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‘TEXTO COMPLEMENTAR Pierre Lévy O QUE E O VIRTUAL? Traducao Paulo Neves editoralli34 (9%. 1/0 QUE E A VIRTUALIZAGAQ? O ATUAL E O VIRTUAL Consideremos, para comesar, a oposigao facil ¢ enganosa entre real é virtual. No uso corrente, a palavra virtual é emprega- da com freqiiéncia para si hificar a pura ¢ simples auséncia de existéncia, a “realidade” supondo uma efetuagao material, uma presenca tangivel. O real seria da ordem do “tenho”, enquanto o virtual setia da ordem do “terés”, ow da ilusdo, o que permite geralmente 0 uso de uma ironia facil para evocar as diversas for- mas de virtualizag3o. Como veremos mais adiante, essa aborda- gem possui uma parte de verdade interessante, mas é evidentemen- te demasiado grosseira para fundar uma teoria geral. A palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado por sua vez de virtus, forga, poténcia. Na filosofia escolastica, virtual o que existe em poténcia e nado em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem rer passado no entanto A concretizagao efetiva ou formal. A drvore est4 virtualmente presente na semente. Em. termos rigorosamente filosdficos, o virtual nao se opSe ao real mas ao atual: virtualidade ¢ atualidade séo apenas duas maneiras de ser diferentes. Aqui, cabe introduzir uma distingdo capital entre possivel e virtual que Gilles Deleuze trouxe a luz em Différence et répétition’. possfvel ja estd todo constituido, mas permanece no Jimbo. O 1 As ceferéncias compleras das obras citadas se encontram na biblio- grafia comentada no final desre volume (p. 151). O que 6 0 Virtual? 1s possivel se realizar sem que nada mude em sua determinagao nem em sua natureza. £ um real fantasmatico, latente. © possivel & exatamente como 0 real: sé lhe falta a existéncia. A realizagao de um possivel nao é uma criagao, no sentido pleno do termo, pois acriag&o implica também a produgio inovadora de uma idéia ou de uma forma. A diferenga entre possivel e real é, portanto, pu- ramente légica. JA 0 virtual nao se opée ao real, mas sim ao atual. Contraria- mente ao possivel, estatico e ja constituido, o virtual é como o complexo problemético, o né de tendéncias ou de forgas que acom- panha uma situagdo, um acontecimento, um objeto ou uma ent dade qualquer, e que chama um processo de resolugao: a atual zagao. Esse complexo problematico pertence & entidade conside- rada e constitui inclusive uma de suas dimensGes maiores. © pro- blema da semente, por exemplo, é fazer brotar uma drvore. A se- mente “é” esse problema, mesmo que nao seja somente isso. Isto significa que ela “conhece” exatamente a forma da drvore que expandiré finalmente sua folhagem acima dela. A partir das coer- des que lhe so préprias, deveré inventé-la, coproduzi-la com as circunstancias que encontrar. Por um lado, a entidade carrega e produz suas virtualidades: um acontecimento, por exemplo, reorganiza uma problematica anterior e é suscetivel de receber interpretagdes variadas. Por ouiro lado, o virtual constitui a entidade: as virtualidades inerentes a um ser, sua problematica, o né de tensdes, de coergées e de pro- jetos que o animam, as questdes que o movem, sao uma parte essencial de sua determinacao. A ATUALIZAGAO! ~ A atualizagio aparece ento como’ solugao de um proble- ma, urna solugdo que nao estava contida previamente no enuncia- do. A atualizagao é criagao, invengao de uma forma a partir de uma configuragao dinamica de forgas e de finalidades. Acontece 16 Pierre Lévy erftdo.algo mais que a dotagdo de realidade a um possivel ou que uma escolha entre um conjunto predeterminado: uma produgio de qualidades novas, uma transformacio das idéias, um verdadeiro