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SOBRE A EXPLORACAO DO IMAGINARIO, SEU VOCABULARIO, METODOS E APLICACOES TRANSDISCIPLINARES: mito, mitandlise e mnitocritica * Gilbert DURAND ** MITO (DO GREGO “MYTHOS”: AQUILO QUE SE RELATA) Até © infcio desse século, sob a pressio do positivismo, o mito féra depreciado, seja como uma explicagdo provisdria e incompleta (A. Comte, M. Miiller) que, com vantagens, viria a set substitufda pela ciéncia, seja inversamente como o desgaste popular de um relato hist6rico positive (nogéo de “eyhemerismo”). Por muito tempo o mito foi minimizado (A. Lalande, 1926) como um “relato fantasioso, de origem popular e irrefle- tida”, Gragas, entretanto, e de modo concotrente, as reflexGes politicas de G, Sorel (1908), & sociologia tipolégica de Max Weber (1905), & estética de Nietzsche (1880), 4 “Filosofia das formas simbélicas” de E, Cassirer (1925), ¢ sobretudo ao desenvolvimento da psicandlise de Freud (1897), de O. Rank (1904) e, enfim, & psicologia profunda de Jung (1916), @ nogo de mito passa a ser epistemologicamente revalorizada. A partir daf a nog@o se consolidou epistemologicamente pelos traba- Ihos de antropdlogos (fildlogos, historiadores das religiées, etélogos, psi- cdlogos, etc.) como G. Dumézil, M. Eliade, J. Cazeneuve, Cl. Lévi-Strauss, G. Durand, Geza Roheim, C. G. Jung, J. Hillman, Ch. Baudouin, P. Diel, R. Mucchielli, R. Caillois, J. Danos, H. Desroches, H. Corbin. Gragas & maior ou menor convergéncia de todos esses trabalhos pode-se, atualmente (1975), dar uma definigdo operatéria do mito, tornando-se a situé-lo no mago de toda prospec antropolégica moderna. O mito se configura como um relato (discurso mitico) que dispde em cena personagens, situa- » Palestra pronunciada na Universidade de Grenoble Il ¢ publicada em Recherches et Travaux: L'Imaginaire — Univ. Grenoble TIT — Builetin 15, 1977 — tra- dugto do Prof. Dr. José Carlos de Pavla Carvalho (EDA/FEUSP) com a cola- boracio do Prof. Denis D. Badia (Faculdade de Comunicagio e Artes da Universidade Mackenzie). “* Profesor Emérito da Sorbonne — Diretor do Centre de Recherches sur l'lma- ginaire — CNRS-GRECO 56/Paris. CONFERENCIAS SOBRE A EXPLORACAO DO... 245 c6es, cendrios geralmente n&o naturais (divinos, utépicos, “surréels”, etc.), segmentéyeis em seqiiéncias ou reduzidas unidades seménticas (mitemas) onde, de modo necessério, est4 investida uma crenga — contrariamente a fébula ou ao conto — (chamada “ptegndncia simbélica” por Cassiret). Tal relato faz funcionar uma légica que escapa aos cldssicos prinefpios da logica da identidade, Eis por onde o mito realmente se manifesta como “metalinguagem” (Lévi-Strauss), linguagem “pré-semidtica”: aqui a “pro- xémica” (a gestualidade) do rito, da magia inserem-se na gramética ¢ no Iéxico das Iinguas naturais, O mito aparece, assim, como discurso diltimo (altimo ou primordial, pouco importa) de constituiggo — alijado que esta do prinefpio do terceiro exclufdo — da tenséo antagonista fundametnal a todo “cngendramento” do sentido. #, paradoxalmente, a “disseminagéo” (J. Derrida) diacrénica das seqiiéncias (mitemas) a responsdvel pela coe- réncia sincrénica do discurso mitico, Com genialidade Nietzsche estabele- cera ~— numa aproximagio com seus sucessores culturalistas (R. Benedict) ~—, como mito fundante do pensamento civilizacional da Grécia, o relato do antagonismo entre as forgas apolineas e as forgas dionisiacas. Lévi- “Strauss desenvolver4 esse cardter “dilemdtico” do discurso mitico. Um pouco restritamente esse trago serd definido como “instrumento/ferramenta l6gica” destinada a conciliar ou sintetizar as entidades semfnticas que nfo podem ser sincronicamente superpostas dentro da perspectiva da légica classica (‘ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”). Por