You are on page 1of 52
ProLoco: Jusistas € teigicos, dois imaginitios rivais Uma gravura em madeira de 1497, inspirada no poema.A naw dos snsensatos de Scbastian Brant, representa a Justica numa postura bastante curiosa: um visionatio, tendo 4 cabega um gorro provido de orelhas de bur- 10, venda-the os olhos com uma faixa... ¢ cla doravante munida de uma cspada que brande as cegas e de uma balanca no mais legivel. A imagem ilustra uma narrativa satitica sobre litigantes que se perdem em chieanas vas ¢ arrastam a Justica a querelas ociosas.! Eno entanto... E no entanto, algumas dezenas de anos mais tarde, em toda a ico- nografia curopéia, os olhos vendados da Justica passaio a simbolizar sua imparcialidade, a exemplo do olhar interior dos adivinhos antigos, prosi- mos da verdade porque apartados do mundo? O presente livro situa-se muito precisamente na falha entreaberta pot esse “e no entanto”: entre di- reito e narrativa, atam-se e desatam-se relagbes que parecem hesitar entre derrisio e ideal. E 0 direito vé-se abalado em suas certezas dogmiticas ¢ re- conduzido as interrogagdes essenciais. 1S. Bran, fy, dpe frances por Madeleine Hom, Strasbourg fdon dela Nude eae, 1977p. 267 Para am coment. D, Feria cd Cash, Ls Dea, Ps LA de Arche, ZAK, 2 eR, Jel, mag erie ip adie te Maen ee lip, a, a Leopard, 1994, p 232 2 Pfaenby ep tp 233, 10 FRANGOIS OST ‘Uma outra imagem, ainda para permanecer nas alegorias oficiais: a da estdtua da iberdade que Kafka evoca nas ptimeiras frases de seu roman- ce América. Karl Rossmann, que se prepara para desembarcar em Nova York, tem esta impressio: “Dir-se-ia que o brago, de espada em iste, aca- bara de erguer-se naquele instante”.’ Espada? Mas o que foi feito da tocha? A liberdade teria cedido o lugar a justiga? Mas entio o que é ela, essa justiga ameagadora cujo brago acaba de sc erguer e cuja sombra se estende por todo o romance? E 0 que a distingue da vinganca, ou mesmo da violencia pura e simples? Aqui também a eserita literaria est em operagao: um infi- ‘mo deslocamento, uma palavra por outra, ¢ todo um universo se racha. Compreende-se, nessas condicées, que Platio tenha desconfiado dos poetas ¢ dos trigicos. © tema é recorrente em sua obra. Na Repibtica, 03 guardiaes multiplicam as providéncias contra as seduces da poesia — uma poesia que poderia nos fazer recair na infincia.’ © mais seguro seré ainda banir os poetas da Cidade: sua arte corruptora, que mistura 0 verda- deiro € 0 falso, faz ver os mesmos personagens ora grandes ora pequenos, evoca fantasmas ¢ nio se atém a distingZo do bem e do mal. Num Estado regido por leis sibias, no deve haver lugar para essa espécie de arte que ali- menta o elemento mau da alma — aquele que comercia com o sensivel ¢ 0 prazers Nas Lais, 0s legistas da colénia dos Magnetes [povo da costa orien- tal da antiga Tessélia] op3em-se igualmente A entrada dos trigicos na Cida- de, ou, melhor, os admitem apenas sob condi¢o ¢ mediante uma severa censura: somente as autoridades decidirao se “a obra pode ser aprovada e é boa para ser ouvida pelo piblico”.$ Conscientes do temivel poder da fic- fo, os legistas querem manter os poetas & distincia para presctvas a inte- gtidade do diteito e da justiga. Aqui, portanto, as relacdes do direito e da literatura se inauguram sob 0 signo de um no-acolhimento ou, pior ainda, de uma censura recupe- Kata Hig in Ons ample. ea: por A Vine, Pais, Galimard Ped), 1976, 3 (2015, p40 Pla, La Rhy, ra porR, Baeou, Pas, Guiet-Raensio, 1966p. 373 lid». 