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1.

Os Direitos Humanos e a Igreja Católica

Observamos que já antes de 74 a Igreja Católica estava envolvida na


proteção de presos políticos e na denúncia da violência de Estado. Durante o período de
mais drástica repressão, de 1969 a 1973, a Igreja agiu decisivamente na defesa dos que
estavam em perigo ou eram vítimas de perseguição. Em termos políticos, o aspecto mais
significativo da atuação da Igreja terá sido talvez sua capacidade de superar a
defasagem entre a “política formal” e a “política de base”. Como suas atividades,
mesmo organizadas num quadro institucional formal, descem ao nível da organização
de base, através de ampla rede de comissões, subcomissões e atividades de grupo, a
Igreja é a única instituição que permite a experiência em ambos os níveis da
participação política.
Com o terreno da “política formal” identifica-se, na Igreja Católica, a
atuação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); é a organização que
atua no plano social e político, aplicando as conclusões dos sínodos periódicos. Através
de suas representações, comissões e organizações regionais, a CNBB organiza a
população em projetos de auto-ajuda e na coordenação política, com táticas e grupos de
pressão destinados a enfatizar as responsabilidades das autoridades, tomar iniciativas
diretas ou responsabilizar o Estado por omissão. Este trabalho pode assumir a forma de
documentos oficiais da CNBB arrolando provas de violações dos direitos humanos ou
envolver atividades diretas entre a população. A CNBB subdivide-se em representações
regionais e sedes diocesanas locais. Cada nível institucional elabora um plano pastoral
bienal das prioridades religiosas e políticas de trabalho. Tais prioridades têm-se referido
cada vez mais aos direitos fundamentais e político-civis, tal como definidos na
Declaração dos Direitos do Homem na ONU.
O trabalho efetivo é coordenado pela pastoral nacional e pelas locais, que
são, sociologicamente, organizações de ação social. Cada pastoral atua em determinado
terreno, definido em seu nome; existem, assim, as pastorais da terra, dos problemas
urbanos, da Igreja em relação ao mundo, da família, da periferia e das favelas das
cidades, dos marginalizados, dos migrantes, do mundo do trabalho, dos camponeses e
bóias-frias, das crianças e menores abandonados, dos detentos, dos direitos humanos
em geral. A nível local, cada pastoral estrutura sua própria rede de grupos para o
trabalho coletivo. A cidade de São Paulo, por exemplo, foi dividida pelo plano
arquidiocesano em 50 diferentes setores. Cada setor tem dez comunidades, e cada
comunidade pode criar suas próprias comissões e grupos para a aplicação de programas
e projetos específicos. O principal objetivo dessa estrutura organizacional é estimular a
participação individual e comum em todos os níveis de responsabilidade, ação e
experiência.
A organização estrutural da atuação política e social da Igreja Católica
demonstra claramente como ela supera a defasagem entre política formal e política de
base, pois efetivamente envolve a população em todos os níveis de organização e
