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© Zoia Prestes¢ Elnabeth Tunes (org) /E-papers Servigos Editoriais Lida, 201 Todos 0s direitos reservados a Zoia Prestes ¢ Elizabeth Tunes (org.) IE-papers 5 : : pribida «reprodusio ou cransmissio desta obra, ou pate del, por qualoues eyo et Lad. edicores. 10" eM a previa autorizagso dos Impresso no Brasil. ISBN 978-85-7650-570-9 Traduzido do original russo: L. S. Vigotski. Lekesii sitet”, 2001. p. 9-150. ‘Tradugao: Zoia Prestes, Elizabeth Tunes, Cléudia da Costa Guimaries Santana Reviséo: Zoia Prestes, Elizabeth Tunes ¢ Lucilia Ruy A foto da capa ¢ de L. S. Vigotski aos 4 anos de idade em Gomel (Bielorussia) eae ve ia) gencilmente cedida por Elena po pedologuii. Ievsk: I2datelskii dom “Udmurski univer re Revisao Rodrigo Reis Diagramagao Michelly Batista Esta publicagio encontra-se 4 venda no site da Editora E-papers heep://swwwxe-papers.com.br E-papers Servicos Editoriais Leda. Aw. das Américas, 3200, bl. 1, sala 138 Barra da Tijuca ~ Rio de Janeiro CEP: 22640-102 Rio de Janeiro, Brasil CIP-Brasil, Catalogagio na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ V7Als Vigotski, L. S. (Lev Semionovich), 1896-1934 Sece aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamencos da pedologia /L. S. Vigot Zoia Prestes , Elizabeth Tunes ; tradugio Cléudia da Costa Guimares Santana. - Papers, 2018. 176 p. sil. ; 21 em. ski ¢ organizagio [e tradusio] 1. ed. - Rio de Janeiro : E- Tradugio de: Leketsii po pedologuii Inclui bibliografia ISBN 978-85-7650-570-9 i |. Tunes, Elisabeth. II, San- 1. Educagio de criangas. 2. Psicologia educacional. 3. Educagio - Filosofia. I. Tw tana, Claudia da Costa Guimaraes. IIT. Ticulo. cpp: 370.1 18-48970 DU: 37(01) Meri Gleice Rodrigues de Souza - Biblioreciria - CRB-7/6439 Sumé@rio 5 Apresentacao 7 Obom, o mau e 0 feio 7 Um pouco sobre a era de Stalin 10 A critica encomendada 13. As sete aulas sobre os fundamentos da pedologia de L. S. Vigotski 15. Referéncias bibliogréficas 17 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski 17 Primeira aula. O objeto da pedologia 37 Segunda aula, A definicao do método da pedologia 56 Terceira aula. O estudo da hereditariedade e do meio na pedologia 73 Quarta aula. O problema do meio na pedologia 92 Quinta aula. Leis gerais do desenvolvimento psicolégico da crianga 109 Sexta aula. Leis gerais do desenvolvimento fisico da crianca 129 Sétima aula. As leis do desenvolvimento do sistema nervoso 149 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia 149 Nota inicial da edigdo russa 152 O problema do pensamento e da fala em Vigostki 161 Instrucéo e desenvolvimento mental da crianga na falsa ciéncia de Vigotski 168 A metodologia de “investigacao de Vigotski” 169 A “lei” de determinacao fatalista de predestinacao de criangas sob a influéncia da hereditariedade e do meio em Vigotski Apresentacao Este livro contém sete aulas proferidas por Lev Semionovitch Vigotski ao final da vida. Elas se encontram na primeira parte (“Osnovi pedolo- guii”, Fundamentos de Pedologia) do livro Lektsii ‘po pedologuii (Aulas de pedologia). A segunda parte do livro, “Problema vozrasta’” (O Problema da Idade), & excegao de trés textos,! compée o material do tomo IV das Obras escolhidas de L. S. Vigotski, publicadas na década de 1980 na Unido Soviética.” A primeira edicao do livro foi publicada na Russia em 1996 em homenagem ao centésimo aniversario de nascimento do autor. O livro de 1996 (que teve uma segunda edig3o em 2001) com os textos das aulas de Vigotski nao é a primeira edicio. Em 1934, a editora do Segundo Instituto de Moscou (atual Universidade de Moscou) publi- cou o mesmo material com o titulo Fundamentos de pedologia, com 211 paginas. No ano seguinte, a primeira parte foi publicada pela editora do Instituto de Pedagogia de Leningrado no livro Fundamentos de pedolo- Sa, com 133 paginas e tiragem de 100 exemplares (LIFANOVA, 1996; VIGOTSKI, 2001).3 Como é possivel observar, as publicagées das obras de Vigotski, mesmo na Russia, tém sempre uma histéria que precisa ser contada antes de nos determos em seu contetido. O material que trazemos ao leitor brasileiro foi traduzido com base na edig&o de 2001 e é apenas a primeira parte do livro Lektsii po pedologuii. 1 “O conceito de idade pedolégica”, “A fase negativa da idade de transicao” ¢ “O pensamento do escolar”. Em 2017, este tiltimo foi publicado em portugués em Prestes ¢ Estevam. “Uma aula de L.S. Vigotski”. Em: Orso, P; Malanchen, J. e Castanha, A. P. Pedagogia histérico-critica, educagio € revolucdo. Campinas: Navegando ¢ Armazém do Ipé, 2017. p. 207-224. : 2 Cinco volumes dessa colegio foram traduzidos para o espanhol ¢ publicados pela editora Visor, de Madri, entre 1991 ¢ 1997. Os seis volumes foram traduzidos para o inglés ¢ publicados entze 1987 1999 pela editora Plenum Press (0 ultimo volume teve a participagio da editora Kluwer Academic). 3 Infelizmente, nao tivemos acesso a essas duas edigdes. ji 5 Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia Sao textos inéditos em portugués* e que compéem a denominada Fundamentos de Pedologia. Esta é a Primeira traducs para outra I{ngua das sete aulas de Vigotski de acordo com a bibliog sistematizada por Vigodskaia e Lifanova (Lev Semionovitch Vigo kin a deiatelnost, chtrirri k portretu. Moscou: Academia e Smis|, 1996), e Na presente edigdo, além das sete aulas sobre os fundamentos da pedologia, de Vigotski, apresentamos também a traducio da brochura escrita por Eva Izrailevna Rudniova (1898-1988), a quem foi encomen. dada uma critica as ideias pedoldgicas do autor. Embora o titulo do texto esteja traduzido como “As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia”, a traducio literal seria “As deturpagées de L. S. Vigotski na pedologia” A opgio por modific4-lo foi intencional, dado 0 sentido dubio que car- rega. Todavia, cabe esclarecer que, em russo, esse duplo sentido também est4 presente e pode ter sido intencional da parte da autora. Seguindo esse texto, recomendamos a leitura da Resolugio do Comité Central do Partido Comunista da Russia — dos bolcheviques — CC do PCR(b) de 4 de julho de 1936: “Sobre as deturpagées pedolégicas no sistema do Comissariado do Povo para a Instrucao (Narcompros)”, publicada em portugués em Prestes (2010, 2012). Este livro é, sem sombra de dtivida, uma rica fonte para estudiosos e pesquisadores da teoria histérico-cultural, assim como para professores € estudantes de diversos campos do saber. Queremos agradecer a todos os familiares de L.S. Vigotski, em espe- cial a sua neta, Elena Kravtsova, pelo grande apoio e carinho em toda a nossa jornada de estudos, pesquisas ¢ tradugées da obra de seu avd. Agradecemos também a nossa amiga ¢ companheira Ingrid Fuhr pela leitura critica da primeira versio do texto traduzido. Rio de Janeiro, dezembro de 2017. As organizadoras. Primeita parte —__ 4 Apenas a quarta aula, “O probl i ia”, foi ida e publicada pela Psicolog, 7 " ) Problema do meio na pedologia”, foi traduzida ¢ publica* Pt bo. Bia USP (Sio Paulo, v. 21, n. 4, P. 681-701, 2010. Disponivel em: heeps://wwrw.tevistas ¥P Apresentagee O bom, 0 mau e 0 feio Elizabeth Tunes’ e Zoia Prestes* Um pouco sobre a era de Stalin A década de 1930 ficou marcada na histéria da Unido Soviética pela con- solidagao de um regime que perseguia e matava. Segundo Volkogonov (2004), 0 assassinato de Kirov, em 1° de dezembro de 1934, no Instituto Smolni de Leningrado, foi um marco importante por sinalizar que uma era sinistra se aproximava. A partir dessa data, 0 pessoal puniti- vo da NKVD’ aumentou enormemente, rivalizando-se e acabando por eclipsar os comités do Partido. Sergei Mironovitch Kirov, bolchevique e leninista histérico, era um homem simples e de respostas prontas, considerado por todos como um lider acessivel e afavel. Era um dos homens de confianga de Stalin, que 0 tratava como “meu amigo e ama- do irmao” (VOLKOGONOYV, 2004, p. 206). No XVII Congresso do Partido Comunista, realizado no inicio de 1934, quando o culto a per- sonalidade de Stalin j4 era uma realidade, foi ovacionado e aplaudido por longo tempo. Naquele momento, o triunfo de Stalin fora ofusca- do, principalmente se levarmos em consideragao que a elei¢do para os cargos mais elevados do Partido nao fora muito do gosto do ditador. Na plendria do Comité Central, logo apés o referido congresso, Kirov foi eleito membro do Politburo e do Orgburo,* secretdrio do Comité Central e secretdrio da organizacao do Partido em Leningrado. Conta-se que, logo apés 0 assassinato de Kirov, Stalin se dirigiu a Leningrado e ele Ptéprio interrogou o assassino, que fora preso. Todos os envolvidos no Universidade de Brasilia (UnB) ¢ Centro Universitario de Brasilia (UniCEUB). 5 6 Universidade Federal Fluminense. 7 Narodni Komissariat Vautrenikr Del - Comissariado do Povo de Assuntos Internos. 8 Politburo e Orgburo — Bureau Politico ¢ Bureau Organizador. Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 7 assassinato e o préprio assassino foram fuzilados. Os chefes daNKy; Leningrado foram condenados a penas leves e, posteriormente e as dos em 1937, 0 que levou Kruschiov, bem mais tarde, no XX coe do Partido, a conjecturar sobre a tentativa de encobrir Pistas e i ; testemunhas que pudessem revelar os verdadeiros mandantes do aa Volkogonov (2004) admite nao haver informac6es suficientes a respetg do caso Kirov. Contudo, conclui que as ordens nfo partiram de Trotski Zinoviev ou Kameney, como divulgado a época, e afirma que, pelo “que sabemos de Stalin, por certo houve um toque seu no evento. A remocao de duas ou trés camadas de testemunhas indiretas leva sua marca regis- trada” (VOLKOGONOY, 2004, p. 209). O assassinato de Kirov foi um excelente pretexto para a intensifi- cacao de persegui¢ées, julgamentos sumdrios — quando ocorriam - e execugdes. Em varios discursos, Stalin propds que fossem “liquidados” - palavra pela qual tinha grande aprego — “a oposi¢o, ou os remanescentes das classes exploradoras, ou os kulaks, os degenerados, os agentes duplos, os espides e terroristas” (VOLKOGONOY, 2004, p. 212). Com esse pretexto, a grande maioria dos delegados presentes ao XVII Congresso foram presos, falecendo nas celas ou em campos de prisioneiros; dos 139 candidatos a membros do Comité Central eleitos no congresso, 98 fo- ram presos e fuzilados. Muitos foram participantes ativos da Revolusio de Outubro. “A ‘velha guarda’ leninista foi conscientemente liquidada . . le : . 1 4ri le porque sabia demais. Stalin queria executivos devotados, funcionarios ¢& a vida pregress4 uma gerac4o mais nova, pessoas que nao conhecessem su: : gOS (VOLKOGONOV, 2004, p. 213), abolindo a Sociedade dos Ant Bolcheviques e a Sociedade dos Ex-presos Politicos. E por essa rarag a Volkogonov (2004, p. 214) declara que “1934 findou com um rains pressdgio. Primeiro, o ‘Congresso dos Vitoriosos’ [inicio de - pois, a preparagdo para o Terror. Teria talvez, desafiando o calenea! istérico, 1937 comegado em 1° de dezembro de 19342”. dio- Ha, pois, fundamentos para a conjectura partilhada entre ee i ‘os da vida e obra de L. S. Vigotski de que se ele nao tivesse fled tuberculose na madrugada de 11 de junho de 1934, seria, ca rande mais um nome na enorme lista de mortos pelas maos de Stalin no ee c expurgo que ocorreu nos tiltimos anos da década de 1930, prin mente se levados em conta os fatos narrados a seguir. P line De acordo com Volkogonov (2004), o pensamento asa) qe as a ps i i ei arr uzindo esquematico. Ele costumava “encaixotar” suas ideias, red 8 bom, omou eof formas simples e popularizando-as como pastiches. Nao aceitava outra forma de divulgar suas ideias e, quando isso acontecia, ofendia seus opo- nentes por terem uma “abordagem nao marxista”, uma “demonstracao de tendéncias pequeno-burguesas” ou um “escolasticismo andrquico” (VOLKOGONOY, 2004, p. 229). Ele tinha consciéncia de que.o panto. mais fraco de seu intelecta era a impossibilidade de entendero que seria -adialética. Por isso, envidou esforgos no sentido de melhorar seu conhe- cimento filoséfico, convidando para seu tutor, em 1925, Jan Sten, um fildsofo bastante conhecido entre os velhos bolcheviques, recomendado por diretores do Instituto dos Professores Vermelhos. A época, Sten era subdiretor do Instituto Marx-Engels e, mais tarde, seria executivo do aparato do Comité Central, delegado em diversos congressos do Partido e membro do Comité Central de Controle (CCC). Como tutor filo- sdfico de Stalin, fez um programa de estudo que inclufa autores como Hegel, Kant, Feuerbach, Ficht, Schelling, Plerranov, Kautski e Bradley. Visitava-o duas vezes por semana em seu apartamento e procurava lhe esclarecer os conceitos hegelianos de substanciagao, alienacao e de iden- tidade entre realidade e razdo. Stalin se irritava com a abstragao e, por ve- zes, perdia a paciéncia e dirigia a seu tutor perguntas como: “O que tudo isto tem a ver com a luta de classes?” ou “Quem emprega toda essa bo- bagem na prdtica?” (VOLKOGONOY, 2004, p. 230). Pacientemente, Sten procurava esclarecer a importancia da filosofia de Hegel para a com- preensao das ideias de Marx, mas Stalin nao conseguia compreender as nogoes basicas daquela filosofia. Num encontro da Academia Comunista em outubro de 1930, foram debatidas “as diferengas no front filosdfico”. Deborin, Sten, Karev e Luppol foram considerados culpados por “subes- timacio da dialética materialista” e, ao que parece, [...] rudo 0 que restou daquelas ligdes foi a hostilidade ao professor. Juntamente com N. Karey, I. K. Luppol ¢ com outros fildsofos que cram disclpulos do académico A. M. Deborin, Sten foi declarado um tedtico “adulador de Trotsky” ¢, em 1937, acabou preso ¢ execu- tado. A mesma sorte parecia destinada a Deborin, que fora muito ligado a Bukharin no final dos anos 20 e que, em 1930, foi roulado por Stalin como “idealista milicante menchevique”. No entanto, ele foi poupado, se bem que proibido de desenvolver qualquer traba- Iho cientifico ou ptiblico (VOLKOGONOY, 2004, p. 230, grifos nossos). Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 9 Em dezembro de 1930, apenas dois meses depois, Stalin fez discurso no Instituto de Professores Vermelhos, dirigido por Ab um Moiseievitch Deborin. Esse discurso ilustra muito bem os mods ver bais de Stalin e a maneira como ofendia seus Oponentes sem examinar 0 mérito de suas ideias, apenas desqualificando-os de maneira vil. Esse pronunciamento se encontra na ata da reuniao: Temos que virar de pernas para o ar € revolver o monte de estrume que se acumulou na filosofia e nas ciéncias sociais. Tudo o que fo escrito pelo grupo de Deborin precisa ser destruido. Sten e Karey podem ir as Favas. Sten jacta-se bastante, mas é apenas um pupil de Karev. Sten é um rematado preguicoso. $6 0 que sabe fazer ¢ flat a cabega enorme e pavoneia-se por af como uma be- xiga ir ‘Na minha opiniao, Deborin é caso perdido, mas deve permanec:+ mo editor do periédico [Sob a insignia do marsisms| para que texivamos alguém para derrotar, O conselho editorial fart com dois fronts, mas teremos a maioria (apud VOLKOGONOV, 2004, p. 231) Como se sabe, Vigotski era préximo de Deborin (ver PRESTES, 2010, 2012) e certamente tinha conhecimento de toda a perseguicao que se desencadearia dali em diante e de que também seria alvo. Em uma carta enderegada? ao diretor do Instituto de Pedagogia Guertsen de Leningrado, Vigotski relatou que fora informado de que seus pues de vista tedricos haviam sido qualificados pela Comissao de Depuragto da Psicologia do Instituto de Moscou como idealistas, burgueses ¢ an timarxistas. Ele argumentou que essa conclusdo a respeito de sua ceoria era infundada, que sequer fora ouvido e que seu trabalho, a0 contrario, combatera veementemente certas teorias burguesas ¢ idealistas. Porém, como se viu posteriormente, ele Ppassou para 0 rol de personas non gratas na Unio Soviética: sofreu uma critica “encomendada” e suas obras ram classificadas como “proibidas”. A critica encomendada A critica as ideias de L. S. Vigotski sobre a pedologia foi enco aque daa Eva Izrailevna Rudniova (1898-1988). Segundo informagos menda- 9 Provavelmente escrita entre 1932 ¢ 1933. 