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Ideia da prosa Bum fato sobre o qual nunca se refletiré o suficiente que nenhuma definigia do vesso & perfeitamente satis- fitbria, exceto aquela que assegura a sua identidade em relagio 4 prosa através da possibilidade do enjambement Nem a quantidade, nem o ritmo, nem o némero de si- labas — todos eles elementos que podem também ecorzer na prosa~ fornecem, deste ponto de vista, uma distingio cuficiente: mus 6, sera mais, poesia aquele discurso em que € possivel opor um limite métrico a um limite sintitico (tode verso em que o enjambemnent nfo est efctivamente presente sera entdo um verso com enjambement zero), © prosa aquele discurso no qual isto nao é possivel. Hi poctas ~ Potrarca $ seu arquétipo — nos quais 0 en- Jemmbement zero &a regra, e outros — e Caproni? encontrase enure eles — nos qusis o grau mercado cende, pele contrario, a prevslecer. Na fase tardia de Caproni, porém, essa ten- dEncia vei até os limites do inverossiml: af, 0 exjambenvent * Caproni: Giorgio Caproni (1912-),escricor ¢ poets itsiano, caja dara se daservolee entre at terniticas quotidinnss « w hermetinno, devors vero, que se rednz apenas Aqueles elementos que permitem atestar sus presenga— portato, ao seu nticleo espectfico diferencial, admitinds que 0 exjambeneutindivi- dusliza, no sentido referido, @ trago distintivo do discurso poético. Citemos um poema recentissime: que. da transparéncia, leva 1 opacidade. A porta condenada... A adicional consisténcia métrica do verso € agai drasticamente redusida, e as reticincias, tio caracteristicas da fase tardia de Caproni, assinalam precisamente a impos sbilidade de desenvolver o tema prosédico para lé do seu niicleo constitutive (que — observacio nada trivial, ainda que, depois do que foi dito, nfo surpreendente ~ est no. eo principio, mas no fins, no lugar da versura'), um pouco como, no idigio do quinteto op. 163, de Schubert, do qual Caproni aproveltou a Liglo, 0 pizzicato marca todas as vezes a imporsibilidade, para as cordas, de exeeuttar até 0 fim wma frase melédica. Nio é por isso que a poesia deixa de o ser: urna vez inais, © exjambement, diferentcmente do 4 Vacant terran lai que designs o ngarem que oarnds di a voka no fea do carne, Exe um pualdlisize corm alyurs sltemas de oscita anrigos, nos quai as finhas carrem ateroadamente da exqaecda pata a diteia e da direica para a esquerda, como acontecis ma sscrita greg anviga, 2 biti au tumbéin ma escrita rials, Esse Gpo de ever & berlniente desyado de casica busrofedien (de yrago Dumplieden: & ‘mado de virat 0; boi). 30 raSrcasoen branco de Mallarmé, qué integra a prosa no dominio da poesia, @ condigdo necessdria c suficientes da vewsificagio. © que hé entio nele de tio particalar, para que the seja conferido tal poder na condugio do metro do poema? © enyjarabement exibe uma nfo coincidéncia e uma desco- nexio entre o elemento métrico ¢ 0 elemento sintatico, entre o timo sonore co sentido, como s¢, contratiamente aum preconceito muito generalizado, que vé nels o lagar de uni excontzo, de uma perftita consonincia entre som © sentido, a poosia vivesse, pelo contririo, apenas da sua intima discérdia, O verso, no préprio ato com 0 qual, que- beando um nexo sintitico, afirma a sua propria identidade, é, tio catanto, irresistivelmente otraide para langar a porte pan o verso seguinte, para atingir agttlo que rejcitou fora de si: esboca uma figura de prosa, mas com um gesve que acesta a sua versatilidade, Nesse mergulho de cabegs sobre o abismno do sentido, a unidade puramente sonora do verso transgride, com a sua medida, também a sua identidade. ‘© exijantbemont raz, assim, luz 0 andariento origi- nario, nem poético, nem prosaica, mas, por assim dizer, Dustrofédice da poesia, « esseacial