trabalho social. Por outro lado, esse tipo de organização permite à Igreja implantar uma
ampla rede de grupos locais, em miríades de unidades que, à maneira de células,
arregimentam milhares de pessoas em trabalho na mesma área. A pastoral dos direitos
humanos, por exemplo, atuaria em todas as 500 comunidades criadas nos 50 setores da
Arquidiocese de São Paulo e disseminadas pelos grupos locais em paróquias,
associações de moradores e fábricas. Esta ampla rede organizacional envolve a
população numa experiência que lhe permite ganhar confiança na participação política e
social, adquirir respeito próprio e preparo e descobrir lideranças próprias. Além disso,
essa infinidade de organizações possibilita a rápida mobilização de movimentos de
massa em torno de certas questões. Foi o caso, por exemplo, com a mobilização do
Movimento Contra o Custo de Vida, que em três meses recolheu em São Paulo, em
1978, um milhão e meio de assinaturas para um documento pedindo ao governo federal
que congelasse os preços de gêneros alimentícios essenciais.
Esta organização ao nível das bases é a fonte da influência social e política
da Igreja, e também o segredo de sua capacidade de fornecer informação rápida e
eficiente à população – mesmo em períodos de severa censura à imprensa e forte
repressão. Em entrevista conosco, o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns comparou a
“telefones árabes” o sistema de comunicação oral da Igreja Católica em São Paulo. Este
sistema funcionava tão bem, comentou ele, que se uma pessoa fosse presa em qualquer
parte da arquidiocese, ele seria informado em questão de horas. Uma vez informada de
alguma prisão, a Igreja pode agir de várias formas. A CNBB ou a conferência regional
dos bispos podem redigir uma denúncia formal e oficial. O bispo ou arcebispo
responsáveis podem interceder pessoalmente junto a alguma autoridade, valendo-se de
sua influência em favor da vítima. Fracassando estas duas iniciativas, a Igreja pode
convocar a solidariedade internacional, para proteger o preso de maiores perigos.
Sobretudo, a Igreja trata imediatamente de informar a opinião pública através da
imprensa ou, se for isto impossível em vista da censura, mediante canais de
comunicação alternativos de que disponha, inclusive os das organizações de base e das
várias paróquias. Tais atividades foram decisivas na desestruturação das três principais
componentes da cultura do medo: o silencia, o isolamento das vítimas de uma efetiva
estrutura de ajuda e a descrença na eficácia de qualquer ação.
A hierarquia católica brasileira evoluiu de uma posição conservadora ou
neutra, no passado, para a firme defesa dos direitos humanos e a oposição às diretrizes
sociais, políticas e econômicas do Estado. Quando perguntaram ao Cardeal Paulo
Evaristo Arns, de São Paulo, se existia um conflito entre a Igreja e o Estado no Brasil,
ele respondeu simplesmente que havia no país uma Igreja próxima do povo e um Estado
cada vez mais isolado e hostil ao povo. “A Igreja, frisou o cardeal, ‘não é o poder, NE
paralelo, nem superior. Ela é um instrumento para falar à consciência, para ser a voz dos
que não tem voz’”.