exemplo, as tenses @ 08 conflitos narrados pelo famoso “mito de Edipo” — interpretada “a americana”, comparativamente com os mitos pueblos — exprimem, em tiltima instancia “a impossibilidade de uma sociedade, que professa a crenca na autoctonia do homem (assim, Pausdnias XII.XXIX.4: 0 vegetal € 0 modelo do homem), em passar dessa teoria ao reconhecimento do fato que cada um de nds realmente é produto da unido do homem e de uma mulher”. Em outras palavras, o aparelho dilemdtico da metalinguagem mitica seré aplicado, preferencialmente, As grandes questées que a ciéncia positiva nfo pode responder, e que Kant j4 houvera classificado entre os sistemas de respostas “antinémicas”: em que nos tornamos apés a morte? de onde viemos? por que existe 0 mundo e sua ordem? por que a obri- gagio moral? etc. Esse cardter dilemético da “pistis” (crenga) mitica féra Pressentido antes, ou paralelamente formulado as conclusdes de Lévi- “Strauss (1955), na teoria weberiana do “politeismo de valores” (i.e., do sistema axiolégico de um individuo ou de uma sociedade, onde os valores nao stio dedutiveis entre si), ¢ dai decorre um determinismo “paradoxal” indutor de légicas ndo-bivalentes, como as estudadas por $. Lupasco, P. Faysse, M. Beigheder (dgicas “antagonista” de Lupasco, “contraditorial” de Faysse, “conflitiva” de Derrida). Do mesmo modo os trabalhos dos sucessores de Freud, de Rank e de Adler particularmente, deixavam pres- sentir que nao existe uma dnica libido, mas muitas forgas antagonistas de estruturagdo do psiquismo. G. Durand mostrara (1959) que o imagi- nario — e as grandes imagens arquetfpicas —, lugar onde o mito haure seu arsenal simbélico, em si mesmo é formado por, no minimo, trés séries R, Fac. Edue., 11(1 /2):243-273, 1985 246 GILBERT DURAND de esquemas estruturais, isomorfos ¢ entre si irredutiveis. O psicélogo Yves Durand (1964) demonstrava, experimentalmente, a irredutibilidade dos regimes estruturais do Imaginério. Os métodos de andlise desse discurso “dilematico”, “disseminatério”, “contraditorial” devem, necessariamente, levar em conta essa dimensio paradoxal do mito e tratar 0 relato mitico simultaneamente sob o Angulo da diacronia disseminatéria e da sincronia combinatéria (ou “redundan- cias”, diz L. Strauss), Lévi-Strauss desvendou um método aperfeigoado por seus sucessores, e estendido a diversos dominios de investigacdes sobre © imagindrio social ¢ suas prdticas simbélicas, MITANALISE Em 1972, considerando 0 modelo da psicandlise, forjei essa nogio; designa um método de andlise cientifica dos mitos visando-se & extragio do sentido psicolégico (P, Diel, J. Hillman, Y. Durand) ou sociolégico (LéviStrauss, D. Zahan, G. Durand), Mitandlise inicialmente psicolégica que, no esteio da obra de Jung, superando a redugio simbdlica simplifi- cadora de Freud, se estriba no “politeismo” (M. Weber) das pulsdes da psyche. Particularmente J. Hillman evidencia o que a mitanélise traz além da anélise de tipo junguiano. Enquanto, por exemplo, o oflebre psiquiatra de Zurich generaliza e uniformiza o atquétipo da “anima”, a mitandlise discemniré tipos de “anima” segundo as tipologias da mitologia antiga: Venus, Deméter, Juno, Diana, etc, Por esse viés a mitandlise psicoldgica prende-se diretamente & acepeio sociolégica, pois que os personagens mitolégicos sfio passtveis de uma anélise sdcio-histérica (J. P. Vernant, M. Detienne). Para mim a mitandlise sociol6gica, simultaneamente inspirando-se nos trabalhos do estruturalismo de Lévi-Strauss, mas também — porque as entidades mitolgicas si0 “poderes”, forgas e ndo somente formas — em todas as pesquisas temiticas e andlises semfnticas de conletidos, tenta apreender os grandes mitos que orientam (ou desorientam. ..) os momen. tos histéricos, os tipos