hibridismo de todo discurse humano, © testensuaho precoce do prosinetron* nos Gatha? do Avesta ou na satu’ Intina confirma o card- ter nic epixédico da proposta de Vita Nova no dealbar da idade modema. A verswra, que, embora nao reterenciada nos tratades de métrica, constitai o cerne do verso (e cuja ananifestacao é 0 ensfambemen!), & um gesto ambigno que Provineowes tame rege que designs a mustura de prow 2 verso Guha: terme do Aveta, oliveosagredo di rlisigo pena do meradelsme, Gatla significa ltarabonte “caste” © desir cada um des devewere nos cotnponns pelo profes Zaratustra, Satie: terme latin que designa a composigio liters em gue se mit furnvim vitioe gineror mista de pro # vero crore pgqnmsnte8 on FRC8H EN se orienta ao mesmo tempo para duis diregSes opostas, para trés (verso) ¢ para diante (prosa}. Essa suspenvo, essa sublime hesitap3o entre o sentido ¢ o som, é a herange poétice que © pensamenzo deve levar até o fim Para aproveitar esse testamento, Platio, recusando as formas. tradicionais da esctita, nunca perde de vista aquela ideia da lingnagern que, d= rcordo com o testemunho de Ars- t6teles, ndo era, para ele, nem poesia, nem prosa, mas 0 ieio termo entre as duas. 2 aoncanees Ideia da cesura Talvez nenhuma poesia do século XX confie tio conscientemente o seu ritmo a0 travic da cesura como ade Sandro Penna.’ © pocia exotou mesmo, no breve espago de um distico, am tratamento da cesura que mio se encontra em nenhum tratado de métrica: To vad verso i fue sis un cavalo che quando io penso un poto un poco epi si fema. {Vou a caminho do rio num cavalo que quando cu penso wm pouco um pouzo log estica | ‘cavalo que tansporta 0 posta é, segundo uma anti- ga midigio exegética do Apocalipse de S, Jodo, o elemento sotioro e vocal da linguager, Comentande 0 Apocalipse 19-41, onde se descreve © logos como um cavaleiro “fiel ¢ veraz” que monta um cavalo branco, Origenes explica que 0 cavalo & a voz, a palavia come enunciado sonore, © Sandie Fesma (1906-1977): poeta italiana, com ums possia de revorte lisico ¢ grands mesicalidede, ‘oko pannDET oe UA FRESE B que “come com mais energia ¢ velecidade que qualquer ginete” © que sé o logos torna inteligivel ¢ clara. Bi sobre nm cavalo que, adormecido — durmen sus un chivas — nas origens da poesia uovilatina, Guilherme de Aquitinia declera ter composte 0 seu vers; ea um certo indicio do teraz simbolismo dessa imagem, quando, no principio do século, na obra de Pasco (e, mis tarde, no proprio Penna ecm Delfini), © cavalo toma a forma mais descontralda de una biciclets © elemento que faz parar o lance métrico da vor, a cesurado verso, & part 0 posts, o pemamenta, Mas 0 lado exemplar do tratamento do problema em Sandto Penna reside no fato de o contetido tematic do distice se espelber perftitamenve na saz estrutura métrica: na cesura que parte 0 segundo verso em dais hemistiquios. O paralelismo entre sentido c metro é ainda reforcado pela tepcrigio da mesma palavra nas das margens da cesura, quase dando A pasa a comisténcia Spica de vim intervalo intemporal entre dois instantes, que suspende o gesto a meio, num extravagant passo de ganso (Calvez por isso, © pocta escreven aqui um alexandrine, verso duplo por excelancia, ciyja cesaza ¢ convencionalmente definida como épici). Mas que se pensa allna! nessa cesura, que faz esticar cocavalo do verso? Que coiss dé a ver esta interrupgio do transporte ritmicn do poema? A isso responde HOlderlin da maneira mais direta; “© transporte tragico é, de fato, verdadeiraraente vazio, ¢ 0 mais livre, Por isso, na sucessio 7 Base: Giovanni Pascoli (1855-1912), porta tmliao caja obra exer ‘ceu robre a poesia isiana co século XX ama mfivencia tao grande fou maior gue ade D'Annunzic ou Carducci 10 Deffst Antonio 1elfins (1908-1963) eseritor humorist e fantisin ‘cam tenitiess de furdo provinciuno. 