2. A Igreja Católica e a Repressão em São Paulo (1975-1976): Um


Exemplo de Resistência Não Violenta

A forma de atuação da Igreja Católica como “voz dos que não têm voz” em
momentos de tensão e repressão ficou demonstrada durante a onda de violência política
verificada no Brasil em 1975-1976. Nesse período, as forças de repressão promoveram
nova campanha de blitze, em busca de militantes do Partido Comunista Brasileiro
(PCB) e do Partido Comunista do Brasil (PC do B), de linha maoísta. Nestas operações,
foram detidos militantes oposicionistas de todas as tendências ideológicas.
Segundo a Anistia Internacional, mais de 2.000 pessoas foram detidas em
todo o Brasil naquele ano. Deste total, cerce de 700 permaneceram presas, e 240 foram
posteriormente “adotadas” pela Anistia Internacional. A organização informou também
que em período de 18 meses recebeu numerosas denúncias de tortura, todas
fundamentadas por provas materiais. Concluiu, assim, que a tortura ainda era
sistematicamente praticada no Brasil. A situação era suficientemente grave para que a
Anistia lançasse um apelo urgente em nome das 20 vítimas de tortura no país. No início
de 1975, o núcleo da repressão estava em São Paulo. Um dos centros de tortura mais
freqüentemente mencionados em documentos internacionais era o quartel-general do
Segundo Exército, onde operava o DOI-CODI de São Paulo. Um grande expurgo
também fora promovido na Polícia Militar de São Paulo, sendo presos e torturados
integrantes suspeitos de dissidência. A primeira morte por tortura de que se teve
conhecimento no período foi a de um oficial da Polícia Militar daquele estado, o
Tenente José Ferreira de Almeida. Sua morte foi oficialmente explicada como caso de
suicídio por enforcamento na prisão.
Em resposta à onda de repressão a Arquidiocese de São Paulo transformou-
se em centro de ajuda humanitária às famílias de pessoas presas ou desaparecidas. Com
o estímulo do Cardeal Arns, a arquidiocese criou a Comissão Arquidiocesana de Justiça
e Paz, integrada por alguns dos mais respeitados juristas do estado. A comissão foi
encarregada da defesa dos perseguidos e de mover ações civis contra as autoridades em
casos comprovados de tortura. O principal objetivo do Cardeal Arns era estimular a
população a resistir à repressão violenta de uma forma política mais firme, e não ceder a
sentimentos de desespero, isolamento e descrença. Nos serviços religiosos, ele discutia
a violência na cidade, exortanto os fiéis a terem esperança e agiram de acordo com ela.
Em setembro de 1975, as forças de segurança de São Paulo, comandadas
pelo Coronel Erasmo Dias, desencadearam uma operação militar denominada
“Operação Jacarta”. Vladimir Herzog, diretor de jornalismo do canal de televisão
educativa de São Paulo – a TV Cultura – foi uma das vítimas dessas manobras militares
de repressão. No dia 24 de outubro, Herzog foi intimado a comparecer ao DOI-CODI
para interrogatório, e apresentou-se à divisão do Segundo Exército. Na mesma Tarde,
morreu nas instalações do DOI-CODI. Apesar da versão oficial de que cometeria
suicídio em sua cela, enforcando-se com sua própria gravata, seu corpo foi enviado à
viúva em caixão lacrado, sem maiores explicações. Ela foi ameaçada e advertida a não
abrir o caixão.
Herzog era um jornalista conhecido e estimado. O estado de São Paulo foi
subitamente tomado de maciça indignação popular com sua morte. Assistida por
advogados da Ordem dos Advogados do Brasil e da Comissão Arquidiocesana de
Justiça e Paz, sua viúva, Clarice Herzog, contestou a versão de suicídio e entrou com
ação contra o Governo Federal, responsabilizando-o pela morte do marido. O caso teve
o apoio de jornalistas de todo país. A imprensa promoveu aprofundada investigação
paralela, demonstrando que na realidade Vladimir Herzog fora morto por tortura na sede
do DOI-CODI do Segundo Exército. A Associação Brasileira de Imprensa reuniu
assinaturas de 1.000 destacados jornalistas num abaixo-assinado pedindo investigação
das atividades do DOI-CODI.
No dia seguinte ao da morte de Herzog, o Cardeal Arns pediu oficialmente o
apoio dos bispos presentes à Conferência Regional dos Bispos em Itaici, São Paulo.
Os bispos declaravam sua total “solidariedade com o sofrimento das
vítimas”, denunciavam a negativa de habeas corpus como grave violação dos direitos
humanos e convocaram os cristãos a demonstrar sua solidariedade com as vítimas e
famílias dos perseguidos “reunindo-se em todas as catedrais e igrejas de São Paulo para
os serviços religiosos em memória dos desaparecidos, dos que ainda sofrem em prisões
e dos que morreram vitimados pela violência.
A missa em intenção de Vladimir Herzog seria rezada na catedral de São
Paulo. No dia marcado, a cidade foi ocupada militarmente e a Praça da Sé, onde fica a
