padroado ¢ numa efervescéncia social na qual a ambig2o falou mais alto que os princfpios cristaos que ela preconizava. Falar de marginalizago do negro pela Igreja, numa assertiva que engloba séculos ¢ lugares diferentes, é uma injustia que clama aos céus. E proprio da ideologia fixar, através de uma linguagem escusa, © racismo, que deve, € claro, ser banido, Despertar contlitos sociais ao invés de os sufocar na verdadeira fraternidade evangélica & suma- mente perigoso e anticristao. Na hist6ria humane houve sempre escravos de todas as ragas € jamais qualquer tipo de cativeiro mereceu a aprovagio da Igreja na sua milenar trajet6ria. Ainda ndo raiou 0 dia em que a doutrina do Cenéculo esteja praticada em todo 0 mundo. Esta mensagem proferida pelo Redentor: “amai-vos uns aos outros”, que é um imperativo, um mandamento sagrado, afastaré do planeta Terra toda espécie de escravidao. En- quanto isto nao acontece, a Igreja continuara Jutando pela liberdade, pugnando para que esta palavra nfo seja um horripilo vazio sonore. Nesta missio ela nunca esmoreceu, jamais foi infiel a tarefa que 107 Cristo Ihe confiou, em momento algum traiu o senso de fraternidade que deve unir todos os homens. DOIS RELATOS SIGNIFICATIVOS Depoimento de Koster Importante depoimento sobre a escraviddo no Brasil fez, no inicio do século pasado, Henry Koster. Filho de ingleses, nascido em Por- tugal, chegou em terras brasileiras no ano de 1809. No seu livro Travels in Brazil, onde relata suas viagens a0 Nordeste do Brasil, tece notiveis consideragées atinentes a situagdo dos escravos. Obser- vou “in loco” 0 que se passava e, deste modo, suas assertivas tém singular valor. ‘Atesta Koster: “Os escravos no Brasil gozam de maiores vante- gens que seus irmaos nas col6nias britinicas. Os numerosos dias santos para os quais a Religido Catdlica exige observancia dio ao escrayo muitos dias de repouso ou tempo para trabalhar em seu proveito proprio. Em trinta ¢ cinco desses dias e mais nos domingos élhes permitido empregar seu tempo como thes agradar” ®. Atribui 4 opinigo publica forca suficiente para obstar que os senhores dimi- nuissem 0 ntimero destes dias, © que revela uma mentalidade alte mente humanitéria da sociedade de entao. Desce Koster a detalhes sobre as alforrias, porta aberta para a libertagao dos cativos. Revela a influéncia salutar da religido sobre a conduta dos es- cravos: “....tais so os efeitos benéficos da religido crist, que esses fihos adotivos so por ela melhorados em grat infinito © 0 escravo que atende a estrita obscrvancia do cerimonial religioso é, invari velmente, um servidor étimo”, Interessante 0 que Koster observou: “O prdprio escravo deseja ser cristo porque seus companheiros em cada rixa ou pequenina discussio com ele terminam seus insultos com oprobriosos epitetos, com o nome de pagio! © negro nao batizado sente que é um ser inferior e, mesmo nao podendo calcular 0 valor que os brancos dao 20 batismo, deseja que 0 estigma que o mancha seja lavado, ansioso de ser igual aos camaradas” Destaca o papel to relevante das associagdes religiosas: “Os escravos possuem sua Irmandade como as pessoas livres, ¢ a ambicio que empolga geralmente o escravo é ser admitido numa dessas con- fraries, e ser um dos oficiais ou diretores do conselho da sociedade”. 108 Focaliza a terna devocao dos cativos a Nossa Senhora do Rosétio, “algumas vezes, pintada com a face ¢ as mios negras”. Ressalta que “os reis do Congo brasileiros invocam a Nossa Senhora do Rosério © so vestidos como vestem os brancos. Conservam, & verdade, a danca do seu pais, mas nessas festas séo admitidos pretos africanos de outras nagdes”. B que tribos de diversas regides africanas, muitas até rivais na Africa, aqui se irmanavam sob o signo da Mae comum, a Virgem Maria que tanto amavam e veneravam, Que os escravos cram respeitados se deduz deste assento: “Os eseravos no Brasil so regularmente casados de acordo com as férmu- las da Igreja Catélica. Os proclamas so publicados como se fossem para pessoas livres, Tenho visto vérios casais felizes (tdo felizes quanto podem ser os escravos), com grande mimero de filhos cres- cendo ao tedor deles”. Nota ainda Koster que era permitido que os escravos se casassem com pessoas livres. Se a mulher era escrava, 0 filho permanecia cativo; mas se 0 homem era escravo e a mulher forra, o filho era também livre. Apés atenta verificagZo conclui o citado autor: “Nos canaviais pertencentes aos monges beneditinos © aos frades carmelitas € onde © trabalho & dirigido com maior atengdo e ritmo, e, ao mesmo tempo, com maior euidado pelo conforto © bem-estar da escravaria". Acres: centa ele: “Posso falar sobre as propriedades dos beneditinos porque ‘a minha residéncia no Jaguaribe forneceu oportunidade para que examinasse 0 estado dessas administragGes”. Em seguida detalha: “Os escravos de Sdo Bento no Jaguaribe so todos crioulos e atingem a uma centena, As criangas so cuidadosamente instruidas nas ora- ‘Wes pelos negros velhos e 0 hino & Virgem é entoado por todos os escravos, machos © fémeas, sempre possivelmente as” sete horas da noite, que é 2 hora em que a escravaria regressa para casa. Deixam as ctiangas brincar quanto queiram durante a maior parte do dia, € seu tinico encargo é, em horas determinadas, apanhar 0 algodio para as limpadas, separar os feijoes que devem ser cozinhados ou outro servigo nessa espécie. Quando chegam a idad: de dez ou doze anos, as mogas fiam 0 algodao para fazer 0 tecido comum a regio, € 05 rapazes guardam os bois © os cavalos nas pastagens. Se-um menino demonstra predilegao peculiar para qualquer oficio, tomam cuidado que sua inteligencia seja apliceda no objeto da escolha, En sinam miisica a alguns deles para o canto nas festas da igreja do convento. Os casamentos sio favorecidos. Com a idade de dezessete dezoito anos para os homens e quatorze a quinze para as mogis, too muitos enlaces tém lugar, Imediatamente depois de casados, os rapa 2es iniciam a tarefa nos campos. Muitas vezes rapazes e mocas pedem ao feitor para adiantarem sua labuta mais cedo, segundo a regra conventual, € isso ocorre porque nao Ihes ¢ permitido possuir rogas antes de trabalhar para os amos. Quase todos esses trabalhos sto feitos por tarefas e essas terminam as trés horas da tarde, facultando aos trabalhadores uma oportunidade de melhorar suas préprias pro- priedades. Aos escravos pertencem os sébados de cada semana para providenciar sua propria subsisténcia, além dos domingos e dias san- tificados. Os que sic diligentes raramente deixam de comprar sua liberdede. Os monges néo guardam interferéncia alguma quanto as rogarigs dadas aos escravos, e quando um desses morre cu obtém sua lforria, permitem que leguem seu pedaco de terra a qualquer come panheiro de sua escotha. Os escravos alquebrados so carinhosaments previdos de alimento ¢ roupa”. (Grifo nosso.) ‘Testemunha ainda que muitos agricultores tratavam sua escra- varia com carinho, Aids alega textualmente: “Embora os negrot sejam sustentados por seus amos, existindo terras com abundancia permitem aos escravos plantar 0 que quiserem e vender as colheitas a quem Ihes aprouver. Muitos criam galinhas e porcos e, ocasional- mente, um cavalo para alugar e possuir 0 dinheiro Tudo isso mostra que a delicadeza da alma ¢ 0 sentimento fraterno do coragdo, opimos frutos da pregacio crista, moldaram o espirito de intimeros senhores que foram caridosos ¢ humanos. ‘A medida em, que documentos como este de Henry Koster forem estudados € analisados, uma nova visio se terd do contexto escrae yoctata © a religido seré menos agredida com assertivas injustas, profundamente anticientificas. Testemunho de Tollenare As observagées que se seguem, sumamente valiosas para ulte- riores andlises sobre a escravidéo no Brasil, so do francés Louise Frangois de Tollenare. Este cientista morou no Recife nos anos 1816 © 1817 e, posteriormente, na Bahia, regressando & Europa no inicio de 1818. Ele testemunhou aspectos dignos de nota. Bis um trecho suma mente significative: “Entre as atenuagies & cscravido citarei a instrugio religiosa, a guarda dos domingos, 0 casamento diante do altar com o consentimento do senhor, a possibilidade de libertarse ho oferecendo prego a vista, a liberdade & miie de dez filhos, 0 recurso © juiz no caso de castigos severos” “"). Estas pistas precisam ser bem exploradas pois, permanecendo pouco tempo no’ Brasil, a con. clusio de Tollenate earece de maior fundamento: “Estas disposigoes ‘em honra ao legislador; mas, tomo a repetir, o arbitrio © despo, tismo de fato poucas Tacilidades deixam a aplicagio". Com fete quer as assertivas de Henry Koster e de.outros pesquisadores, quer 4 farta documentasao ainda nao analisada, levam a deducio diferente, E que, de fato, na prética milhares foram os cativos manumissos Ais, 0 préprio Tollenare declara: “Um negro economico. ¢ trabalhador, sobretudo destes que tratam os seus senhores tanto or semana, pode formar um pequeno pecilio, que oculta ou deposita em mios figis, € de que se serve pata resgatar a sua liberdade, Como 4 mie que decide da condicdo do filho, qualquer que seja 0 pai, como 0 filho € livre se a mie € livre, eseravo se a mae ¢ eaermva, mesmo quando © pai & livee, teme vislo pais escravos consagrarem © Fro das ss econonis 0 rented mulher que avi trnads mae, em vez de se libertarem a si préprios, fim de garantir liberdade de sia posteidade™ DNS * fim de grand Centradizendo incllusive © que declarou num instante de triste obnubilagie, Tollenare assevera: “O mimero de negros livres e dos snulatos é aqui considerivel; contamse entre eles alfuiates, sapoteires etc., imteligentes e que possuem escravos. Adquirem, por iste, sobre os brancos uma tal superioridade que a linha de demarcagao entre a cores & quase destruida, e com ela o preconceito sobre 0 qual, nas outtes colores, © branco conta tanto para manter o negro na es. exavidio", “ __No momento em que se quer acitrar no Brasil © ravismo, felan- ddo-se em consciéncia negra e outros artficios ideolbgicos, esta outra observasdo de Tollenre merece ser wefletidar "A mista de wake a combinagées de sangue mesclado 6, aliés, tdo grande que a passa. gem de uma cor a outra se fax por uma escala de que a viste mal pode cantar todos os graus”. © eruzamento interracial entre nos foi tum fendmeno que abrasileirou as massas. adventicas. Os Advenas das mais diversas tribos africanas e outros paises agui se mesclaram uma unio fecunda de valores, fermando 0 povo brasileiro. Isto imito concorrs para 0 fim da indeevel_ecrovidio neste pb eM Os traumas © seqiclas ceortidas em cutras plages. Aspe Positives mio sio fosilizadcs polos agoutetes que se compress em forjar situagGes draméticas denegrecendo senhores cristaos, que agiram com cleméncia, ¢ eseravos que eram diligentes ¢ se auto- promoveram. Declara ainda Tollena “Ha negros ricos; mas nenhum se dedica ao comércio; véem-se alguns mulatos armadores de embarca Ges costeiras. Jé disse que s6 0s mulatos, e no os negros, eram admitidos no exército em concorréncia com os brancos, mas hé dois regimentos de negros livres comandados por coronéis negros”. Numa observacdo insuspeita, porque era francés, nascido em Nantes, em 1780, Tollenare atesta: “Enfim, para fazer ver que 0 principio das leis portuguesas é favordvel & raga africana, direi que Henrique Dias, por preco dos servigos que prestou por ocasiio da expulsao dos holandeses em 1654, foi feito gentil-homem e que hoje os seus descendentes sao nobres. Creio que ha outros exemplos semelhantes em outras partes do Brasil”. ‘Tollenare ressalta, além disso, uma faceta importante: *Véem-se muitos escravos que tém pelos seus senhores uma dedicagdo sincera © generosa”, Isto significa que os maus tratos no deviam ser uma constante. Uma “amizade tenaz ¢ atraente”, como a percebeu este francés, nfo podia florescer por entre as sevicias e atos perversos. ‘Adite-se que Tollenare destaca a influicdo benéfica do Estado © da Tgreja, incentivando as reunides livres dos cativos: “A protegao que o governo dispensa a todas as ceriménias religiosas permite aos escraves formar entre si irmandades a exemplo dos homens ‘livres, Estas confrarias tém seus tesoureiros, s{ndicos e outros oficiais; estes cargos lisonjeiam a vaidade dos negros, que acham nisto grande divertimento e fazem para obié-los sacrificios imensos com seus recursos”. Atesta o citado autor a existéncia de numerosas capelas do Recife pertencentes “A confraria de negros escravos”, diante das quais “se acendiam cirios ¢ todas as tardes se entoavam canticos”. No gue tange & admissdo as ordens sacras, diz Tollenare: “Pre- sumo que aqui os negros © mulatos nao podem entrar nas ordens sacras; vi alguns que se tinham ordenado padres © usavam batinas; mas cram da Costa de Angola, onde a sua elevacao as dignidades da Igreja no encontra dificuldades. Na itha de Sio Tomé, perto da Costa da Africa, hé um capitulo portugués de que todos 03 céne- {gos so negros. Iude-se a lei que exclui os negros das ordens reli- giosas. Com um pouco de dinheiro passam por mulatos escuros; hé mesmo exemplo de viagens a Sio Tomé! Entretanto, o nimero de padres negros € diminuio”. Observem-se dois aspectos: havia padres negros, € © que escapou ao citado ciemtista € que os pretos, geral- 2 ‘mente, tinham dificuldade em aprender 0 minimo necessério para serem ordenados. Muitos tinham habilidades priticas, mas encontra- vam dificuldade para estudos mais profundos, 0 que ocorria também com os brancos por causa da deficiéncia do sistema educacional na Colénia. Quanto & atuacdo da Igreja sempre contréria & escravidao, re- gistre-se este depoimento de Tollenare: “Quando os portugueses edmecaram a se estabelecer, fez-se fregtientemente guerrt aos. indi- genas para os reduzir & escravidio; gracas & ativa protegdo dos jesuitas todos eles recuperavam a sua liberdade...” Cumpre fazer um levantamento honesto do que howve no con- texto esclavagista. A escravidao seré sempre execrada, mas a visio da sociedade de entao sera outra. O espirito cristZo amenizou, real- mente, as agruras de uma situagdo provocada pela ambicdo e pelos interesses econdmicos dos que explora e se enriquecem com as desgragas alheias © TRAFICO No que tange ao tréfico de scravos, faceta que deve ser ressal- tada € 0 posicionamento dos tedlogos ante tal mercdncia de seres humanos. E verdade que, diante de um evento insuperavel como o da escraviddo, as ordens religiosas, para poderem sobreviver nas cold- nias € ai pregarem o Evangelho, acabaram por ter escravos. Trata- ‘yam-nos, porém, com suma humanidads, dando testemunho do amor cristo e oferecendo oportunidade de afirmaco do cativo como ser merecedor de respeito. Quanto ao comércio em si, contudo, houve constentemente uma postura de veemente repulsa. E dbvio que, se fosse admitida a comercializaga0, nao haveria o fendmeno escla- vagista na proporgdo em que se dew. Nao estando a seu alcance liqiidar diretamente a triste instituico, 0 fator alimentador da mesma se tornou objeto de enérgica condenacdo, Em 1571, Tomas de Mer- cado, tedlogo de Sevilha, declarava desumana e ilicita a traficancia, tanto mais que instaurava uma Iuta fratricida entre os proprios africanos. Estes, no afa do lucro, reduziam ao cativeiro, em maior niimero, seus préprios irmaos de cor para vendé-los aos comerciantes inescrupulosos. Segundo o referido moralista em sua Summa de tratos, y contratos ..., no havia justificativa alguma para negécio tao infame, © escandaloso ato de mercadejar pessoas era, realmente, cho- 43 cante, Foi execrado pela consci que nfo podia acata tamanha injustice e violencia. A depravacao dos mercadores, com ruptos negociantes de carne humana, mereceu a imprecagio d& Igreja, numa reagfo coerente horripila situacdo. As bulas papal eram claras, condenando o tréfico de seres humanos ©), £ ‘A ganancia, todavia, falou mais alto. O crime imperou, emborty 6 evidente, nao pudessem freqiientar os sacramentos aqueles que W davam ao’ nefando comércio, Lamentivel fato: © homem reduzid@ ‘a mercadoria, comprado, vendido, trocado, exposto & avaliagio pl blica de poderosos senhores! Iniquos exploradores que através di hist6ria sugaram a forga de trabalho do préximo. Anticristas at cenas proporcionadas acs entrepostos. Cerea de duzentos © dez mit thoes de cativos é 0 volume dos que foram entregues & escravidlay Muitos morreram na prépria Africa. A maior parte transitou pele Oceano AUlintico, Vilipendiados pelos proprios semelhantes, fora imas de comerciantes sem escriipulos, estes, sim, os culpados d@ tanta iniqiiidade. Através de outras rotas, como a transaariana, a d@ Mar Vermelho ¢ a do Oceano Indico, a acao diabética dos negocinte tes dtenou também africanos para a Europa e a Asia. Mercadg’ internacional de transagGes perversas, jamais aprovado pelos Sumo Pontifices e pela teologia catélica. Quatro séculos de um comérelgt que nada de proveitoso trouxe ao continente africano, que fico exaurido, dizimado, despovoado. O desenvolvimento da Africa nl@ recebeu nenhum impulso das vultosas quantias, pois os ganhos prow venientes da compra e venda dos negros nao foram Id aplicados. OF efeitos negativos do trifico até hoje perduram, como 0 subpovoud mento que acarretou profundos desequilibrios econdmicos. Catastre fica a pungio humana feita no continente africano, privando-o 46 sua gente, Honta, pois, & Igreja que nunca deu seu aval as pérfidas expie digdes negreiras que tanto mal causaram, erguendo sua voz, desde 7 de outubro de 1462, quando Pio II denunciou 0 trifico coma magn seelus (enorme crime), ordenando se aplicassem sangdes quem se entregasse ao mesmo. Convém salientar que, quanto aos portugueses, & certo no sat objetivo primeiro de suas conquistas, aps a tomada de Cev'a, em 1415, 0 