370-372. CE amb p, 329: os poets rgiosconfunden os homens 0 exam ora. desma- sacs or en Pho, Ar Lai Vl, 67 n FROLOGO sadora. Nesse sentido, o presente livro, que quer precisamente fazer justica literatura, no poders ser escrito seno contra Platio. E no entanto... E no entanto nao chegamos ao final de nossas surptesas. O austero fil6sofo nio se desdobra, ele proprio, num mitdgrafo imaginative? Que se julgue relendo mais atentamente a resposta dos legistas aos trigicos: a esses poetas, tratados is vezes como “os rebentos mais amorfos das Musas”, os legistas ditigem-se agora como a “homens divinos”: “O, os melhores dos escrangeiros!” O que hé por tras dessa virada? “Compomos nés mesmos um poema trigico na medida de nossos meios, ao mesmo tempo, o mais belo e 0 mais excelente possivel; nossa organizacio politica inteira consiste ‘numa imitagio da vida mais bela ea mais excelente!” Lance teatrall Julgéva- mos a poesia denegrida, relegada & ordem subalterna do prazer sensivel, € ci-la agora clevada a ordem de Constituicéo do Estado. O banimento dos tragicos ptocedia menos de uma difamagao que de um citime profissional: “Somos vossos concorrentes, admitem os legistas, assim como vossos competidores, enquanto autores do mais magnifico dos dramas: precis: mente aquele que s6 um eédigo auténtico de leis pode encenar naturalmen- te? Ninguém, mesmo o mais convieto dos representantes contempor! eos da corrente “dircito ¢ literatura”, tera ido tio longe quanto Platio; ninguém tera ousado afirmar que a ordem jusidica inteita éa ‘mais excelen- te das tragédias”. Assim sendo, seré preciso escrever este livro com Platio, Com Platio quando ele mostra o poder propriamente “constituinte” do imagindtio literétio, na origem das montagens politicas e das construgGes juridicas. Contra Plato quando se tratar de pér 0 poeta sob tutela para pre- sexvar a integeidade do dogma. Mas, a propésito, o que nos diz do direito Platio —Platio o eseritor, desta vez ~ quando imagina sua Cidade ideal? Na cidade dos Magnetes (atraente como a magnésia, pedra dotada de um excepcional poder de atra- G40), cultiva-se o “encantamento” do diteito. Esse direito encantado alter- 1a Preliidios e leis propriamente ditas — os Preliidios combinando, eles réprios, o géneto litico e 0 género didético. Ao fazerem um amplo uso da ntisica (que por sua vez ¢ iniciagio 20 zitmo e promessa de harmon), os 7 tid, vu,s16-817. 2 FRANGONS Ost Prehidios “dio o tom” A vida social: sio uma iniciacio aos “prine{pios” da vida comum, recordando os divinos preccitos que inspiram as leis. O pré- prio Plati se artiscata a redigir alguns Prelidios em alternancia com os cé: digos de leis: mitos, fabulas, formulas cantadas, provétbios ¢ ditados sio sucessivamente mobilizados em poderosos encantamentos destinados a fazer a Cidade respirar em unissono. Que nio se veja nisso apenas uma or- namentacio retérica; esses Preliidios so direito quintessenciado — um di- reito que fala diretamente ao coragio 20 fazer derivar o nomas humano do espitito (nous) divino.s Essa arte do direito encantado estaria exelusivamente reservada as Cidades utépicas? Seu segredo, porém, jamais se esqueceri completamen- te. Da origem comum do diteito ¢ da poesia, La Fontaine reaviva a lem- branca, bem como do apoio que esses dois imaginatios fundadores podem. se oferecer: “Uma moral nua é aborrecida / © conto é que da ao preceito vida." Jean Carbonnier ecoa hoje essas palavras ao escrever: “A fibula, sem patecer fazé-lo, no conduz seus leitotes da narracio & norma?! E no entanto... A lembranga do banimento dos poetas no deveria nos acautelar? Entre direito e literatura, as ligacdes nfio sfo necessariamen- te perigosas? Assim on assado. De fato, nunca € demais ser vigilante: entre a pena ¢ a espada, os mal-entendidos formam legiao, as exclusdes sao moeda corrente € as cola- boragdes freqiientemente suspeitas. Portanto, convém, num primeiro mo- mento, tomar a medida exata de tudo 0 que distingue seus respectivos discursos, 5 “assim”, sugere o poeta, abrindo o espago da ficgio imagind- | Somos devedorcs, pars et andite ds Li plates, do roo minacoso quant inspire de Ane “Tels sings, Emden dave Ai pateon, Pais, Mamata, 2012 9 Jean dels Fontsng, Fal, Pass, Preser Pack, 989,p. 173, {ro autor aetecena: “Nese tipo de