devir que alimenta de volta o virtual. Por exemplo, se a execugio de um programa informatico, puramente légica, tem a ver corm o par possivel/real, a interacao entce humanos ¢ sisternas informaticos tem a ver com a dialética do virtual e do atual. A montante, a redagdo de um programa, por exemplo, tra- ta um problema de modo original. Cada equipe de programado- res redefine e resolve diferentemente o problema 20 qual é con- frontada. A jusante, a atualiza¢Zo do programa em situagéo de utilizagao, por exemplo, nush grupo de trabalho, desqualifica cer- tas competéncias, faz emergir outros funcionamentos, desencadeia conflitos, desbloqueia situagées, instaura uma nova dinamica de colaborag4o... O programa contém uma virtualidade de mudan- ¢a que o grupo — movido ele também por uma configuragao di- nAmica de tropismos e coergées — atualiza de maneira mais ou menos inventive. © real assemelha-se ao possivel; em troca, o atual em nada se assemelha ao virtual: responde-the. A VIRTUALIZAGAO Compreende-se agora a diferenga entre a realizagao (ocor- réncia de um estado pré-definido) ¢ a atualizacao (invencao de uma solugao exigida por um complexo problemdtico). Mas 9 que 6a virtualizagdo? Nao mais o virtual como maneira de ser, mas a virtualizagio como dinamica. A virtualizagdo pode ser definida como o movimento inverso da atualizagao. Consiste em uma pas- sagem do atual ao virtual, em uma “elevagao a poréncia” da en- tidade considerada. A virtualizagio nao é uma desrealizacao (a transformacao de uma realidade num conjunto de possiveis), mas uma mutaco de identidade, um destocamente do centro de gra- © que € 0 Virtual? w vidade ontoldgico do objeto considerado: em vez de se defini principalmente por sua atualidade (uma “solucio”), a entidade passa a encontrar sua consisténcia essencial num campo proble- mético. Virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questo geral a qual ela-se relaciona, em fazer mutar a enti- dade em diregdo a essa interrogagao e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questo particular. Tomemos 0 caso, muito contemporanco, da “virtualizagio” de uma empresa. A organizagao classica retine seus empregados no mesmo prédio ou num conjunto de departamentos. Cada em- pregado ocupa um posto de trabalho precisamente situado e seu livro de ponto especifica os horarios de trabalho. Uma empresa virtual, em troca, serve-se principalmente do teletrabalho; tende a substituir a presenga fisica de seus empregados nos mesmos lo- cais pela participagdo numa rede de comunicagao eletr6nica e pelo uso de recursos ¢ programas que favoregam a cooperacgao. Assim, a virtualizacio da empresa consiste sobretudo em fazer das coor- denadas espago-temporais do trabalho um problema sempre re- pensado e nao uma solucio estavel. © centro de gravidade da or- ganizagao no é mais um conjunto de departamentos, de postos de trabatho de livros de ponto, mas um processo de coordena- ¢4o que redistribui sempre diferentemente as coordenadas espa- go-temporais da coletividade de trabalho e de cada um de seus membros em fungao'de diversas exigéncias. A atualizagio ia de um problema a uma solugao. A virtuali- zagio passa de uma solugdo dada a um (outro) problema. Bla transforma a atualidade inicial em caso particulac de uma proble- méatica mais geral, sobre a qual passa a ser colocada a énfase onto- Jégica. Com isso, a virtualizagao fluidifica as distingdes instituidas, aumenta 0s graus deliberdade, cria um vazio motor. Se a virtua- lizagao fosse apenas a passagem de uma realidade a um conjunto de possiveis, seria desrealizante. Mas ela’ implica a mesma quanti- dade de irreversibilidade em seus efeitos, de indeterminagao em seu processo ¢ de invengao em seu esforgo quanto a atualizagio. A virtualizagao é um dos principais vetores da criagaio de realidade. 