comércio de negros. Este, contudo, era uma teelvade ni Europa, Foran as circunstincias econdmicas, advindss das demula descobertas, que incitaram a adesio a indesejavel captura © vena de africanos. Os metais preciosos as especiarias das Indias foram ha a meta, depois desvirtuadas no devorrer dos séculos XV e XVI. Umn aspecto nem sempre bem focalizado € este: desde a anti- viidade a escravatura fazia parte do modus vivendi das tribos da Africa Ocidental, que se estende sobre cs territérios do Senegal © da Gambia, bem como era accita pelo sistema social dos guineenses. Certa @ afirmativa de Mbaye Gueye: “O tréfico negreiro constituiu uuma atividade muito entiga em Africa, Nao foram os europens que © inventaram” ®, Lembra o citado autor, baseado em Mungo Park ©, que “os corretores africanos preferiam os home: ws nascid © muthe- na escravatura aos homens livres reduzidos a servidio, Isto porque, habituados A fome e & fadiga, os primeiros suportavam melhor os sofrimentos das viagens longas. Resignavam-se sua triste sorte, Como nunca tinham experimentado as delicias da Tiberdade, achavam provavelmente normal @ situagdo em que se sheontravam Nao implicavam qualquer risco para os comerciantes indigenas, pois nunca procuravam evadirse” ‘*), Na priso © condugdo até o litoral tus negros, feitos prisioneiros pelos prOprios africanos, eram trateados jgnominiosamente e sofriam os piores tratamentos, sendo que os menos aptos na dolorosa marcha a eram deixados, jogados & prdpria sina. Tornavam-se alimento de hienas © chacais! Foram os prdprivs etfupes que deram aos estrangeiros a idgia horrenda de meus tratos aos catives, tratando-cs arbitrariamente, “ligados dois a dois ela nuca por paus bifurcados nos extremes dle descanso eram postos a ferros antes de se poderem dei Adite-se ter afirmado Lacourbe, o qual visitou a Africa em 1686, que um cavaio arabe era trocado por 25 escravos '™, Pruneau de Vommegorge, em 1786, atesta ter visto um chee negro transacionar Durante os momentos tim cavalo por “com eativos © cem bois” *"", Tornar-se escravo era, slém disso, uma chance para prisioneiros de guerra ou elementos condenados por cutros crimes. Os portugueses passaram inicialmente 4 permutar escravos por mercadorias. Era, positis ponendis, o que 1 dé hoje com a troca de reféns por armamentos bélicos ou quanti wvultadas pagas a soqiiestradores. Acrescente-se que, além deste co- méreio por cdmbio, originado de um fato pré-existente da waitre povos africanos, j havia intensa mercdncia de escravos feite yelos arabes. Com o evoluir dos acontecimentos, mormente apés Hom Afonso, que reinow até 1453, os reis de Portugal perderam de sez o controle sobre a situacdo e os colonos passaram a importer ultidées de africanos, Instalou-se 0 sombrio império dos mercado- ves que, incfus judicavam a Coroa, no pagando os impostos us devidos. O certo que a Africa passou a ser considerada ‘nica ¢ exclusivamente um centro fornecedor de mio-de-obra para as demal colinias. Importincia capital teve o desenvolvimento da cultura da cana-de-agticar. Componente decisivo para a extensfio que teve 0 tréfico foi, realmente, a procura de méo-de-obra barata e abundante, Para fazer frente aos fraudulentos, o rei portugués passou a concedet licenga com um imposto ser pago per capita, Légubre modo de artecadar dinheito, mais ou menos como ocorre no “civilizado’ século XX, quando somas fabulosas caem nos coftes piblicos com © que se cobra, por exemplo, sobre a franguia dos cigarros que matam milhdes de pessoas, ano apés ano! trafico, que vigorou quatrocentos anos, s6 seria abolido no sulo XIX, com dificuldades de toda espécie, levantadas pelor {mpios contrabandistas, culpados por prolongar o especiro hediondo da compra e venda de homens. A engrenagem secular do comérc negreiro, a duras penas, foi desmontada, Nao foi facil desenraizar uma instituigo que perdurow durante tanto tempo. Lamentavel pagl na da histéria esta do trifico e cometcializacio de “mercadori bipedes”, concretizaco do pensamento de Plauto que, com razai asseverou: hemo hominis lupus — o homem é um lobo para outro homem, Verdade que continua cristalina nas injusticas © demai desvios cometidos na sociedade hodierna, Preocupados, porém, em pintar com cores sinistras os assim chamados tumbeiros ou timulos flutuantes, alguns autores criam cenas incrfvejs, Robert Edgard Conrad, que aborda 0 tema com evidentes exageros, escreve: “Aspecto notério do tréfico, a sobrecarga foi algumas vezes dramaticamente revelada ao mundo em desenhos de cortes transversais de navios retratando homens, mulheres © crian- gas deitados lado a lado entre os conveses de escravos, as pernas amarradas, sua nica vestimenta constituindo-se de um reduzido pedaco de pano envolto em torno dos quadris — este tiltimo talvez, mais em deferéncia aos padrdes europeus de moralidade do que & realidade, uma vez que os escravos normalmente iam nus nos navios” (™) Também ao s ler 0 Navio Negreiro, de Castro Alves, logo se nota que ele tragou quadro inteiramente itreal. Focaliza-se a malva- dez irracional do branco e um dangar histérico do negro, surgindo encenagao despropositada. A ftiria é © pano de fundo de situacdo forjada, que contribui para fixar o erro. A emocionalidade predomina, favorecendo um clima artificial. he Eis um trecho realmente légubre: Era um sonho dantesco ... © tombaditho Que das luzes avermelha © britho, Em sangue a se banhar: Tinir de ferro... estalagar de agoite . Legides de homens negros como a noite, Horrendos # dangar. E rise a orquestra irdnica, estridente E da ronda fantéstica a serpente Faz douras espirais. . Se o velho arqueja, se no chéo resvala Ouvem-se gritos ... 0 chicote estala. E voam mais © mais Presa nos elos de uma s6 cadeia, A multidio faminta cambaleia E chora ¢ danca ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que de martirios embrutece, Cantando geme e ri! No entanto o capitio manda a manobra, E apés fitando o eéu que se desdobra Tio puro sobre © mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: “Vibrai_rijo 0 chicote, marinheiros! Fazei-os mais dangar!...* “"" Demitizar © tréfico € importante tarefa histérica. A campanha abolicionista, no afa de atingir seus nobres fins, exagerou os males que cercavam os escravos e carregou as tintas para deserever a detes- tavel_instituigao. José Goncalves Salvador mostra que as embarcagdes no eram todas iguais. Fabricadas especialmente para transportar africanos, tinham divisoes apropriadas com lugares reservados para os homens, as mulheres, as criangas ¢ até para as senhoras gravidas Eduardo Etzel, apés andlise apurada de documentos, revela que “os negros no viajavam acorrentados no porio do navio mas sim livres no tombaditho” "5), © nimero de mortos nao atingia as pro- porgdes fantésticas que o sensacionalisino de varias obras encerra. “7 © holandés Herman Watjen destacou os seguintes pontos potle tivos da parte dos portugueses: asscio a bordo, boa alimentaglo, fornecimento de cobettores aos negros, baixo niimero de ébitos na travessias "), E bom que se recorde também que a navegagio até 0 séuula XIX era precdria. Assim, por exemplo, a vinda da corte portugueat para 0 Brasil em 1808 foi dramética. Os que acompanharam D. Joo VI passeram maus momentos com os insetos que soem parasitar @ homem, animais e plantas, entre cles os hemipteros da familia dou pedicilidas (pediculus capitis). As condigdes higiénicas nao eram 3 mais desejaveis ¢ limitado 0 conforto que as embarcagses da époce ofereciam. A interpretagio mais profunda do trético faré com que de maneita mais realista se trate este triste capftulo do contexto esctue vocrata. Etzel, com razio, asseverou: “Nao se negam, em absoluto, at tragédias © as crugis condigGes de travessia, mas também nio se pode, contra os mais simples principios da lgica, generalizar” "7, Serta na verdade, uma estulticia dos traficantes, que visavam lucro, acabat com a vida daqueles que iriam ser vendidos numa execravel trans gio, Acrobacias fazem certos escritores para explicar a tese da total desumanidade do trifico e da elevada taxa de mortalidade, Jogar com categorias das modernas ciéncias contabeis € forcar justificagBea imagindtias. E colocar na cabega dos tumbeiros racioeinios de um administrador de empresa do século XX que calcula seus riscos na compra ¢ venda de mercadorias, municiado com dados estatisticos @ utilizando, muitas vezes, os recursos da informatica ‘A destrmana traficancia de africanos, apesar de toda repulsa que causa, deve, portanto, também ser vista com iseng#o de animo. PALMARES Apesar de certa corrente combater veementemente a exaltagio de herdis, asseverando, alids, gratuitamente, muitas vezes, que isto leva & geragdo de mitos, adeptos deste modo de ver resolveram agora endeusar Zumbi. Certo hebdomadério recentemente publicou entrevista com “pes quisadora © especialista em Cultura