Bg ‘ent & presto llr ater / cones por cana me parece pene pre” 10 J. Casboasie, Flash a, Pasi, LGDY, 1971, 29. tia; € “assado”, responde o jurista, sublinhando ao mesmo tempo a realida- de ea imperatividade da ordem que cle instaura. Ris ai uma primeira diferenca de porte: enquanto a literatura libera 08 possiveis, o direito codifica a realidade, a institui por uma tede de qualifi- cages convencionadas, a encerra num sistema de obrigagdes e interdigdes. Se for vetificado, por exemplo, que Orestes € realmente o assassino de sua mie, entio ele deve necessariamente ser morto pelas Erinias, segundo o di- cito vindicativo em vigor. Ao apoderar-se desse tema, porém, Esquilo lhe dium desfecho totalmente diferente: mantendo as Farias & distincia, Ate- na faz julgar Orestes, que, contra toda expectativa, seri absolvido; pela pri meita vez, a Cidade teré apostado na justica contra a vinganga. Tal é fexatamente o trabalho da literatura: pdr em desordem as convenes, sus- pender nossas certezas, liberar possfveis — desobstruir o espaco ou liberar 0 tempo das utopias criadoras. Obviamente, esse efeito passa pelo momento do negativo: para abrir, é preciso primeito abalar ou mesmo abater. Todos Jembram a apéstrofe brutal de Dick, 0 agougueiro que, no Henrigne VI de Shakespeare, encabega uma revolta popular: “Kill all the lawyers!” [Matem todos os advogados}. Sem necessarlamente chegar a esses extremos, que justificariam a posteriori, como se percebe, a desconfianga dos legistas de Plato, a literatura exerce com freqiténcia esse papel critico por meio do cémico e da destisio, arma favorita dos fracos. De La Farr de Mattre Pathelin [A farsa do mestre Pathelin} (cerca de 1465), em que mesmo 0 advogado astuto acaba sendo enganado por um mais astuto que ele, até certas paginas de cariter grotesco do Processo de Kafka, pasando por O eélaro quebrado de Fi. von Kleist, em que o juiz culpado acaba tendo que instruir, contra a vontade, seu proprio processo, a literatura nao cessa de investir contra a fortaleza juridica com suas salutares gargalhadas. Também aqui Platio foi conseqjiente: o legisla- dor nunca ti — sua pretensa retido mio poderia se comprometer com as contorgdes dessa “paixao ficil”.1? Pode-se pensar, entretanto, que a retidio € aqui simplesmente assimilada a0 ponto de vista dominante dos que de- 11 W.Shakespent, Haig Vito 1,2 12 Pho, Fa Reali, fat, I, 3892 €X, 606 € 14 FRANCOIS OST. tém o poder—os homens, por exemplo, que sempre se arrogaram 0 mono- polio do dominio politico. Sob esse aspecto, nao deixa de ter pertinéncia a tese de Nicole Loraux, que apresenta a tragédia grega como a expresso do ponto de vista minoritério, “a voz enlutada das mulheres”, as Antigona, as Electra ¢ tantas outras que se recusam a sactificar seus mortos & razio de Estado.!3 Com freqiténcia, essa critica do direito toma caminhos indiretos: em vez de incriminar frontalmente a escassez de dircito (o reinado da arbi- rariedade ¢ o poder bruto da forga), a natrativa sugere as desoxdens a que conduz o excesso de dircito — 0 direito aplicado ao pé da letra. O direito do credor inflexivel, por exemplo, como a insensata pretensio de Shylock em telagdo a Antonio, 0 desventurado Mercador de Veneza, de quem cle recla~ mava uma libra de carne quando Ihe ofereciam varias vezes 0 valor corres- pondente. A literatura esté repleta desses personagens “loucos de direito” que, cada um & sua maneima, ilustram © paradoxo profundo expresso no adigio latino “suornnum ins, summa iniuria” — 0 cimulo do direito € também o cGmulo da injutia. E.0 caso de Michaél Kohlhaas, na novela de Von Kleist, que trataré a Sax6nia a ferzo e fogo para obter a teparacao simbélica de ‘uma afronta cuja compensacio material Ihe sera vinte vezes oferecida, Ou ainda de Césat Birorteau, o mais célebre dos falidos de Balzac, que conde- nati a si proprio, a mulher e a filha 4 miséria durante anos, com 