de grupos e de relagdes sociais. Trata-se realmente de uma “mitanélise” porque freqiientemente as instancias mfticas existem ge um modo latente ¢ difuso na sociedade ¢ que, mesmo quando sfo ‘patentes”, a escolha de tal ou qual mito explicitado escapa A consciéncia clara, ainda que seja coletiva (E. Durkheim), Uma ou outra forma de mita- nélise ndo diferem entre si sendo pelo campo de sua aplicagio prética. Ambas subsumem o modelo irreversivel da psicanslise © da” psicologia profunda, um desnivel antropolégico entre © patente e o latente, 0 cons- ciente antropoldgico ¢ o inconsciente. Valem-se, também, do mesmo método de base para lidar com o mito, Num primeiro momento — desde um “mito ideal” constitufdo pela sintese de todas as ligdes miticas reunidas sob um nome proprio (P. Grimal) — © método faz entrar o relato do “mito ideal” (fig. 1) num quadto R, Fac. Edtte, 11(1/2):243-273, 1985 CONFERENCIAS SOBRE A EXPLORAGAO DO.. 247 sssxrvns |] 0 setenv fore 2 reson 0 rience ‘galinied| Baran | Oa Stevia |e tareels] @ tie [O nleata] @ citer hele at srt fae wssiet see ‘trate 6 eres B Sides lope tage, tnt de dupia entrada onde horizontalmente sao dispostas, em ordem de sucessfio enumerada, as seqiiéncias/mitemas do mito considerado (1, 2, 3, 4, 5...) e verticalmente essas seqiiéncias so dispostas em blocos em “n” colunas, cada qual definida por seu contetido semantico homélogo: J, I, III, IV... Num segundo momento tefazemos, para um mesmo mito, uma ficha seme- Ihante 4 precedente e classificada por ordem cronoldgica; p.e. Hesfodo Homero Tragicos gregos Romances gregos Literatura latina... R. Fae, Educ. 11(1/2):243-273, 1985 248 GILBERT DURAND Obteremos, ento, uma série de fichas onde hé colunas Il, LV, ete... Pouco ou nao preenchidas (fig, 2). Fig. 2 Temos, a partir daf, uma dupla indicagio: sobre a flutuacao histérica do mito ¢ sobretudo uma indicaglio de medida, cuja tabela precisa ser specificada. Por exemplo, se na seqtigncia “cronolégica” de ore “feixe” de mitemas (L. Strauss) sincrono (fig. 2 ¢ I, pe.) € excluido mais de 40% da série cronolégica completa das ligées, ela néo deve ser retida como constitutiva do mito, mas pode constituir um esbogo de “derivacio” (V. Pareto). Seré preciso, pois, procurar a origem “parasitéria” (“conge- ries”, diz P. Sorokin), seja nos processos de interpolagéo de uma série que Perfence a outro mito, seja num fenémeno de “tecobrimento” (‘pseudo- morfose” em ©. Spengler e J. Soustelle), Mas se um “feixe” sincrono de mitemas aparece na série cronoldgica completa de um mito com uma freqiiéncia digna de nota (80 a 100% das fichas da série), devemos estudar com cuidado os: motivos ¢ determi ages histéricos dessa freqiigncia, se possuirmos documenta¢go suficiente; teremos, ento, um quadro das freqiiéncias de emergéncia do “feixe” con. siderado onde, horizontalmente, inscrevemos o fio cronolégico das ligdes e, verticalmente, as freqiiéncias (fig. 3). Mediando-se essas trés operagdes (figs. 1, 2, 3), obtemos: a) © repertério dos mitemas “nucleares” (G. Durand) constitutivos de um mito © cujo desgaste significa a transformagio senéo, por fim, o esgotamento de um mito; b) a cronologia dessus tronsformaydes ¢, a partir dal, a incitegSo a buscar correlagdes na cultura e as mudangas sociais, R. Fae, Educ., 11(1/2):243-273, 1985 CONFERENCIAS SOBRE A EXPLORACAO DO... 249 PE x700_[ 2000 7 ot Wie + ey WL) Wp LMM A_| ayy MLM Dl LLL. OLLI LLL LLL fig. 3 Superpondo-se anilises de mitos completos desse tipo (mito M, mito P, mito Z...) numa cronologia comum, podemos evidenciar: c) a superposi¢ao, as substituicdes, em suma, as “compensagdes” de um mito por outro (fig. 4). 