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ASSESSORIA DE ATUAÇÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – AASTF

EXMO. SR. DR. MINISTRO MARCO AURÉLIO

HABEAS CORPUS 118.533/MS


REL. MIN. CÁRMEN LÚCIA
PACIENTES: RICARDO EVANGELISTA VIEIRA DE SOUZA E
ROBINSON ROBERTO ORTEGA

A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO vem, na defesa dos pacientes, nos


autos do Habeas Corpus 118.533/MS, considerando que houve pedido de vista
realizado pelo Min. Gilmar Mendes, reiterar os argumentos invocados na
sustentação oral e acrescentar argumento outro, decorrente das discussões travadas por
ocasião do início do julgamento do writ, em 24/6/2015, quando V. Exa., redarguindo o
Min. Luiz Fux, que observara inexistir a figura do tráfico privilegiado, destacou que,
se assim fosse, seria necessário concluir pela inexistência da figura do homicídio
privilegiado no Código Penal.
Assim, permitimo-nos reiterar os argumentos invocados na sustentação oral.
Ora acrescentamos o tópico 4, que, embora não suscitado na tribuna, atende aos
desdobramentos da discussão travada em Plenário, por ocasião do início do julgamento
do writ.
Dessa forma, a presente manifestação guarda a seguinte estrutura
argumentativa: 1) Do caso submetido a julgamento; 2) Do tráfico privilegiado.
Hediondez. Violação ao princípio da proporcionalidade; 3) Dos argumentos políticos;
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4) Da comparação entre os tratamentos atribuídos ao homicídio privilegiado e ao


tráfico privilegiado; 5) Do pedido subsidiário de exclusão das frações diferenciadas
para a concessão da progressão de regime e de outros benefícios da execução em geral.

1. DO CASO SUBMETIDO A JULGAMENTO

Cuida-se de habeas corpus afetado ao Plenário em que se objetiva afastar a


pecha de hediondo do delito de tráfico de drogas a que se aplica a causa de diminuição
prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06. Como consequência, postula-se a
observância das frações destinadas aos crimes comuns para a concessão do livramento
condicional e da progressão de regime.
Na origem, o Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial
da acusação para afirmar o caráter hediondo do delito, apesar de aplicada a causa de
diminuição prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06.

2. DO TRÁFICO PRIVILEGIADO. HEDIONDEZ. VIOLAÇÃO AO


PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

Nos termos do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06, são requisitos para a aplicação


da causa de diminuição a primariedade, os bons antecedentes, a falta de dedicação a
atividades criminosas e a não-participação em organização criminosa, nos termos da
lei.
Portanto, com a aplicação da causa de diminuição, está-se diante de réu
primário e com bons antecedentes. Esses aspectos reforçam a possibilidade de vir ser
imposta a pena mínima de 5 anos.
Em grande parte dos casos com os quais se depara a Defensoria Pública da
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União, a pena mínima apenas cede à natureza e à quantidade da droga apreendida,


circunstâncias que interferem, no mais das vezes, na primeira fase de fixação da
sanção. Com a exasperação da pena-base, a natureza e a quantidade da droga
apreendida não poderão interferir na fração de redução, em razão do que decidiu o
STF nos autos dos HHCC 112.776 e 109.193. Naquela oportunidade, o Plenário dessa
Suprema Corte definiu que as circunstâncias relativas à natureza e à quantidade da
droga apreendida só podem ser utilizadas, na fase da dosimetria da pena, na primeira
ou na terceira etapa do cálculo, e sempre de forma não cumulativa.
Diante desse quadro, que retrata a vivência diária da Defensoria Pública da
União, verifica-se que, quando há a aplicação da causa de diminuição prevista no § 4º
do art. 33 da Lei 11.343/06, as penas situam-se no patamar entre 2 e 3 anos.
Dificilmente extrapolam os 4 anos.
Ora, considerando que o Plenário do STF, nos autos do HC 111.840/ES,
reconheceu a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que impunha a
fixação do regime inicial fechado nos crimes hediondos, tem-se que dificilmente o
regime inicial será mais gravoso do que o semiaberto, nas hipóteses de condenação
pelo delito de tráfico de drogas a que se aplica a causa de diminuição prevista no § 4º
do art. 33 da Lei 11.343/06.
Como se não bastasse, a experiência denota que, muitas vezes, a sanção
corporal é substituída por sanções restritivas de direitos, nas condenações pelo delito
de tráfico de drogas a que se aplica a causa de diminuição prevista no § 4º do art. 33
da Lei 11.343/06. Essa situação ocorre, também, por impulso dessa Suprema Corte,
que declarou inconstitucional o óbice legal à conversão da sanção corporal em penas
restritivas de direitos, nos autos do HC 97.256.
Diante desse quadro, é possível concluir que, comumente, a condenação pelo
delito de tráfico de drogas a que se aplica a causa de diminuição prevista no § 4º do
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art. 33 da Lei 11.343/06, além de necessariamente envolver réu primário e de bons