Negra”, a qual assegurou que © Movimento Negro ndo comemora 0 13 de maio, dia da Aboligéo da Escravatura, mas 0 20 de novembro, dia da morte de Zumbi. No ng dizer da entrevistada, “ele € um dos nomes que a hist6ria oficial Ele, realmente, foi © maior dos representantes dos negros, na sua época, ¢ no quilombo dos Palmares houve uma socializacdo, uma irmandade, até que foi destruido. Zumbi € um dos nossos grandes hersis” Nao consta que o nome ¢ as atividades de Zumbi ndo aparegam. nos antigos manuais de Histéria, que sio vistos como transmissores do. pensamento dos dominadores. Historiadores cléssicos, outrossim, falam da epopéia palmarina e de sua personagem maior, como se vé nas obras de Oliveira Lima, Rocha Pombo, Joao Ribeiro, Rocha Pita € tantos outros. Devesse Ievar em conta que certa tendéncia na historiogratia contemporinea levou a biografia a ser execrada. Sob a condenacao do culto dos herdis se alinharam atitudes extremadas. Desde 0 que se chamou a derrubada dos mitos até & marginalizagdo de persona- gens que marcaram época. Collingwood, na sua obra The Idea of History, mostra que “a biografia por muita histéria que contenha constraida segundo princfpios que ndo apenas nfo séo_hist6ricos, como so também antichistéricos”. Raymond Aron, na Introduction 4 Ia Philosophie de P'Histoire, considera também 0 género biogrifico 0. Se é certo que muitos bidgrafos merecem criticas por se terem limitado apenas a privilegiar as qualidades excepcionais de certos individuos, por se terem perdido em detalhes irrelevantes ov destacado figuras menos expressivas em detrimento das atividades dos grandes homens, nem por isto se pode negligenciar a presenga daqucles que exerceram real influencia em determinado contexto. Com efeito, estudar a obra de certos vardes proeminentes ter uma visio sintética de todo um periodo ¢ até de uma civilizagio apre- endida através de um de seus expoentes. Trata-se de pingar a curva de um destino carismético de que alguns foram revestidos, ostentando uma gama extraordinéria de virtualidades. Alids, seia dito que, nesta década de oitenta, ha na Franga uma onda de “publicagdo de biogra- fias de personagens hist6ricos, de homens politicos, de memérias, de récits de vidas. Uma espécie de busca de uma meméria perdida comeca a ativar a histéria neste momento”, Esta é uma observacao da historiadora Helenice Rodrigues da Silva, em capitulo publicado na “Revista Brasileira de Histéria”, da ANPUH, marco/agosto de 1986. A epigrafe do texto em tela é significativa: “Novas tendéncias na historiografia francesa nos anos 80' Sob este aspeoto é valid que se estude com equilibrio © bom 19 senso a trajet6ria revoluctondria do principal lider de Palmares. E Gbvio nunca ter havido nada a impedir que pesquisadores trouxessem a lume as peripécias referentes a Zumbi. Hoje, inimeron so os escritos que aparecem sobre Palmares ¢ cumpre se analise até onde as afirmativas correspondem a realidade, Nina Rodrigues, que conviveu com o sistema escravocrata, en- trevistou escravos e durante quinze anos pesquisou a questio africana no Brasil, assim se referia a Zumbi pelos idos de 1906: “Por um lado 6 certo que havia em Palmares, além do Zambi rei, diversos Zambis generais, de sorte que podia muito bem ter sucedido que um Zambl tivesse sido traido © morto em combate, outro tivesse sido morto © decapitado pelo capitio Mendonca, ¢ um terceiro finalmente se pre- cipitado do penhasco. Por outro lado, Zambi nao era o nome de um individuo, mas 0 titulo de um cargo. Nada impede, portanto, que um Zambi, na tomada da cidade principal, se tivesse precipitado na montanha, ¢ 0 Zambi, que 0 sucedeu na diregio das forgas dis- persas, fosse traido, encontrado reduzido ao extremo que descreve, € morto em combate. Esta interpretagao é tanto mais accitével quan- do se sabe que a destruigéo do quilombo néo parece ter coincidido com a tomada da cidade sitiada, pois ainda por alguns anos teve 0 governo de bater pequenos redutos ow mocambos de negros fur gidos” "), Décio Freitas declara que, “se no século XVII 0 equivoco sobre ‘a morte de Zumbi se dissipou poucos meses apds a queda de Macaco, jd na historiografia brasileira perdurou por dois séculos ¢ meio trans- figurado em lenda romantica: vendo-se perdido e preferindo a morte 20 cativeiro, Zumbi se teria precipitado no despenhadeiro com cen tenares de companheiros. Escapara com vida ao cruento combate ¢ nos meses subseqiientes tratara desesperadamente de reagtupar os restos de seu exército” "), Sobre a morte de Zumbi, este autor relata que ele se abrigara na mata, com uma guarda de 20 homens, tendo sido denunciado por Anténio Soares, mulato de sua confianga. Este, com cfeito, foi preso e, sob torturas, nfo s6 revelou o esconderijo do lider pelmarino como também o apunhalou no estémago '%”. Zumbi lutou bravar ‘mente até o tltimo instante e, “em carta de 14 de margo de 1696 para o rei, Melo e Castro contou que Zumbi pelejou valorosa e deses- peradamente, matando um, ferindo alguns ¢, nfio querendo render-se nem 20s companheircs, foi preciso maté-los © s6 a um se apanhou vivo. Deu-se isto no dia 20 de novembro de 1695" (?"). 120 A presenca de Zumbi foi notivel pela lideranga indiscutivel que exerceu em Palmares e, na verdade, no momento mais crucial do renhimento pela extingdo daquela comunidade. O paulista Domingos Jorge Velho encontrou pela frente os comandados de Zumbi cora josos © destemidos. Foram quatro anos de combates durissimos ‘2, ‘Ap6s sua morte, Camoanga continuo a luta, mas jé no infcio do século XVIII os remanescentes palmarinos estavam totalmente dis- persos. Desde 1630, a Repdblica de Palmares retivera a atengao dos governantes coloniais, Mais de meio século de horripilas pugnas! Zumbi, cujo nome de batismo era Francisco, nascera numa povoacio palmarina e foi educado pelo padre lusitano Anténio Melo, de quem foi coroinha. O sacerdote jamais tratou seu protegido como escravo, elogiando sempre 0 génio e engenho do menino. Em 1670, aos quinze anos de idade, Francisco fugiu para Palmares © trocou © nome. Ele, jé como chefe do quilombo, visitou diversas vezes 0 padre Melo, em Porto Calvo, 0 que revela seu espirito de gratidao para com seu benfeitor © a compreensio do eclesiistico do que ocorria em Palmares. Em 1644, a populacao palmarina era de cerca de dez mil ca- hemboras, ntimero que logo duplicou, ocupando uma drea de 27.000 quilémetros quadrados, terreno fértil, que rapidamente respondeu ‘aos labores dos quilombolas. Contra cles houve duas expedigdes malogradas dos holandeses, e Portugal iniciou o ataque sistemético em 1654. Palmares foi, de fato, a mais expressiva manifestagio do_pro- testo negro © merece especial atencdo dos historiadores, Resta saber até que ponto contribuiu mesmo para a desarticulagao do cativeiro, em meio a todos os fatores que quase dois séculos depois levaram 0 decisivo ato juridico de 13 de maio de 1888, GENERALIZAGOES TEORICAS Quem perlustra a historiografia da escravidio no Brasil depara com duas correntes que, por serem extremistas, no apresentam uma se objetiva e abrangente da questio escravocrata. Uma realya, igeradamente, a passividade do africano e destaca, indiscriminada- mente, @ cordialidade dos senhores patriarcais; outra, mais recente, enfatiza sobremaneira a rebeliio negra como o aspecto negligenciado pela hist6rla oficial © privilegia este fendmeno, apresentado, entao, como o fator supremo da desintegragio do regime eseravista. Com o avangar das pesquisas € 0 aprofundar das interpretagdes 121 se chegaré a uma sinte que patenteie as varias conexdes causais que levaram fatalmente 4 aboliggo da nefanda sujeigo social e econdmica a que eram submetidos seres humanos transportados da Africa. Cumpre se pincem, na complexa teia das relagGes senhor/escravo, facetas as mais variadas, sob pena de se visualizar o tema em tela apenas sob determinado ngulo. Se & verdade que a rebeldis negra era uma constante ¢ isto abalava a estrutura sécio-econdmica vigente, & certo também que no se devem obliterar estes fatores: a influéncia decisiva dos prineipion evangélicos com sua mensagem cristi de liberdade, exaltando a dignk dade da pessoa humana; 0 niimero clevado das manumiss6es; 0 esforgo pessoal @ consciente dos escravos que trabalhavam para obter tals alforrias; a atuago dos mamposteiros; as oportunidades oferecidas pela Igreja para que 03 escravos se agrupassem e exercitassem a de- mocracia; a origem dos negros ¢ o perfil caracterolégico de cada um, a percepcio de que o trabalho assalariado era mais rendoso, © que se nota é ainda muita generalizagdo sob 0 ponto de vista te6tico e, nem sempre, se localizam os fatos em determinado tempo e lugar, © que se passou numa certa regido é estendido a todo o Brasil numa condendvel conclusio a ultrapassar as premissas, estas, além disto, quase nunca bem apreendidas. Aqueles que acentuam as revolias