0 tinico objetivo de reembolsar seus credores até 0 tltimo franco, ainda que 0 cos- tume comercial admitisse que estes se contentassem com os dividendos. Se a literatura & habil em manejar a dertisio ¢ 0 paradoxo em seu empreendimento critico, cla também emprega, ocasionalmente, a anilise cientifica. Com efeito, ha tesouros de saberes nas natrativas de ficcio — uma mina com a qual as ciéacias sociais contemporineas fariam bem em se preocupar.! Para ficarmos no César Birsteant de Balzac, por exemplo, hi ali 13. Neo, Lara ene rb ri gn, Pate Galina 199, CE sna Anson, a. acho, Pas, Pil, 197, p27 “Todos os nstos cteos os dos vos eos dos motos, sce ba de uma mules, es fran ransporados xaos e amados or ela Uma sma cetera parents ‘mulheresque 8 c:por, quid a vidn o abandons, tm deo ds honms finebres ea eat 0 eszn0 succinct no iafritorexpito, Saber dso, sabemos sem que ninguém o nsnase 8 qualita mani com of eabeces cf. soba digi por Van Hyde eS. ini, Lit nr Braces, Pua des Pal wivesies Saint-Louis (USL), 200, 18 PROLOGO uma “avaliacao legislativa” da lei de 1807 sobre as faléncias que poderia servit de modelo a muitos teabalhos atuais de sociologia jurfdica. Sabe-se, de resto, que essa lei foi modificada dez meses apés a publicagio do livro. Outro exemplo: a lucidez criminolégica de Tolstoi, em Ressurreigao, reduz a migalhas as teorias de Lombtoso, de Garofalo e de Ferti numa época em que estes pontificavam nos congressos de criminologia em toda a Europa erudita, Antes dele, Dostoievski j4 havia se Iancado 20 mesmo exercicio, pondo em cena a irredutivel liberdade do homem contea todos os determi: nismos biologicos ¢ outros atavismos sociol6gicos. Como sublinba 8. Gut- \wirth, a prosa livre do literato — um “fibusteiro epistemolégico” ~ 0 aproxima geralmente mais das complexidades do trabalho de campo que muitos saberes académicos. Essa “indisciplina” literiria que se insinua nas falhas das disciplinas excessivamente bem institu(das realiza assim um tra- balho de interpelacZo do juridico, fragilizando os pretensos saberes positi- vos sobre os quais 0 direito tenta apoiar sua propria positividade.'* esse real movedico ¢ complexo, o direito faz escolhas que se es- forca por cumprir, em nome da “'seguranga juridica” & qual atribui a maior importincia, Entre 0s interesses em disputa, cle decide; entre as pretensdes tivais, opera hierarquias. Assim o exige sua funco social que Ihe imp3e es- tabilizar as expectativas ¢ trangiilizar as angistias. Livre dessas exigéncias, a literatura cria, antes de tudo, a surpresa: cla espanta, deslumbra, perturba, sempre desorienta. Isso produz, entre ela ¢ 0 diteito, uma segunda diferen- ‘ca importante. Livee para entregar-se as variagGes imaginativas mais ines- peradas a propésito de um real sempre muito convencionado, ela explora, como laboratério experimental do humano, todas as saidas do caminho. As vezes com passagens radicais que tém por efeito inverter os pontos de ‘vista ¢ engendrar novos olhares, quando nfo novas realidades. No momen- to em que Alice passa para o outro lado do espelho, nada mais é verdadeira- mente como antes. Toca-se aqui a funcio propriamente heuristica da literatura: seu gesto experimental ,20 menos em alguns casos, portador de conhecimentos realmente novos, Nés mesmos pudemos julgé-lo por oca- 15. $. Gunn, “Une petite lesion sue importance dela fibuserepinémologigu desluénizes Dos Teva I cimincoge les scknces Ledoicecl linéacre”,in Latin hi Le dian iirc ita, sols deen de F-Oste L. Van Eynde, Bases, Publications des FUSE, 2001, p35, 16 Francois OST sifo da escrita do presente livro. Foi o caso, por exemplo, da descobetta, nos meandros das narrativas de Kafka, daquilo que, na falta de melhor, chamatemos “a lei atcaica de necessidade” — coisa estranha e sem nome que faz valer suas sentengas quando a lei simbélica do grupo — a norma diurna, de certo modo — perverteu-se ou