antecedentes, redunda no seguinte: i) imposição de penas que variam de 2 a 3 anos e
dificilmente extrapolam os 4 anos; ii) fixação do regime inicial aberto ou, no máximo,
semiaberto; iii) substituição da sanção corporal por penas restritivas de direitos em
grande parte dos casos.
Esse estado de coisas foi proporcionado, justamente, por essa Suprema Corte,
quando i) impediu que a natureza e a quantidade da droga apreendida sejam sopesadas
na fixação da pena-base e na definição da fração de redução; ii) reconheceu a
inconstitucionalidade da imposição do regime inicial fechado; iii) reconheceu a
inconstitucionalidade da vedação legal à substituição da sanção corporal por penas
restritivas de direitos.
Nesse contexto, parece-nos que atribuir ao tráfico de entorpecentes a que se
aplica a minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06 o mesmo tratamento
dado aos crimes hediondos viola o princípio constitucional da proporcionalidade, em
sua faceta de proibição de excesso, que decorre do Estado Democrático de Direito (art.
1º, caput, CF) e do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF). Afinal, o grave tratamento
atribuído aos crimes hediondos é incompatível com as consequências penais
normalmente impostas a acusado primário e de bons antecedentes.
Diríamos, mesmo, que o próprio STF, com a evolução de sua jurisprudência e
com as correções que vem realizando, exemplificadas nos precedentes antes
apontados, vem tornando incoerente, sob a ótica do princípio constitucional da
proporcionalidade, qualquer tratamento de hediondez ao delito de tráfico de drogas a
que se aplica o § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06.
Além disso, o tráfico de drogas parece apresentar três pontas. Há três
engrenagens essenciais no tráfico de drogas.
A primeira é representada pelo vendedor da droga. O vendedor dificilmente
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encosta na droga, dificilmente têm acesso direto a ela. Esses vendedores, por vezes,
utilizam-se de aliciadores, responsáveis por, a seu mando, recrutar mulas ou
aviõezinhos.
A segunda ponta é, justamente, integrada pelas mulas ou aviõezinhos. A estes
aplica-se a causa de diminuição prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06. Não
guardam vínculo com a organização criminosa. Representam um elo dinâmico de
transporte da droga de sua origem a seu destino. Atuam ocasionalmente, na medida em
que, para a aplicação da causa de diminuição, exige-se a primariedade, os bons
antecedentes e a não-dedicação a atividades criminosas.
A terceira ponta é representada pelos recebedores da droga. Estes são os
próprios consumidores, que respondem pelo crime previsto no art. 28 da Lei
11.343/06, ou são compradores que almejam revender o entorpecente com algum
lucro, distribuindo-o entre consumidores.
Não nos parece proporcional atribuir a pecha da hediondez à conduta praticada
pelo vendedor da droga, à conduta perpetrada pelo comprador da droga, que almeja
revendê-la com algum lucro, e à conduta praticada pela mula ou aviãozinho, que
recebe mísera recompensa pelo transporte ocasional. Não nos parece que essas
diferentes engrenagens possam ser equiparadas em termos de gravidade. A rigor, de
maior gravidade são as condutas do vendedor e do comprador da droga, que financiam
o comércio do entorpecente, alimentando-o.
Então, também sob o viés da colocação da mula ou aviãozinho na engrenagem
do tráfico de drogas, não nos parece proporcional classificar o tráfico privilegiado
como hediondo.

3. DOS ARGUMENTOS POLÍTICOS

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Atualmente, ex-Presidentes da República, como o Presidente Fernando


Henrique, e figuras de renome mundial vêm se questionando sobre a criminalização
das drogas.
Gradativamente, surge a percepção de que o combate criminal às drogas acabou
por armar, militarizar, os traficantes. Nessa luta do Estado armado contra os traficantes
armados, os maiores atingidos são os moradores de regiões onde esses conflitos se
travam.
Hoje já se questiona a possibilidade de legalizar algumas drogas, como forma
de reduzir o investimento no aparato criminal e reduzir a militarização dos traficantes,
assegurando-se mais recursos para investimentos em saúde pública. Conhecemos
todos o precursor exemplo do Uruguai na América do Sul.
Acrescentamos a esse debate a percepção da Defensoria Pública de que é
absolutamente questionável a eficácia do combate criminal ao tráfico de drogas, como
vem sendo atualmente realizado.
Voltemos um pouco àquela arquitetura do tráfico de drogas, segundo a qual
situamos, em uma ponta, o vendedor, em outra posição, a mula, como elo dinâmico de
transporte da droga da origem ao destino, e, finalmente, na terceira ponta, o
comprador.
A rigor, a mula assume a posição mais arriscada, por manter contato direto com
a droga, sujeitando-se ao flagrante. E sabemos que a imensa maioria dos processos
criminais por tráfico de drogas inicia-se a partir de flagrantes, sem qualquer
investigação mais profunda de base. Como muitas vezes a mula desconhece as outras
pontas do tráfico, ou acaba por protegê-las, a punição acaba por recair apenas sobre
ela, não atingindo as figuras mais poderosas do vendedor e comprador.
Portanto, a atuação criminal tem o efeito primordial de apenas interromper as
entregas esporádicas realizadas pelas mulas. Não atinge os verdadeiros fomentadores
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do tráfico de drogas, que prosseguem em sua atividade, contratando novas mulas e


