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RUI PINTO DUARTE. 0 JOGO E O DIREITO Separata ‘THEMIS Revista da Faculdade de Direito da UNL. Ano Il=N* 32001 O JOGO E 0 DiREFrO Rut Pinto Duarret Assttacr, This article attempts « penoramie view of the treatment to which gambling is subjected in our legal system, with special note being given to Portuguese civil, penal and fiscal rules Beyond focusing on aspects of legal dogmatis, the author aims at formulating valuations of legislative policies and endeavours in a soctal critique. The choten posture is ‘thus one more subjective than what is normally the casein juridical stadies. 1, INTRODUGAO: CONSIDERAGOES GERAIS SOBRE 0 JOGO EO Direrro? O meu interesse pelo tratamento jutidico do jogo € muito antigo: come- {g0u logo nos dois primeiros anos da licenciatura (1972/1973 e 1973/1974), nos Momentos em que me ensinaram que as dividas de jogo cram inexigives € ue 4 pritica de jogos de fortuna ow azar configurava, em principio, um crime Fee interesse foi avivado, quando, nos tltimos anos da década de oitenta, 420 levar a cabo a investigacdo sobre tipos contratuais que esteve na base da Ininha dissertagao de doutoramento, mse conftontei? com o facto de 0 jog0 © aposta ser 0 tinico dos dezasseis contratos regulados no titulo II do livro Il do Cédigo Civil que o legislador se abstém de definir ~ 0 que, aliés, nao ¢ futo do acaso, mas de uma opgo conscientet, Nao pude entio deixar de telacionar essa abstengio com um passo de Wittgenstein, nas Investigasdes Filoséficas, em que 0 célebre filésofo usa 0 jogo para exemplificar as dificul. dades que existem na formacio dos conceitos®, Profestor da Faculdade de Direito da UNI. 2 Para'servir de base a uma apresentacio que eaizei, em Outubro de 2000, numa sessio Go SPEED (¥. nots 10), escrevi umasnotas,cajo desenvolvimento crginou eat texto, A versto {92¢ agora publico procura tar proveito das intervenes feta na sessfo em cats, obreticds as de Armando Marques Guedes, Sézgio Vasques (que simpaticamenteacederem a interisnela fomo comentadores da minha apresentario), Carlos Fereira de Almeida ¢ Miguel Poiares Maduro, bem como de vérias notasfeitas por Tereea Pizaro Deleze a uma versio anterior {9 men Tipicidade e Aspicidade dos Contratos, Coimbra, Almedina, 200, pég, 105, £ V0 estudo preparatério de Inoctncio Galo Teles imtitslado Contos Cvs (oa pt. Dlicagéo de que fo objecto no BMF, n° 83, pag. 192), + Na edigSo da Gulbenkian, Tratado Ligico-Filsifio e inestigagses Flséfics (Lisboa 1887), . pigs 227 segs. ‘Themis ano, n* 3, 2001:69.93 Ru Pavro Duasre Nao precisava, porém, de ter ido tao longe, pois a dificuldade de definigio de jogo € quase um lugar comum, Valha como exemplo o que escreveu tm autor portugués do principio do século XX, que ao jogo dedicou varios es- ” ¢ possivel caracterizar as noges de “jogos de fortuna ou azar” e de “modalidades afins dos jogos de fortuna ow azar’. Nesta linha de pensamento, permito-me sugerit uma construgio segundo @ qual © tipo “jogos de fortuna ou azar” teria como micleo central uma aposta necessariamente em dinheiro, habilitante a um prémio em dinheito, e 0 tipo “modalidades afins” teria como mécleo central uma prestagéo, normalmente avaligvel em dinheiro, mas ndo necessariamente consistente em dinkeiro, ha- bilitante a um prémio, sempre avaliével pecuniariamente, mas nunca consistente em dinheiro°, Resta saber se a construgio dos tipos (Tasbestide) penais pode, & luz dos principios constitucionais, ser fete com inclusio de conceitos-tipo®, Sobre estas nogdes, por mais recente, Pedro Pais de Vasconcelos, Contratas Atpica, Coimbra, Almedina, 1995, pigs. 24 e segs, e 0 men Tipicidade e Atpicidade, cit, pags. 96 segs. 5B, assim pensando, torma-s rresisivel nova evocayao de Wittgenstein, nomeadamente das seguintes passagens: “Como se delimita 0 concsto do jogo? O que ésinda um jogo eo que € que jf nto o 6? Podes especificar as fronteras? Néo? (..) Poder-se-ia dizer que 0 conctito «de jogo € umn conceito de contornos esfumados" (ob. ct pags. 230 ¢ 231). 