dos escravos se esquecem, por exemplo, que a partir de 1798 hayia no Brasil cerca de 406.000 negros livres, mimero este que foi gradativamente crescendo, A estatistica completa esté ainda por ser feita Observou retamente Charles Wagley: “No Brasil, desde que 0 negro e o mulato tiveram acesso & liberdade, eles gozaram dos direitox civicos ¢ participaram da vida piblica. Grande mimero de individuos descendentes, parcial ou totalmente, de africanos exerceram um papel importante na vida cultural e politica do Brasil” ®, Acrescenta este cientista social que “no momento da aboli¢ao da escravatura a classe livre intermediéria, formada de representantes dos grupos raciais ne- gro, indio ¢ branco e um grande néimero de mesticos, era numer mente mais importante do que a elite branca, de um lado, ¢ do que a classe dos escravos negros, de outra parte” (24), Portanto, nao foi apenas a dicotomia senhor/escravo que minou © sistema eseravocrata. Harry W. Hutchinson ressalta esta outra faceta néo menos rele- vante: “Ainda que a escravidio tenha sido no Brasil, como alhures ‘uma instituigdo desumana, as relagdes entre 0 escravo e 0 senhot 122 tiveram ai um caréter mais pessoal do que em muitas outras regides do Novo Mundo” ), Isto mostra que a sublevagio nio foi uma téni- ca neste pais. Este mesmo autor, que fez profundos estudos sobre as relagSes raciais na comunidade rural do Reconcavo Baiano, ressalta: “Em toda esta regido do Brasil, as relagdes entre membros de raciais diferentes foram influenciadas pela importéneia num populacdo nezta, pelo papel que a escravidio exercia ainda em uma data assaz recente © pela forma particular que as rel escrevo negro © o senhor europeu tinham nas plantagdes” ®), Apés ampla andlise do que observow na Vila Recéncavo, Hutchinson con- cluis “Nao ha na Vila Recéncavo problema de raga; 0 preconceito € a disctiminaco nfo exercem ai os mesmos efeitos que em certas outres partes do mundo ocidental. Um negro nao pode se tornar ‘membro da aristocracia, mas um negro instruido que adquiriu certa fortuna pode manter com esta classe boas relagdes. Uma ascendéncia negra restringe muito, sem duivida, a mobilidade econdmica ou pol tica do individuo, mas nao hé nenhuma sittagdo econémica ou poli- fica @ qual um homem de origem negra ou mestica nfo possa ascen- der”), Acentua: “Por outra, nenhume atividade social é proibida a0 homem de cor com a condicao de que ele seja suficientemente rico € instruido para a exercer” %, ‘Ses entre 0 ‘Tudo isso revela que, sem se chegar 20 mito da democ: ‘um elemento que sempre trabalhou as mentes no Bra que o ser humano merece, Ainda que, na efervescéncia da ocupacao territorial e no estuar da gandncia dos lucros de uma répida producio nOmica, esta consciéncia tenha ficado obscurecida e se tenha bus- cado razées que, juridicamente, justificassem a instituicdo servil, a verdade & que esta esteve sendo continuamente carcomida por pode- ros0s € satiltiplos fatores. E preciso se reflita na magnifica conclusio de Charles Wagley sobre 0 que, de fato, ocorreu no Brasil: “Nesta aco, nascida da miscigenacio entre trés grupos raciais diferentes, compostos de descendentes de escravos e senhores, nasceu uma so ciedade que, nas relagdes entre individuos, ao invés de questées de raca, faz circular os valores humanos e sociais” " EX-ESCRAVOS NA AFRICA ia racial, foi o respeito As numerosas manumissdes que se deram no Brasil durante o sistema escravocrata fizeram surgir um sério problema atinente aos negros forros: a questéo da seguranca nacional, Como mostra Joao José Reis, “em 1808 foi feito um censo de Salvador e 13 frequesias 123 rurais pertencentes & comarca da Bahia (0 que exclufa Cachoeira, San- to Amaro e o sul da entio capitania) ¢ 0 resultado foi © seguinte: 50.451 brancos, 1.465 indios, 104.285 negros e mulatos livres ou alfortiados, € 93.115 escravos negros ¢ mulatos. Havia entio 156.199 pessoas livres (62,7%) e 95.115 escravos (37,3%) numa populacio total de 249.514. Os brancos apareciam como 20,2%, ¢ a maioria dos hhabitantes, os negros e mestigos livres e alforriados, eram 41,8%” °°) Ocorrera no Haiti, em 1791, uma violenta revolta dos escravos dirigida por Toussaint Louverture e isto chamou a atengdo no Brasil para o desequilfbrio populactonal, tanto mais que grande era o res- sentimento das pessoas de cor pelo estado de cativeiro a que foram submetidas. As lutas que marcaram 0 perfodo da escravidio eram ‘outro ingrediente que alimentava os temores da populagio branca. Antes da Lei Aurea era um sentimento corrente serem os libertos agentes de rebelides, aliados natos dos insurretos. Foi a Malés, em 1835, na Bahia, a detonadora de um processo dissimulado ou patente contra os forros, forgando a emigracao para a Africa. O hi pério queria velada ow claramente que eles deixassem o pats, abri do-se mesmo a perspectiva da formagao de colénias no continente africano, num auténtico repatriamento imposto. Os africanos livres viram-se imersos em profunda inseguranga ¢ a prises se multiplicavam sob acusagdes, muitas vezes levianas, de conluios secretos, conspiratas, visando.sublever os escravos. Era a forma de pressio mais agressiva, objetivando a volta deles a0 conti- rnente africano ou o ingresso no trabalho agricola, pois no, campo o sistema de controle funcionava. s por que aconteceu a formacao de micleos de brasileiros na sa. Lagos, capital da Nigéria, no golfo de Benin, abrigou um significativo grupo de 4dvenas do Brasil, bem como outros portos costeira, A atividade principal era o comércio, chegando muitos a constituirem grandes fortunas. Deu-se, entdo, 0 reverso da medalha: outrora eram os africanos que no Brasil pranteavam a pé- tria; agora eram brasileiros que na Africa sentiam saudades intensas da terra fongingua. Implantavam, porém, cm outro solo, onde tinham suas raizes, a cultura crist® haurida na Terra de Santa Cruz. As festas litirgicas cram comemoradas com pompa ¢ piedade, como o Natal, a Epifania, a Péscoa, a Imaculada Conceigio, merecendo espe- cial esplendor a procissio de Corpus Christi. A religido catélica impregnava a vida desses exilados, sobretudo em Lagos, e se tornou a caracteristica marcante da comunidade expul- 124 sa de seu pais. Os santos populares eram cultuados com fervor, mor mente Santo Antonio, Sao Benedito e Santa Efigénia. As igrejas, cons- truidas pelos fi¢is, ficavam superlotadas para as ceriménias celebradas ot missionérios europeus, que vibravam com a fé daquela gente tao religiosa. Floresceram as irmandades e dai serem os enterros solenes tum dos pontos altos da participago dos membros a orarem pelas al- mas dos irmaos falecidos. As escolas, como instrumento de evangeli zagio, foram abertas com éxito ¢ nelas se formaram lideres catdlicos influentes. Jerry Michael Turner fez excelentes estudos sobre 0s catélicos no Daomé, onde o catolicismo foi também praticado por uma comu- nidade ativa e fervorosa E de se notar que, apesar das dificuldades naturais & fragilidade humana, no que tange & observancia integral ¢ perfeita dos preceitos divinos € eclesidsticos, 0 catolicismo na Africa, no decurso do século XIX, ficou inteiramente imune de rupturas com Roma, F certo que houve niicleos brasilciros que eram islamicos © mesmo catGlicos que aderiam a rituais africanos ou mulcumanos, mas a maioria era fiel aos prineipios da verdadcira Igreja de Cristo. Assim se expressa Manucla Ligeti Carneiro da Cunha: “Os brasileiros se apropriaram do catoli- cismo. A significacio exata deste ponto no é que todos os brasileiros fossem catdlicos — muitos eram exclusivamente mulgumanos, alguns se tornaram protestantes, alguns, sobretudo no interior, voltaram aos cultos tradicionais — nem que todos os catdlicos tivessem um culto brasileiro... A questio era, sim, que todo converso catdlico se tornava ipso facto brasileiro, Vérios indicios: 0 termo aguda (derivado de Ajuda?) significava ao mesmo tempo catélico e brasileiro; os padres implicitamente sustentavam a apropriagio pois, embora eles proprios fossem franceses e em pais de lingua inglesa, batizavam os conversos — quaisquer que fossem suas crigens — com nomes portuguese. ‘Ainda em 1908 o bispo Lang batiza um jebu, em Esure, mudando-lhe © nome de Jonathan para Lourenco! ‘2! Hé muito que se estudar ainda sobre os negros brasileiros retor- nados & Africa, Um capitulo, sem dtivida, a revelar a religiosidade que auferiram no Brasil ¢ 0 quanto continuaram a prezar, além-mar, a Igreja que, persistentemente, pugnou pelos deserdados © oprimidos. AS ALFORRIAS Outra faceta da escravidiio a ser objeto de maiores investigagdes € 0 caso das alforrias. Jacob Gorender fez, na sua divulgada obra O 125 Eseravismo Colonial, esta apressada assertiva: “Conquanto faltem estatisticas a respeito, no seré demasiado supor que elevada percen- tagem dos alforriados pertencesse & categoria dos invalidos” ), Trata-se de