catedral, isolada por tropas do Exército e da Polícia Militar. Ainda assim, mais de 8.000
pessoas lotaram a igreja, e 30.000 tomaram a praça. Assistido de dois rabinos
concelebrantes, o Cardeal Arns pediu um minuto de silêncio pelas vítimas da
perseguição e da violência. Em seguida, na quietude permeada de dor e de medo das
forças militares ao redor, o cardeal pediu que todos mantivessem a calma e recusassem
a violência, mas que tomassem coragem, nutrissem esperanças e reagissem.
Como o funeral e o serviço religioso em intenção de Edson Luís, em 1968, a
missa em memória de Vladimir Herzog catalisou o indignação reprimida de uma cidade
e de todo um país. Como acontecera com a morte do estudante nas ruas do Rio de
Janeiro, quase dez anos antes, a morte sob tortura do jornalista tornou-se símbolo do
movimento de defesa dos direitos humanos que procurava pôr fim à violência do
Estado. A reação da massa à morte de Herzog não pôde, entretanto, evitar outra morte
por tortura. Poucos meses depois mais tarde, no dia 17 de janeiro de 1976, o
metalúrgico Manoel Fiel Filho foi encontrado morto em sua cela no DOI-CODI de São
Paulo. Mais uma vez a versão oficial foi de suicídio por enforcamento, e as
circunstâncias eram idênticas às dos casos do Tenente José Ferreira de Almeida e de
Vladimir Herzog.
Após a morte de Manoel Fiel filho, o governo Geisel viu-se sob forte pressão
para acabar com a repressão em São Paulo. Os chefes da forças de segurança de São
Paulo – o comandante do Segundo Exército, Ednardo D’Ávila Mello, e o coronel
Erasmo Dias – integravam o setor de linha-dura contrário à política de “distensão”.
Estimou-se que sua atividades em São Paulo redundavam no exercício de um poder
paralelo que poderia ameaçar a autoridade do Executivo central e do próprio Estado de
Segurança Nacional. O Presidente Geisel agiu com rapidez para recuperar o controle da
situação. Dois dias depois da morte de Manoel, ele afastou o General D’Ávila Mello,
substituindo-o, no comando do Segundo Exército, pelo General Dilermando Gomes
Monteiro. O General D’Ávila Mello foi transferido para a reserva. Embora o General
Dilermando Gomes Monteiro, considerado um “militar liberal”, mantivesse a sua
promessa de acabar com a tortura nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, não
pôde evitar novos atos de repressão em São Paulo, desta vez contra estudantes
universitários que tentavam reorganizar a extinta UNE.
A reorganização da UNE começou em 1977, com uma série de
manifestações e passeatas, primeiro em São Paulo, posteriormente em todo país. As
manifestações dos estudantes em silêncio nas ruas de São Paulo sofreram violenta
repressão policial, comandada pelo Coronel Erasmo Dias. No dia 22 de novembro de
1977, os estudantes realizaram assembléia secreta na Universidade Católica de São
Paulo para eleger a comissão de representantes que se encarregaria da reorganização
clandestina da UNE. Terminada a assembléia, decidiram realizar à noite uma grande
comemoração aberta no auditório da universidade. Naquela noite, sob o comando do
Coronel Erasmo Dias, a Polícia Militar invadiu a Universidade Católica de São Paulo,
causando às instalações estragos estimados na época em mais de 10.000.000 de
cruzeiros, e deteve três mil estudantes, professores e empregados no estacionamento,
lançando bombas de gás lacrimogêneo e espancando-os. Cinco universitárias ficaram
gravemente queimadas por bombas químicas que se acredita terem sido de napalm.
Quarenta e um estudantes viriam a ser processados em nome da Lei de Segurança
Nacional por desobediência coletiva.
Além de mobilizar as organizações de base, o movimento pelos direitos
humanos deu entrada em ações civis contra o governo federal.
Uma dessas ações dizia respeito à invasão da Universidade Católica.
Requeria indenização pelos estragos nas instalações e responsabilizava o governo pelos
ferimentos e despesas médicas das cinco estudantes atingidas pelas bombas. As duas
outras ações foram patrocinadas pelas famílias de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho
com o apoio da arquidiocese, que forneceu assistência legal dos advogados da Comissão
de justiça e Paz.
Em 1978, Clarice Herzog e seus filhos foram beneficiados por uma decisão
judicial precursora: três anos após a morte de Vladimir Herzog na sede do DOI-CODI
de São Paulo, o Supremo Tribunal do Estado pronunciou a sentença favorável à família,
responsabilizando o governo federal pela morte do jornalista. O caso de Manoel Fiel
Filho foi julgado, favorável a família, em 1ª instância. Estas ações civis representavam
outro método de estímulo à resistência pacífica à violência do Estado.

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