caiu no esquecimento. Ou ainda, para ficat no registro das regressGes, o retorno muito rapido ao estado de natureza e4 horda primitivaa partir do momento em que se esfumam as te- feréncias da civilizacio e 0 medo se impe (O senbor das moscas, de W. Gol- ding). Inversamente, a narrativa do Sinai nos tera ensinado que o essencial era menos 0 contetido da lei que as condigées favoriveis a sua recepgio por seus destinatirios: no easo, para o povo judeu, a liberdade ea confianca geradoras da Alianga que esti na base da lei. Outea ligao ainda: na Onistia de Esquilo, o tema, mil vezes sublinhado, da passagem da vinganga 4 justica no é seniio uma conseqiiéncia da transformagio da linguagem juridica que a Grécia conhece nessa época, quando a palavra migico-performativa dos ordilios, imprecagdes ¢ outros juramentos cede progressivamente 0 lugar 4 palavra dialégica © argumentada, apoiada sobre provas ¢ razdes (mas sem afastar-se coralmente de seu fundo migico-performativo, assim como a justisa tampouco se libertou totalmente da retribui¢io vingadora). Tetceira diferenca significativa entre dircito e literatura: 0 estatuto dos individuos de que fala cada um desses discursos. “O direito produz pessoas, a literatura, personagens”, explica Ch. Biet.'® A pessoa juridica éo Papel esteteotipado, dotado de um estatuto (direitos e deveres) convencio- nado. Na encenacio que opera da vida social, o direito endurece 0 trago — impondo aos individuos uma miseara normativa (persona, em Roma, é a mascara de teatro que ao mesmo tempo amplifica a voz e facilita a identifi- casio do papel). Essas pessoas juridicas sio dotadas de um papel exemplar destinado a servit de referéncia a0 compottamento padao que os cidadios esperam: o “bom pai de familia” combina com o “usuario prudente e avisa- do”, 0 “concorrente lea!” com o “profissional diligente”. Exatamente 0 16 Ch Dies, Dt irae ses An Rgin, Lae oa dela Pati, Honoré Champion, 02,9. 9 LOGO contririo dos personagens litetatios, cuja ambivaléncia de sua natureza ge- ralmente s6 combina com a ambigiiidade das situagdes que eles enfrentam. (© que pensar do Doutor Fausto, por exemplo? pecador condenado ou ho- mem das Luzes prometido & salvacao? vil subornador ou Prometeu flame- jante? E Robinson Crusoé: naufrago neurético ou solitétio triunfante? De resto, € comum que esses personagens ambivalentes conhegam todo tipo de metamorfoses: squilo transforma suas terriveis Erinias nas benevolen- tes Euménides; Kafka—o campeio das metamorfoses — multiplica ou des membra seus personagens (avatares de seu ptéprio eu), quando nio os transforma em objetos ou em animais. Quanto a Balzac, ele inventa a técni- ca do reaparecimento de seus personagens de uma obra a outra—a0 longo de sua monumental Comédia humana —, nfo sem imprimit-Ihes substanciais transformacdes com o correr do tempo, exatamente como na vida. Na literatura, nada ¢ impossfvel: sucede mesmo de os personagens permutarem seus papéis respectivos como nas robinsonadas de M. Tourni- ef, em que Robinson ¢ Sexta-feira aeabam por desempenhar 0 papel do parceito, Essa inversio dos papéis é também um dos meios mais seguros do cémico grotesco, simbolo do abalo das convengées sociais, como no carnaval, Ou entio — 0 procedimento é muito freqiiente — a fiegio joga com as variagdes de grandeza dos personagens. Os heréis literitios sio amitide superdimensionados (Fausto, por exemplo), 08 proscritos subdi- mensionados (todos os personagens de Kafka, geralmente identificados por um nome reduzido a uma letra: K), Alice cresce desmedidamente para denunciara arbitrariedade imposta pelo Rei ea Rainha, Enquanto o dircito consagra papéis normatizados, a fibula joga sistematieamente com as mu- dangas de escala: a tragédia antiga, por exemplo, testa permanentemente a justa medida da rclacao que os homens devem mantet com os deuses e aca- ba por denunciar a bfbris (a desmedida) dos protagonistas. Coloca-se entio a questo da ordem em relagio & qual a medida conveniente é avaliada: quem, entre Creonte e Antigona, por exemplo, se torna culpado de Hiri? As hist6rias de rebeldes so muito significativas a esse respeito: ao desafiar a ordem estabelecida, o dissidente se eleva muito acima dos papéis padro- nizados — como Michaél Koblhaas, que assina seus mandamentos justice! 