10 o bom, omaue ose tvemos acesso, ela se formou pela Faculdade de Histéria e Filologia dos Cursos Superiores para Mulheres na cidade de Odessa e era professora de histéria, com mais de cem trabalhos cientificos publicados. ; Embora seja referido, no original, como “critica” as deturpacées de Vigotski na pedologia, 0 texto de Rudniova se apresenta muito mais como um amontoado de ofensas pessoais e acusagdes ao autor do que como um exame apropriado do mérito de suas ideias e contribuigées tedricas para a ciéncia da crianga. Quando aparentemente se propde a andlise critica de formulages do autor, demonstra fragilidade de com- preensao de seus conceitos e muito pouca familiaridade com sua obra, haja vista a inclusao de Pensamento e fala — considerada a obra-mestra de Vigotski — como um de seus estudos de pedologia, o que demonstra m4 inten¢ao ou total incompreensao da grandeza e genialidade das ideias ali desenvolvidas e sua incomensurdvel amplitude, que vai muito além da ciéncia da crianga, adentrando diversas 4reas do conhecimento e tocando até mesmo em questées de ordem filoséfica. Seja por inten¢do ou incom- preensao, o fato é que esse deslize j4 demonstra fragilidade argumen- tativa. O leitor critico poderd, contudo, verificar por si mesmo outros exemplos da falta de poténcia argumentativa apés examinar com aten¢3o as sete aulas de pedologia aqui apresentadas. Nos breves comentérios que se seguem, vamos nos ater a aspectos formais do texto de Rudniova que nos chamaram atengio pela abundancia e pobreza de estilo. J& no infcio, a autora do texto encomendado destaca o fato de Vigotski ser um dos pilares da pedologia. Por que ele era um dos pilares dessa ciéncia? Quem o considerava assim? O sujeito gramatical da frase nao est4 determinado. Ela também o via desse modo? Ao que parece, pela frase da autora, as ideias dele tiveram grande repercusso a época. Restaria saber 0 porqué. Isso, contudo, nao é informado. E bem verda- de que a palavra “pilares” aparece entre aspas, denotando possivelmente uma ironia da autora-critica. E apenas 0 comego; seu texto é repleto de ironias desse tipo, uma ironia corriqueira, intelectualmente pobre com finalidades puramente ret6ricas que visam criar impressdes no leitor € nao fazé-lo refletir. A ironia se caracteriza pelo emprego de uma palavra com sentido oposto ao que ela denota; por isso, seu uso requer inte- ligéncia. As aspas parecem o recurso de quem nao encontrou - talvez porque no tenha procurado - a melhor palavra. Além dessas ironias pobres, hd uma abundancia de adjetivagoes a respeito de Vigotski ec de sua obra, recurso que também empobrece 0 estilo. Dirfamos que é um Sete aulas de LS. Vigotshi sobre os fundamentos da Pedologia n texto nada substantivo. Sem nos preocuparmos com a precisio, tivemo, a curiosidade de listar qualificagées de que langou mao. A quantida ‘ke é surpreendente: antimarxista; antileninista; reaciondrio; burgués; visio tola; visio falsa; ideia cientificamente falsa; tem expressOes esquerdistas. cego; eclético; absurdo; ideias nocivas; idealista/idealista subjetivo; fa. terialista vulgar; tem ponto de vista grosseiro e vulgar; reducionista; me- canicista; metodologicamente/pedagogicamente equivocado; ignorante em relagdo aos estudos de Marx e Lenin; teoricamente equivocado; con- trarrevoluciondrio; formalista; contraditério; teoria artificial e inventada; anticientifico; dogmatico; esquerdista; arquiesquerdista; alimentador de preconceitos antileninistas; arquirreaciondrio tedrico com inspiragio fas- cista; inescrupuloso; incorreto; mentiroso; intelectualmente desonesto; teoricamente falso; fatalista; “teoria” estapaftirdia; seguidor de cientistas/ psicélogos burgueses; desvalorizador das grandes conquistas da Grande Revolucao Socialista de Outubro no campo da cultura; seguidor de es- cravos fi¢is das classes dos exploradores; causador de enorme mal paraa escola; defensor de ideias radicalmente contraditérias as indicagoes dos camaradas Stalin, Kirov e Jdanov; divulgador acritico da metodologia burguesa e de psicélogos fascistas; defensor da predestinagao fatalista das criancas em fungao dos fatores hereditdrios; influenciado por autores obscurantistas; “psicologizador” do meio; defensor da ideia de meio imu- tavel e da ideia de superioridade das classes dominantes € retardo dos ex- plorados; defensor da lei biogenética do desenvolvimento; representante da falsa ciéncia pedoldgica; ignorante em rela¢ao ao papel do homem na transformagao do meio; defensor da “teoria” espontaneista menchevista da “teoria” de direita e oportunista de autofluxo; defensor da “teora antileninista de morte gradual da escola. : Algumas qualificagées certamente nos escaparam. Contudo; a parar aqui. O que se listou é mais do que suficiente para S° const . que é um texto escrito bem 4 moda de Stalin: uma verborreia replers ofensas e acusagées pessoais. Ha intimeras incoeréncias légicas, con® de digées e distorcdes das ideias de Vigotski. Vé-se que © rigot propre um texto académico, est completamente ausente. Nao, definitivam nao € um texto académico. Custa-nos acreditar também que foi escrito r 0 aK wed ualque Por uma académica com mais de cem publicag6es ciencificas. eal é ae im 3 Ae 7 funcionério burocrético do Kremlin com formacao de ate xt co! . - . . irh te muita ambicao para subir na carreira conseguiria escrever um - remo "40 pouco quilate — se é que hé algum — para agradar © chefe suP ia R bom, omaueol Sera que foi, de fato, escrito por Rudniova? Ou serd que ela foi volun- tariamente obrigada a assinar 0 texto elaborado pelo tal funciondrio bu- rocratico? Essas conjecturas sao perfeitamente justificdveis € autorizadas pela biografia de Stalin. As sete aulas sobre os fundamentos da pedologia de L. S. Vigotski Os manuscritos que deram origem ao livro de L. S. Vigotski perma- neceram guardados por mais de 60 anos nos arquivos da familia de Serapion Alekseevitch Korotaiev, que, entre 1929 e 1936, foi aluno do Departamento de Pedologia do Instituto A. I. Guertsen de Leningrado, onde trabalhava Vigotski, seu orientador. Korotaiev, jovem e¢ ini- ciante professor da Escola Técnica de Aperfeigoamento Nekrassov de Leningrado, recebeu das maos de seu mestre os textos que estavam da- tilografados “em folhas amarelas e cinzas” (VIGOTSKI, 2001, p. 5). O professor queria ajudar seu aluno. E sabido que muitos textos de Vigotski foram redigidos e publicados com base em estenografias de aulas e/ou palestras proferidas (LURIA, 2001). Muitas vezes, sequer foram revisados por ele, ¢ varios foram publicados apenas apés sua morte. Os textos do presente livro sio um exemplo disso. Apés a morte de Vigotski, o professor C. Z. Katsenboguen assumiu, em 1934, a orientac&o da dissertagao Desenvolvimento do pensamento do escolar no processo de resolucéo de problemas matemdticos, de Serapion Alekseevitch Korotaiev, finalizada em 1936. Porém, mais uma tragédia ocorreu. As vésperas de 1937, C. Z. Katsenboguen foi declarado inimigo do povo e reprimido. Korotaiev, por sua vez, nao encontrou local para trabalhar e ficou sem o diploma. Ao tentar recuperar o documento em 1952, soube que nao havia sequer registros do trabalho académico que elaborara e defendera. E possivel perceber uma coeréncia légica no desenvolvimento do contetido exposto por L. S. Vigotski em todas as aulas, que, nos manus- critos, estavam apenas numeradas — os titulos, vale ressaltar, foram dados pela equipe de redatores da edigao russa, nao pelo autor. A decisao foi tomada em nome da comodidade do leitor e, como se afirma na intro- dugio a edigao russa, “nao foi uma tarefa dificil, j4 que, no inicio de cada Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia B aula, ele anunciava e definia com Ptecisao os objetivos de sua exposicgo” (VIGOTSKI, 2001, p. 6). *e As aulas tém um cardter col ele e seus estudantes. Cada aula tem, no inicio, objetivos, antecedida, da segunda em diante, tratado na aula anterior, Procurando-se segue. No decorrer de cada aula, contraexemplos extrafdos tanto d de estudos de outros Pesquisadore: examinados e dissecados e, loquial, como se fossem Conversas entre a enunciagao de seus de uma sintese do que foi mostrar como o Taciocinio se sao apresentados muitos exemplos e 0 cotidiano quanto, principalmente, s. Esses exemplos sio minuciosamente em geral, seguidos de alguns trechos com afir- magoes tedrico-metodolégicas € enunciacao de algumas questdes-chave, como se ele supusesse as interrogagées e duividas que poderiam passar pela mente de seus alunos ou os estivesse instigando a questionar. Ha uma didatica especial que preside o ordenamento de cada aula € sobre a qual hd dois pontos que nos parecem merecer comentario, ainda que breve. Antes, contudo, cabe esclarecer que nao se trata de uma diddtica embrutecedora, que visa facilitar a memorizac4o estan- que das definigdes de cada conceito apresentado. Muito ao contrario, cada conceito é definido examinando-se suas articulagées Idgicas com outros jd apresentados e abrindo-se a questao que permite relaciond-lo aos que estdo por vir. Essa estratégia é bastante coerente com as ideias que expe, especialmente, no sexto capitulo do livro Pensamiento y ha- bla, “Estudio del desarrollo de los conceptos cientificos em Ia infincia” (VIGOTSKI, 2007): 0 conhecimento cientifico se organiza como um sistema de relagdes Iégicas de coordenagao, subordinacio e supraorde- nagao de conceitos. Esse aspecto parece ser incorporado & sua didatica especial e tudo indica que o que ele pretende com suas aulas € que os es- tudantes apreendam 0 modo como os conceitos da ciéncia pedolégica se organizam e nao simplesmente memorizem a defini¢ao de cada conceito. Sua intengao parece, coerentemente, que eles compreendam a eseruurs a organiza¢ao dos conceitos da ciéncia pedolégica que propée. Esse 2 primeiro ponto. O segundo diz respeito ao porqué de esses conceives © inter-relacionarem de um determinado modo. Novamente, aqui ha cone vergéncia com suas ideias a respeito da relagao teoria e método (ver, at te cialmente, VIGOTSKI, 1997). Para ele, teoria € método a one si uma profunda relagao. Conforme diz logo no inicio da segunda aula, 0 bom, 0 mau eo fio 4 . Quando néo ¢ quase a mesma coisa — tradugies de Lev Semionoyi Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2012. itch Vigorski ns VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Problemas tedricos e metodoldgicos de la Pg. Trad. José Maria Bravo. Madri: Visor Dis, 1997. Cla Psicologia . Pensamiento y habla. Trad. Alejandro Arielf Gonzélez. F 2007. 2 Buenos Aire: Coli VOLKOGONOY, D. Stalin: triunfo e tragédia. v. 1. Trad. Joub vei Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. Joubert de Oliveira Brisids omen Fundamentos da Pedologa de L.S. VigotsRt Primeira aula. O objeto da pedologia’® Hoje, vamos iniciar o curso de pedologia. Nosso curso é propedéutico. Portanto, deve nos apresentar os principais conceitos dessa disciplina e a metodologia de investigacao da crianga, assim como, na clinica, um curso propedéutico se inicia pela apresentacdo dos principais conceitos que abrangem a disciplina e pela metodologia de investigagao clinica. Depois deste curso, deve vir o de pedologia especifica ou o das idades, que deve apresentar a vocés, de forma sistematica, os principais periodos do desenvolvimento infantil. Hoje, nossa aula introdutéria seré dedicada ao esclarecimento de duas questées: a do objeto ¢ ado método da nossa ciéncia, ou seja, 9 que a pedologia estuda e c isso. Essas so as duas principais questoes que devem ser apresentadas hoje, logo no inicio do nosso curso. Antes de tudo, permitam-me iniciar pela primeira questao. O que a pedologia estuda? Apés conhecermos esse objeto de estudo e suas espe- cificidades, ent4o, naturalmente, poderemos chegar a segunda questao. Como esse objeto deve ser estudado e qual é a especificidade do método da pedologia em comparagio com os métodos de outras ciéncias? Na tradugdo literal para a lingua russa, pedologia significa “ciéncia da crianga”. Mas como acontece frequentemente, a traducio literal de 10 Os trechos em negrito sio do original russo ¢ por isso foram mantidos, As notas de rodapé esto diferenciadas por: nota da edigdo russa (N. da E. R.); nota da tradugao (N. da T.); nota da edicSo brasileira (N. da E. B.). Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 7 uma denominagio da ciéncia ainda nao expressa suficientemente forma precisa o que, desse objeto, é estudado. Podem-se estudar doer de infantis, patologias das idades infantis, 0 que, em certo sentido, tamben serd ciéncia da crianga. Na pedagogia, pode-se estudar a educacio 7 crianga, 0 que, até certo grau, € ciéncia da crianga. Pode-se estudar a psi- cologia da crianga e isso também ser, em certo grau, ciéncia da Crianga, Por isso, desde 0 inicio, é preciso estabelecer exatamente o que da Ctianca €0 objeto do estudo pedoldgico. Portanto, seria mais preciso dizer quea pedologia é a ciéncia do desenvolvimento da crianga. O desenyolvimen- to_da crianga é 0 objeto direto ¢ imediato da nossa ciénci: Ainda assim, essa definicao permanece muito incompleta, Porque no mesmo instante surge uma questao. Est4 bem. A pedologia é a ci. éncia do desenvolvimento da crianga. Mas 0 que é desenvolvimento da crianga? Sem essa explicagdo, nunca compreenderemos qual € 0 objeto da pedologia. Por isso, para a defini¢ao desse objeto, permitam-me, vou me deter em algumas especificidades fundamentais e leis basicas mais gerais do desenvolvimento infantil. Se assimilarmos essas leis, saberemos generaliz4-las e dizer 0 que é desenvolvimento infantil. Entao, saberemos também como abordar ¢ estudar a questao do método da pedologia. A primeirac principal lei que caracteriza o desenvolvimento infantil ~ diferentemente de uma série de outros processos — é que ele possui unta organizacao muito com) plexa no tempo. Como qualquer outro processo, ele é histérico, ou seja, transcorre no tempo; tem inicio, tem etapas tem- porais determinadas do seu desenvolvimento e tem fim. Contudo, nao “Gxt organizado no tempo de forma que — se possivel dizer assim - 0 seu ritmo coincida com o ritmo do tempo; nao estd organizado deforma que, em cada intervalo de tempo cronoldgico, a crianca percorra um de- terminado trecho em seu desenvolvimento, Digamos assim: passou um ano € a crianga avangou um tanto no desenvolvimento; no ano seguinte, Outro tanto etc., ou seja, o ritmo do desenvolvimento, a sequéncia das etapas que a crianga percorre, os Prazos que sao necessdrios pata que ela passe cada etapa no coincidem com o ritmo do tempo, nao coincidem com a contagem cronolégica do tempo. Isso pode ser esclarecido com 4 ajuda de dois exemplos. Primeiramente, do ponto de vista da astronomia, do tempo cron0- logico, um més é sempre igual a outro, um ano é sempre igual a utr Entretanto, do ponto de vista do desenvolvimento, o valor de cada mes ytshi Fundamentas da Pedotoga de LS. Vi mesma hora e viveram em condigdes mais ou menos semelhantes, estario em um mesmo nivel de desenvolvimento? Pela certidao de nascimento,'! elas so coetineas em relagao ao dia e a hora e vocés estao investigando o seu desenvolvimento. Verifica-se, entao, que 0 desenvolvimento dessas criangas, que nasceram no mesmo dia e na mesma hora, no transcorre igualmente, passo a passo, como, Por exemplo, os reldgios em que damos corda na mesma hora e que comegam a marcar o tempo juntos, minuto a minuto, coincidindo com outros relégios. Além disso, se observarmos algumas delas, comparando-as com seus colegas coetaneos, veremos que, no seu desenvolvimento, muitas estarao adiantadas, outras, atrasadas e outras, ainda, se encontrarao no meio. Isso significa que, se observarmos criangas coetaneas, nascidas no mesmo dia e hora, 4 medida que se de- senvolvem, apesar de estarem no mesmo perfodo astronémico, com igual quantidade de anos, meses e dias, conforme a certidao de nascimento, na verdade, encontram-se em diferentes niveis de desenvolvimento. Vamos a um exemplo simples. Como vocés sabem, as criangas co- megam a falar de modo minimamente compreens{vel por volta dos dois anos. Vamos analisar algumas criangas que nasceram no mesmo dia e na mesma hora e ver 0 que acontece aos dois anos. Um indicador do seu modo de falar, aos dois anos, é 0 surgimento das primeiras oragoes. ‘A crianca nao fala apenas palavras isoladas, mas emprega, pela primeira vez, uma frase composta. Verifica-se, entéo, que uma de nossas crian- gas coetaneas empregou a primeira frase composta com um ano € oito meses; outra, aos dois anos; e uma terceira, aos dois anos € dois meses. Vocés esto vendo que cada crianga atingiu 0 mesmo nfvel de desenvol- vimento, um pouco antes, no perfodo esperado ou ainda um pouco mais tarde. Assim, h4 a necessidade de determinar a idade pedoldgica, ou seja, o nivel de desenvolvimento que a crianga realmente atingiu e nao a sua idade segundo a certidao de nascimento. Por exemplo, conforme a certid4o, podemos dizer que todas as criangas tém dois anos? Sim. Pela certidao todas as criangas tém dois anos. Mas a idade pedoldgica, ou seja, a idade da fala de uma delas é de dois anos e quatro meses; a da outra, de dois anos; e a da terceira, de um ano e 10 meses. O que significa a idade da fala? Significa o nivel real de desenvolvimento que elas atingiram. 