3a rugsawaes itmica das representagées, nas quais se evidencis 0 trans porte, torna-se aecessirio aquilo a que, no metro, se cha mma cesura, a palavra pla, a intercupgio aninritsniea, pare contrastar, ne scu climax, com a mnudanga encantatéria das representagies, de modo a trazer & evidéncia mio ji a al- remincia de representaclo, mas a prégria representagio™ |" O transporte ritmic, motor do Iance do verso, € va iy, é apenss transporte de si, E é esse varia que, enqaanto ‘palavra ptr, a cesta — por um instante — pense, suspende, cenguanto 0 cavalo da poesia para um pouco, Como &s- creve, em estilo latino, Raimundo Llu numa sles suas pegas: “Cavalgando o scu palatrésm, ia 8 Corte para ser armade cavaleiro e, enquanto ia andando, embalado pelo andamento da cavélgadura, adormecea, Mas, ao cheger 2 ‘uma fonte, e animal parou para beber; e © esendeito, que no sono sentiu que 0 cavalo jé no se movia, acordou de repente.”” Aqui, © pocta adoumecide sobre 0 cavalo acorda contempla por umn instante 2 inspiragio que o transport. =e © que pensa & a sua vez, € vada mais. 1X chagla provbin de “Anmerkungen vans Oredipas” (Anctaptet 3 Craluydo do Lips Rei de S6focls), 1804 & Raimatde Llul (ou Lili}: lds, ecritore aussondtio,nascido em 1253 em Palma de Maiorca, ont terdragrrigo tarnbénn crn 4315 00 {316 depois de we vagers Ge divulasSo dasa as cnbinatria ~ en rea Logica € 4 Teologia — pelo None de Aftien © Losbano eave, nas seonlos XV © XVI wma fore pretencs era Portugal, particaarmoerte ssa wa vertente iin atonee neanen nEADAPRESE \deia da vocagdo [A que coiss & fiel 0 poeta? A perpunta envelve cet ramente qualquer cvisa que nic pode sex fixada era pro- posigdes o em profissSes de f& memorizadas, Mas coma0 se pode conservar uma fidelidade sem nunca a formula, nem sequer a si proprio? Ela teria sempre de sair da mente no proprio instante em que se afirma. Um glossitio medieval explica assim 0 sentido do neologisma dementicare (esquecer), que tinha passado 2 ser usado para substituir o termo literirio oblivisa: demen- ficesis: oblivion’ sradidistis, Aquilo que se esqueceu nio foi simplesnente anuisdo, posto & parte: foi carsignado a0 esquecimento. O esquema dessa informulivel tradiczo foi exposto, na sua forma mais pura, por Hilderlin quando, nay notas & tredugie do Edipo de Sdfocles. escreve que 0 deus ¢ 0 homem, “para que nao desopareca a memoria dos olimpicos, comunicam na forme, esquecida de tude, da infidelidade”. ‘A fidelidade aguilo que nio pode ser termatizado mus também nio simplesmente silenciado é uune traigio de narare~ zasegrada na qual a memdrio, ginndo subitamente como um. ‘ton AGAMEN IDTIADAPHO a redemoinho, descobre fone de neve do exquecimento, Esse gosto, esse abrago invertide da memnétia ¢ do exqptecimento, que conserva intacta, no seu centro, a identidade do que & imemorial ¢ inesquecivel, £2 vovaydo. 38 ubasnece Ideia do Unico Em 1961, Paul Celan den a seguinte resposta a um inquérito do livteiro Flinkes, de Paris, sobre © problems do bifinguismo: “Nijo acredito que baja bilinguismo na poesia, Falar com lingua bifide ~ isso sinc, existe, também. em diversas artes on artificios da palavma e dos noses dias, especialmente naqneles que, numa feliz, concordincia com o respective consumo cultural, saber estabelecer-se de forma tanto poliglots como policroma. Poesia — essa é a inelusdvel wnicidade da Tmgua, Nao 6, portanto — pemitam-me este lugar comm: a poesia, tal como a verdade, vé-se hoje frequentemente na situaso de ndo it dar a Ingar nenhun ~, nfo 6, portento, 2 sta duplicidade.”