uma declarago anticientifica sob varios aspectos. Hagdo ilegitima, suposigdo infundada, generalizagio gratuita, informacéo fan- tasiosa de um autor cuja obra est nas mios dos universitérios e tem Co atrativo de seu referencial tedrico marxista, por sinal trabalhado com maestria dentro da ética adotada. A esperanca da manumissio permeia o sistema escravocrata, lan- gando sempre raios Iucentes sobre os pobtes cativos. Cumpre, antes de tudo, se ressalte que a alforria era concedida em intimeras oportunidades, como por ocasido do batismo, de certas festas familiares, dos testamentos, de visitas episcopais. Incontaveis, além disso, 0s que compravam sua libertacdo ou conseguiam isto atta- vyés de padrinhos e madrinhas que thes propiciavam a almejada liber- dade, Dava-se alforria também como recompensa a lealdade no set- vigo. Adite-se que libertos ajudavam membros da mesma etnia a obte m sua libertago, sendo que as Inmandades emprestavam dinheiro para que 0 cativo se tomnasse foro. Havia, outrossim, o sistema de coartaglo, ot seja, se ajustava um prego e 0 escravo ia pagando as prestagdes. Feito o acordo, 0 cativo ja gozava de varios privilégios do homem livre, Este foi um caminho répido para inumeraveis alforrias ‘Actescente-se que escravos, ao delatar um contrabando, eram liberta- dos pelo Estado. Os cativos que encontrassem diamantes acima de 20 quilates eram também alforriados. Muitos senhores, por causa de necessidade, alforriavam seus escravos por prego bem inferior a0 do mercado. Herbert S. Klein, doutor pela Universidade de Chicago, expert em hist6ria econémica e social da América Latina © dos Estados Unidos, Jangou recentemente 0 livro African Slavery in Latin America end the Caribbean, no qual exara opinido exatamente contraria a de Gorender. Apés seus maduros estudos, assevera: “Acreditou-se, inicial mente, que 0s ibéricos — com mentalidade mais voltada para 0 eco- rndmico — estavam simplesmente libertando seus escravos mais velhos © enfermos. Mas nao foi este 0 caso. Em virtude da alta participagao de criangas ¢ adultos jovens, a média de escravos alforriados, numa amostra de quase sete mil casos em Salvador, entre 1684 ¢ 1745, era de 15 anos” Observa Klein: “Na época do primeiro censo nacional, em 1872, havia 4,2 milhdes de pessoas de cor livres, e 1,5 milho de escravos. 126 As pessoas de cor livres néio apenas ultrapassavam em numero os 3,8 milhdes de brancos, como representavam 43% da populagio brasileira, de 10 milhdes de habitantes — tudo isto mais de uma década antes da aboligao da escravatura, Havia, & claro, algumas variagoes de re- sido para regido. No Nordeste, a populagao de cor livre jé era domi ante na primeira parte do século XIX. Pernambuco tinha 127 mil pessoas de cor ¢ metade deste mimero de escravos em 1839. Esta proporeio parece ter sido tipica também da Bahia e do Maranhio. Em contraste, a provincia do Rio de Janeiro era tnica pelo fato de posstiir mais escravos que pessoas de cor livres em 1872, enguanto Minas Gerais ¢ Sao Paulo tinham, na mesma época, mais libertos que eseravos. Sao Paulo tinha chegado a esta proporgdo muito recente: mente, mas Minas Gerais provavelmente tinha mais libertos na. dk cada de 20. As pessoas de cor livres estavam bem representadas em toda parte, embora fossem mais numerosas no Nordeste. Os dois maiores Estados onde residiam, em 1872, eram a Bahia, com 830 mil, © Minas Gerais — também o maior Estado escravista —, com 806 mil” ‘A antropéloga Manuela Ligeti Cameiro da Cunha ressalta que “a investigagdo sobre a ideologia da alforria permite uma visio reno- vada: sim, houve uma politica de alforria relativamente generalizade mas que se assentou em um sistema de convivéncias paiemalistas” Neste processo humanitério de libertagio dos cativos foi extraor dindrio o papel da Igreja incentivands as formas de liberdade, incre meniando uma politica liberal de ascensio social dos libertos © pr gando o respeito & dignidade humana. A leniéncia de tantos senhores se deve & pregagio continua dos principios cristdos, sempre favoré- veis & manumissio. Dai o grande nimero de forros. Os documentos se multiplicam nos Arquivos Civis e Eclesisticos, atestando o esforgo evangélico expendido em prol dos escravos, congregando iniciativas antiescravistas. NEO-RACISMO Um outro mito que hoje provoca antitese de terriveis seqiielas € 0 condensado pela malograda tese da inferioridade racial. Alicercada em preconceitos genéticos e racistas de uma pretensa superioridade da raga branca e degeneracao dos mesticos, foi o leitmotiv dos escritos do século passado, Joseph Arthur, conde Gobineau, diplomata e escritor francés, através da obra Essai sur (Incgalité des Races Humaines (1855-1855), influenciou os apologistas do racismo germanico. Ele 7 preconizou uma teoria da hierarquia entre as ragas humanas. A raya que deve dominar seria a raga loura, dolicocéfala, entéo ocupando regido da Inglaterra, da Bélgica e do norte da Franga. Os te6ricos do sacismo ¢ do pangermanismo souberam explorar essas idéias para dur suporte as ambigdes alemis de dominio do mundo. Tanto isto é ve dade que, na Conferéncia de Berlim (1884-1855), convocada por Bismarck, os representantes da Europa e da América consideraram Gs negros “menores”, devendo em conseqiiéncia ser confiados & sux tutela, Antes da desastrada doutrina de Gobineau, Robert Knox, na Inglaterra, jéabsolutizara o ensinamento de predominio racial no sew livro Races of Men, de 1850, tornando-se 0 pai do mito racial dos anglo-sax6es. Pulularam outros escritos que cunharam expressOes altar ‘mente condenéveis, aliadas a outres ndo menos falaciosas de uma pseudo-eugenia, No Brasil, a obsessio pelo “branqueamento” da raga gerou uma série de medidas esdrixulas por parte dos abolicionistas. Estes no permitiram a imigragio chinesa por a julgarem um dbice & clareagio dos brasileiros! No cere deste discurso estd, € bvio, o indesejavel racismo, a superioridade absoluta de valores étnicos. Visio esta triunfa- lista, bisonha ¢ fétua, Por mais estapalrdia que possa parecer esta maneira desumana de pensar, atualmente no Brasil se esté criando tum outro mito: sua antitese, ou seja, a necessidade de se preservar a nogritude. Esta em voga a intensa propaganda do enegrecimento, Um faio novo surge e sérios podem ser seus resultados. Despertar @ cons- ciéncia negra e estabelecer 0 culto da cor, a idolatria da pigmentagéo da pele, numa exaltagiio mérbida da pretura, é a missio ingl6ria dos novos profetas da luta de classes, bem na linha marxiana de desesta- bilizagdo da ordem social. E um outro tipo de racismo, baseado no falso pressuposto de que ainda reina o ideal do branqueamento ou que perdura uma estratégia de dominacao dos brancos. & sempre pperigoso e antipatriético acirrar tensdes raciais, num processo inten- cional que privilegia os contrastes. Para espanto de muitos, houve quem propusesse que o dia de Zumbi dos Palmares fosse decretado feriado nacional! Por alguns 20 de novembro € considerado agora o dia da consciéncia dos pretos, data da Raga Negra. E evidente que fortalecer emocional e passionalmente tal movi- mento significa cooperar para que no porvit uma luta de classes se detone com prejuizos gravissimos para toda a sociedade. No entanto, ha até publicagSes catélicas que exacerbam os finimos, concitando 128 os negros se unirem para imporem sua vontade. Trata-se, assim, da instalagio de um outro tipo de domf r io. Reunides de religiosos negros organizados, numa deletéria exaltacio dos espiritos, justamente dentro de uma comunidade de figis, todos membros do mesmo Corpo Mistico de Jesus Cristo, Cumpre se denuncie este despertar do ego- tismo coletivo que a histéria revela desastroso, catastrético, destrutivo © pemicioso. Que se escutem os clamores de multiddes de vitimas do racismo, imoladas nos infaustos holocaustos raciais. HE facil, domagé- ssico provocar 0 narcisismo coletivo. Af a razdo pela qual o movimento negro cresce assustadoramente, movido por paixio que the confere forte dinamismo. A porta pata a violencia logo se abre. O desejavel, contudo, € a convergéncia ¢ nao a divergéncia, a reconciliagio racial © nfo 0 Sdio, o solidarismo © nao a separagao. As distoroées sinistras so inevitéveis em toda comocio racista, fendmeno patolégico que denota mentalidade doentia. E mister clamar contra a implantagdo do racismo no Brasil como uma das mais ominosas tendéncias hodiernes. Alexandre Magno, que objetivava a unio dos povos, desposou Roxana, princesa persa, para dar exemplo de intercambio racial, di- minuindo a discordancia entre helenos ¢ orientais, Num pais como 0 Brasil, que no conheceu 0 radicalismo ex tente em tantas regides, querer estabelecer um fosso entre brancos & negros & promover condendvel actiménia Direcionar com objetivos outros a radicalizago represente eriar artificialmente problemas para as futuras geragées. Hai