1780 | 1800 | 1820 1240 | 1860 |1880 {1900 ]is10 [1920 fig. 4 R. Fac, Educ., 11(1/2):243-273, 1985 —_— 250 GILBERT DURAND Pode-se esbogar um sistema de explicacio dessas compensagées levan- tando-se a hip6tese que um mito “atualizado” em ideologias, em instituic $6es, ete, sucita, ipso facto, um contramito (ou, no minimo, um “outro” mito) potencializado, cujas manifestagdes so menos patentes que 0 outro, Tal explicagéo seria inspirada, simultaneamente, pelos trabalhos de S, Lupasco sobre os procedimentos “antagonistas” ¢ pelos de J. Duvignaud sobre o “drama”, Pode-se sintetizar os trés quadros num tinico, e teriamos as curvas M, P, Z superpostas (fig. 5). 1800 | 1s20 Segundo a prética de tal método, conforme o exemplo anterior, é importante que, numa dada época (p.e. 1805-1809) — e a probabilidade aumenta quand oo perfodo considerado é de mator duragio —, exista um nico mito dominante. No mais das vezes obteremos sempre um sistema de mitos “compensados” (cf. Nietzsche), de dois no minimo ou varios mitos. Mostramos, assim, que, no séc, XVII, 0 Mito de Psyche e seu regime “noturno” compensa o grande mito oficial de Apolo, do Rei Sol. Obser- yam-se, ent&o, como na andlise mitocritica, dois Processos possiveis de trans- formagéo, uma induzida pelo mitema patente, a outra pelo mitologema latente. Essa diferenciagao permite introduzir um novo parametro no con- senso mitémico, Pode-se chegar & atribuigio de um emblema substantivo. OU epitético patente, para cada mitema, ¢ também de uma intengio “pré- tica”’ on “dramética” (verbal) getalmente mais latente. No mito de Hermes tomado como exemplo (fig. 1), poderiamos escrever: R. Fac. Edue, 11(1/2):243-273, 1985 CONFERENCIAS SOBRE A EXPLORACAO DO... 251 I Bia m Patente Patente | Patente A. crianga divina. © caduceu, pater- Companheiro de o Nychios nidade: déHerma- | Heragles, de Priamo frodita. Latente . . Latente “Precisamos sem. Eatente pre de um menor Os” ‘contrarios se Conduzir para 4 do que nés” unem dos limites Ser4 ent&o interessante reproduzir essa dicotomia “diagonal” em todos os quadros/fichas da anélise, 0 que se aptesentaria assim (fig. 6): WLLL ne an ly [tT fig. 6 Através dessa Gltima espétificdeas ostttenos evidenciar as modali- dades de transformacdo (“usura” oli *¥eéstitgéncia”) de um mito: quer por inflagdo do “latente”, quer por ‘inflagao do “patente”. MITOCRITICA Em 1970, considerando 0 modelo da “psicocritica” ((Ch. Mauron, 1949), forjei essa nogGo para significar o emprego de um método de critica R, Fae. Educ., 11(1/2):243-273, 1985 252 GILBERT DURAND literaria (ou artistica), em sentido estrito ou, em sentido ampliado, de critica do discurso que centra o processo de compreensio no relato de caréter “mitico” inerente & significado de todo e qualquer relato, A mitocritica pretende ser um método de critica que seja a sintese construtiva das diversas criticas (de inicio, campo em que foi aplicada, literdrias e artisticas), novas ¢ antigas, que até entdo se defrontavam de modo estéril. Podemos resumir as diferentes intengdes “criticas” numa espécie de “triedro” do saber que, inicialmente, seria constitufdo pelas “antigas” criticas que, do positivismo de Taine ao marxismo de Lukacs fazem a explicagio discorrer sobre “a raga”, 0 meio e 0 momento”; seriam seguidas pelas criticas psicoldgica e psicanalitica (Ch. Baudoun, A. Allendy, Ch. Mauron, etc.), também pela psicanilise existencial (S. Doubrowsky), que reduzem a explicagao 4 biografia mais ou menos aparente do autor; enfim, dltimo rebento das “nouvelles critiques”, a explicacio se situaria no proprio texto, no jogo mais ou menos formal do escrito ¢ de suas estruturas (R. Jakobson, A. J. Greimas, etc.) Ora, esses trés pdlos de interpretagdes — antagonistas — da critica pretendem-se “fatores dominantes” (G. Gurvitch) centrffugos e redutiyos com telagéo A obra ou 20 discurso, i.e., com relagaio & recepoéo da men- sagem ou “Jeitura”. A