10s como “o lugar-tenente do arcanjo Sao Miguel” — mas, quando a tensio se apazigua ¢ o rebelde “setorna 4 ordem”, ainda sera preciso determinar com qual cstatuto (qual grandeza): 0 do herdi aurcolado de gl6ria ou 0 do 18 FRANCOIS Ost delingtiente condenado™” Assim, essas vatiagSes de grandeza do persona- ‘gem nfo sfio o que melhor revela a natureza do regime que o reintegra e do grau de justiga que nele prevalece? Poder-se-ia ainda dizer que essa diferenca entre papel juridico nor- matizado (a pessoa juridica padtonizada cujo papel deve servir de modelo) « trajetdria experimental do personagem literdrio em busca de si mesmo coincide com a luminosa distincio que P. Ricoeur estabelece entre duas formas da identidade: a identidade idem, que corresponde 4 questio “o que eu sou?” e que se traduz por tragos fixos, ea identidade jpre, que responde A questo “quem cu sou?”, ligada as variagdes de uma personalidade que evolui com o tempo € com os outros." Diante das certezas sempre dema- siado seguras dos papéis sociais convencionados, a literatura no cessa de intecsogar esse ‘dem, lembrando que somos um “quem”, um ipse obrigado a responder por si mesmo, ¢ no somente um “que” fixado de uma vez por todas. Ela abre assim um espaco que é propriamente o da intriga, constitu- tivo da “identidade narrativa” do personagem, entre esse eu que me tornei © aquilo que em mim est4 em instdncia de advir: Tudo isso desemboca numa quarca diferenca entre diteito e litera- tura: enquanto aquele se declina no registro da genetalidade e da abstracio (alei, dizem, é geral e abstrata), esta se desdobra no particular e no concre- to. De um lado, um universo de qualificagées formais e de acranjos abstra- tos (“todo ato do homem que causa a outrem um dano”, diz o artigo 1 382 do cédigo civil), de outro, uma histéria irredutivelmente singular (um fidal- gote alemio abusou dos cavalos que o comerciante Koblhaas Ihe empres- tou, ¢ um drama imenso se desencadeia). O grande esctitor consegue inclusive singulacizar 0 que € aparentemente 0 mais comum: assim Kafka apropria-se da letra K e identifica-se doravante com ela. Como escreve G. Steiner: “No alfabeto da sensibilidade humana, a letra K pertence para sempre a um tinico homem"’.!? Resta ver, porém, se essa imersio no patti- cular nfo € © caminho mais curto para chegar ao universal. O que fari hem evidencido pox M-David-Jougnea, "Laplace dla liéranse dans recherche sa i Lait as ope p OD 1, Le Didnt ay ders Pasi, 1960, 18 Ricocur, Soir comma at, Pasi, Sei, 190, p 167 19 G,Srinr, Lona ls, Pais, 1B, 1999, p15 Liam. 19 PROLOGO ‘André Gide escrever: “Como nifio se dizer a todo momento: essa criatura perseguida sou eu?" Revomo dialétieo Essa diltima interrogagio abre 0 caminho a um possivel retomo dia- ético, Sem nada retirar as andlises precedentes que apontavam as diferen- cas entre direito ¢ literatura, e sem deixar de mostrar-se vigilante em relagio a toda confusio dos géneros, é preciso agora convit que a Ultima palavra sobre essa questo ainda nao esté dita. Com efeito, persiste a idéia de que as distingdes feitas nao esgotam a questio da relacio ditcito-literatura: em que sentido podia Platao ver af dois imaginatios rivais se eles niio atuassem, a0 menos em parte, no mesmo terreno? Sera preciso entio mostrar, para usar uma terminologia tomada de C. Castotiadis sobre a qual falaremos mais adiante, que o dircito nfo se contenta em defender posigdes énsttuidas, mas exerce igualmente fungdes insttuintes —0 que supde criacao