° Nim poeta judeu de lingua alerad, nascide ¢ erescido numa regito, a Sucovina, onde se filavam cormentemente, além do [idiche, pelo menos mais quatro linguas, uma Tm CLAN BAe peta, O merldono e ros tests Trdugio de Joe Barreeo e Vanesa Milstva Liboat Loves Gotovin, (996, ros 39 resposia como essa no podia ser dada de animo leve Quando, logo depois da guerra, em Bucareste, os amigos, para convencé-lo a tornar-se um poeta tomeno (¢ desse petiedo conservam-se poemas esctitos em romeno), Ihe recordavam que nio devia excrever na lingua dos assassinos os seus pais, mortos num campo nazi, Celan respordia simplesnente: “56 na lingua materna se pode dizer a ver dade. © poeta mente se usa uma lingua estrangeira” Que espacie ce experiéncia e unicidade da lingua cstava aqui cm causa para o poeta? Nao ere, por certo, simplesmente a de um monolinguismo que se serve da Fingua matemna para excluir as outras, mas situando-se no meaino plano. © que estava ai em jogo ore, ante, aquela experigneia que Dante tinha er mente quando escrevia, sobre a fala materna, que ex “é una ¢ tinica, sempre pri- meira na nossa mente”. E, de foro, uma experi8ncia da lmgua que pressupe desde sempre palavras—com 4s quais falamos, come se tivéssemos desde sempre palavras para a palavea, como se tivéssemos desde sempre uma lingua mesmo antes de a ter (a lingua que falamos entéo j2 nao € dinica, mas sempre dupla, tripla, presa na série infinite das metalinguagons); ¢ hA uma outta experiéneia na qual ‘9 homem, ao contririo, esti absolutamente sem palavras perante a linguagem. A lingua para a qual no temos pala~ ‘ras, que nio finge, como a lingua gramatical, ser mesmo antes ce ser, mas que “é Gnica e primeira em toda mente, a nosse Hingua, ou sejaa lingua da poesi Por isso, Dante no buscava, no De Vulgar eloquen fa, esta ou aquela lingua materna escolhids 1a floresta de Einguas verniculas da peninsula, mas tio somente aquele ‘vulgar ilustre que, deixando em todas o seu perfume, slo se confimdia com nenbuma; por isto os provencais conheciam um género poética — o descort— que atestava a a Fadvenucen realidade da tmice Kngua ausente apenas través da babélica voresria dos miltiplos idiomas. A Uingna dnica nin & rsa Fingua. © Unico, de que 0s homens purticipam come da finica possivel verdade macema, isto é comum, € sempre qualquer coisa dividida: no preciso instante em que slean- gam a palavra Ginica, cles tém de tomar partido, escolher uma lingua. De mesmo modo, nés, 20 filarmos, podsmos apenas dizer algume eisa—néo podemos dizet unicamente a verdade nena podemos dizer apenas que dizemos. ‘Mas que o encontro com esta fingua unica, dividida ede que nic podemos paricipar, constitua, nesse sentide, un destino, cis uma confissio a que 6 num momento de fraquera um poeta pode ter acedido. De fato, como poderia isso ser umn destino, s¢ ndo existemn ainds palavras com significagio, se nfo existe ainda uma identidade da lingua? B a quem se destinaria tal destino, se nese mo- mento ainda tenes o dom da fala? © infante munca esta tio intacto, distante e sem destino como quando, ro nome, est sem palavrss frente a lingua. O destino tem apenas 2 ver com a nga que, fente 4 inéincia do mundo, jura poder encontri-la e ter, desde sempre e pars li de nome, ‘qualquer coisa a dizer dela © sobre cla, TBsxa vi promessa de um sentido da lingua é o sen des- tino, ov seje, asa gramitica ¢ a sua tradigio. © infante que, piedosamente, recclhe essa promessa ¢,mostrando embora a sua vanidade, se decide pela verdade, decide recordar-se dese vazio € preenché-lo, ¢ © poeta. Mas chegedo ai, 2 Vingua esta diante dele ho #6 ¢ abandonada asi propria que | mio se impde de modo nentum: pelo contrério ~ ¢ so ainda palavras, tardies, do poeta Paul Gelan ~, expde-se, de um modo abscluto (“La poésie ne s'impose plus, elle sexpos"). Neste momento, a vanidade das palavras atingiu verdadeizamante o centro do coragio. ‘ORG ARANBEN EI CA OSA

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