pessoas que livremente melhor se ajustem com 0s de sua cor m a homogemia. Tudo bem. £ um dircito inaliendvel de foro intimo. Estabelecer, porém, regras numa scciedade na qual, apesar do preconeeito racial subrepticio de parte a parte, hd oportunidade para todos é asstimir um nus para outros no porvir. Os pésteros execraréo (al postura, Incentivar a opressdo cultural de um ou outro segmento € nao desejar a necesséria sintese Mais do que chamar a atengio para as diferengas € premente, isto sim, acentuar a unidede e a integragao sem a dominagio ideol6- gica, seja de que lado for. Cumpre se firme 0 prinefpio de que existe apenas uma espécie e um género humanos no planeta Terra. O ser racional no pode ser visto como dividido em ragas que fossem apenas espécies sob o ponto de vista zooldgico. A animosidade que se esté fomentando é anticristd ¢ fere 0 niicleo da doutrina evangé ven carfiter segregacionista, suscitando uma crise em potencial, pois tem 19 E preciso reavivar o ensinamento cristo, semeado na América Latina e em todo o universo por denodados missionérios. Cristo ensi nou um mandamento novo exatamente porque Ele clevow o individuo ‘4 pessoa, O homem, corpo ¢ alma, ctiado a imagem e semelhanga de Deus, tem 0 mesmo Pai que esté nos cus, foi remido pelo mesmo sangue divino, tem um tinico destino na eternidade, apés se alimentar do mesmo pio eucaristico e receber os mesmos sacramentos nesta terra. Diante da obra soteriolégica de Cristo, todas as diferengas ra- ciais devem se diluir, pois todos encontram sua identidade é no Filho de Deus. Este declarou enfaticamente: “O que fizerdes ao menor de meus irmaos foi a mim que o fizestes”, encerrando um de seus mais pulctos discursos (Mat. 25, 40). A Tgreja conseguiu influenciar o con- texto esclavagista desde sua penetragdo no Império Romano exate- mente duleificando uma estrutura de si injusta, porque usou sempre a linguagem paulina: “Nao hé judeu, nem grego; néo hi servo, nem fivre; no hé homem, nem mulher. ‘Todos vés sois um s6 em Jesus Cristo” Gal. 3, 28). Ai esté o fundamento sélido da igualdade, da Jiberdade, dos direitos humanos de todos os homens de todos os lugares e de todos os tempos, Hoje, mais do que nunca, devem ecoar essas sibias palavras do ‘Apéstolo, que as langou numa sociedade escravocrata para ligiidar com o racismo. Que todos se lembrem de que Cristo ordenou: “Amai- ‘vos uns aos outros” (Joao 15, 34), € nao: Armai-vos uns aos outros. EPLLOGO ‘Ao ensejo da promulgagio da Lei do Ventre Livre, vieram a lume indmeros pronunciamentos de ilustres preiados brasilciros, Nestes do- cumentos se pode pingar o anseio profundo que sempre abrigou a Igreja pela liberdade dos cativos e a qiiididade do ensinamento evan- gélico que, diuturnamente, trabalhou as mentes cristas. Uma destas manifest do Bispo do Maranhao, D. Frei Luis da Conceigdo Saraiva 7. Ble abre sua mensagem mostrando as perspectivas alvissareiras que a nova legislacio trazia em seu bojo: “A todos os pontos deste vasto Império jé tem chegado, Amados Filhos © cooperadores, a fausta nova, contida na lei n® 2040, de 28 de setembro do corrente ano, que, estancando desde tio memorével dia a fonte da escravidio no Império Americano, com obra tao grande, nos hé de abrir também tuma gloriosa era de prosperidade, realizando entre nés uma agradé- 130 vel reforma moral e social, e fazenclo-nos louvados dos povos cultos” Em seguida patenteia @ influéncia libertéria do Evangelho: “Ha quase 18 séculos que Jesus Cristo, anunciando a sua missio 20 mundo, declarou que vinha evangelizar os pobres, consolar os que choram, dar remédio aos aflitos, pregar aos cativos @ libertacio © aos que esto na escuridao a liberdade (S. Lue. cap. IV, Vs. 18 e 19). Volvidos 1870 anos, cabe-nos hoje o vivo prazer de registrar o fato altamente moral e civilizador, convertido em lei no Pais, de no nascer entre nés nem mais uma s6 criatura humana degradada com o ferrete da escravidao, Louvemos, pois, amados cooperadores, 0 precioso fruto das grandes idSias pregadas a0 mundo pelo Divino Mestre © sem intermiténcia propagadas pela Igreja, as quais, adocando os costumes, modificaram as leis ¢, instruindo a Nagdo nos seus altos conselhos, deram-nos aquela lei de verdadeira regencracdo, que, sendo de imenso alcance para a extinggo completa da escravidao no Império, tem por fim reabilitar, ainda no berco, tenras criaturinhas, produzindo ao mes- ‘mo tempo nova e proveitosa reorganizagio da familia e da sociedade, © com a transformagio da grande riqueza — o trabalho livre — nos outorgaré uma benéfica revolugdo econdmica Revela como a Igreja foi sempre ciosa em agit de acordo com trizes do Mestre: “Para que prinefpios tao saudaveis, atraves- sando as vicissitudes do tempo ¢ de opinides desencontradas, pudes- sem vingar, a Igreja, fiel depositéria das doutrinas de Jesus Cristo, grande e fecunda escola do bem e da regeneragdo social, embora os juizos apaixonados de seus desafetos, desde o seu Fundador, pela ‘boca do apéstolo Sio Paulo, pelos dos mais santos e ilustres Pontifices, e dos mais eminentes Bispos e virtuosos pregociros do cristianismo, rnunca cessou, diz Sio Gregério Papa, de propugnar pela restituigao do beneficio original aos homens, que Deus criou livres. Forgando os preconceitos e falsos prinefpios dos tempos, esta doutrina generosa, inoculando:se nos coragdes de todos, faz desabrochar o germe precioso ‘que j@ frutificou © que dard no seu complemento a realizayao das palavras, proferidas pelo Redentor do mundo, postas na boca do Apdstolo: Non est servus neque liber... omnes enim vos unum estis in Christo Jesu” (Ad Gal. cap. 3, v. 28). Ref sancionada, este episcopo enfatiza que “nfio foi a politica © nem os mesquinhos céleules humanos que pro- duziram no seio da maior € mais abengoada paz tao grande bem, onde o interesse cedeu 0 passo do triunfo aos irrefragéveis direitos da natureza; nao, a vitdria pertence & religiao’ as di jose A lei er Coneita aos parocos: “Com 0 vosso exemplo e com o vigor ¢ suavidade da palavra sagrada desperiem nos Animos dos possuido de escravos os diteites ¢ obrigaedes que Ihes incumbem desempenhar para com eles, € a0s servos ensinai a resignagio © a obediéneia, ale- grando-Thes os coragdes com as alegrias de seus filhos ¢ com o dove balsamo de um proximo e feliz futuro No que tange & reforma legislative atinente aos nascituros, estas incisivas normas que ostentam stia preocupacio com a execugio cabal do que fora estabelecido: “E sendo conveniente que a referida lei 12 2040, de 28 de seiembro do corrente ano, seja fielmente executada, no que é relativo aos registros dos nascimentos ¢ ébitos dos filhos de eseravas, nascidos da data da mesma lei em diante, de modo que no possam ser prejudicados os que tém direito a tao grande beneficio, havemos por bem ordenar aos Revmos. Pérocos o seguinte: 1° — que além dos assentamentos de batismo ¢ dbito, que nos livros das paré- quias se costumam Javrar, cumpram o disposto no artigo 8°, parée grafo 5.°, da referida lei, registrando em livros especiais, que Thes setdo fornecidos pelo governo, os nascimentos ¢ ébitos dos filhos de escravas, naseidos desde a data da mesma lei. 2° — como, porém, em azo das distdncias, ndo poderdo ser aqueles livros fornecidos com a descjdvel prontidio, devem fazer tais registros nos. livros atuais, até que sejam distribuidos os novos, para os quais serio trans rites os assentamentos efetuados da data da lei em diante, quer por ignorancia de sua existéncia, quer por causa daquela circunstincia; 5.2 — podendo suscitar-se diividas acerca do dia do nascimento dos filhos de esctavas se ocorren antes ou depois de promulgada a lei, mormente continuando o reprovado costume de no serem levadas & Pia Batismal as crianeas no oitavo dia depois do scu nascimento, deverfio procurar por todos os meios razodveis ¢ garantidores da liberdade dessas criangas, como de grave responsabilidade que assu: mem perante Deus ¢ perante a lei e da restrita obrigagio em que esto de ressalvar 0s direitos adquiridos dos senhores, arredar o estado de diivida, estabelecendo o da certeza, para 0 que deveriv exigir, suscitada a duivida, a0 menos uma justificagdo sumédria desta € assinada pelo proprio senhor ¢ trés testemunhas de {é, competen- temente selada © as assinaturas reconhecidas por tabeliao, por onde se prove haver nascido a crianga antes ou depois da lei de 28 de setembro do corrente ano”. Eis af alguns t6picos expressivos desta Carta Pastoral de D. Luis, © fato de ela ter sido publicada no Rio de Janeiro ressalta também o 132 espirito antiescravagista de D. Pedro Maria de Lacerds, entéo prelado daquela importante diocese, que era na época a Capital do pais. Cumpre que tais documentos venham & tona pois, imobilizados no bastido da intolerancia, adversdrios da verdade prosseguem em seus ferinos ataques & Igreja, ignorando o alto desempenho desta