1 . . a > teat, t ‘ace comum Vigotski referit-se & “idade do passaporte”. Na Russia, o passaporte ¢ 0 documento ei ntidade. Existe 0 passaporte interno, para o territério russo, ¢ 0 estrangeiro, que serve para 3 viagens ao exterior. O autor est se referindo, obviamente, 20 passaporte interno ¢ 4 idade das langas, que, no Brasil, aparece na certidéo de nascimento. 20 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski Sobre a terceira, podemos dizer que, embora, pela certidao de nascimen- to, seja uma crian¢a de dois anos, pelo n{vel do desenvolvimento da fala, ela € uma crianga de um ano e 10 meses, A idade pedoldgica de sua fala estd atrasada em dois meses em relacio & da certidao. Sobre a segunda,’ crianga, posso dizer que a idade da certidao e a pedolégica coincidem. A respeito da primeira crianga, Posso dizer que a idade pedoldgica se > < antecipou & da certidao em quatro meses. Consequentemente, sempre @ que tomamos um grande grupo de criangas, verifica-se que parte delas \ * adiantou-se no desenvolvimento, enquanto outra parte ficou para trés em compara¢ao com a idade da certidao. Saber determinar.aidade pedo. légica da crianga, ou seja,o nixel.de-desenvelvimento-em-queseencontra éunrdos principais procedimentos com os quais a pedologia opera. Ela opera com a idade pedoldgica da crianga e o grau de divergéncia, para\ mais ou para menos, entre essa idade e a da certidao. Surgem, aqui, duas questées que precisam ser esclarecidas. Vocés po- dem me perguntar: Primeiramente, como eu sei_que, aos dois anos, a crianga tem que pronunciar a primeira frase? Como eu sei disso? Parto la premissa de que qualquer crianca deve pronunciar a primeira frase aos dois anos. Por isso, digo que ela se antecipou. Ela tem um ano e oito meses conforme a certidao de nascimento e, pela fala, tem dois anos. De que maneira eu comparo? Para isso, tenho a resposta que vou apresentar detalhadamente no seminério. E exatamente a pedologia que determi- na a divergéncia entre a idade da certidao e a pedoldgica com os assim denominados padrées ou grandezas-padrao. A grandeza-padrao é uma grandeza constante, aceita como indicador para — pelo desvio em relacio a ela — julgar o grau de divergéncia do curso do desenvolvimento espe- rado em relagao ao curso do desenvolvimento real e ao modo como este transcorreu. Digamos que a grandeza-padrao de temperatura do nosso corpo seja 37°C e o desvio para mais ou para menos [represente]'? o grau de aumento ou queda da temperatura. Como se obtém_esses_padrées_pedoldgicas? Eles sio obtidos por meio_da_investigacao estatistica de um-grande-nimero de criancas. Estudamos uma grande quantidade de criangas, digamos 100, com here- ditariedade saudavel, sem doengas graves, normais ¢ em condigées iguais de desenvolvimento. Por exemplo, criangas de creches de Moscou onde h4 uma alimentaco mais ou menos igual e demais condigdes para o 7? c 12 No manuscrito lé-se “mede” (N. da E. R.) Sete aulas de LS, Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia a desenvolvimento. Verificamos que essas criangas apresentam, em média, um vestigio da primeira frase aos dois anos. Esta é a grandeza estatistica média que o material apresenta, ou seja, quando a média estatistica da crianga apresenta esse vestigio. Comparo cada crianca, separadamente, com essa grandeza estatistica média e digo: se, na pesquisa estatistica, uma crianga média apresenta esse indicador aos dois anos e a minha apresentou com um ano € oito meses, entao, esta se desenvolve mais rapidamente do que aquela. Assim, a pedologia se apoia nesses padrées e grandezas constantes que caracterizam o desenvolvimento e permitem comparar a idade da crianga segundo a certidéo de nascimento com a sua idade real, estabele- cendo os desvios para mais € pata menos. Nos dois exemplos, vimos, entao, que o desenvolvimento nio trans- corre da mesma forma no tempo, de modo que seu ritmo e velocidade coincidam com o ritmo do curso do tempo astronémico ou cronolégico. Vimos que, para 0 crescimento € para 0 peso, cinco meses nao s4o a mes- ma coisa nos primeiros anos e no 12° ano de vida. Vimos que, pela certi- dao de nascimento, as criangas podem ser coetaneas, mas podem atingir aidade real em diferentes idades. Entao, tanto um quanto outro exemplo nos convence de que, apesar de acontecer no tempo, o desenvolvimento nao é um processo organizado temporalmente de modo simples, mas de forma complexa; seu ritmo nio coincide com o ritmo do tempo. Pergunta-se: como transcorre o desenvolvimento no tempo? A res- posta a isso pode ser dada ainda de forma bem geral. Ele transcorre c{- clica e ritmicamente, de tal forma que, se quisermos simbolizd-lo, numa superficie plana, com uma linha que se eleva vagarosa e gradualmente, como se a cada ano transcorresse um intervalo definido de desenvol- vimento, nao obteremos uma linha vertical reta, que seria uma repre- sentagio equivocada. Se quisermos acompanhar o desenvolvimento de qualquer particularidade da crianga — digamos, como ocorre o aumento do peso, o crescimento em altura, o desenvolvimento da fala -, teremos sempre que mostrar uma linha ondulada que segue em elevagdes, quedas € se move para cima, ou seja, se desenvolve em ciclos. O tempo desse desenvolvimento nao é uma constante. Periodos de elevagdes.intensas se alternam com periodos de desaceleracio, de retracio. O desenvolvi- Mento se apresenta sob a forma de uma série de ciclos distintos, uma. sétie de épocas distintas, de periodos distintos, dentro dos quais o tempo 2 Fundamentos da Pedologa de LS. Vigotski eo contetido’ 1anifestam diferentemente. E claro que, se qualquer alteragdo no desenvolvimento da crianga ocorrer num perfodo em que se espera uma elevac4o, isso tem um sentido. Contudo, se essa alteragao ocorrer quando se esperava um leve declinio e nao uma elevac4o, entao 0 sentido é outro. Por exemplo, suponham que, no ultimo ano, uma crian- ga tenha ganho pouco ou nenhum peso. Isso é muito ruim se acontecer no momento em que deveria se dar o desenvolvimento real, fazendo-nos pensar por que essa crianga nao ganhou peso quando todas, nessa idade, o ganham abruptamente. Suponhamos que, em outro momento, ela nao tenha ganho peso. Isso nao me preocuparia porque ela estaria num peri- odo em que o ganho de peso deve ser reduzido. No desenvolvimente,.o significado de cada-mudanga-e-de-cada.acontecimento isolado se. define pelo ciclo a que est4o relacionados. re ciclos, essas ondas sao observadas tanto em relacao a diferen- tes aspectos do desenvolvimento, digamos, do crescimento, do peso, da fala, do desenvolvimento mental, da meméria, da atengao etc., quanto em relagao ao desenvolvimento como um todo. Se quisermos apresen- tar um quadro geral do desenvolvimento da crianga, teremos uma linha ondulada. Esses ciclos isolados do desenvolvimento tomados juntos sdo chamados idades. A idade nada mais é do que um determinado ciclo de desenvolvimento féchado, separado dos outros ciclos, que se diferencia por seus tempos ¢ contetidos especificos. Se tomarmos as principais ida- des infantis, veremos também que elas, por sua duragdo, nao coincidem umas com as outras. Por exemplo, a primeira idade — a do recém-nascido — dura aproximadamente um més, e, apesar disso, € uma idade completa. A idade seguinte é a do bebé, ¢ dura aproximadamente nove ou 10 meses; a seguinte, até dois anos; a préxima — a idade pré-escolar —, quase quatro anos. Estao vendo como uma idade dura quatro anos e outra, nove meses? Isso significa que os ciclos das idades nao coincidem e nado sao distribufdos no tempo de um modo simples tal que, em determina- dos intersticios de tempo, o desenvolvimento percorra também deter- minados intervalos do seu caminho. Assim, essa é a primeira lei ou a primeira especificidade do desenvolvimento infantil; @esse O. Processo que transcorre no tempo, mas o faz ciclicamente, Agora, o segundo postulado que estd relacionado a isso e que per- mitiré esclarecer mais profundamente as caracteristicas do desenvolvi- mento infantil € a segunda especificidade, que normalmente carrega Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia a denominagio de desproporcionalidade ou irregularidade. A ctianga é um ser muito complexo. Todos os seus aspectos se desenvolvem, mas a_segunda lei diz « que. Particularidades isoladas nao se desenvolvem de modo regular e proporcional. Por exemplo, nunca ocorre que partes do corpo de unia tfiatica, digamos, a cabeca, as Pernas € 0 tronco, crescam de forma igual. Numa certa idade, podemos observar um crescimento grande das pernas, mas bem menor do tronco e da cabeca. Assim, nunca Ocorre que os sistemas orginicos, os érgdos, por exemplo, os sistemas muscular, nervoso e digestivo, crescam regularmente. Em cada _perto- os sempre umm ds Tareas cissce-maise-outrosytelativemente, menos smais devagar. No bebé, num determinado periodo, veremos um de- senyolvimento rapido e intenso dos sistemas nervoso e digestivo ¢ um telativamente mais vagaroso do sistema muscular. Dessa forma, alguns sistemas ¢ diferentes érgios também nao crescerao proporcionalmente. Alguns aspectos do desenvolvimento da crianga, digamos o crescimento em altura e seu desenvolvimento mental, guardam relacdo entre si. Mas nunca vamos observar uma relagdo direta, regular, proporcional entre 0 desenvolvimento, digamos, do comprimento do corpo e da ampli- tude da mente. Nao temos, aqui, um movimento direto € regular. Na vida mental da crianga, num determinado perfodo de desenvolvimento, nunca ocorre que, digamos, sua percepc4o, sua meméria, sua atencio, seu pensamento se desenivolvam de forma completamente regular e por igual. Sempre algum aspecto de sua vida mental se desenvolve mais rapi- damente e outros, mais devagar Isso significa, entao, que o desenvolvimento jamais acontece de modo proporcional e regular em relagao ao organismo infantil como um todo e a personalidade da crianga. Isso nos leva a duas conclusées muito importantes das quais decorrem, digamos assim, algumas leis. A primeira delas pode ser formulada da seguinte forma: j4 que 0 desenvolvimento no transcorre regular e proporcionalmente, entdo, em_ cada novo degrau, ocorre ndo apenas o aumento. de. partes do. corpo.ou de funcées, mas altera-se a correlacao entre elas. Se, por exemplo, em um dado periodo, na crianga, crescem irregularmente a cabega, as per- nas, 0 tronco, isso resultaré no fato de que as proporgées do seu corpo também serao alteradas. Digamos que tenham transcorridos trés anos € as pernas cresceram mais aceleradamente que a cabega. O que acontece- 14? Toda a estrutura do corpo ser4 diferente, serd outra. Anteriormente, ay Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotshi a crianca tinha pernas curtas e cabeca grande. Agora, aparece de pernas compridas e cabeca pequena. Uma vez que algumas fungées e aspectos do organismo crescem ir- tegularmente, entao, em cada degrau determinado, ocorre nao apenas um maior ou menor crescimento de aspectos isolados, mas também a Teestrutura¢ao, o reagrupamento das relagées entre as diferentes particu- laridades do organismo, ou seja, a prépria estrutura do organismo ¢ da personalidade muda em cada novo degran. Este é 0 primeiro postulado. ~~ O segundo consiste no fato de que existem algumas leis basicas que mostram que, em cada idade, determinadas particularidades da.vida organica da crianca e de sua personalidade.parecem. se. deslocar.para © centro do desenvolvimento, ctescem.muito.e rapidamente. Antes ¢ depois disso, elas crescem bem mais devagar e, como se diz, se deslo- cam para a periferia do desenvolvimento. Isso significa que, no desen- volvimento da crianga, cada particularidade tem seu periodo propicio para se desenvolver, ou seja, existe um.periodo.em.que ela se.deseavolue otimamente. ~ Digamos que o desenvolvimento da marcha da crianga seja mais in- tenso por volta de um ano de vida, podendo comecar um pouco antes € terminar um pouco mais tarde. Assim, é possivel dizer que a marcha se desenvolve intensamente a partir do final do primeiro ano de vida até o final do segundo ano. Até esse perfodo, desenvolve-se a marcha, ou melhor, as condigées prévias para a marcha. Podemos predizer como essa crianga andaré aos seis meses de vida dependendo do que observamos na formagao do esqueleto, da musculatura e da motricidade de suas pernas. Mas n4o é possivel dizer que, no primeiro ano de vida, a marcha se de- senvolve tao vigorosamente quanto no segundo. Mais tarde, observare- mos o desenvolvimento do modo de caminhar. Vamos admitir que um escolar ande melhor que um pré-escolar. Entio, seria possivel dizer que a marcha se desenvolve com tanto vigor quanto no primeiro perfodo? Nao. Isso significa que, se tomarmos como exemplo a marcha, veremos que, num determinado perfodo, concentram-se os acontecimentos mais importantes no desenvolvimento dessa fungio. Antes disso, ocorre a pre- paracao; depois, vem o aperfeicoamento. Todavia, tanto_a preparacio_ juanto empobrecidos do que o cerne do i Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedotogia 2s Tomemos como exemplo a fala. Quando se desenvolve a fala? De novo, aproximadamente entre um ano e meio, trés, quatro, cinco anos, quando a crianga normalmente comega a dominar todas as formas b- sicas da lingua materna. A fala se desenvolve antes como balbucio? Sim, Continua a se desenvolver mais tarde, depois dos cinco? Sim. Mas nem antes nem depois dessa idade se desenvolve como um turbilhdo, de modo t4o intenso, e faz avancos tao importantes. O principal perfodo em que a fala est4 no centro do desenvolvimento abrange exatamente essa faixa etdria. Dessa forma, vemos que cada fungao tem o seu perfodo preferencial ou propicio de desenvolvimento e, nesse perfodo, uma determinada fun- ¢4o passa para o primeiro plano. Transcorrido o ciclo correspondente de desenvolvimento, desloca-se para o segundo, e outra fungao se apresenta no primeiro plano. Dessa forma, a desproporcionalidade do desenvolvimento permite concluir que lidamos com o desenvolvimento que nao conduz apenas ao aumento de aspectos quantitativos das especificidades da crianga. Conduz também & reestruturacdo das relacdes entre diferentes parti- cularidades de desenvolvimento, sendo que cada idade se diferencia de outra por seu contetido de desenvolvimento. Numa determinada idade, algumas fungées se apresentam em primeiro plano e outras, na periferia; na idade seguinte, outras fung6es, que estavam na periferia, passarao ao primeiro plano e as que estavam no centro, para a periferia. Em particular, essa é a lei de acordo com a qual as fungées mais importantes amadurecem antes. Por exemplo, a percep¢ao se desenvolve antes da meméria. Isso ¢ bem compreensivel para nés porque a percep- cao € requisito, € uma func3o bem mais importante. A meméria pode surgir quando a crianga jd sabe perceber. A memoria € a percepc4o se desenvolvem antes do pensamento. O que vocés acham: 0 que se desen- volve antes, a orientagao no espaco ou no tempo? A orienta¢io no espago se desenvolve antes. Ela é um requisito, é uma fungio bdsica. Logo, ha regularidades nessa sucessao das fungées. Algumas fungées amadure- cem antes, outras mais tarde. Para que comecem a amadurecer, algumas tém outras como requisitos etc. Consequentemente, essa desproporcio- alidade, essa irregularidade de tempos e do contetido do desenvolvi- ento em diferentes ciclos determina que, entre os diversos aspectos do lesenvolvimento durante os ciclos, h4 uma relacio complexa e regular. 26 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski As fungées se apresentam umas antes ¢ outras mais tarde, e a ordem nao € casual, mas conforma-se 2 lei da telacdo interna que mantém entre si. Desvendamos agora que, na primeira lei (sobre o desenvolviment® ciclico infantil) e na segunda (sobre a desproporcionalidade ou irregu- laridade do desenvolvimento de diferentes particularidades), 0 process: de desenvolvimento tem uma estrutura extremamente complexa, um organizac4o muito complexa e um curso no tempo também complexa Isso significa, entao, que existem leis para essa estrutura complexa, esse curso complexo? Elas devem existir. Desvendar como atuam essas leis em cada caso separadamente é ou nao importante do ponto de vista pratico? E importante. Consequentemente, deve existir uma ciéncia que estude as leis do desenvolvimento e sai icd- So-deumasérie de tarefas praticas. ‘Tentarei relatar como a ciéncia estuda essas leis e resolve as tarefas prdticas, mas antes falarei de duas especificidades bésicas, duas leis fun- damentais do desenvolvimento infantil. A lei do desenvolvimento infantil consiste em que nem sempre ob= servamos processos apenas progressivos, que seguem em frente, mas/ também um desenvolvimento reverso de especificidades ou de aspectos prdprios da crianga numa etapa inicial. Normalmente, essa lei é formu. lada de modo que qualquer evolugao no desenvolvimento infantil sej também uma involugio, isto é, um desenvolvimento reverso. E com se os processos de desenvolvimento reverso ou inverso estivessem en. trelagados no curso da evolugao da crianga. . Por exemplo, a crianga que aprende a falar para de balbuciar. E nao apenas isso. Como mostra a investigagao, a crianca falante, mesmo se quisesse ou se pedissemos a ela, nao conseguiria reproduzir seu balbucio, aqueles sons que produzia em forma de balbucio. Na crianga que esta de- senvolvendo os interesses escolares, as formas de pensamento préprias ao escolar apagam os interesses da idade pré-escolar, apagam as especificida- des do pensamento préprias da idade pré-escolar. Ocorre um desenvolvi- mento reverso das particularidades que dominavam anteriormente. Por exemplo, o desenvolvimento psicossexual da crianga. Em cada estdgio, a crianga tem uma determinada organizacdo ou estrutura da sua psicosse- xualidade. Na passagem para o degrau seguinte de desenvolvimento, na} apenas surge uma nova estrutura ou organizacao da sexualidade infantil, mas os tracos principais que caracterizavam a estrutura anterior se sub-, metem a um desenvolvimento reverso. Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedotogia 2 Isso, é claro, nao deve ser compreendido no sentido mecanico de que cada passo & frente est sempre ligado & simples anulagao do que havia antes. Existem relagoes muito intimas entre os processos de involucio ¢ os de evolugao; hd uma dependéncia intima. Muito do que predomi- nava antes nao morre simplesmente, mas se reestrutura, se insere numa nova organizacao superior. Muita coisa morte, entretanto, no sentido direto dessa palavra. H4 uma série de incorregées, de disturbios do de- senvolvimento infantil denominados infantilismo. Na traducio literal para 0 russo, infantilismo significa “infantilidade”. Quando estudamos em que consiste a esséncia desse disturbio do desenvolvimento, nos con- vencemos de que a esséncia consiste no fato de que foram atingidos os processos de involugao e de que 0 sistema que, num desenvolvimen- to normal, deveria, na hora certa, passar para segundo plano nao se apagou a tempo e nao sofreu um desenvolvimento reverso. A crianga’ entra na idade seguinte e adquire tragos que sao caracteristicos da ida- de madura, mas alguns aspectos conservam sua organizacio anterior, infantil; permanece a infantilidade de aspectos no 4mbito do sistema caracteristico de uma crianga mais velha. Finalmente, eis a ultima das leis do desenvolvimento em que eu gos- taria de me deter para apresentar mais concretamente a ideia do objeto da pedologia. Normalmente, ela € formulada como a lei da metamor- fose no desenvolvimento infantil. Vocés sabem que metamorfose sio as transformag6es qualitativas de uma forma em outra. Ela é uma carac- teristica do desenvolvimento infantil e nao se resume exclusivamente a mudangas quantitativas ou a um simples crescimento quantitativo, re- presentando um circuito de mudangas e de transformag6es qualitativas. Por exemplo, quando a crianga passa do engatinhar para 0 andar, do balbucio a fala, das formas de pensamento concreto para © abstrato, para © pensamento verbal, em todos esses casos, nao ocorre apenas um cresci- mento ou aumento de uma func4o anterior da crianca, mas uma trans- formacao qualitativa de uma forma que se manifestava de outro modo. Se tentarmos compreender essa expressao convencionando uma simples imagem, pode-se dizer que 0 desenvolvimento infantil est repleto desses exemplos que lembram a transformagio do ovo em lagarta, da lagarta em crisdlida, da crisdlida em borboleta, ou seja, lembram a metamorfose bioldgica que observamos na ontogénese de alguns animais, mais especi- ficamente dos insetos. 28 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski diferenga consiste no fato de que a idade pré-escolar, a idade escolar etc., todas elas representam etapas especificas no desenvolvimento da crianga. Em cada uma dessas etapas,.a crianca se aj ser qualitativamente especifico que. vive e se desenvolve segundo [eis diferentes préprias de cada idade, . eee —Kgora, vamos nos deter brevemente em algumas questées tedricas e metodoldgicas relacionadas & compreensao do desenvolvimento infantil, Provavelmente, vocés entendem que o desenvolvimento infantil € um processo complexo, sensivelmente organizado e que tem uma estrutura e regularidades complexas, e que, na discussio teérica do mesmo, nao hd consenso entre as diferentes tendéncias da pedologia. Como vocés sabem, ndo existe consenso na compreensio dos conceitos bdsicos, assim como sobre a origem da vida, na biologia. O conceito de vida, na biologia, é motive para a diviséo de todo © pensamento cientifico burgués em dois cos ~ 0 dos vitalistas e o dos mecanicistas —, da mesma forma que 0 «i. :icsenvolvimento infantil ¢ devem ser esclarecidos também nao vamos pertence a certo nuimero de conceitos basico do ponto de vista filosdfico ¢ tedrico geral. Ag encontrar consenso de pontos de vista entre os investigadores. Quais so as principais solugdes metodoldgicas dessa questao sobre a natureza do desenvolvimento infantil que existem hoje na ciéncia que vocés encontrarao quando estudarem os cientistas que constroem a pedologia ou que participaram anteriormente de sua elabora¢io? Para ser breve e claro, parece-me que podemos dividir as teorias do desenvolvimento infantil em trés grupos. O primeiro est ligado, de alguma forma, ao que vocés provavelmen- te conhecem da embriologia, mais precisamente da historia da embrio- logia e do que costumamos chamar de preformismo. Vocés sabem que preformismo € 0 nome de uma teoria que supunha que, no embriao, na semente a partir da qual se inicia o desenvolvimento embriondrio, ja estaria previamente contida a forma futura que deveria surgir no fi- nal do desenvolvimento, sé que em tamanhos pequenos. O desenvolvi- mento consistiria apenas no fato de essa forma pequena, microscépica, aumentar e se desenvolver em uma forma correspondentemente mais madura. Na tradugao para o russo, preformismo significa “a existéncia de uma forma anterior”. Vocés sabem que, desse ponto de vista, no estagio inicial, anterior 4 embriologia cientifica, supunha-se que a semente do A 30 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski carvalho continha o futuro carvalho com todas as suas raizes, com todos os seus galhos, suas folhas, e que o desenvolvimento consistiria apenas no fato de esse carvalhinho microscépico se transformar num enorme carvalho. Admite-se 0 mesmo (por via especulativa, bem entendido, ainda que alguns defensores desse ponto de vista afirmem que verificaram isso experimentalmente) em relacio ao embrido humano, que conteria, jé formado, o futuro homem, e que o desenvolvimento embriondrio leva- ria esse homem microscépico a se transformar num recém-nascido. Na embriologia, essas teorias foram deixadas para trds hé muito tempo e tém apenas um significado histérico. Na pedologia, elas conservam até hoje um significado atual. Existem, e nao sao poucos, grandes cientistas sérios que defendem esses pontos de vista. Penso que fica claro por que essas teorias fizeram um ninho mais denso e firme na pedologia do que na embriologia. Pois bem. Essa teoria é absurda, contradiz muito os fatos e, assim que comecou a elabora- 40 experimental da embriologia, foi muito facil demonstrar que esse é um postulado fantasioso e nao corresponde a realidade. Na _pedologia, contudo, isso é mais dificil porque a crianca recém-nascida, por sua apa- séncia, realmente dé a impressiode um homem quase formado. Pela estrutura do seu corpo, pela presenga de todos os érgios, o bebé pare- ce um homem pronto ¢ terminado, apenas sem ter o tamanho de um homem adulto. Por isso, 0 preformismo foi o que durou mais tempo e ainda hoje existe na teoria [embrioldgica]'* ou pés-embriolégica do desenvolvimento. Como ele se manifesta? Na pedologia, em que consiste essa teoria? Ela parte do ponto de vista de que tudo que se desenvolve no homem, na crianga tem sua base tiltima em rudimentos hereditarios. De algu- ma forma, toda caracteristica, toda particularidade contigua ou distante, direta ou indiretamente, guarda relacdo com embrides contidos nas ca- racteristicas hereditdrias da crianga. Essa teoria sup6e que se encontram nesses embriGes as predisposigGes para o desenvolvimento dos aspectos que caracterizam um homem desenvolvido e que, como expressa um de seus principais representantes, o desenvolvimento nada mais seria do que a realizado, a modificagao, a combinagao dos elementos do embriio. Todavia, se os embrides vingarao ou nao, dependerd do desenvolvimento. 14 No manuscrito, “extraembrioldgica” (N. da E. R.). Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 31 Se uns vingam e outros nao, entéo o quadro seré diferente daquele que todos ou os ultimos vingam, mas nao os primeiros. Em cep como diz esse estudioso, no desenvolvimento, esses embrides se ai, ficam, ou seja, mudam de forma dependendo das condigdes em que 7 desenvolvem, atenuam-se ou intensificam-se e, ento, tornam-se ma flexiveis ou, ao contrdrio, mais rigidos, mais resistentes, dependendo das condigdes em que surgem. Finalmente, no transcurso do desenvolvimento, eles podem estabe- lecer combinagées. Por exemplo, nao se pode admitir que, nos rudimen- tos hereditdrios, haja predisposi¢ao para determinar qual das criancas recém-nascidas ser4, no futuro, um engenheiro ou o melhor especialista em datilografia. Isso depende da combinago que hd nos embrides. Para cada atividade seria necesséria uma combinagao de particularidades. No desenvolvimento, dependendo de como se combinarao as especificida- des, serd verificado que um pode ser o melhor engenheiro e outro, o pior; um poderd ter mais capacidade para datildgrafo e outro, menos. Entio, isso significa que, desse ponto de vista, tudo estd contido pre- viamente nos embrides e o desenvolvimento transcorre apenas, repito, como realizagao, modificagio e combinagao de inclinagdes neles conti- das previamente. A inconsisténcia desse ponto de vista, penso, é muito facil de de- monstrar, levando em consideragio que ele, em geral, nega, em sua esséncia, 0 processo de desenvolvimento, assim como faz toda teoria ligada & ideia de preformismo. J4 que tudo est dado previamente desde 0 comego, j4 que tudo ocorre apenas como uma realizacao, modificac4o e combinagio do que ja estava dado desde o inicio, pergunta-se: 0 que, em geral, diferencia o processo de desenvolvimento de todo processo de vida? Por exemplo, um homem maduro ou cada um de nés. Serd que a realizagdo ou nao de nossas capacidades nao depende das condigdes de nossa vida? Serd que as condigoes de vida nao mudam ou nao modificam nossas particularidades? Ser4 que, quando adultos, em alguma atividade, nao combinamos nossas inclinagdes? Consequentemente, se 0 desenvol- vimento se resumisse apenas aquilo, entéo, em geral, o desenvolvimen- to nao se diferenciaria do nao desenvolvimento nem de qualquer outro estado. 7 Pois bem. O que é essencial, o que é mais importante e nos permite lestacar o desenvolvimento como um processo especifico entre todos os Fundamentos da Pedotoga de LS. Vigotski outros? Penso que vocés concordario comigo se eu disser que 0 aspecto mais importante que faz com que o desenvolvimento seja desenvolvi- mento, que lhe atribui uma qualidade sem a qual nao pode ser chamado de desenvolvimento, ¢ 0 surgimento do novo. Se, diante de nés, temos um processo no decorrer do qual nao surge nenhuma nova qualidade, nenhuma nova particularidade, nenhuma nova formacio, entao, é cla- to, nao podemos falar em desenvolvimento no sentido prdprio dessa palavra. ‘Vamos tomar como exemplo o desenvolvimento cosmolégico, quan- do da nebulosa se formam corpos celestes, sistemas inteiros, digamos 0 sistema solar. Por que denominamos isso de desenvolvimento? Porque Ocorreu o surgimento de novos mundos, novos sistemas, novos corpos celestes que nao existiam antes. Por que falamos de desenvolvimento da terra na geologia? Porque também ocorreu 0 desenvolvimento de uma série de formagées rochosas novas que nao existiam antes. Por que, na histéria, falamos de desenvolvimento histérico da humanidade? Porque surgem novas formas de sociedades humanas nunca existentes na histé- tia. Digamos que, agora, nos encontremos numa das mais grandiosas rupturas histéricas vividas pela humanidade, nos encontremos as véspe- ras de um novo regime social que nunca existiu na histéria da humani- dade. O que isso significa? Significa admitir que o processo histérico é desenvolvimento histérico, um processo ininterrupto de surgimento do novo. Apenas nesse caso podemos falar em desenvolvimento. Do ponto de vista da teoria que estamos analisando, no desenvol- vimento ocorrem apenas a realizacao e a modificacao do que estd dado desde 0 infcio. Em outras palavras, do ponto de vista dessa teoria, nao surge nada novo. Jé que é assim, fica evidente que, como jé havia dito, es- sencialmente, ela leva 4 negacao de qualquer desenvolvimento. Para ela, acrianga é um pequeno adulto, ou seja, é um ser que, em seu estado em- briondrio e em pequenas propor¢ées, j4 contém o que estar desenvol- vido em proporgées maiores no adulto. O desenvolvimento consistiria apenas no crescimento do que jd se encontra, em pequenas proporgées, no embrido, tornando-se maior. Consequentemente, essa teoria leva ine- vitavelmente 4 negacao do préprio desenvolvimento. Outra teoria, contrdria a essa, também no me parece correta e con- siste na ideia de que o desenvolvimento é analisado como um processo determinado nao por suas leis internas, mas como um processo total e Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedotogia 3 externamente determinado pelo meio. Esses pontos de vista se desenyol. veram na ciéncia burguesa e tiveram lugar na pedologia soviética durante muito tempo. Supunha-se que a crianga era um produto passivo, resul. tado das influéncias do meio, e, assim, 0 desenvolvimento consistiria no fato de a crianga absorver, acolher de fora para dentro particularidades que esto presentes nas pessoas que a rodeiam. Por exemplo, dizem que o desenvolvimento da fala acontece porque a crianga ouve. Falam em tor- no dela, ela comega a imitar e também a falar. Ela simplesmente assimila, decora a fala. Pergunta-se: por que ela assimila a fala a partir de um anoe meio até os cinco e nao antes nem mais tarde? Por que ela assimila desse modo e passa por determinadas etapas? Por que a crian¢a nao decora a fala da mesma forma como se decora uma ligdo na escola? Essa teoria nao pode oferecer resposta a todas essas perguntas. Desenvolve, contudo, seu ponto de vista até o fim, analisando a crianga ndo como um adulto em miniatura (essa ideia pertence a teoria do preformismo), mas como uma “tdbula rasa” — provavelmente, jf ouviram essa expresso. Os pedagogos ¢ 0 filésofos antigos diziam que a crianga é uma “tabula rasa” — uma folha de papel em branco, uma tabuleta em branco, como dizem (os romanos escreviam nessa tabuleta branca), em que nao estd escrito 0 que deve- ria. Ou seja, a crianga seria um produto puramente passivo que, desde © inicio, nao acrescentaria nada de si, nem teria quaisquer momentos que determinassem o curso de seu desenvolvimento. Isto é, ela seria um simples aparato de absor¢io, apenas um recipiente que, durante 0 seu desenvolvimento, seria preenchido com o que compord o contetido da sua experiéncia. A crianga seria simplesmente uma marca do meio. Por via externa, assimila e adquire o que vé nas pessoas ao seu redor. Se a primeira teoria leva 4 negacdo do desenvolvimento porque en- sina que nele tudo esté dado desde o inicio, a segunda também o faz, porque o substitui pelo simples acumulo da experiéncia, pelo simples reflexo das influéncias do meio e no pelo processo de movimento inter- no da crianga, Como vemos, de forma semelhante, essas duas teorias levam a um mesmo resultado. Em sua esséncia, nao resolvem, mas aniquilam o pro- blema do desenvolvimento. Como diziam antigamente, nao desatam, mas cortam o né. Tanto numa quanto na outra, apesar de uma ver tudo na crianga e negar qualquer influéncia do meio sobre ela € a ou- tra ver tudo no meio e negar qualquer significado na propria crianga, 0 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotsk resultado conduz ao mesmo Ponto, a negacdo do desenvolvimento. Uma © substitui pela realizacao das inclinagdes que estao embrionariamente dadas, e a outra, pelo simples actimulo da experiéncia, Como ja disse, la € c4 estd ausente o mais importante, aquilo sem o que nao se pode tratar de desenvolvimento. F exatamente ld e cd que esta ausente a ideia de que a base do desenvolvimento é 0 surgimento do novo. Por isso, em geral, o terceiro grupo de teorias — que ainda sao elabo- tadas por diferentes autores e, em medidas distintas, nao estao