18 Pierre Lévy NAo ESTAR PRESENTE”: A VIRTUALIZAGAO COMO ExODO Apés ter definido a virtualizagdo no que ela tem de mais geral, vamos abordar agora uma de suas principais modalidades: © desprendimento do aqui e agors. Como assinalamos no come- 0, 0 senso comum faz do virtual, inapreensfvel, 0 complementar do real, tangivel, Essa abordagem contém uma indicagiio que no se deve negligenciar: 0 virtual, com muita freqiiéncia, “nao estd presente”. . A empresa virtual nao pode mais ser situada precisamente. Seus elementos sao nédmades, dispersos, ¢ a pertinéncia de sua posig&o geogrdfica decresceu muito. Estard 0 texto aqui, né papel, ocupando uma porcio defi- nida do espago fisico, ou em alguma organizacao abstrata que se atualiza numa pluralidade de Singuas, de versdes, de edigdes, de tipografias? Ora, um texto em particular passa a apresentar-se como a atualizagao de um hipertexto de suporte informatico. Este ultimo ocupa “virtualmente” todos os pontos da rede ao qual est4 conectada a meméria digital onde se inscreve seu cédigo? Ele se estende até cada instalagio de onde poderia ser copiado em al- guns segundos? Claro que é possivel atribuir um enderego a um arquivo digital. Mas, nessa era de informagées on line, esse en- dereco Seria de qualquer modo transitério ¢ de pouca importin- cia. Desterritorializado, presente por inteiro em cada uma de suas verses, de suas cépias e de suas projegdes, desprovido de inér- 2 Nesta seciio, Pierre Lévy faz uma sétie de jogos de palavea com o ter- mo francés “la”. Se, por um lado, ha uma remissio explicita ao Dasein de Heidegger, traduzido em portugués por “‘ser-ai” e traduzido literalmente em francés por um “étre-l8”, por outro a construgao geral do texto em francés € bastante coloquial. Para nao dificultar a leituca desta seco, optamos por teaduzir “la” como “presenga”, termo mais adequado no contexte. Mantivemos, contu- do, a expressiio “ser-ai” na passagem em que 0 autor cita explicivamente 0 Dasein de Heidegger. O que é 0 Virtual? 19 cia, habitante ubiquo do ciberespaco, o hipertexto contribui para produzir aqui e acolé acontecimentos de atualizagio textual, de navegagao ¢ de leitura. Somente estes acontecimentos sao yerda- deiramente situados. Embora necessite de suportes fisicos pesa- dos para subsistir ¢ atualizar-se, o imponderavel hipertexto nao possui um lugar. O livro de Michel Serres, Atlas, ilustra 0 tema do virtual como “ndo-presenga”. A imaginagao, a meméria, 0 conhecimento, a religido so vetores de virtualizacdo que nos fizeram abando- nara presenga muito antes da informatizagéio e das redes digitais. Ao desenvolver esse tema, 0 autor de Atlas leva adiante, indice- tamente, uma polémica com a filosofia heideggeriana do “ser-a?”. “Ser-aP € a traducio literal do alemao Dasein que significa, em particular, existéncia no alemio filos6fico cléssico e existéncia pro- priamente humana — ser um ser hamano — em Heidegger. Mas, precisamente, © fato de ndo pertencer a nenhum lugar, de freqiien- tar um espaco nfo designavel (onde ocorre a conversagao telefo- nica?), de ocorrer apenas entre coisas claramente situadas, ou de nao estar somente “presente” (como todo ser pensante), nada disso impede a exist@ncia. Embora uma etimologia nao prove nada, assinalemos que a palavra existir vem precisamente do Jatim sis- tere, estar colocado, e do prefixo ex, fora de. Existir € estar pre- sente ou abandonar uma presenga? Dasein ou existéncia? Tudo se passa como se o aleméo sublinhasse a atualizacao ¢ o latim a virtualizagao. Uma comunidade virtual pode, por