3 Da Doutrina parece resultar a aceitagto dessa possibilidade. A ttao de exemplo,citera- -se Jorge Miranda ¢ Miguel Pedrosa Machado “... em si e por si, nem at notmas penais em ‘branco, nem os denominados tipos abertos sio (ou fancionam como) casos de detecgto de {nconstitucionalidades matctiais, por abstracta violacdo de vertente do principio da legalidade neste trabalho considerada, Tanto em relaczo a umas como a outros, ¢ tendo em conta a ex- trzordinitia latitude dat situagbes a que podem dizcr respeito, nfo poderd nunca bestar 1 formulagio de um juizo abstract de desconformidade & Constituicso, Esta observacto €, no ‘entanto, mais evidente no que concerne 208 «tipos abertom, em razio, desde logo, da prépria finalidade meramente analitica que tal clasifcaglo prossegue. A matéria das normas penais em branco pode e deve presta-se a uma atengzo mais cuidada desse ponto de vita formal.” (Constiucionalidade da Protecaio Penal dos Direitos de Autor e da Propriedade Industrial ia Revista Rortaguresa de Ciéncia Criminal, ano 4, Psc. 4, Outubro-Dezembro 1994, pig, 486). De resto, deve esclarecer-se que a construsdo dos tips penais com incluso de conceitos-tipo ‘io equivale & construgio de norms penais em branco, mas meramente &introdugto de con- czitos indeterminados no tipo ~ 0 que parece set pacficamente admitido (cobre isto, no- ‘meadamente a nogdo de normas penais em branco ¢ agua distingo facets normas penais com conceitos indetermindados, x. Teresa Pizarro Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, 2 Regime Legal do Fro eas Normas Penais em Branco, Coimbra, Livratia Almedina, 1998, pigs. 31 ecege), a1 Rut Piso Duarte Frise-se, para o caso de alguém nio ter reparado, que & nogio legal de jogo de fortuna ou azar nio é, aparentemente, co-essencial a aposta a dinheiro, nem sequer 0 dispéndio de dinheiro. A luz da definicio legal, é, pois, defen- sével que um concurso televisivo como “A Febre do Dinheiro” € um jogo de fortuna ou azar... (0s locais no autorizados s4o todas ~ A excepgao dos que a lei expres- samente prevé como autorizados, pois 0 art. 3, n.° 1, do Dec.-Lei 422/89 determina que a explorago e a pritica dos jogos de fortuna ou azar s6 séo permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionais dos arts. 6. 8.° do mesmo diploma. Tenho dois comentirios a fazer ao tipo penal “pritica ilicita de jogo”. © primeito ¢ 0 de que ele & provavelmente inconstitucional (por razées «que nada tém a yer com o cardcter indeterminado do conceito do “jogos de fortuna ou azar”). O segundo € 0 de que ele é, de certeza, discutivel Desenvolvendo os dois comentirios, recordarei que a Constituigao deter- ‘mina, no seu art. 18, n.° 2, que as restrigbes legais a0s dircitos ¢ liberdades dos cidadaos se devemn limitar ao necessério para salvaguardar outros direitos ‘ou interesses constitucionalmente protegidos. Nao vejo quais sio os direitos ‘ou interesses constitucionalmente protegidos para cuja salvaguarda é neces- strio incriminas a prética de jogos de fortuna ou azar, em especial aqueles que ‘io envolvem o dispendio de dinheito pelo jogador. A razio da permanencia da‘incriminagio, com a sua enorme latitude, é, como adiante melhor vere- ‘mos, a inércia na manutengio de mecanismos antiquados de defesa dos cidadios contra o pecado e a dissipagao do patriménio, a par da protecgdo de interesses fiscais do Estado (¢ das entidades por ele beneficiadas), Discuti- veis parece-me 0 minimo que a tais fundamentos de incriminacio se pode chamar, Presenga ent local de jogo ilicito “Quem for encontrado em local de jogo ilicto por causa deste seré punido com a pena prevista no artigo anterior, reduzida a metade” —art. 111 do Dec~ Lei 422/89, Este tipo decompse-se, pois, nos seguintes elementos: — estar em local de “jogo ilicito” = estar nesse local por causa do jogos ~ ser encontrado nesse local. 