definiti- vamente purificadas de pontos de vista frequentemente equivocados, to- mados emprestados do primeiro e do segundo grupo —est4 no caminho em que, mais cedo ou mais tarde, a pedologia dever4 construir uma teoria do desenvolvimento realmente correta e metodologicamente irrefutdvel. Ja mencionei algumas vezes o que é mais importante para esse ter- ceiro grupo de teorias quando falei da critica aos dois Primeiros grupos. Na base desse grupo de teorias hd a ideia de que o desenvolvimento da crianga € um processo de constituicao e surgimento do homem, da personalidade humana, que se forma por meio do ininterrupto apa- recimento de novas particularidades, novas qualidades, novos tragos, novas formagées que sao preparados no curso precedente de desenvol- vimento e nao estdo presentes, jd prontas, em tamanhos reduzidos e timidos, nos degraus anteriores. Tentei mostrar que a primeira e a segunda teorias levam A negacao do desenvolvimento. Assim, pois, elas nao podem e nao querem explicar que surge algo novo. E exatamente essa ideia de surgimento do novo que compée o nticleo principal do terceiro grupo de teorias. Assim, de acordo com esse terceiro grupo, desenvolvimento é um processo de formacao do homem com todas as suas particularidades; é um processo que transcorre por meio do surgimento, em cada degrau, de novas qualidades, novas especificidades, novos tracos e formagdes ca- racteristicas do homem. Todas essas particularidades, qualidades novas, surgem nao como se tivessem caido do céu, mas sdo preparadas pelo periodo precedente de desenvolvimento. Assim como o avango do so- cialismo foi preparado pela histéria precedente de desenvolvimento ede decomposicao do capitalismo, aqui também acontece isso. Todavia, ao mesmo tempo, nao é poss{vel dizer que o socialismo jé esteja contido na forma capitalista. Aqui também lidamos com o fato de que essas novas Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 35 formas que surgem em determinado degrau etédrio sio Preparadas todo o curso de desenvolvimento, mas no se encontram Prontas Por Entio, do ponto de vista do terceiro grupo de teorias, deseny Lyi mento é um processo de formagao do homem ou da personalidade 7 acontece por meio do surgimento, em cada etapa, de novas quali dade novas formagées humanas especificas, preparadas por todo 0 curso pte. cedente, mas que nao se encontram prontas nos degraus anteriores. E importante levar em consideragao duas ideias inevitaveis para uma definigao cientificamente correta da nossa compreensio. A primeira é: no desenvolvimento, surge algo novo. Ele nao é simplesmente um proceso de formagio antecipada e isso difere a nossa compreensio da primeira teoria, a do preformismo. Mas é importante dizer também que o novo nao cai do céu, surge necessdria e regularmente do curso precedente do desenvolvimento, ou seja, ¢ necessdtio mostrar a relac4o entre 0 novo eo precedente. Por isso, ao se rechacar a primeira teoria, nao se pode negar totalmente o que nela é verdadeiro, mais precisamente, a relagao entre as etapas posteriores do desenvolvimento € 0 passado, e que o passado, no futuro, tem uma influéncia iminente no surgimento do presente. E preciso também ligar isso a ideia de que surgem novas formacées e tracos especificos do homem seguindo as leis do desenvolvimento, isto ¢, eles nao sao acrescentados de fora, de modo inesperado e independente da crianga; no caem do céu, nao sao criados por uma forga vital que, em determinada hora, dita seu aparecimento. Seu surgimento é necessdria ¢ historicamente preparado pela etapa precedente. Essa segunda ideia também € preciso conservar e arrolar. Relatei de forma abstrata essas especificidades porque persegui ape- nas um objetivo: tornar mais consistente a nossa ideia do objeto da pedo- logia. Queria mostrar que o desenvolvimento da crianga é um processo complexo, que contém uma série de regularidades muito complexas, € que o objeto dessa ciéncia est no estudo dessas regularidades. Vamos conversar sobre as atribuigdes praticas da pedologia e seus procedimentos quando formos falar da andlise clinica das criangas € examinar como so utilizados os dados pedoldgicos para andlise de seu desenvolvimento. A andlise concreta das teorias, da tiltima, em particu- so bm Nossas duas préximas aulas, quando falaremos infantil, sobre. al sical, sobre como ela estuda ° desenvolvimento ereditariedade, ou seja, sobre quais sao as leis 36 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski concretas que existem para a determinaio da influéncia das inclinagdes hereditdrias no desenvolvimento e qual é 0 papel real do meio no desen- volvimento da crianga. Entao, parece-me, tudo isso ficard mais claro e mais concreto. Segunda aula. A definigao do método da pedologia Na aula anterior, falamos sobre o objeto da pedologia e esclarecemos ue ela se ocupa do es} vimento da crianga, um _processo complexo que se manifesta numa série de regularidades fundamentais. Depois, tivemos a oportunidade de ver na prdtica como, em cada caso especffico, especialmente em transtornos do desenvolvimento, manifestam-se essas regularidades; como, no desenvolvimento de cada crianga, elas sofrem transtornos, disfungées, se alteram e como o diag- néstico pedoldgico procura desvenda-las. Agora, gostaria de conversar a respeito do método da pedologia. Na tradugio dogtego) método significa “caminho”. No sentido metaférico, entende-se por*inétodo o modo de investigacao ou de estudo de uma parte definida da realidade; ¢ o caminho do conhecimento que conduz a faridades cies . Contudo, obviamente, uma vez que cada ciéncia tem seu objeto de estudo especi- fico, € necessdrio um método especffico para o estudo de qualquer um deles. O método é um caminho, um procedimento. rum _procedi- mento, consequentemente, depende 3 objetivo para o qual a ciéncia se objetivos especificos, entao, é claro que elabora também seus métodos de estudos especificos, seus caminhos de investigacao. Assim, pode-se dizer que, da mesma forma que no existe ciéncia sem seu objeto, também nao existe ciéncia sem seu método. O cardter deste ¢ sempre definido pelo carater do objeto da ciéncia. Por isso, se conhecemos, pelo menos em algumas palavras, 0 que caracteriza o desenvolvimento da crianga, podemos passar a tarefa de esclarecer qual é a especificidade do método da pedologia, o que nele ¢ essencial ¢ mais importante. Parece-me que a primeira caracteristica que distingue o método pe- doldgico consiste no fato de que, como se diz normalmente, ele é um método de estudo da unidade do desenvolvimento; abrange nao apenas um_aspecto do organismo, da peseppalicn da crianga, mas todos os \ | p No : “ 0 Nig 9A = Uy 2S : - QA ! oy Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia . 7 aspectos de um e de outro. Por isso, desde antigamente, afirma-se 7 método pedoldgico é 0 da unidade. deo Contudo, permaneceu por muito tempo sem clareza 0 Que & ese método na pedologia. Se esclarecermos com preciso o que ele Significg para a pedologia, compreenderemos, parece-me, os principais meios do estudo cientifico e pratico distintamente. Antes de tudo, é preciso dizer que método da unidade nao significa método multilateral. Estudar uma coisa isolada e multilateralmente, em seguida outra coisa e depois mais outra, estudar dados especificos, ainda nao € o método da unidade, apenas o multilateral. Normalmente, os estudos multilaterais nao abrangem apenas um, mas varios campos da ci- éncia que so necessdrios nao em fungao de um objetivo tedrico, mas de objetivos puramente prdticos e técnicos. Assim, € preciso combinar da- dos de diferentes ciéncias. Todavia, obviamente, a pedologia nao poderia ser uma ciéncia especifica se seu método consistisse apenas em coletar ¢ sistematizar dados de ciéncias diferentes. O segundo ponto é que o método da unidade nao exclui a andlise. Nao existe ciéncia alguma que possa seguir por um caminho sem recor- rer & andlise, 4 decomposic4o de um todo complexo em momentos dis- tintos que o constituem e o formam. Por isso, quando se fala de método da unidade, novamente, nao se deve supor um método que, por algum motivo, seja somatério, generalizante ou que exclua a possibilidade de um estudo analitico. [Todas essas definicGes sio negativas].'’ Com relagao 4 definigao po- sitiva, parece-me que € mais facil esclarecer 0 que é método da unidade na investigac4o pedoldgica se tomarmos e contrapusermos os dois prin- cipais modos de andlise geralmente utilizados na ciéncia e, particular- mente, no estudo do desenvolvimento infantil. Podemos denominar o primeiro desses modos de andlise de decom- posic4o em elementos. Entao, no processo de andlise, um todo complexo €decomposto em elementos que o constituem, melhor dizendo, em par- tes constituintes elementares. Um exemplo tipico desse método é a ana- lise quimica, em que decompomos um corpo complexo em elementos que 7 constituem. Essas formas de anélise existem em todos os campos da ciéncia e, em particular, no estudo do desenvolvimento infantil. Se, 15 Ao . . . cea age tem via qu a defn indiads pr le soapresetada pel 8 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski nesse estudo, nos interessar, digamos, a fala, essa formagao complexa que é a fala — que tem seu aspecto fisiolégico e também o psicoldgico —, € se assumirmos a tarefa de estudar a fisiologia ou a anatomia dos 6r- gios da fala ou a sua psicologia, procederiamos como um quimico que decompée a 4gua em elementos que a constituem. Tomarfamos cada aspecto da fala como um elemento independente ¢ estudariamos cada um isoladamente. A outra forma de andlise consiste no que se poderia denominar de método de decomposi¢ao ou método de andlise que retine as unidades num todo complexo. O que isso significa? Qual ¢a caracteristica do ele- mento que é parte do todo? Penso que, em relacao ao todo de que é par- te, 0 elemento se caracteriza por nao ter propriedades presentes no todo. Se, por exemplo, quero explicar por que a 4gua apaga o fogo, por que alguns corpos afundam e outros flutuam na 4gua, ndo posso responder a isso dizendo que a 4gua é composta de hidrogénio ¢ oxigénio, sendo sua férmula quimica H20, pois, ao decompé-la em hidrogénio e oxigé- nio, as propriedades nela presentes desaparecem nesses elementos. Elas sio préprias da 4gua apenas enquanto ela é 4gua. Contudo, 0 oxigénio mantém 0 fogo, o hidrogénio sofre a combustao e a propriedade da 4gua é a de apagar o fogo, que, nesse caso, desaparece e nao pode ser explicada pela soma das propriedades do oxigénio e do hidrogénio. Entao, para a andlise que utiliza a decomposicao em elementos, o mais caracteristi- co consiste no fato de que ela decompée um todo em partes que nao contém em si propriedades do todo e, por isso, exclui a possibilida- de de explicacao das propriedades complexas presentes no todo que é constituido pelas propriedades das partes isoladas. Nao posso explicar por que a 4gua apaga o fogo pela relaco entre o fogo e os elementos que formam a Agua. Por isso, pode-se dizer que, essencialmente, do ponto de vista das propriedades do todo, no sentido préprio da palavra, essa nao é uma andlise. E, antes de tudo, uma contraposig4o & andlise, porque nao desmembra 0 todo complexo em elementos constituintes isolados, mas reduz as propriedades desse todo complexo a uma tinica causa comum. Quando digo que a 4gua é composta de hidrogénio e oxigénio, isso est4 relacionado apenas a sua propriedade de apagar o fogo ou as de- mais propriedades? Claro que, decididamente, isso mantém relagéo com as demais propriedades da 4gua. Isso diz respeito ao oceano, a gota de 4gua da chuva, ou seja, isso é relativo também a dgua em geral. Entao, Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 39 a andlise que decompéde em elementos pode apresentar apenas conheci- mentos que mantém relacao com as propriedades comuns de um todo, Podemos esclarecer a natureza da 4gua em geral via tal andlise, mas essa andlise nao nos explica o que dela exigimos, ou seja, a decomposicao das propriedades, as explicagdes de cada uma delas, as relagdes entre cada uma delas. Isso significa, essencialmente, do ponto de vista do estudo das propriedades da dgua, que essa nao é uma andlise no sentido proprio da palavra. Se isso estd claro, entao serd facil explicar o que é a andlise que de- compée em unidades um todo complexo, pois ela é definida por dois tracos opostos. A andlise que decompée em elementos é definida pelo fato de o elemento nao conter propriedades do todo. Ja a unidade ¢ definida pelo fato de qu arte todo que contém, mesmo que de forma embriondria, todas as caracteristicas fundamentais.préprias do_todo. ~ ; Digamos assim: para 0 quimico, a dgua contém hidrogénio ¢ oxigé- nio. O fisico, contudo, lida com moléculas, com 0 movimento molecu lar interno da 4gua, ou seja, com particulas minimas que, ainda assim, so particulas de 4gua e nao elementos dos quais ela é constituida. Por isso, o fisico explica uma série de alteragdes que 0 corpo fisico sofre € desvenda a relacao entre diferentes propriedades por meio das proprie- dades moleculares da dgua, analisando e desmembrando uma série de propriedades isoladas que fazem dela um corpo fisico. oo Se tomarmos uma férmula bioquimica de alguma substancia orga- nica, isso seré uma andlise que decompoe em elementos. Se estudarmos a vida, a fisiologia da célula viva do organismo, isso seré uma unidade, i i ‘ fi s do porque a célula viva conserva em sias propricdades fundamenca ; organismo como um todo. Em termos gerais, a unidade é a célula viva, ou seja, ela nasce, se alimenta, metaboliza e morte, se altera, se eri ma e pode também adoecer etc. Em outras palavras, na pequena célula, lidamos nao com o elemento, mas com a unidade. A primeira caracteristica_da_unida i -fato-de_que 4 andlise destaca as partes que ndo perderam as propriedades do todo. Imaginem que, por meio da andlise, eu decomponha um corpo om plexo — é indiferente se real ou abstrato — em partes isoladas e, depois, chegue a um determinado limite de decomposi¢éo em que obtenho uma parte que contém em si as propriedades fundamentais do todo. Por “ Fundamentos da Pedologa de LS. Vigotski exemplo, a molécula de 4gua contém em si as propriedades fundamen- tais da 4gua; a célula viva contém em si algumas propriedades fundamen- tais de qualquer matéria viva, de qualquer organismo. A andlise que nos conduz 4 compreensio da célula e de sua vida, da constitui¢gao do tecido pelas células, da constituicao do drgao pelos tecidos ou a andlise que leva ao estudo das moléculas de 4gua, da tensao molecular ou do movimento molecular da 4gua nos conduz, como resultado, as partes da dgua que nao perderam as propriedades do todo, que contém em si as proprie- dades fundamentais do todo no mais alto grau e de forma simplificada. Digamos que seja impossf{vel comparar a alimentacao da célula com a do organismo humano; contudo, na alimentagao da pequena célula, ha elementos fundamentais de algo vivo. Essa é a primeira diferenga basica entre as duas andlises. -Apresentarei exemplos concretos do campo da pedologia, fatos que mostram a diferenga nitida entre uma e outra forma de anilise. A segunda propriedade dessa andlise é que ela se vale do método de decomposicao em unidades e, diferentemente da andlise quimica, no representa uma generalizacao. Ela no se relaciona com a natureza da totalidade do fenémeno, mas pode ser uma andlise por meio da decomposi¢ao para explicar diferentes propriedades de uma totalidade complexa. Entao, isso significa que é andlise no sentido préprio da pala- vra. Por exemplo, nao quero esclarecer toda a vida do organismo huma- no, mas uma determinada fungao, digamos, a alimentagao. Para isso, eu preciso recorrer a qué? A andlise de todo o organismo ou de determina- _dos aspectos de sua atividade? De determinados érgaos, de determinados sistemas. Agora, quero explicar outros aspectos da atividade vital. Preciso recorrer 4 andlise de outros aspectos. A andlise nao me conduz a algo como a formula quimica da 4gua, que mantém uma relagao similar tanto com o grande oceano quanto com a gota de chuva. A andlise me permite, num caso, explicar a digest4o e, no outro, o sistema circulatério; num caso, por que a 4gua apaga o fogo; no outro, por que os corpos afundam ou flucuam etc. Isso significa que essa é andlise genuina, ou seja, ela per- mite, de forma simplificada, o estudo de algumas caracteristicas funda- mentais de um todo. Passemos aos exemplos concretos e isso ficard claro. Durante muito tempo, predominou na pedologia a visao de que o desenvolvimento depende de duas fontes: a hereditariedade e o meio. Ninguém discordaré disso. Digamos que a formula quimica de Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia a qualquer desenvolvimento seja a hereditariedade ¢ 0 meio. Isso