imaginaria de significagdes sociais-hist6ri- cas novas ¢ desconstrucio das significagdes instituidas que a clas se opGem. De maneira inversa, ¢ simetricamente, a literatura nfo se contenta em atuar na vertente insttuinte do imaginério, ocorre-Ihe também apoiat-se sobre suas formas instituidas. A vida do direito esté longe de representar esse longo tio trangiilo que muitos imaginam talvez do exterior: nele se agitam as forcas vivas da consciéncia social e se enfrentam os mais variados tipos de priticas ¢ de in- teresses, dos quais somente uma parte conforma-se & norma. De resto, 0 proprio direito oficial é capaz de mobilizar, por ocasiao das revolugbes ¢ outras grandes refundacdes politicas, os recursos do imaginirio coletivo: evocaremos mais adiante as narrativas fundadoras que ele coloca, entio, na base de suas Constituigdes. Numa escala mais individual, os tribunais regis- 20 A.Gie, “Jounal”, 28 de agosto de 140, in Caio ls Compre tis, lind abode 1987, p. 12. kin Re Jo Lis Bar Pa tica, da legislacao”2" Nas histétias contadas ¢ pleiteadas no tribunal, chant a, 2 Sida dia novas intigas que sio como a mediagio entre a ficcio oficial do eécdigo e as ficgdes urcidus pelos Personagens singulares da vida seal. Nio € rato, nessas condigses, que um demandadox obstinado ou um Utigante imaginativo obtenha o beneficio de uma interpretagio inovadora imo de uma teotientagio da jurisprudéncia, que anunciact talvez 4 forma de um espartilho sigido que nio dé nenhusme margem de agio aos doce nulls delas, 20 contrétio, adquicem uma forma supletiva, impon- o-se apenas na falta de outra opeio adotada pelos Patticulares. Fé signifi- cativo que 0 e6digo civil renha reservado uma rubtica em branco, a dos uum “infra-direito”, gerador das mais diversas formas de costumes, habitos, Pritias ¢ discursos que ni cessam de agi, de dentro, sobre oe modelos Oficiais do direito instituido.2 ‘De mancira inversa, pode-se afirmar que a literatura nfo é alheia as Romnas es formas instituidas, Certamente seu reistto oda historis indi Vidual, mas isso aio significa que seu alcance nic seja coletivo ou mesmo 2 Dea Ct Cal Nel, Pay 1865 Pein Onur screscentasna “A jus rsdn, ni eb vd nan a Keone, Drei ai Porm i ch i ro Paden ons des FUL, 202 9 108s Ash Arua, Cig de ron fig, Pais UD), 198, p. 383 21 PROLOGO ‘universal. Basta lembrara intima relagio que a tragédia mantinha com a po- litica, em Atenas: verdadciras instituigdes politicas elas proptias, as repre~ sentagées trigicas (as quais 0 povo inteiro assistia, durante dias a fio) exam uma maneira de a Cidade refletir-se nas formas da ficedo e, particularmen- te, de colocar-se as questdes de fundamento que 2 democracia nascente deixava abertas. Como escreve Jean-Pierre Vernant: “A cidade faz-se tea tro; toma-se, de certo modo, como objeto de representacio ¢ reptesenta-se asi mesma diante do pablico.” Consideragdes da mesma ordem pode- riam ser feitas a propésito do relato biblico em relagko 4 histéria do povo judeu, ou ainda de romances como Robinson Crusoé em rela¢io a0 capitalis~ ‘mo conquistador anglo-saxdo ¢ & apropriagao burguesa do mundo. Claro que em alguns casos (mas sfo os menos interessantes) a pena do eseritor coloca-se diretamente a servico do Principe: assim pode-sc afirmar que Les Plaidwrs (Os demandantes] de Racine (1668) devia se compreender como uma sitira mobilizada a servico do Ciédigo Luis (1667) que tentava simplifi- car € racionalizar os procedimentos judicifrios, e que, como de praxe, de- parava-se com uma forte resisténcia dos Patlamentos ¢ dos meios concetnidos.2° Evidentemente nao é esse tipo de conivéncia contingente que nos interessa, mas sim 0 modo como a literatura ajuda a inculcar 0 vo- cabulirio de base de nossas representagdes juridicas e politicas as mais essenciais. Ii nesse sentido que G. Steiner péde escrever que, com Antigo- na, Sofocles havia forjado o alfabeto no qual se