mitocritica, preservando e acumulando os progressos em cada uma das faces do “triedro” da explicago critica, pretende entre- tanto centrélas de modo “centrfpeto” nas “formas simbélicas” (Cassirer) coordenadas num relato simbélico ou “mito”, no que realmente se instaura a leitura e se desvendam seus nfveis de profundidade (M. Proust). Estru- turas, histérias ou ambiente sécio-histérico, assim como aparelho psiquico, so indissociéveis e fundam o conjunto compreensivo ou significative da obra de arte, especialmente do relato literério e, em sentido ampliado, daquilo que Gurvitch designou por “obras de civilizagio” (das formas s6cio-culturais &s atitudes coletivas, passando-se pelas instituigdes ¢ pelos idedrios), Cada seqiiéncia lida constitui um “mitema” — e seu cenétio mitico... — ¢ tais mitemas, em némero limitado (L, Strauss), articulam-se segundo certos grandes mitos que apresentam, numa certa época e numa cultura determinadas, certa constancia (L. Céllier, J. Seznec, Cl. Dubois, N. Frye, M. Foucault, J. Brun, P. Albouy, P. Brunel, Ch. Robin, J. Perrin, S. Vierne, J. P. Sironneau, M. Maffesoli) ou, ao menos, no decurso de uma geragao cultural (H, Peyre, G. Michaud, G. Matoré). A “mitocritica” aborda imediatamente 0 proprio ser da “obra” no confronto entre o universo mi- tico, que forma o “gosto” ou a compreensio do leitor, e 0 universo mitico que emerge da leitura de tal obra determinada. & em tal confluéncia entre aquilo que é lido e aquele que 1é que se situa o centro de gravitagao desse método que pretende respeitar as contribuigdes dos diferentes enfo- ques que delimitario 0 “triedro” do saber critico. Metodologicamente a abordagem da “obra” pode-se dar em trés mo- mentos que decompdem os estratos mitémicos; R, Fae, Educ, 11(1/2):243-273, 1985 CONFERENCIAS SOBRE A EXPLORACAO DO.. 253 12) Inicialmente um levantamento dos “temas”, por vezes dos mo- tivos redundantes, sendo “obsessivos” (Mauron, Sorokin), que constituem as sincronias miticas da “obra”. 2°) A seguir podem ser examinados, com o mesmo espirito, as si- tuagdes ¢ a combinatéria de situapéés, personagens e cendrios (E. Souriau, G, Bachelard, G. Durand, EB. Goffaian: ‘Me Maffesoli). 3.°)_ Enfim, valendo-se de unij:modo: de :tratamento “a americana”, tal como Lévi-Strauss procede com o-tnito de Edipo, podem ser detectadas as diferentes ligdes do mito-{didcronia) e as correlagdes de uma tal ligdo de um tal mito com as de outros mitos de uma época ou de um espago culturais bem determinados Através do duplo efeito dessa abordagem mitocritica, por um lado, da “obra” e, por outro lado, pelo confronto com o “momento mitico” da leitura e da situagio do presente leitor, séo obtidas conclusdes interes- santes, seja pela constituiggo de um Atlas delimitado dos mitemas ¢ das situagdes miticas ou mitolégicas, seja quanto as estruturas profundas da “obra” € As relagdes de gosto, preferéncia, escolha que podem existir entre tal momento de leitura e tal momento de escritura (ou primeira leitura). Por exemplo, apetcebemo-nos que o ntimero limitado de mitos poss — tais como, aliés, os definom os diferentes mitSlogos das grandes o zacdes: grega, latina, amerindias, egipcia, indiana, africanas, polinésias, sino-tibetanas, uralo-altaicas, etc. — exige constantes e repetidos reinves- timentos miticos no decurso da 6ria de uma mesma cultura, e explica os diferentes “renascimentos” ou redescobertas. Apercebemo-nos, também, que os géneros literérios e artisticos, os estilos, as modas, as légicas organi- zacionais da culturalidade e dos grupos sociais, os idiotismos também respondem a tais fendmenos de concentragio e de ressurgéncias miticas. Tudo acontece como se a Ieitura — de onde deriva a esctitura — consti. tusse um sistema de trés pardmetros: 1°) A sincronia estrutural do relato, 2°) A diacronia “literéria” (6 frio @ os eventos do “telato” ¢ suas redundéncias). 