esti correto? Penso que, indiscutivelmente, esta correto. Isso estd relacio. nado ao desenvolvimento como um todo? Sim, do mesmo modo que a formula quimica guarda relagdo com a dgua como um todo. Quando se tentava utilizar a andlise baseada na decomposigao do desenvolvimento e de cada momento isolado do mesmo nos elementos hereditariedade e meio, est4vamos na mesma situa¢ao pela qual passariamos caso quisésse- mos explicar as caractersticas concretas da dgua — por exemplo, que ela apaga o fogo — partindo da ideia de que ela € composta de hidrogenio e oxigénio. Esbarrarfamos nos elementos que nao contém em si as proprie- dades do desenvolvimento como um todo. Por exemplo, como explicar a fala da crianga? Em relagao & fala, sempre existiram duas vis6es: 0 ina- tismo € 0 empirismo. O inatismo afirmava que toda funcio ¢ inata, de base hereditdria. O empirismo afirmava que a fala nasce da experiéncia. Os inatistas diziam: se colocarmos em condigoes melhores, entre orado- res, uma crianga que tem mal desenvolvida a zona cerebral responsdvel pela fala, ela no comegard a falar. Isso significa que a fala se desenvolve a partir de rudimentos hereditdrios. E os empiristas diziam: coloquem uma crianga com a zona cerebral responsavel pela fala desenvolvida junto de criangas surdas-mudas. Ela nunca falaré. Entao, isso significa que a fala se desenvolve no meio e com a experiéncia. Da mesma forma avan- gava a discussio em relagao & percepgao do espago € a quase todos os aspectos do desenvolvimento. A ciéncia enxergava, nO infcio, apenas as contradiges. Dessa forma, quando a ciéncia entrou em um beco sem saida, sut- natismo e o empirismo. giram tendéncias que tentavam conformar 0 i Comegaram a dizer: a fala da crianga se desenvolve, por um lado, com base nas caracteristicas hereditdrias embriondrias e, por outro, sob a in- fluéncia do meio. Isso est4 correto? Incontestavelmente, sim. Todavia, est relacionado tanto 4 fala quanto, decididamente, 20 desenvolvimento como um todo. Por isso, até agora, enquanto falévamos do desenvol- vimento em geral, seria necessdrio para a compreensdo € nos satisfazia por completo o princfpio de que o desenvolvimento é determinado pela hereditariedade e pelo meio. Contudo, assim que surge o desejo de explicar algum aspecto con- Gee to desenvolvimento, por exemplo, a fala, com base em caracteris- riondrias plus influéncia do meio, nao podemos Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski decompé-la desse modo, porque os caracteres embriondrios hereditérios nao contém em si, necessariamente, o surgimento da fala e 0 meio ex- terno nao contém em si a necessidade do surgimento da fala na crianga. Entdo, comecaram a imaginar que a fala da crianga se desenvolve de convergéncias, ou seja, do entrecruzamento, da coincidéncia de uma influéncia com outra. Assim, imaginavam a coisa de tal forma que, no- vamente, qualquer influéncia no desenvolvimento da crianga deveria ser explicada com a ajuda da convergéncia de dois fatores: da hereditarieda- de, por um lado, e do meio, por outro. Todavia, na verdade, o estudo dessas questdes levou 4 necessidade de se recusar 0 modo de andlise que decompée em elementos. Por que ¢ como? Antes de tudo, descobriu-se a infertilidade desse método de investi- gacao. A fala se desenvolve da [relacgo mutua]'° entre hereditariedade e meio. Mas o mesmo pode ser dito em relagao a outras caracteristicas da crianga. O crescimento depende da influéncia do meio ¢ da hereditarie- dade; o peso da crianga também depende disso; a brincadeira, a atividade de brincar, também depende disso. Qualquer aspecto do desenvolvimen- to da crianca que focalizarmos se mostrar4 sempre dependente da here- ditariedade e do meio. Isso significa que, para todas as questées relacio- nadas ao desenvolvimento, terfamos apenas uma resposta: depende da hereditariedade e do meio. Além disso, poderiamos dizer 0 que hd mais do meio e menos da hereditariedade e, em outro caso, o que ha mais da hereditariedade e menos do meio. E nada mais poderfamos descobrir que fosse muito frutifero com a ajuda dessa andlise. De que outra forma pode-se tratar a andlise, o estudo, digamos, do desenvolvimento da fala? Dizemos assim: a fala é um todo complexo que depende tanto do meio quanto da hereditariedade. Essa nao é, contudo, uma caracteristica diferenciada dela, mas algo que é prdprio de todos os aspectos do desenvolvimento infantil. Como devemos analisar o desenvolvimento da fala da crianga? Antes de tudo, parece-me que devemos partir do fato de que nela existem mo- mentos isolados que representam unidades ¢ ndo elementos, ou seja, que representam momentos que conservam, mesmo que de forma primiria, caracteristicas proprias da fala, assim como uma celulazinha conserva, de forma priméria, caracteristicas préprias do organismo como um todo. 16 No manuscrito, “influéncia” (N. da E. R.). Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 43 Tomemos um exemplo concreto: 0 aspecto sonoro da fala, Provavelmente, vocés sabem que, na velha lingufstica, estudava-se 9 as- pecto sonoro da fala. [Estudavam-se os sons]'” com os quais se organiza a fala. Imaginem que cada palavra seja construfda de sons isolados com os quais se organiza a fala. Isso est4 correto? Claro. Est4 certo. Se estd certo que a fala é constituida de sons isolados, de letras isoladas, de elementos, surge uma série de questoes dificeis de resolver. A primeira consiste em que, se a fala é constitufda de sons isolados, consequentemente, para se estudar como se desenvolvem, na crianga, Os seus aspectos sonoros, é preciso decompé-la em sons isolados e observar quando surgem as letras isoladas “a”, “b”, “v’, “e” etc. Mas o som “a”, 0 som “b” etc., como sons em si, nao contém nenhuma caracteristica prépria do som da fala hu- mana, porque podem existir no papagaio ou no bebé até este aprender a falar. Consequentemente, podemos estudar apenas as propriedades dos sons actisticos como fenédmenos fisicos e fisioldgicos que dependem da articulagdo, dos movimentos articulatérios com a ajuda dos quais sio pronunciados. Mas 0 que diferencia o som da fala humana de outros sons exis- tentes na natureza? A diferenga entre o som da fala humana e os sons da natureza é que, em sua esséncia, os sons com a ajuda dos quais transmi- timos um determinado sentido sao uma unidade da fala e nao um mero som, mas um som significante, ou seja, um som que tem a caracteristica de transmitir um significado. O que diferencia os sons de qualquer pala- vra que pronunciamos de quaisquer outros que existem na natureza, que podem conter a mesma quantidade de oscilagdes por segundo, a mesma duragio, ou seja, todas as qualidades fisicas? Os sans da fala humana se diferenciam porque servem para a transmiss4o de um determinado senti- do.Por isso, a investigacao contemporanea compreendeu que a unidade da fala ndo é simplesmente um som, mas um a No estu- do contemporaneo da fala, esse som que soa é designado de fonema, ou seja, € uma combinagao de sons que nao _pode mais ser decomposta & as vezes; €UMTSOMTBITcombinagao de sons que nao perden a principal propriedade da fala humana e que o faz ser um som humano. ~~Permitam-me ap ferent ‘presentar um exemplo simples. Em duas palavras di- es: um c = temos 0 mesmo som [u], no inicio de uma e no 7 Wes o eon, ? 37 Neodiginal POV Ia ginal, “cla era estuddfa do ponto de visteflos sons” (N’da E.R) um significa “mente” e ottsu significa “20 pai” (N. da T) 18 Em russo, Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski final da outra. Por suas caracteristicas fisicas, propriedades fisiolégicas e articulatérias, os dois sons sao totalmente coincidentes, séo 0 mes- mo som. Contudo, ele é um fonema, uma unidade da fala. Por qué? Pergunto: o som [u] na palavra ottsu estd no final e é um som signifi- cante. Ottsu significa algo? O “u” na palavra um é um som significante? Nao. Logo, isso significa que, no primeiro caso, estamos lidando com um fonema e, neste ultimo, com um som. Se eu decompuser a palavra em sons como [u] e [m], entdo, para mim, toda a palavra permanece como uma simples combinagio casual de determinados sons. Se eu sou- ber decompor a fala em partes, como, nesse caso, 0 som [u], verei que ele contém uma propriedade basica da fala humana, uma fungao de signi- ficados, mas, na verdade, numa forma muito embrionaria. Isso porque, por si s6, 0 som [ul] nao significa qualquer objeto, nem guarda relacao™ com esse objeto; é uma funcio nebulosa de cardter dependente que ajuda ¢ a diferenciar o significado ottsu de ottsa, ottsom, ob ottse etc. 19 Mas isso € 0 fonema, é a unidade. A andlise mostra que a fala humana, por um lado, se desenvalve.e,par_outro, se estrutura.de forma.desenvolvida nao de sons, mas _de fonemas, ou seja, de sons que exercem_a funcio. fundamental ‘ou, mais precisamente, a de significada. \D © que diferencia uma e outra andlise da fala? Parece-me que, em uma, decompomos em elementos que perderam as propriedades do todo. No caso presente, decompomos em_unidades que conseryam.as propriedades do todo, ainda que de forma priméria. A historia do de-_ senvolvimento da fala humana até hoje indica que, enquanto_estivermos estudando-o pelos sons isolados, sera Well entender como se desenvolve ea! A investigacdo mostra que nunca poderemos entender porque a crianga pronuncia algumas palavras e nao outras; porque pro- nuncia algumas letras, alguns sons antes e outros mais tarde. Ainda, o mais importante é que nunca entenderiamos de que forma a crianga assi- mila o principal vocabulério fonético da lingua materna, aos dois ou trés anos, se todas essas palavras representassem combinacées casuais de sons 19 Na lingua russa, as declinagées sao formadas por seis casos para os substantivos, pronomes, adjetivos, Sao eles: nominativo, genitivo, acusativo, dativo, instrumental ¢ prepositivo. Dependendo do caso da declinagio, 0 substantivo ofets sofrerd alteracio em sua desinéncia, No exemplo apresentado por Vigotski, a palavra otets estd declinada no genitivo, instrumental, prepositivo (nessa ordem), que, na tradugio, seria: do pai, pelo pai, sobre o pai. E ottsu, no dativo, significa “ao pai” (N. daT,). Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 45 isolados. Todavia, a crianga assimila sem decorar, sem repeticao : Aprende, assim, a dizer, de forma estrutural. “SPecial Tomemos um exemplo concreto. Provavelmente, vocés sabem no balbucio do bebé, o som [r] aparece muito cedo. Stern supds ne as formagées [er] e [rr] sao quase as primeiras a surgirem no balbivg infantil. Ao mesmo tempo, vocés sabem que o som [r] surge na fala da crianga muito tardiamente. Dessa forma, parece que ela dominao sam {r] no balbucio muito cedo, mas quando comega a falar, atéos tris, quatro, cinco anos, nao consegue pronuncid-lo. O. que se verifica é gue ela domina o som [r] desde cedo, porém apresenta dificuldade como, fonema nao como som, mas como fungdo_semantica. Acontece que a crianga que fala [u] e [a] ainda nao sabe diferenciar ottsu de ottsa. Por que ela ainda nio sabe falar corretamente ia dam ottsu (“eu darei para o pai”)? Nao é porque nao saiba pronunciar o som [u], mas porque a fun- ao desse som lhe é ainda inapreens{vel. O mesmo ocorre em relacdo ao som [r]. A crianga aprende 0 som [r] muito cedo. Todavia, é porque ele exerce fungées complexas de significado na composicao da lingua russa que a crianga comega a dominé-lo mais tarde. Ainda que seja o primeiro a surgir no balbucio, aparece jd tarde na fala sonora da crianga. Tomei como exemplo apenas esse aspecto do desenvolvimento infantil — mais exatamente a fala e, no Ambito dela, apenas um momento, 0 seu aspecto sonoro, o desenvolvimento da capacidade de falar. Com isso, vemos; é claro, que eu recorri & andlise. Destaquei a fala no desenvolvimento; na fala, seu aspecto sonoro, e tentei decompé-lo em determinadas unida- des. Entio, h4 uma andlise. Essa andlise, contudo, tem um determinado limite: 0 que conserva a propriedade dos sons da fala humana em geral, ou seja, a caracteristica de ser significante. O que isso quer dizer? Tomemos 0 segundo exemplo. O estudo do meio. Penso que vocés concordarao comigo que 0 significado de cada elemento do meio serd igual dependendo da relagao que ele tem com 4 crianga. Por exemplo, adultos frequentemente conversam da mesma for- ma em torno da crianga quando ela tem seis meses ¢ quando tem um ano € seis meses. Contudo, essa mesma fala, que ndo mudou, tem © mesmo significado quando a crianga tem seis meses e quando tem um ano ¢ sels meses? Diferente. Isso significa que ‘ainfluéncia de cada elemento 4 0 meio dependerd nao do que ele contém, mas da relacao que tem com ? ssianga. O significado de um mesmo elemento do meio sera diferente Fundamentos da Pedologa de LS. Vigotsti Cc ta eee oob “| U dependendo de sua relaca i A fala dos que est4o em torno da crianga nao mudard; ser4 a mesma quando a crianca tiver um ano ou trés anos, mas 0 seu significado para o desenvolvimento mudara. Agora, imaginem que eu v4 estudar do que depende a fala, como faziam com frequéncia. A fala das criangas se desenvolve de diferentes formas. Algumas comegam a falar antes e melhor; outras, mais tarde ¢ pior; algumas se atrasam no seu desenvolvimento, outras se adiantam. Quando desejam explicar por que é assim, dizem do que depende o de- senvolvimento da fala da crianca. Primeiramente, do meio circundante. Se, no meio circundante, a fala é rica e se conversam muito com a crian- ga, ela tem chances de se desenvolver rapidamente no que diz respeito 4 fala. Agora, se no meio circundante, a fala é pobre e conversam pouco com a crianga, ela se desenvolverd de modo pior. Ou seja, depende, em primeiro lugar, do meio falante e, em segundo, da prépria mente da crianga. Se for inteligente, esperta e tiver boa meméria, assimilard me- lhor. Todavia, se for obtusa, atrasada e limitada, assimilara de um modo pior. Tentavam explicar o desenvolvimento da fala partindo desses dois motivos. Decompunham os dois em elementos ¢ mensuravam, tomando por base a quantidade de palavras que o ouvido da crianga ouvia por dia ou por hora e procurando esclarecer se isso realmente explicaria as dife- rengas no desenvolvimento de sua fala. Verificou-se que, decididamente, isso nao esclarecia por que o circupstancia crucial nao é, por si sd, nem entre o meio falante e a fala da de se comunicar com os que estao a sua volta, te: ma coisa. Se tem uma relac4o tensa com os que ¢stao a sua volta, fetha-se e cada palavra soa de forma desa- gradavel, é outra completamente diferente. Consequentemente, vé-se que, de novo, a unidade é crucial e nao os elementos, ou seja, a relagao entre o momento do meio e as caracteristicas da prépria crianga. Se encontrarmos essa unidade, ela conservard em si 0 que é préprio do desenvolvimento da fala como um todo, ou seja, a relacao entre os momentos do meio e os momentos pessoais, isto ¢, os que estao enrai- zados nas especificidades da prépria criang - — Eis por qui udo que se vale do estudat ofa estudamos as unidades que nao foram decompostas em elementos e conservam em si, de forma simplissima, as relagGes entre es- ses elementos, ou seja, aquilo que é mais importante no desenvo lvimento. © meio nem a mente, mas a propria crianga. Se gosta de falar, Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia ar Penso que as dificuldades despertadas em vocés com a apresentacio dessa parte de minha aula estao relacionadas ao fato de que estou falando desse método de forma abstrata. Todavia, muita coisa ficara mais clara sobre a andlise propria da pedologia quando, da préxima vez, exami. narmos 0 problema do meio e da hereditariedade e esclarecermos o que diferencia o estudo pedoldgico da hereditariedade do estudo da heredita- riedade na genética, na biologia; o que diferencia o estudo pedoldgico do meio do estudo do meio na higiene. Verificaremos que cada uma dessas ciéncias tem atribuig6es diferentes de investiga¢ao, j4 que cada uma delas se vale de métodos distintos para o estudo da hereditariedade e do meio, enquanto a pedologia estuda tanto a hereditariedade quanto o meio aplicando o método de que estou falando, ou seja, 0 método de de- composicao em unidades. Por exemplo, a higiene e a genética estudam a hereditariedade e o meio aplicando o método de andlise por decompo- sigio em elementos. Isso responde as atribuiges dessas ciéncias. Entao, penso que, da préxima vez, quando nos aproximarmos concretamente do estudo do meio e da hereditariedade, ficar4 mais clara a primeira es- pecificidade do nosso método, com o qual, a princfpio, nos encontramos de forma abstrata. Agora, quero me deter na segunda especificidade que caracteriza 0 método pedoldgico. Uma vez que ela é bem mais simples e est relacio- nada ao método de outras disciplinas, j4 