Instituigae a favor dos cativos, propugnadora intrépida dos direitos essenciais destes oprimidos pela injusta estrutura servil NOTAS (1) Cito Plamarion 8. Cardoso, A Afro-América: A escravidio no neve munde, Sao Paulo, Editora Brasiliense S/A, 1982, p. 19. (2) CE. nosso A Ipreje € @ Escrevidio — Uma anélise decumental, Rio de Janeiro, INL/Presenga Edigdes, 1985, 215 paginas, passim (5) Henry Koster, A eseravidic no Bresil, Brasflia, Fundagdo Projeto Rondon — Minter; Ministério da Educagio — Sesu, s/data, passim, (4) Louis-Francois de Tollenare, A Eseravidio no Brasil, Brasil Fundagao Projeto Rondon — Minter; Ministé — Ses, s/data, passim (5) Cf. nosso A Igreja € a Eseravidéo — Uma anilise decumental, Rio de Janeiro, INL/Presenca Edigdes, 1985, p. 48-49 © J. Martins Terra, © Negro e z Igreje, Sio Paulo, Edigdes Loyola, 1984, passim. (€ ) Mbaye Gueye, O trafiec negreire no interior do continente afri- cano in: © Tréfico de Escrevos Negros — Sécules XV-XIX, Lisboa, EdicGes 70, 1979, p. 193 (7) Mungo Park, Travel in the Interior Districts cf Africs in the Yeers 1795-1797, Londres, 1800, p. 433 (8 ) Mbaye Gueye, op. cit., p. 197-198 (9 ) Mungo Park, op. eit., p. 287 © 37. (10) Lacourbe, Premier voyage du sieur Lacourbe fait & la cdte d’AL que en 1685, Paris, 1915, (11) Apud Mbaye Gueye, op. eit., p. 200. (12) Robert Edgar Conrad, Tumbeiros — O Trafico des Eseravos para © Brasil, S. Paulo, Brasiliense, 1985, p. 52 (15) Castro Alves, Peesias Completes, S. Paulo, Companhia Editora Nacional, 1959, p, 256-257, io da Educagio 133 «ay (a5) (a6) «a7 as) «a9 (20) ay (22) 134 José Goncalves Salvador, Os Megnatas do Trifico Negreiro (Séculos XVI € XVID, Séo Paulo, Pioneira/Edusp, 1981 Eduardo Etzel, Escravidio Negra ¢ Branca, S. Paulo, Global Edi- tora, 1976, p. 91 Herman Witjen, © Dominio Colonial Holandez no Brasil — Um Capitulo da Histéria Colonial de Séeulo XVI, S. Paulo, Com- panhia Editora Nacional, 1958, p. 489. Eduardo Etzel, op. cit., p. 92. ina Rodrigues, Os Africanos no Brasil, Sao Paulo, Cia. Editora Nacional, 1952, p. 87. Décio Freitas, Palmares — A Guerra dos Escravos, Rio de Ja- neiro, Graal, 1981, p. 179. Antonio Soares foi anistiado como consta neste documento régio: “PARA O GOVERNADOR E CAPITAO GENERAL DE PER- NAMBUCO. “Caetano de Mello Castro, Amigo et “Havendo visto a conta que me destes da morte do negro Zumbi, principal cabeca de todas as inquietagdes € movimentos das guerras dos Palmares, entregue por um mulato seu yalido debaixo da palavra, que se the deu em vosso nome de se the segurar 2 vida por recear ser punido pelos graves crimes que tinha cometido, entendendo-se que com esta empresa se acabar de todo com os Palmares. Me pareceu mandat-vos agradecer por esta o bem que neste particular © nos mais de mew setvigo vos tendes havido € na consideracio da importéncia deste negécio c de se poder por termo as hostilidades to repetidas quantas meus vassalos sentiram na extorgdo e violéncia deste negro Zumbi. Hei por bem de aprovar o perd@o que se dew ao mulato que 0 Décio Freitas, op. cit, p. 181 Na repatticio das terras palmarinas Domingos Jorge Vetho re bew boa parte, mas morreu sem regularizar seu titulo de posse. Eis o texto da Carta de Sesmaria concedida pelo governador D. Lourengo de Almeida & vidva ou a algume filha do mestre de campo Domingos Jorge Velh “Hei por bem, de the fazer merce, dar & suplicante acima nomeada, como pela presente dou, de sesmaria, em nome de sua Majestade, que Deus guarde, nos mesmos lugares, partes tesla 23) (24) (25) (26) 7) 8) 9) 60) Gu 2) (33) Gay (35) 36) 67 das que confrontam em sua peticao, seis Iéguas de terras con quistedes dos Palmares, como o dito Senhor ordena e da mesma forma que parece ao provedor da Fazenda real ¢ ao doutor procurador da Coroa e Fazenda ¢ livres isentas da pensio de foro por cada Iégua, exceto 0 dizimo de Deus, © povoaré as ditas terras no tempo de cinco anos, alids, se daré por devolutas; © possuird e gozaré a suplicante, ela, a seus herdeiros, nao pre- judicando a terceiros. Dada nesta vila do Recife, aos seis dias do més de maio, “MANOEL DA SILVA ROZA a escreveu no ano de 1716. D. LOURENGO DE ALMEIDA” Charles Wagley, Races et Classes dans le Brésil Rural, Drukkeij, Wormerveer et Amsterdam, UNESCO, 1951, p. 7 Idem, ibidem, p. 155, Harry W. Hutchinson, Les reletions raciales dans une commu- nauté rurale du RecOncavo (Etat de Bahia): in: Reces et Classes dans le Brésil Rural, op. cit., p. 18. Idem, ibidem. Idem, ibidem, p. 49. Idem, ibidem, p. 50, Charles Wagley, op. cit, p. 16. Joti José Reis, Rebetiéo eserava no Brasil — A histéria do Ievante des malés — 1835, S. Paulo, Editora Brasiliense, 1985, p. 14, Jerry Michael Turner, Les Brésiliens — The Impact of Former Brazilisn Slaves upon Dahomey, Boston, 1975. Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, Negros, Estrangeires — Os Escraves Libertos ¢ sua Velta & Africa, Sio Paulo, Editora Bra- siliense, 1985, p. 189. Jacob Gorender, © Eseravismo Coloni p. 346. Herbert 8. Klein, A Eseravidao Africana — América Latina © Caribe, Sio Paulo, Editora Brasiliense, 1987, p. 246. Idem, ibidem, p. 241-243, Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, op. eit., p. 11 D. Frei Luis da Conceigio Saraiva, Carta Pestoral anunciando a ia Reforma Servil e prescrevendo acs Revdos. Parocos que a cumpram, Apud © Apéstolo, Rio de Janeiro, Ano VI, no 52 24 de dezembro de 1871, passim. |. S, Paulo, Atica, 1980, 135, INDICE Jaime Balmes A IGREJA CATOLICA EM FACE DA ESCRAVIDAO, INTRODUGAO: Situagdo religiosa, social e cultural do mundo a época da aparigaio do cristianismo. O Direito Romano. Conjecturas sobre a influéncia exercida pelas idéias cristas sobre o Direito Romano, Vicios da organi tica do Império, Sistema do cristianismo para regenes soviedade: seu primeiro passo se dirigiu & modificacao das éias. Comparagao entre o ctistianismo © 0 paganismo no ensino das boas doutrinas . PRIMEIRA PARTE: A Igreja nfo foi s6 uma grande ¢ fe- cunda escola, mas também uma associagio regeneradora, Objetivos que teve de preencher. Dificuldades que teve de vencer. A escravidio. Quem aboliu a escravidao. Opinio de Guizot. Néimero imenso de escravos. Com que tino se devia proceder na aboligo da escravatura. A aboligio re- pentina era impossivel. Impugna-se a opinido de Guizot SEGUNDA PARTE: A Igreja Catdlica empregou, para a aboligdo da escravatura, ndo somente um sistema de doutr nas, maximas € espitito de caridade, mas também um con- junto de meios priticos. Ponto de vista sob o qual se deve considerar esse fato histérico, Idéias etradas dos antigos so- bre a escravidio. Homero, Platdo, Aristételes. O cristianismo se empenhou desde logo em combater esses erros. Doutrinas eristis sobre as relagGes entre escravos e senhores, Como a Igreja se dedicou a suavizar o tratamento cruel que era dispensado aos escravos . ‘TERCEIRA PARTE: A Igreja defende com zelo a liberdade dos alforriados. Manumissio nas igrejas. Saudaveis efeitos desta pritica. Redengio de cativos. Zelo da Igreja em pre- ticar € promover esta obra. Preocupacio dos romanos respeito deste ponto, Influéncia que teve na aboligio da Pag. u 23 escravaiura 0 zlo da Igreja pela redengdo dos cativos. A. Igreja protege a liberdade dos ingénuos QUARTA PARTE: Sistema seguido pela Igreja a respeito dos escravos dos judeus. Motivos que impulsionavam a Igreja & manumissio de seus escravos. Sua indulgéncia nes- te ponto. Sua generosidade para com os libertos. Os esctavos da Igreja cram considerados como consagrados a Deus. Sau- dveis efeitos desta consideragio. Concessio da liberdade a escravos que queriam abracar a vida monéstica. Efeitos desta prética. Conduta da Igreja na ordenagio de escravos. Re- pressio de abusos que nesta matéria se introduziram. Con- duta da Igreja de Espanha a esse respeito QUINTA PARTE: Doutrinas,de Santo Agostinho sobre a escravidio, Importincia dessas doutrinas para acarretar a aboli¢ao, Impugna-se a opinige de Guizot. Doutrinas de Santo Tomas sobre a mesma matéria. Matriménio de es- cravos, Disposigdes do Direito CanGnico sobre esse matri- Doutrina de Santo Tomas a esse respeito. Resumo empregados pela Igreja para abolicao da escrava- tura, De como esse resultado & devido exclusivamente a0 catclicismo EPILOGO: Canones ¢ outros documentos que manifestam a solicitude da Igreja em aliviar a sorte dos escravos, bem como revelam os diferentes meios de que ela se valeu para levar a cabo a aboligao da escravatura na Europa. Posigdo atual da Igreja em face do trafico de negros José Geraldo Vidigal de Carvalho A IGREJA E A ESCRAVIDAO NO BRASIL Introdugao . Dois relatos significativos: — Depoimento de Koster . — Testemunho de Tollenare 140 49 35 65 105 108 110 © tritico Palmares Generalizagoes tedricas Ex-eseravos na Africa As alforrias Neo-racismo Fpiloge: Eceae 13, Ls. la 141

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