3.°.)_ A diacronia “cronolégica" (evitamos o termo “histético”) onde transparece um confronto de sincronia (C. G. Jung) entre a leitura do Ieitor ¢ a teitura do autor passado, © iltimo parametro permite-nos evidenciar a transformagéo (por perdas, por interpolagdo de mitemas de outra proveniéneia, etc.) limite (a “evaporagéo”) de um dado mito. Definimos, alids, em que consiste a identificaciio de um mito a partir de um jogo de mitemas, quando um certo “quorum” de mitemas é estatis- ticamente aleangado. No Amago da mitocritica, como do mito, situa-se, pois, © mitema (ie, a menor unidade de discurso miticamente significativa); R. Pac, Editc., 11(1/2) :243-273, 1985 254 GILBERT. DURAND esse “dtomo” mitico € de natureza estrutural (“arquetipico” no sentido junguiano, “esquemético” no sentido durandiano) e seu contetido pode ser indiferentemente um “motivo”, um “tema”, um “‘cendrio mitico”, um “emblema”, “uma situagao dramética”. Em outras palayras, no mitema o “verbal” domina a substantividade, E mais, desde que o mitema integra um sistema estatistico que define um mito, observa-se — como itreduti- velmente a psicandlise 0 estabeleceu no dominio psicolégico — uma dupla utilizagio possivel desse mitema estrutural segundo os recalques, as cen suras, os costumes ou ideologias atuantes numa época e num meio dados: um mitema pode se manifestar e semanticamente agit de dois modos dife- rentes, um modo “patente” e um modo “latente”: <7 de modo patente, pela repetigfio explicita de seu ou de seus con- tetidos (situagdes, personagens, emblemas, etc.) homédlogos; — de modo latente, pela repetigfio de seu esquema de intenciona- lidade implicita, : Consideremos, p.e., a andlise que Roger Bastide faz dos mitemas da obra de Gide em “Anatomie de Gide”; achamo-nos frente a duas formagSes ou sistemas seménticos: — 4 dos mitemas manifestos, patentes, que subscrevem ao projeto “sobre pensamentos novos fagamos versos antigos”, Deparamo-nos facil- mente com a repetigfio de contetidos cara A andlise temética cléssica (G. Poulet). Por exemplo, em Gide, os mitemas do “bastardo”, da situagdo “do ato gratuito”, das imagens da “jatdinagem”, do “olho yazado”; — mas também lidamos com mitemas latentes, que procuram “novas roupas para cobrir antigos temas” (R. Bastide). Observamos, entao, a repe- tigdo de um esquema formal, mascarado por conteddos distanciados. Por exemplo, a tica explicagdo em Gide de “Saul & procura das bestas”, reapa- rece camuflada na parabola da ovelha perdida, no personagem ¢ no drama de Cristévéo Colombo, em Edipo... S6 uma “mitandlise”, evidenciando 98 bloqueios da época, da educacdo, do meio de Gide, conseguird detectar, por trés desses exemplos dispares, 0 esquema eticamente to anti-cristio do “Tu nao achas senfo aquilo que nao procures”. A partir daf a mitocritica estd frente a dois sistemas de transformagaio possiveis (segundo a “denotagao” ¢ segundo a “conotagao", diriam os lin- guistas) de onde pode resultar, para a obra-discurso examinado, uma dife- renga de estilo (que necessariamente no corresponde exatamente 20 que Jakobson chama “metonimico” e “metaférico”), A redundancia patente dos contetidos mitémicos tende a0 esteredtipo identificador, & “exagerada ‘figuragio’ e A denominagao pelo nome proprio (ou, em grau menor, pelo nome comum, pelo lugar, pelo emblema); a transformagio (no limite, a total inversio, até a perda do sentido mftico) faz-se, entéo, pela minimizagio da intengfo moral ou dramética, Por R, Fac, Edue., 11(1/2):243-273, 1985 CONFERENCIAS SOBRE A EXPLORACAO DO... 255 exemplo, quando Proust descreve Charlus como um “Prometeu acorren- tado”, ao passo que todos os mitemas do barfio hermafrodita sfo hermé. ticos (Ch. Robin); também quando Baudelaire cré descrever “o Tirso”, enquanto toda a intencionalidadesdescritiva visa ao caduceu (G, Durand); também o Zaratustra de Ni he-€ facilmente evidenciado (C. G. Jung) como um falso Dionysos. 