conhecido por vocés, isso sera bem mais facil e compreensivel. A segunda especificidade do método de investigacao pedoldgica consiste em que, no sentido amplo dessa palavra, ele ¢€linico. Para explicar 0 que compreendemos ao dizer que a pedologia se utiliza do método clinico de estudo, ser4 bem mais facil se, por um lado, compa- rarmos esse método na pedologia ao correspondente na clinica — os dois sao suficientemente semelhantes — e se, por outro lado, contrapusermos 0 método clinico de estudo com o sintomatoldgico. Vocés sabem que, na medicina, antes do desenvolvimento do méto- do clinico, predominava o sintomatoldgico. Ou seja, estudavam-se nao as doengas, mas os seus sintomas, suas caracteristicas, seus fendmenos ex- ternos. As doencas eram classificadas e agrupadas por seus sintomas. Os doentes com Os mesmos sintomas, com uma tosse, por exemplo, eram aoe €m um grupo de doengas. Outros com sintomas de dor de xemplo, em outro grupo de doengas. Da mesma forma, em Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski Dessa forma, quando digo que a pedologia emprega 0 método ch. J nico no estudo do desenvolvimento infantil, quero dizer: ela trata as + manifestacoes observadas no desenvolvimento infantil apenas como ] caracteristicas por trds das quais tenta identificar como transcorreu oy como ocorreu 0 proprio processo de desenvolvimento que levou ao surgimento desses sintomas. Por exemplo, vocés ja viram, da ultima vez, como determinamos © desenvolvimento mental da crianga. Sabemos que, pela certidio de nascimento, a crianga pode ter seis anos e, pelo desenvolvimento, nove ‘ou 12. Sabemos que se adiantou no desenvolvimento mental em quatro anos. O que isso significa para um diagndstico pedoldgico? Termina aj a tarefa da investigacao pedoldgica? Nao. Apenas constatamos que isso ocorreu. Contudo, por que ocorreu? Saberemos apenas se esclarecermos © que aconteceu no processo de desenvolvimento da crianga. O que le- you a isso? O que essas caracteristicas evidenciam? Que no sio caracte- risticas do desenvolvimento mental de uma crianga de trés anos, mas de uma de 12 anos. Isso pode acontecer por diferentes motivos. Frequentemente, lidamos com criangas que sao dotadas além de sua idade. Em uma de minhas conferéncias, gostaria de apresentar algumas dessas criancas. Quando trazem uma crianga, dizem que ela é desen- volvida além dos anos que tem. Pergunta-se: 0 que provoca isso? Em uma delas, verifica-se que isso foi provocado por um desenvolvimento acelerado. Ou seja, essas criangas simplesmente percorrem 0 caminho do seu desenvolvimento em um ritmo muito acelerado. O que uma crian- ¢a atinge, domina aos oito anos, a outra atinge aos seis. Contudo, esse desenvolvimento acelerado serd posteriormente acompanhado de um desenvolvimento mais vagaroso, ou, mesmo que nao seja vagaroso, nao significa que diante de nds esteja uma crianga bem-dotada. Exemplos extremos tipicos dessas criangas com desenvolvimento acelerado sd as wunderkind,”® a respeito de quem vocés provavelmente ja ouviram falar. Wunderkind é aquela que, numa idade muito precoce, nos impressiona com algumas capacidades especificas — musicais, artis- ticas, matematicas. Contudo, wunderkind é uma crianga comum com desenvolvimento acelerado. Admiramo-nos quando a crianca tem cinco anos; realmente 20 No original russo, Vigotski usa a palavra alema wunderkind, que, na tradusio part ° portugues, significa crianca prodigio (N. da T). Fundamentos da Pedotoga de LS. Vigotski i Ht ‘ nos impressiona porque, aos cinco anos, por exemplo, demonstra co- nhecimentos matematicos que sao proprios de um jovem de 19 ou 20 anos ou de um adulto. O que hd de impressionante nesse caso? Nao sao as capacidades matemticas em si, mas o fato de estarem presentes numa Crianga téo pequena. Contudo, a maioria das wunderkind tém como destino se tornarem pessoas medianas ou ficarem até mesmo abaixo de pessoas com desenvolvimento médio. De uma grande quantidade de wunderkind que prometem se tornar muisicos, matematicos ou pintores reconhecidos, a maior Parte, com frequéncia, nao se transformam nem em miisicos, nem em mateméticos, nem em pintores medianos poste- tiormente. Tornam-se pessoas abaixo da média, porque a aceleragio é uma das manifestacdes de formas patoldgicas de desenvolvimento, de desenvolvimento incorreto que nao levard a nada bom, O compositor alemao Liszt expressou essa especificidade da wunderkind num aforismo muito irénico quando disse que ela esté com seu futuro no passado, ou seja, se antecipou muito precocemente na linha do seu futuro, mas é uma crianga sem futuro, no verdadeiro sentido da palavra. Todavia, hd criangas que também manifestam precocemente desen- volvimento mental prdprio de uma idade mais avangada. Elas se diferen- ciam das anteriormente mencionadas por serem, essencialmente, verda- deiros futuros talentos ou futuros génios. Apesar de os sintomas daquelas ou dessas formas de desenvolvimen- to serem semelhantes, hd necessidade de diferenciar a futura crianga ge- nial da furura wunderkind, ou seja, da futura flor estéril. Como fazer isso? Os sintomas so semelhantes. A crianga que vocé recebe apresenta um QI (a relacao entre a idade mental ¢ a idade da certidao de nasci- mento) igual a 1,9; ela tem 10 anos, mas demonstra ter 19. A outra crianga revela um QI equivalente. Porém, uma é a futura wunderkind ea outra, um futuro génio. Como diferenciar isso? Da mesma forma como fizemos quando diferenciamos dois quadros sintomaticos semelhantes um do outro. Procuramos os sintomas diferenciados. Dizemos assim: de acordo com essas caracteristicas, as duas criangas sao parecidas. Devemos Procurar caracterfsticas pelas quais elas ndo se parecem, que nos permi- tam diferencié-las. Particularmente, em relagao a essas criangas, existe uma caracteristica comum: a que tem desenvolvimento acelerado ou, em. casos extremos, a wunderkind “nos impressiona com a presenga de sintomas que so caracteristicos de idades mais avancadas; mas a crianca Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia a b realmente bem-dorada, talentosa, genial nos impressiona com a Presen de sintomas que s40 caracteristicos de sua propria idade, porém levads, 3 um desenvolvimento completo, rico, Horescente, pleno. Se pds. mos dizer assim em seu desenyolyimento, a wunderkind se caractetiza pela presenca de sintomas que se adiantam As suas idades, Todavia, xanga verdadeiramente talentosa ¢ bem-dotada se caracteriza por predominarem, no seu desenvolvimento, propriedades caracteristicas desua idade, idade que é, contudo, vivenciada de forma especialmente ‘criativa erica, ‘Vou apresentar um exemplo concreto. Recebi um menino que foi descoberto por acaso. Ele era um matemitico genial. O menino tinha cito anos ¢ 10 meses. Hoje, ele domina uma série de disciplinas do cam- po da matemdtica avangada. Ao estudar essa crianga, vimos que ela nos impressionava ndo por ter nove anos € uma mente madura de um estu- dante de 20 anos ou de um assistente de 25 ou de um mestre matematico de 30. O menino nos impressionou por sua relacdo com a matemitica avangada e por demonstrar especificidades mentais proprias de qualquer crianga de nove anos. Entretanto, essas especificidades de uma mente de nove anos foram levadas até os limites da genialidade, assim como,~ precisamente, um génio adulto se diferencia de qualquer um de #ids/nao por revelar, aos 30 anos, a experiéncia prépria de um idoso de 90, mas . por levar a medidas geniais as mesmas especificidades de uma pessoa de 30 anos. Por exemplo, esse menino de aproximadamente quatro ou cinco anos descobriu, por ele mesmo, a forma de elevar 0 denominador a um numerador comum. Ele ouviu a mae perguntar ao pai quanto restaria se, de 3/4, subtraisse 1/3. Raciocinou e disse qual seria o resultado e 0 que restaria, apesar de ninguém ter lhe ensinado como fazer a subtracio de Proporges. Quando lhe indagaram como conseguiu, verificou-se que, inicialmente, ele descobrira sozinho a forma de chegar a um numerador comum muito antes de realizar a operacao. Caso vocés me perguntem: se explicarmos algumas operaces simples com subtracao de proporgoes, 'sso € acess{vel a qualquer crianga nessa idade? As experiéncias de Leman” € de outros demonstraram que sim. Todavia, a crianga descobriu sozinha essa forma de calcular. Quando conhecemos uma série de sintomas, 10S 21 No original russo, Leva , Levan (N. da E, R.). Trata- i alho com Cian ade ds Teh R) Tras de um pedagogo dedicalo 0 Q + Fundamentos da Pedologa de LS. Vigots# convencemos de que diante de nés estd realmente uma crianga genial, ou seja, um desenvolvimento de outro tipo, totalmente diferente do de uma crianga com o desenvolvimento acelerado. Trouxe esses casos para mostrar que a pedologia nao estuda sempre os sintomas por si sés, mas, utilizando os estudos dos mesmos, tenta chegar aos processos de desenvolvimento subjacentes Aqueles sintomas. Por isso, ela classifica os processos de desenvolvimento em diferentes es- tégios, com seus aspectos isolados. Assim, 0 método da pedologia pode e deve ser denominado de método clinico, ou seja, método que caminha das manifestac6es especificas dos_processos de desenvolvimento para 0 &eudo dos prdprios processos de desenvolvimento,.de sua essenc de sua natureza, A terceira especificidade que define 0 método pedoldgico ¢ o que poderia ser denominado de cardter genético comparativo. Nem toda disciplina clinica se vale obrigatoriamente do modo ge- nético de andlise do seu objeto. Ao contrario, muitas disciplinas cli- nicas usam outros modos. Mas a pedologia, que estuda o desenvolvi- mento, dada a esséncia deste, nio pode nao empregar 0 modo genético comparativo. O que significa isso? Quando estudamos algum processo de desen- volvimento, como podemos proceder? Podemos observar diretamente, digamos, o percurso do desenvolvimento embriondrio? Podemos obser- var diretamente, desde o momento da concepgo até o nascimento, 0 ca- minho que o embrido percorre no titero materno? Claro que néo. Como podemos fazer para estudar esse caminho? Estudamos 0 embrido com o método comparativo de cortes: 0 que houve na primeira semana, na segunda, na terceira, na quarta etc. Ou seja, levamos em conta os pontos isolados de desenvolvimento e os comparamos entre si. Assim, podemos ver 0 que era € 0 que se tornou. Compomos uma imagem do ponto de partida até onde a crianga chegou, por qual motivo, em que prazo, qual caminho percorreu para chegar de um ponto do desenvolvimento a outro, que acontecimentos ocorreram no meio. A pedologia se vale precisamente do mesmo método de cortes etdrios comparativos. Podemos observar diretamente, in vivo, 0 desenvolvimento da men- te da crianga, de sua meméria, o seu crescimento? Nao. Podemos apenas comparar o desenvolvimento da sua mente nesse instante e daqui a seis meses, depois mais seis meses ¢ mais seis meses. Veremos que, aos oito Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 53 anos, a crianga possui algumas especificidades; aos 12, outras ¢ mais tras. Fica claro o que houve com ela ao longo de meio ano: a0s nove ann e.aos nove e meio. Percebo 0 caminho percorrido pela crianga dos Oito an 12 anos. Em outras palavras, comparo.o quadro de desenvolvimento tn diferentes etapas et4rias. Essa comparacio é 0 método Principal com a ajuda do qual podemos obter o nosso conhecimento sobre o cardter ¢a trajetdria do desenvolvimento infantil. Mas como essa comparacio nao € realizada numa ordem aleatéria, mas apenas numa ordem genética, entao estamos lidando com o método genético comparativo. Por exem- plo, na clinica, utilizam também o método comparativo. Comparam, digamos, uma doeng¢a com outra. Isso seria também o método genético comparativo? Nao. Porque, nesse caso, sao comparadas entre si diferen- tes formas de processos de enfermidades. No entanto, eu comparo nao apenas formas de desenvolvimento infantil — faco isso também -, mas comparo principalmente a propria crianca com ela mesma em dife- rentes etapas de seu desenvolvimento. Quer dizer, 0 objeto da minha comparacao sao as diferentes etapas de desenvolvimento infantil. E nesse sentido que dizem que a pedologia se vale, em seus estudos, do método genético comparativo. Ela produz como que recortes comparativos do desenvolvimento em diferentes etapas etarias, e, contrapondo umas as outras, utiliza a comparac4o como meio para representar 0 caminho de desenvolvimento percorrido pela crianga. Permitam-me esclarecer isso num exemplo concreto. Sei, por exem- plo, que, no momento do nascimento, quando a idade da certidao de nascimento da crianga é indicada com zero, ela nao fala; ela é um ser sem palavras. Aos seis anos, j4 tem uma fala desenvolvida. Em geral, j4 domina corretamente a lingua materna. Agora, quero estudar o desen- volvimento do percurso dessa fala. Para isso, investigo 0 que acontece aos trés, aos cinco meses € 0 que acontece com um ano, um ano e meio, dois e dois anos e meio. Entio, descubro, por exemplo, que, por volta dos tres meses, se manifesta nela o gesto indicativo que tem_rselacdo com a fala. Em seguida, aproximadamente aos seis meses ou um pouco antes, surge 0 balbucio desarticulado; logo depois, aparecem as primeiras palavras, a crianga comega a falar com palavras separadas. Aproximadamente aos dois anos surgem frases com ie palavras etc. O que isso me esclarece? Comparando o que surgiu de,novo ¢ 0 que desapareceu de velho, ja obte- nho um quadro inteiro de desenvolvimento. Nao constato simplesmente e A } ,r fr “ “Fundamentos da Pedologa de LS. Vigotshi Rf } como a crianga passou de uma existéncia sem palavras para uma fala de- senvolvida, mas conhego também o caminho que percorreu até 0 grito, até 0 balbucio; depois, o balbucio desapareceu e surgiu algo mais, nessa sequéncia, um evento dependendo do outro. Seguindo esse caminho, com essas regularidades, a crianca chegou a fala. Comparandé a fala da crianga em diferentes etapas etdrias, percebo, cada vez, o que desapareceu € o que surgiu de novo, em que rela¢ao o novo est4 com o que havia an- tes. Seguindo com esse método de cortes comparativos, percorrendo esse caminho de comparacao genética, obtenho a possibilidade de imaginar, ter uma ideia do caminho de desenvolvimento da crianga. O método comparativo é empregado na pedologia ainda em outro Tecorte, no mesmo sentido em que é utilizado em qualquer disciplina clinica, mais exatamente quando nao compato a crianga com ela mesma, mas quando comparo entre si criancas com diferentes tipos de desenvol- vimento. Entao, ser o método comparativo. Por exemplo, hoje, quando apresentei o exemplo do método clinico, tentei mostrar que a crianga bem-dotada ou genial se desenvolve de modo diferente da que tem de- senvolvimento acelerado. Comparei a crianga nado com ela mesma, mas com outra. Esse também é um dos procedimentos, mas ele nao contém nada tipico para a pedologia. Ele € proprio de qualquer ciéncia que se vale do método clinico. Toda ciéncia que utiliza 0 método clinico e es- tuda determinados processos que n4o séo observados diretamente, nao sao subjacentes aos sintomas, queira ou nao, deve diferenciar varias for- mas de transcurso desses processos. Por isso, a comparagao desse género, a aplicago do método comparativo desse género nao é algo exclusivo, espectfico da pedologia. A aplicagao do método genético comparativo, como ja foi dito, em relacao ao desenvolvimento etario é, para a pedolo- gia, seu diferencial especifico. Agora, permitam-me apenas resumir 0 que disse. Afirmei a vocés| que toda ciéncia, incluindo a pedologia, tendo seu objeto especifico de) estudo, deve ter também o seu método ou o seu caminho de investi- gacdo. Esse caminho é€ definido pelas especificidades do objeto que é estudado por uma determinada ciéncia. De acordo com elas, a pedologia elabora seu método especial, que é definido, como tentei abordar, por trés momentos bsicos. Primeiramente, porque é um método global de estudo da crianga. Nao se deve entender por método de estudo da unidade 0 estudo multilateral, nem o estudo que exclui a andlise, mas af 4 M Lt nvle Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 55 ¥ = | sim um tipo especifico de andlise, mais exatamente | método de decomposigao em unidades e nao Six cle, a que ge | dificil da aula de hoje serd, espero, melhor compreendid Essq Patt | conversa, mais concreta, em que estudaremos 9 meio ¢ a aes a Proxima | na pedologia, concretizando esse método de decom nied Creditatiedade Uma vez que as outras ciéncias estudam os mesmo, oh, €™ unidades. métodos, a diferenca desse tipo de andlise ficarg clara J€tOS com Outros A segunda especificidade do método pedolégico é cardter clinico no sentido de estudo dos Processos de mee que subjazem aos sintomas em determinadas idades. E a terceira especificidade consiste no