2 Oyoc0e 0 01KETO A prop6sito deste tltimo elemento, sio de reeditar as consideraghes feitas a propésito do elemento paralelo do crime da pratica ilfcita de jogo. Para ha- ver o crime de presenga em local de jogo ilfcto, nao basta a presenga num tal local; é necessirio af ser encontrado. Legislador hipécrita ou incapaz? Quanto & nose de “jogo ilidito” & perfeitamente razoavel levantar a diivida de saber se a mesma s6 abrange 06 locais onde, nao autorizadamente, se pratiquem jogos de fortuna ou azar ou se a mesma abrange 0s locais onde, nio autorizadamente, se pratiquem “modalidades afins dos mesmos” dbvio que literalmente a lei aponta para a interpretacao mais ampla. Tendo, porém, em vista que @ lei no considera ilfcita a prética de tais modalidades (mas somente a sua exploragio nao autorizada), parece que s6 a interpretagdo restritiva ¢ aceitavel. Exploragio ilicita de jogo “Quem, por qualquer forma, fizer a exploragio de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados ser4 punido com prisdo até dois anos cemulta até 200 dias” — art. 108, n° 1, do Dec.-Lei 422/89. Este preceito Jevanta ao intérprete as mesmas dificuldades que o jé anali- sado preceito incriminador da pratica ilfita de jogo levanta, no que respeita Anogdo de “jogos de fortuna ou azar’, ¢, sobretudo, A sua fronteira com as modalidades afins dos mesmos, Abaixo veremos como tais problemas surgem na Jurisprudéncia, Fabrico e comeércio de material de jogo “Quem, sem autorizagao da Inspecglo-Geral de Jogos, fabricar, publicitar, importar, transportar, transaccionar, expuser ou divulgar material e utensflios que sejam caracterizadamente destinados & prética dos jogos de fortuna ou azar sera punido com prisio até 2 anos e multa até 200 dias” — art. 115, n.° 1, do Dec.-Lei 422/89. Parece, pois, que sio, em principio actividades criminosas fabricar, nego- ciar ¢ expo cartas, dados e roletas.O tipo € tio aberto que em muitas lojas de brinquedos (de resto, na sua modalidade tradicional, espécie de estabele- cimento comercial em vias de extingio) e nas secgdes dos supermercados que thes sucederam se cometem diariamente factos criminosos nele compreen- didos. 8 Rut nro Dunst 3.3. Alguns casos jurisprudenciais De seguida vou apresentar alguns casos jurisprudenciais ~ todos poste- riores a0 Dec-Lei 422/89, de 2 de Dezembro ~ de aplicagdo da norma incriminadora da exploracao ilicita de jogo. Acérdito da Relacao do Porto de 245.95 Neste acérdio, que se debrugou sobre factos de 1992, foi declarado expressamente que “nao é elemento do tipo legal do crime de exploracao de jogo de fortuna ou azar que o jogador tenha ganho ou perda de natureza ‘econémica consoante o resultado do jogo”. Embora nao tenha conclufdo com ‘uma condenagio, mas sim com o reenvio do processo ao tribunal recorrido para novo julgamento em que melhor se apurassem os factos, do ac6rdio em causa constam afirmagoes que levaram quem 0 sumariou para a Colectinea de Jurisprudéncia a concluir que a proposigio essencial do mesmo é a de que «¢ ilicita a exploragao de jogos cujo resultado dependa exclusivamente do acaso, mesmo que desse resultado nao advenha qualquer vantagem ou desvantagem econémica para 0 jogador, como sucede com as méquinas “flippers”». Relizmente, esse sumétio parece exceder 0 que no acérdio se afirma... Acérdao da Relagito do Porto de 5.2.9741 Por este acérdao foi confirmada a condenagao pelo ‘Tribunel de primeira instincia de uma pessoa como autora de um crime de exploragio de jogo, com base no facto de, no ano de 1994, a pessoa em causa explorar num café duas méquinas cujos resultados dependiam do acaso ~em relagao a uma das méquinas exclusivamente ¢ em relagéo a outra fundamentalmente. Em am- bos os casos, por cada jogo havia que pagar 100$00, consistindo os prémios em objectos ou dinheiro, a escolha dos jogadores, Uma das mAquinas cra electrénica e imitava nos seus simbolos o jogo de poker. A outra era mera- ‘mente mectnica e permitia jogar um jogo do tipo “rifas” (0 Tribunal discutiu essencialmente a questo da