0. ‘patente, a imagem estercotipica e A superficie, sobrevaroliza entaa: fo em detrimento do sentido, O mito se aplaina em pura.cefen - descrigdo do relato-discurso... om, Ao contrério, quando“hé tédundancia do esquema mitico latente, 0 relato tende ao apélogo, & parabola, como nas “Fabulas” de La Fontaine, nos “Contos de Voltaire, nas “Brincadeiras” de Gide. A transformagdo s¢ da por meio de uma espécie de drible da intengéo em detrimento da indi- cacao descritiva do nome proprio. Eis a critica fundamental que J. P. Vernant atribui a interpretagfio freudiana do mito de Edipo. O “verda- deiro” Edipo — o dos tragicos gregos — é “sem complexo”, 0 complexo € um abuso de intengao significante. Da mesma maneira as roupagens mité- micas que revestem o Prometeu gidiano ou spitteleriano no coincidem totalmente, mesmo em superficie, com os cléssicos mitemas do mito titd- nico: o Zeus de Gide — em contradicdo com toda a mitologia — é 0 Unico que nao tem dguia! No primeiro caso (exemplo: Charlus-Prometeu) a transformagio do mito faz-se conservando sé a roupagem descritiva mais exterior do mito (Prometeu acortentado e sangrando); o descritivo (substantivo, epitético. ..) mascara a intengio do personagem Charlus e do autor. No segundo caso (exemplo: 0 Zeus que “ndo tem éguia”, o Prometeu de Spitteler, que se torna “o Paciente”...) a intencdo latente, o ‘ethos”, brinca com os substantivos, os adjetivos. Num caso ou noutro obtemos o mesmo resultado: o deslocamento da intencAo significante ¢ do contexto. Hi, ento, “usura" do mito, As transformacées, i.e., a “usura” do mito, que a mitoctitica evidencia, provém quer da evaporago do espitito (0 “ethos”) do mito em prol do aparelho descritivo-alegérico, quer, ao contrétio, da usura da letra, do nome mitico, em prol de novas intenedes, geralmente tecalcadas polo’ ambiente e pelo momento. A mitocritica evidencia, num autor, na “obra” de uma época e de um meio dados, os mitos diretivos, regentes, e suas transformacées significa- tivas. Possibilita mostrar como tal traco de cardter pessoal do autor con- tribui para a transformacao da mitologia epocal dominante ou, ao con- trério, acentua tal ou qual mito instituido. Mostra, também — e aqui em oposigéo a um estreito culturalismo —, que cada momento cultural tem certa densidade mitica onde se combinam e se embatem, como genialmente Nieizsche o presesntira para a tragédia grega, mitos diferentes. A mitocritica tende a extrapolar o texto ou o documento estudado, a ampliar para 14 R. Fac. Educ, 11(1/2):243-273, 1985 256 GILBERT DURAND da “obra de civilizagéo” rumo A detecc&o, pelas “metéforas obsessivas”, do que Mauron chamara — e isso 6 de suma importancia —, em psico- ctitica, o “mito pessoal” que rege o destino individual; mas a mitocritica, pois que todo “mito pessoal” € um “mito coletivo” vivido num/por um idedrio, tende a ampliar rumo as preocupagdes sécio-hist6rico-culturais, E assim pede, como coroamento, uma “mitandlise”, que esté para um momento cultural e para um dado conjunto social, como a psicendlise esté para a psyche individual. Em suma, mitocritica e mitandlise situam-se na mais recente cotrente epistemolégica: aquela que, centrada na produgio do universo das imagens simbélicas, ¢ do mito que é a forma dinamico-cultural dessas configuragées organizatérias da socialidade, suscita um novo e acres- cido interesse antropolégico pelas mitologias, tanto neglicenciadas pela perecida era dos positivismos, ROFac, Educ, 11(1/2):243-273, 1985

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