exemplo, organizar-se sobre uma base de afinidade por intermédio de sistemas de comu- nicagao telematicos. Seas membros estao reunidos pelos mesmos niicleos de interesses, pelos mesmos problemas: a geografia, contin- gente, ndo € mais nem 4arfn ponto de partida, nem uma coerciio. Apecar de “nao-presehite”, essa comunidade est4 repleta de paixdes e de projetos, de conflitos e de amizades’ Ela vive sem lugar de referéncia estdvel: em toda parte onde se encontrem seus membros inéveis... ou em parte alguma. A virtualizac&o reinventa uma cul- tura ndmade, nao por uma volta ao paleolitico nem as antigas ci- 20 Pierre Lévy vilizagées de pastores, mas fazendo surgir um meio de interacdes sociais ondeas relagdes se reconfiguram com um minimo de inércia. Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma infor- magdé se virtualizam, eles se tornam “n3o-presentes”, se des- tertitorializam. Uma espécie de desengate os separa do espaco fisico ou geogréfico ordinérios e da temporalidade do relégio ¢ do calend4rio. E verdade que nao sao totalmente independentes do espago-tempo de referéncia, uma vez que devem sempre se inserir em suportes fisicas se atualizar aqui ou alhures, agora ou mais tarde. No entanto, a virtualizagao Ihes fez tomar a tan- gente. Recortam o espago-tempo classico apenas aqui e ali, esca- pando a seus lugares comuns “realistas”: ubiqiiidade, simultanei- dade, distribuigdo ircadiada’ou massivamente paralela. A virtua- lizagdo submete a narrativa classica a uma prova rude: unidade de tempo sem unidade de lugar (gragas as interagdes em tempo real por redes eletrénicas, As transmissées a0 vivo, aos sistemas de telepresenga), continuidade de agdo apesar de uma duragao descontinua (como na comunicagao por secretéria eletrénica ou por correio eletrOnico). A sincronizagao substitui a unidade de lugar, ea interconexio, a unidade de tempo. Mas, novamente, nem por isso o virtual é imaginario. Ele produz efeitos. Embora nao se saiba onde, a conversagao telefénica tem “lugar”, veremos de que maneira no capitulo seguinte. Embora nfo se saiba quando, comunicamo-nos efetivamente por réplicas interpostas na secre- tdria elecrénica. Os operadores mais desterritorializados, mais desatrelados de um enraizamento espago-temporal preciso, os coletivos mais virtualizados e virtualizantes do mundo contem- pordneo sfo os da tecnociéncia, das finangas e dos meios de co- municagao. S40 também os que estruturam a realidade social com mais forca, e até com mais violéncia. Fazer de uma coercao pesadamente atual (a da hora e da geografia, no caso) uma varidvel contingente tem a ver claramente com o remontar inventivo de uma “solugio” efetiva em direg3o a uma problemética, ¢ portanto com a virtualizagao no sentido em que a definimos rigorosamente mais acima. Era portanto pre- O que é 0 Virtual? 21 visivel enconteas a desterritorializagao, a saida da “presenca”, do “agora” e do “isto” como uma das vias régias da virtualizagao. Novos EsPAGOS, Novas VELOCIDADES Mas o'mesmo movimento que torna contingente 0 espago- tempo ordindrio abre novos meios de interagao e ritmo das cro- nologias inéditas. Antes de analisar essa propriedade capital da virtualizagao, cabe-nos primeisamente evidenciar a pluralidade dos tempos e dos espagos. Assim que a subjetividade, a significagao ¢ a pertinéncia entram em jogo, nao se pode mais considerar uma Sinica extensdo ou uma cronologia uniforme, mas uma quantida- de de tipos de espacialidade e de duragio. Cada forma de vida inventa sex mundo (do micrébio a arvore, da abelha ao elefante, da ostra 3 ave migratéria) e, com esse mundo, um espago e um tempo especificos. O universo cultural, préprio aos humanos, estende ainda mais