fronteira entre os jogos de fortuna ow azar € as suas modalidades afins, tendo afirmado que o tinico © Publicado na C), ano XX, tomo Ill, pigs. 259 «segs, Publicado na CJ, ano XXII, tomo I, pigs. 249 « segs. 4 © 1000 £0 oitETO elemento diferenciador das duas figaras radica nes “operagdes oferecides 20 iiblico” existentes nas modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e ine xistentes no jogo de fortuna ou azar propriamente dito»*. Devo re-afirmar que este critério ndo me parece defensével, pois equivale a despromover de crime a contra-ordenagao 0s casos em que para além dos elementos do tipo criminal esté presente um elemento que s6 pode razoavel- mente ter catiz agravante da ilicitude (¢ oferta a0 piblico). © critério dis- tintivo parece-me dever antes ser construido nos termos que atrés expus, a propésito do crime de prética ilfcita de jogo. Acérdo da Relasio do Porto de 9.7.97% Por este acérdio foi confirmada a condenagdo pelo ‘Tribunal de Baio de duas pessoas como autores de um crime de exploragio de jogo, com base nos seguintes factos ocorridos em 1994: ~ Um dos arguidos era dono de um estabelecimento comercial do tipo “cafe? = 0 outro era dono da maquina e do painel numérico a seguir referidos = A maquina em causa continha “ovos", cada um dos quais continha um niimero: — Para retirar cada ovo, os interessados tinham de introduzir uma moeda de 100800 . = Se o niimero constante do ovo condissesse com algum dos mémeros constantes do painel, o jogador teria direito a receber a quantia indicada no painel, a propésito de cada ntimero; se o miimero nao condissesse com nenhum dos mimeros do painel, o jogador nada recebia ~ Os dois arguidos tinhain combinado dividir os lucros resultantes da exploragdo do jogo. Neste acdrdio, a Relacio-do Porto, por meio dos mesmos Juizes que tinham. Iavrado o acérdto de 5.2.97, voltou a defrontar-se com a questao da frontcira entre os jogos de fortuna ou azar e as suas modalidades afins, tendo re-afit~ mado que 0 tinico elemento diferenciador estatia no elemento “operagSes ofececidas a0 piblico’, que seria caracterizador das modalidades afins, J& atrés exprimi a minha discordancia com tal tese e apresentei a alter- nativa que proponho. ‘Beta mesr idea teria sido jafirmada mum acon da Relagto do Porto de 26.4.95, de ‘que s6 conheso 0 sumitio (BMY n.° 446, pl 354), ‘© Publicado na CJ, ano 0X, tomo IV, pags. 234 « segs. 85 Rui Prsvo Duane Acbrdao da Relagto de Evora de 19.10.99 Por este acérdao foi confirmada a condenacio pelo Tribunal de Silves de duras pessoas como autores de um crime de exploragiio de jogo, com base nos ‘seguintes factos ocorridos em 1995: ~ Um dos arguidos era dono de um estabelecimento comercial do tipo “cafe” ~ Ooutro era dono de uma maquina de jogo electrénica ~ O resultado do jogo que a méquina em causa permitia desenvolver nao ‘stava na dependéncia da pericia do jogador ~ Cada jogo custava 100800 ~ Por cada jogo 0 jogador recebia uma pastilha eléstica ~ O jogo tinha uma certa duragéo mfnima, podendo a mesma ser exce- dlida em resultado da pontuagio atribuida aleatoriamente pela méiquina 0 jogador ~ O dono da méquina eo dono do “café” acordaram explorar em con- junto a méquina, cabendo 80% dos hucros ao dono do café ¢ 20% dos mesmos ao dono da méquina, Acérdéo da Relagao do Porto de 26.4.0085 Por este acérdao foi condenada uma pessoa como autor material de um crime de transaccao de material de jogo ilicito, com base nos seguintes factos corridos em 1997: ~ © arguido condenado vendeu a outro arguido diverso material des- tinado a prética de um jogo ~ O jogo em causa consistia no seguinte: existia um quadro dividido em 102 niimeros, estando alguns de tais espagos ocupados por objectos € outros nfo; os nao ocupados por objectos ocultavam tum outro mimero, {que 36 era revelado aos jogadores nos termos que abaixo referiris para participar, os interessados tinham de pagar 50$00 por cada senha que

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