arriscando novos transportes.
Centra-se, portanto, essa atuação criminal, no elo mais fraco da engrenagem do
tráfico, absorvendo os pobres diabos que se arriscam por míseras recompensas que não
se compararam aos lucros auferidos por vendedores e compradores, os verdadeiros
barões das drogas.
Assim, também sob o viés repressivo do Estado, não nos parece haver qualquer
utilidade em sustentar como hediondo o tráfico privilegiado.

4. DA COMPARAÇÃO ENTRE OS TRATAMENTOS ATRIBUÍDOS AO


HOMICÍDIO PRIVILEGIADO E AO TRÁFICO PRIVILEGIADO.

Estabeleça-se comparação entre o tratamento atribuído ao homicídio


privilegiado e o tratamento dispensado ao tráfico privilegiado.
O homicídio privilegiado, previsto no § 1º do art. 121 do Código Penal, não
existe como tipo autônomo. Constitui o delito de homicídio a que, em razão de
determinadas circunstâncias abonadoras, aplica-se causa de diminuição. O tráfico
privilegiado, previsto no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06, da mesma forma, não é tipo
autônomo, mas o próprio delito de tráfico de drogas a que, diante de determinadas
circunstâncias favoráveis, também se aplica causa de diminuição. Acrescente-se que,
no homicídio privilegiado, as circunstâncias abonadoras são subjetivas, envolvem
motivo de relevante valor social ou moral ou o domínio de violenta emoção, em
seguida a injusta provocação da vítima. Da mesma forma, no tráfico privilegiado,
perquire-se sobre a condição subjetiva do agente, em especial sobre a primariedade, os
bons antecedentes, a ausência de dedicação a atividades criminosas e a não-
participação em organização criminosa.
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Assim, em essência, há absoluta semelhança entre as figuras do homicídio e


tráfico privilegiados.
Onde há a mesma razão, deverá haver o mesmo direito. Se a jurisprudência dos
Tribunais Superiores já se inclinou no sentido de que o homicídio privilegiado não é
hediondo, por não estar taxativamente previsto o § 1º do art. 121 do Código Penal no
rol previsto no art. 1º da Lei 8.072/90, idêntico entendimento deverá ser adotado
quanto ao tráfico privilegiado. Significa dizer: para considerar o tráfico privilegiado
como equiparado aos delitos hediondos, o art. 2º da Lei 8.072/90 deveria não apenas
prever a figura do “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”, mas aludir
taxativamente ao § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06.

5. DO PEDIDO SUBSIDIÁRIO DE EXCLUSÃO DAS FRAÇÕES


DIFERENCIADAS PARA A CONCESSÃO DA PROGRESSÃO DE REGIME E
DE OUTROS BENEFÍCIOS DA EXECUÇÃO EM GERAL.

Para o caso de essa Suprema Corte considerar que o delito de tráfico de drogas
a que se aplica a causa de diminuição prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06
caracteriza-se como hediondo, registre-se, ao menos, que o tratamento mais gravoso
não tem o condão de permitir a aplicação de frações diferenciadas para fins de
concessão da progressão de regime ou de benefícios da execução em geral.
Em verdade, o art. 5º, XLIII, CF, consagra o estatuto constitucional repressivo
dos crimes hediondos e equiparados.
Por se cuidar de restrição ao jus libertatis, a regra constitucional exige
interpretação restritiva. Esgota-se em si mesma. Não dispõe o intérprete da
Constituição ou o legislador infraconstitucional de carta branca para avançar em
relação ao estatuto constitucional repressivo e estabelecer regras nele não contidas.
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Ora, não há, no art. 5º, XLIII, CF, regra alguma, implícita ou explícita, que
autorize a fixação de frações mais gravosas para fins de concessão da progressão de
regime ou de benefícios da execução em geral.
Nesse sentido, por violação ao art. 5º, XLIII, CF, tem-se como inconstitucional
o disposto no art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/90, que estabelece frações diferenciadas para a
concessão da progressão de regime, ou mesmo outros dispositivos infraconstitucionais
que fixem frações diferenciadas para outros benefícios da execução em geral.
Então, impõe-se a exclusão da hediondez do delito de tráfico de entorpecentes a
que se aplica a causa de diminuição prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06.
Subsidiariamente, para a hipótese de se insistir na atribuição ao delito do mesmo
tratamento dado aos crimes hediondos, deverão ser afastadas, ao menos, as frações
diferenciadas para a concessão da progressão de regime e de outros benefícios da
execução em geral.
Brasília, 3 de agosto de 2015.
Gustavo Zortéa da Silva,
Defensor Público Federal de Categoria Especial.

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