essa variabilidade dos espacos e das tempo- ralidades. Por exemplo, cada novo sistema de comunicagao e de transporte modifica 0 sistema das proximidades prdticas, isto é, © espaco pertinente para as comunidades humanas. Quando se constréi uma rede ferrovidria, € como se aproximassemos fisica- mente as cidades ou regides conéctadas pelos trilhos ¢ afastdsse- mos desse grupo as cidades nao conectadas. Mas, para os que nao andam de trem, as antigas.distancias ainda sao vélidas. O mes- mo se poderia dizer do automével, do transporte aéreo, do tele- fone etc. Cria-se, portanto, uma situacdo em que varios sistemas de proximidades e varios espagos praticos coexistem. De maneira andloga, diversos sistemas de registro ¢ de trans- missdo (tradigao oral, eserita, registro audiovisual, redes digitais) constréem ritmos, vélocidades ou qualidades de hist6ria diferen- tes. Cada novo agenciamento, cada “maquina” techossocial acres- centa um espaco-tempo, uma cartografia especial, uma mtisica singular a uma espécic de trama eldstica e complicada em que as extensdes se recobrem, se deformam e se conectam, em que as 22 Pierre Lévy , duragées se opdem, interferem e se respondem. A multiplicagio contempordnea dos espagos faz de nés némades de um novo es- tilo: em vez de seguirmos linhas de errancia ¢ de migracdo dentro de uma extens&io dada, saltamos de uma rede a outra, de um sis- cema de proximidade ao seguinte. Os espacos se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forgando-nos & heterogénese. A virtualizagao por desconexdo em relagéo a um meio par- ticular nao comesou com o humano. Ela esté inscrita sa propria histéria da vida. Dos primeiros unicelulares até as aves e mam{- feros, 0s melhoramentos da locomosao abriram, segundo Joseph Reichholf, “espacos sempre mais vastos e possibilidades de exis- téncia sempre mais numerosas aos seres vivos” (Reichholf, 1994, p. 222). A invengao de novas velocidades é 0 primeiro grau da virtualizacio. Reichholf observa que “o namero de pessaas que s¢ deslo- cam através dos continentes nos periodos de férias, hoje em dia, é superior ao némero total de homens que se puseram a caminho no momento das grandes invasées” (Reichholf, 199, p. 226). A aceleragaio das comunicagées é contemporanea de um enorme crescimento da mobilidade fisica. Trata-se na verdade da mesma onda de virtvalizagao. O turismo é hoje a primeira inddstria mun- dial em volume de negécios. © peso econdmico das atividades que sustentam e mantém a fungao de locomogao fisica (veiculos, in- fraestruturas, cacbucantes) é infinitamente superior ao que era nos séculos passados. A multiplicagao dos meios de comunicagao ¢ 0 crescimento dos gastos com a comunicagao acabarao por substi- tuira mobilidade fisica? Provavelmente nao, pois até agora os dois, crescimentos sempre foram paralelos. As pessoas que mais telefo- nam sao também as que mais encontram outras pessoas em car- ne ¢ osso. Repetimos: aumento da comunicagao e generalizagi0 do transporte rapido participam do mesmo movimento de virtua- lizago da sociedade, da mesma tensiio em sair de uma “presenca”. A revolugdo dos transportes complicou, encurtou e meta- morfoseou 0 espaco, mas isto evidentemente foi pago com impor- tantes degradagdes do ambiente tradicional. Por analogia com os O que é 0 Virtual? 