fato de que e: é genético comparativo, estuda a especificidade do désenvobinen crianga em diversas etapas etdrias ¢ as compara entre si, em eg; aro da tempo mais estreitos, levando-nos, com isso, quem sabe, ao “Papos de mento do caminho que a crianga percorre no desenvolvimento ‘hie etapa a outra. Essas so as trés especificidades bdsicas que definem 0 método de investigacio pedolégica. Nos semindrios ¢ nas aulas praticas, conhecere- mos uma série de procedimentos metodolégicos de investigacio. Existem muitos: sao procedimentos de investigacao do desenvolvimento fisico ¢ mental da crianga, de determinadas fung6es ¢ aspectos de seu desenvol- vimento mental e da fala, bem como métodos de investigacao da crianga etc. Mas isso jd logia, ou seja, é um determinado_ sistema de procedimentos técnicos que realizam um ou outro méto Todavia, pode-se aplicar corretamente essa metodologia apenas quando se compreendem os principios do proprio método a respeito do qual, falei hoje, Na pedologia, qualquer metodologia permite que assimilemos apenas os sintomas ¢, depois, interpretando-os, cheguemos ao diagndsti- co do desenvolvimento no sentido proprio dessa palayra. gs Vale dg tem um desenvolvimenty “SF Kifodn 2 & Terceira aula. O estudo da hereditariedade e do meio na pedologia - io ¢ da heredita- Hoje, gostaria de relatar a voces sobre 0 ame nen de fora q tiedade na pedologia e espero ter a oportunida e “ especial do mais concreta do que da tiltima vez, em que consiste método pedolégico de investigaao- otski Fundamentos da Pedologs deLs. ig hc teto uma vez que cada ciéncia tem seu objeto de estudo especifi- A 7 co, logo, para o estudo de qualquer um, é necessdrio um método espectfico. Q_método ¢ um caminho, um procedimento. Por ser Q_método é um caminho, um procedimento. Po | -4-2um procedimenco, consequentemente, depende do objetivo para 0 Hyp wal a oie sie num determinado campo. Se cada ciéncia ° tem suas atribuigdes e objetivos especificos, entao, é claro que ela- bora também seus métodos de estudos especificos, seus caminhos de investigacao. Assim, pode-se dizer que, da mesma forma que nao existe ciéncia sem seu objeto, também nao existe ciéncia sem seu método. O cardter deste ¢ sempre definido pelo cardter do objeto da ciéncia (p. 37, grifos nossos). Assim, subjaz & sua didatica especial a intengao de que seus estudan- | tes apreendam a ideia de que nao _h4 um método tinico que define o. que | é cientifico — bem ao gosto da visdo ocidental contemporanea de ciéncia | —, mas que hd tantos métodos quantos forem os objetos de estudo da ci- éncia, isto é, que, na ciéncia, a teoria, com seus fundamentos filosdficos, é definidora do método de estudo. Por isso, em cada uma de suas aulas, ele intercala, regularmente, afirmagées tedricas com questdes de método | daquela ciéncia particular. | A pedologia —ciéncia do desenvolvimento dacrianca — serviu de fonte para os estudos no campo da pedagogia e da psicologia que esta- vam germinando na Unido Soviética apés a revolugao socialista de 1917. Assim como intimeros cientistas soviéticos na década de 1920 e nos anos iniciais da década de 1930, L. S. Vigotski aprofundou os estudos da | pedologia que, junto com outros estudos, fundamentaram sua concep- | G40 de desenvolvimento humano. Infelizmente, pelas razGes histéricas e sociais brevemente apresentadas, a pedologia defendida por Vigotski, a pedologia cientifica, nao floresceu como poderia, e muitas outras con- tribuigdes foram impedidas por sua morte prematura e pela censura e proibicio impostas a sua obra ao longo de 20 anos. Referéncias bibliogrdficas LURIA, A. R. Etapi proidennogo puti. Moscou: l2datelswo Moskovskogo Universiteta, 2001. p. 25-46. PRESTES, Z. R. Quando néo é quase a mesma coisa ~ andlise de tradugées de L. S. Vigotski no Brasil. Tese (doutorado). Brasilia: Universidade de Brasilia, 2010. Sete aulas de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 15 de cada ano é medido pela lugar-que-esse més ocupa no ciclo do desgn- volyimenta. Por exemplo, vocés sabem que, provavelmente, durante os primeiros meses de vida, a crianga se desenvolve de modo muito inten- so e, em particular, crescem intensamente seu peso e tamanho. Assim, levando-se em conta 0 crescimento, o peso, o aumento da massa corporal € 0 comprimento, cada més é uma etapa muito importante. Durante alguns meses, a crianga dobra o seu peso inicial. Em seguida, se nos deti- vermos, digamos, na idade escolar, veremos que, durante alguns anos, a crianga nao sé ndo dobra o peso com o qual ingressou nessa idade, como também esse aumento é muito insignificante, expressando-se em alguns Porcentos, enquanto no bebé, durante 0 mesmo periodo de tempo, ele é igual a 100%, Agora, imaginem que digam a voces que uma crianga teve um atraso de trés ou seis meses em seu desenvolvimento. Isso é muito ou pouco? Se for no primeiro ano de vida, isso € muito, mas se ela estiver em seu 13° ano de vida, isso nao acarretard nada de muito sério. Do ponto de vista da astronomia, cada més é igual a outro; contudo, isso perde seu Significado no desenvolvimento. O valor de cada més depende do ciclo de desenvolvimento em que esta contido e do lugar que ocupa. Dizer que uma crianga de dois anos esté com um atraso de um ano em seu desenvolvimento mental significa que é muito e que ela se diferencia consideravelmente de uma crianga real de dois anos. Dizer, contudo, que um adolescente de 15 anos tem idade mental de 14, ou seja, que estd atrasado também um ano, provavelmente evidencia um atraso extrema- mente insignificante. Novamente, do ponto de vista do desenvolvimento, o valor de cada intervalo de tempo se define nao pela dimensio desse intervalo — um ano ou cinco anos ou um més -, mas pelo lugar dele no ciclo de desen- volvimento da crianga. Isso est relacionado ao fato de que o tem contetido desenvol; O segundo exemplo esclareceré isso um Ppouco mais para vocés. Vocés terao de lidar com ele desde o inicio na metodologia de inves- tigacao pedoldgica de criangas. Imaginem que encontrem criangas que nasceram no mesmo dia e na mesma hora. Isso significa que elas sio coetaneas. Agora, imaginem que as estejamos investigando trés anos de- pois. Pergunta-se: todas essas criangas, que nasceram no mesmo dia e na Sete aulas de LS. Vigotshi sobre os fundamentos da Pedologia 19 Poderfamos, agora, tecer algumas conclusées gerais com base nas esenvolvimento que apresentel. Parece-me que os resultados po- deriam ser formulados da seguinte forma. Primeiramente, vemos que 0 processo de desenvolvimento infancil nao é um mero crescimento quantitativo de determinadas particularidades; nao é um processo que se resume apenas a crescimento ou incremento. £ um processo complexo que inclui, por forca [de sua ciclicidade] 13 ede sua desproporcionalidade, a reestruturacao das relagoes entre seus aspectos, entre diferentes partes do organismo, entre diferentes fungoes da personalidade; uma reestruturacdo que conduz & mudanga toda a personalidade da crianca, todo o seu organismo, em cada novo degrau. Em seguida, podemos dizer que 0 processo de desenvolvimento infantil nao se esgota apenas com essa reestruturagdo, mas inclui um circuito inteiro de mudangas e transformag6es qualitativas, de metamor- fose, quando, diante dos nossos olhos, surge uma nova forma que, no de- grau precedente, nao existia, apesar de seu surgimento ter sido preparado pelo desenvolvimento anterior. Surge, agora, claramente para nés a ideia que, hé muito tempo, bem antes da existéncia da pedologia cientifica, Rousseau expressava numa famosa frase que até hoje se repete € que, por sua esséncia, é uma frase com a qual se deve comecar qualquer estudo da pedologia. Rousseau dizia que a crianga nao é um simples adulto de tamanho pequeno; ela é um ser que se difere do adulto nao apenas porque é menor em tamanho, nao porque pensa de forma menos de- senvolvida, digamos, ou por outras razoes. A crianga é um ser que se} difere do adulto qualitativamente pela estrutura de todo o organismo e! de toda a personalidade. Por isso, a transformacao da crianga em adulto nao é um simples crescimento do pequeno adulto que esté dado desde o inicio, mas o trajeto de uma série de mudangas qualitativas pelas quais deve passar até atingir certo grau de amadurecimento. A mesma coisa que Rousseau diz sobre a crianga pequena em comparagao com 0 adulto Seaplica também 4s criancas em diferentes degraus etarios. Assim como a crianca nao é um adulto em miniatura, o pré-escolar nao é simplesmente um escolar pequeno e o bebé nao é um pré-escolar menor. Ou seja, de Novo, a diferenca entre certas idades consiste nao simplesmente em ue, no degrau inferior, estejam menos desenvolvidas as especificida- S que se apresentam mais desenvolvidas nos degraus superiores. A leis do d 13° No mManuscrito, “ritmo” (N. da E. R.). Sete aulas : de LS. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 29 Poderiamos, agora, tecer algumas conclusées gerais com base nas leis do desenvolvimento que apresentei. Parece-me que os resultados po- deriam ser formulados da seguinte forma. Primeiramente, vemos que o processo de desenvolvimento infantil nao é um mero crescimento quantitativo de determinadas Particularidade: 3 nao é um processo que se resume apenas a crescimento ou incremento. E um processo complexo que inclui, por forga [de sua ciclicidade] 13 e de sua desproporcionalidade, a feestruturagao das relacdes entre seus aspectos, entre diferentes partes do organismo, entre diferentes funcdes da personalidade; uma reestruturagao que conduz & mudanca toda a personalidade da crianca, todo o seu organismo, em cada novo degrau. Em seguida, podemos dizer que o process: infantil nao se esgota apenas com essa reestruti circuito inteiro de mudangas e transformacées q fose, quando, diante dos nossos olhos, surge um: grau precedente, nio existia, pelo desenvolvimento anteri 30 de desenvolvimento ‘ura¢ao, mas inclui um ualitativas, de metamor- ‘a nova forma que, no de- apesar de seu surgimento ter sido preparado ior. Surge, agora, claramente para nés a ideia que, hd muito tempo, bem antes da existéncia da pedologia cientifica, Rousseau expressava numa famosa frase que até hoje se repete e que, por sua esséncia, é uma frase com a qual se deve comegar qualquer estudo da pedologia. Rousseau dizia que a crianga nao é um simples adulto de tamanho Pequeno; ela é um ser que se difere do adulto nao apenas Porque é menor em tamanho, nao Porque pensa de forma menos de-} senvolvida, digamos, ou Por outras razées. A crianga é um ser que se| difere do adulto qualitativamente pela estrutura de todo o organismo e de toda a personalidade. Por isso, a transformagio da crianga em adulto nao € um simples crescimento do Pequeno adulto que est4 dado desde o inicio, mas trajeto de uma série de mudangas qualitativas pelas quais deve passar até atingir certo grau de amadurecimento. A mesma coisa que Rousseau diz sobre a crianga pequena em comparacio com o adulto Se aplica também as criangas em diferentes degraus etdrios, Assim como a “tlanca néo é um adulto em miniatura, 0 pré-escolar nao é simplesmente 4m escolar pequeno e o bebé nao é um pré-escolar menor. Ou seja, de Novo, a diferenca entre certas idades consiste nao simplesmente em We, no degrau inferior, estejam menos desenvolvidas as especificida- S que se apresentam mais desenvolvidas nos degraus superiores. A — 3 No manuscrito, “ritmo” (N. da E. R.). Sete ‘ulas de Ls, Vigotski sobre os fundamentos da Pedotogia » Poderfamos, agora, tecer algumas conclusées gerais com base nas leis do desenvolvimento que apresentei. Parece-me que os resultados po- deriam ser formulados da seguinte forma. Primeiramente, vemos que o processo de desenvolvimento infantil nao é um mero crescimento quantitativo de determinadas particularidades; nao é um processo que se resume apenas a crescimento ou incremento. Eum processo complexo que inclui, por forca [de sua ciclicidade] 13 e de sua desproporcionalidade, a reestruturagao das relagées entre seus aspectos, entre diferentes partes do organismo, entre diferentes funcoes da personalidade; uma reestruturacdo que conduz & mudanga toda a personalidade da crianca, todo o seu organismo, em cada novo degrau. Em seguida, podemos dizer que o processo de desenvolvimento infantil nao se esgota apenas com essa reestruturag4o, mas inclui um circuito inteiro de mudangas e transformagées qualitativas, de metamor- fose, quando, diante dos nossos olhos, surge uma nova forma que, no de- grau precedente, nao existia, apesar de seu surgimento ter sido preparado pelo desenvolvimento anterior. Surge, agora, claramente para nds a ideia que, ha muito tempo, bem antes da existéncia da pedologia cientifica, Rousseau expressava numa famosa frase que até hoje se repete e que, por sua esséncia, € uma frase com a qual se deve comecar qualquer estudo da pedologia. Rousseau dizia que a crianga nao é um simples adulto de tamanho pequeno; ela ¢ um ser que se difere do adulto nao apenas porque é menor em tamanho, nao porque pensa de forma menos de-| senvolvida, digamos, ou por outras razdes. A crianca é um ser que se] difere do adulto qualitativamente pela estrutura de todo o organismo e de toda a personalidade. Por isso, a transformacao da crianga em adulto nao € um simples crescimento do pequeno adulto que estd dado desde o inicio, mas o trajeto de uma série de mudancas qualitativas pelas quais deve passar até atingir certo grau de amadurecimento. A mesma coisa que Rousseau diz sobre a crianga pequena em comparacao com o adulto se aplica também as criancas em diferentes degraus etdrios, Assim como a crianga ndo é um adulto em miniatura, 0 pré-escolar nao é simplesmente um escolar pequeno e o bebé nao é um pré-escolar menor. Ou seja, de novo, a diferenca entre certas idades consiste nao simplesmente em que, no degrau inferior, estejam menos desenvolvidas as especificida- des que se apresentam mais desenvolvidas nos degraus superiores. A 13. No manuscrito, “ito” (N. da E. R.). Sete aulas de L.S. Vigotshi sobre os fundamentos da Pedotogia 29 qualquer outra ciéncia, até 0 infcio da elaboragao cientifica verdadeira, predominavam os métodos puramente empiricos, baseados nos estudos dos sintomas. Por isso, todas as ciéncias percorrem_o caminho do estu- do sintomatoldgico, fib npemcen pre ices externas. Por exemplo, na botanica e na zoologia, antes de Darwin, as plantas e os animais eram classificados por manifestag6es externas, pelas formas das folhas, pelas cores das flores. Depois de Darwin, comegaram a ser classi- ficados pela origem, pelo que havia em comum na origem, em comum na caracterfstica genética, porque passou a ser conhecido o processo que levou & formagio dessas caracterfsticas. Da mesma forma, na medicina, 0 predominio da.medicina clinica, que substituiu a sintomatoldgica, se mostra pelo fato de que comegaram a estudar no as manifestagdes externas, mas os processos que levam ao surgimento.dos sintomas. Comegaram a estudar os processos subjacentes aos sintomas. Assim, ficou claro que os doentes com os mesmos sintomas poderiam ter diferentes processos € os com processos semelhantes pode- riam ter diferentes sintomas. Ou seja, evidenciou-se a passibilidade de passar das manifestacdes externas ao estudo de processos que subjazem_a elas.¢ determinam.o seu surgimento ¢.a sua presenga. O mesmo ocorre na pedologia. Inicialmente, ela era uma ciéncia sin- tomatolégica. Estudava as caracteristicas externas do desenvolvimento infantil, do desenvolvimento mental infantil, do desenvolvimento da fala infantil. Constatava que, em certa idade, a crianga apresentava de- terminadas caracteristicas. Como todas as ciéncias sintomatoldgicas, ela era predominantemente descritiva. Nao conseguia explicar por que algo surgiu. Até mesmo na pedologia soviética, havia pesquisadores que propunham definir a pedologia como a ciéncia dos complexos de sin- tomas etdrios, ou seja, um conjunto de caracter{sticas que diferenciaria determinada idade. Vocés entendem muito bem que o estudo de caracte- risticas ou sintomas é apenas uma parte mais geral da fungao da ciéncia. A ciéncia estuda caracterfsticas para aprender a desvendar_o que subjaz aclas; no caso, digamos, da clinica, estudar o processo patolégico; no caso da pedologia, os processos de desenvolvimento. Isso significa que, na aplicagio do método da pedologia, decisivamente, todas as caracte- r{sticas que obtemos nas nossas investigagGes € observagées do desenvol- vimento infantil tomamos apenas como sintomas de desenvolvimento. Contudo, ao interpretarmos esses sintomas, contrapondo-os, temos que chegar aog’Processos Ue desenvolvimento que os provocam. ‘Sete aulas de L.S, Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 4g

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