23 problemas da locomogao, devemos nos interrogar sobre o prego a ser pago pela virtualizacao informacional. Que carburante é queimado, sem que ainda sejamos capazes de contabilizé-lo? O que sofre desgaste e degradacao? HA paisagens de dados devasta- das? Aqui, o suporte final é subjetivo. Assim como a ecologia opés a reciclagem e as tecnologias adaptadas ao desperdicio ¢ & polui- Ao, a ecologia humana deverd opor a aprendizagem permanen- te ea valorizagao das competéncias & desqualificagao e 20 acimulo de detritos humanos (aqueles que chamamos de “excluidos”). Retenhamos dessa meditagao sobre a saida da “presenga” que a virtualizago nao se contenta em acelerar processos j4 co- nhecidos, nem em colocar entre parénteses, e até mesmo aniqui- Jar, 0 tempo ou o espago, como pretende Paul Virilio. Ela inven- ta, no gasto e no risco, velocidades qualitativamente novas, espa- gos-tempos mutantes. O EFeIro MoeEsrus Além da desterritorializagdo, um outro carater é freqiten- temente associado A virtualizagao: a passagem do interior a0 ex- terior e do exterior ao interior. Esse “efeito Moebius” declina-se em varios registros: 0 das relagdes entre privado e publico, pré- prio e comum, subjetivo e objetivo, mapa c territério, autor ¢ lei- tor etc. Darei numerosos exemplos disso na continuagio desté livro mas, para oferecer desde agora uma imagem, essa idéia pode ser ilustrada com 0 caso jé evocado da virtualizagao da empresa. O trabalhador classico tinha sua mesa de trabalho. Em tro- ca, 0 participante da empresa virtual compartilha um certo ni- mero de recursos imgbilidrios, mobilidrios e programas com ou- tros empregados. © membro da empresa habitual passava do es- pago privado de seu domicilio ao espago piiblico do lugar de tra- balho. Por contraste, o teletrabalhador transforma seu espaco privado em espaco piiblico e vice-versa. Embora o inverso seja geralmente mais verdadeiro, ele consegue as vezes gerir segundo 24 Pierre Lévy éritérios puramente pessoais uma temporalidade publica. Os i- mites ndo so mais dados. Os lugares ¢ tempos se misturam. As fronteiras nitidas dao lugar a uma fractalizacao das separticées. Sao as préprias nogées de privado e de puiblico que sao questio- nadas. Prossigamos: fale de “membro” da empresa, 0 que supe uma atribuigao clara das relagdes de perrencimento. Ora, é pre- Cisamente isto que comega a criar problema, uma vez que entre 0 assalariado classico com contrato indeterminado, o assalariado * com contrato determinado, 0 free lancer, 0 beneficidrio de medi- das sociais, o membro de uma empresa associada, ou cliente ou fornecedora, o consultor esporadico, o independente fiel, todo um continuum estende-se. E para cada ponto do continusm, a ques~ to se recoloca a todo instante: para quem estou crabalhando? Os sistemas interempresas de gestiio eletrénica de documentos, assim como 08 grupos de projetos comuns a varias organizacdes, tecem com freqii@ncia ligagdes mais fortes entre coletivos mistos que as que unem passivamente pessoas pertencendo oficialmente 4 mes~ ma entidade jurfdica. A mutualizacio dos recursos, das informa- Ges € das competéncias provoca claramente esse tipo dle indeci- so ou de indisting4o ativa, esses circuitos de reversao entre exte~ rioridade ¢ interioridade. As coisas s6 s8m limites claros no real. A vireualizagao, pas- sagem & problematica, deslocamento do ser para a questo, é algo que necessariamente poe em causa a identidade classica, pensa- mento apoiado em definigdes, determinagées, exclusbes, inclusées ¢ terceiros excluidos. Por isso a virtualizagao & sempre hetero- génese, devir outro, processo de acolhimento da alteridade. Con- vém evidentemente nao confundir a heterogénese com seu con- trério proximo ¢ ameagadar, sua pior inimiga, a alienagdo, que eu caracterizaria como reificagio, redugio & coisa, ao “real”. Todas essas nogdes vao ser desenvolvidas ¢ ilustradas nos capitulos seguintes sobre trés casos concretos: as victualizagSes contemporaneas do corpo, do texto ¢ da economia, © que é 0 Vireual? 2s

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