escreveria doravante, em. todas as linguas € em todas as épocas, 0 conflito entre consciéncia individu- ale razio de Estado. Ei também nesse sentido que Victor Hugo —€é verda- de que ele falava de Shakespeare — péde sustentar esta proposicio surpreendente: “A literatura comeca por formar o pablico, para depois fa- ze 0 povo. Escrever é governat,””” Que a ficcio literdria est ligada as formas e notmas instituidas, & algo que se pode mostrar também no terreno das regras da propria escrita, Certamente 0 poeta ¢ o romancista reinventam a lingua ocasionalmente, 24 J-P.Veunant PV Naguct, Mite engi or Git ain, Pts, Maspezo, 1972p. 24 25 Nesse serio, Ch, Bic qh p. 116 to sem neyipenciar 6 fo de que Laz Plaids ewe ample mente ema der rapa de Asanes 26 G.Swinc, Le Avgynasta. or 8, Blanchard, Pais, Galimard (Feo ss), 1986, p. 259. 27 V_ Hao, Willan Sbeketvan, Pasi, Flammacion, 1973, p. 506. 22, FRANCOIS Ost para tentarliberar as coisas em seu “ser-a-dizer”, mas nem por isso eles po- dem ignorac certas regras do jogo da comunicagio, nem as leis universais de producio de sentido. As tentativas de desformalizagio mais radicais a que os autores se langaram durante o século XX jamais puderam abolir © principio de uma codificagio minima do exercicio. E sera preciso ainda meditar sobre a aporia & qual sio conduzidos os Seis personagens em busca de um aitor de L., Pirandello: na falta de autor que dé forma a seu drama, os personagens sio condenados a repetir indefinidamente uma histéria que permanece inaudivel. Sem tepresentacio (media¢o) simbélica plaustvel, a catarse esperada nfio se produz —o fato de ser também uma hist6ria de in- cesto confere a essa constatactio uma profundidade impressionante: na fal- ta de interdi¢fo partilhada, 0 grupo social no conseguiré se instituir, assim como os personagens da pega nfo conseguem se entender e se fazer enten- der. Se é verdade que “a ninguém é admitido ignorar a lei”, talvez se deva lemibrat, com Paul Valéry, este pressuposto ainda mais fundamental: “A ninguém é admitido ignorar a linguagem”. Uma tesceisa pedea de toque das sclacdes que ‘a literatura mantém com as normas ¢ formas institufdas diz tespeito ao dominio da étiea. Certa- ‘mente a literatura se preserva dos discursos edificantes ¢ no cessa de sub- meter nossos cédigos, nossos esteredtipos ¢ nossas prédicas a um eficaz questionamento, Mas quem ni sabe que isso no ¢ senio, em geral, uma mancita de nos reconduzir com mais seguranca 4 radicalidade da exigéncia ética de ter de assumir a liberdade ¢ a responsabilidade que nos faz ho- mens? Se é verdade, por exemplo, que o autor de ficgio no esti preso de modo algum as exigéncias do justo liga, isso nao significa que se desinte- tessa do justo. Muito pelo contritio, ele examinar4 0 veredicto judiciétio para denunciar seu formalismo e sua atbitrariedade, Ao fazer isso, dirige-se 205 publicos imaginaios que, tendo como guia sua consciéncia e sua con- vviceio intima, retomario caso sob uma luz sempre nova ¢ mio hesitario em reformar ou revogar a deciséo. Entregando o caso as mios do lei- tor-juiz, 0 autor apela assim ao tribunal da conseiéncia.2 Nesse sentido, ode-se dizer que a obra inteita de Camus, que sabemos tet sido um longo combate contra a injustica, pode ser interpretada como uma maneira de 28 Tambien nese senso, Ch Bie op yp. 28, 23 PROLOGO “pensar a justiga contea ela mesma’: colocar & distincia a justiga como ins- tituigdo (sempre tentada pelo fechamento na ideologia), para liberat a jus a como valor, relembrando assim a instituigio sua real vocagio.” Para nos convencermos ainda mais do cariter instituido de ceztas narrativas, lembremos que elas so 0 objeto de uma obrigagio de as conta regularmente, como se tepresentassem um dispositivo essencial da manu- tengo do vinculo social. A norma religiosa (Exod 12, 24-28, Desterandmio 31, 9-14) exige que sejam zelidos em intervalos regulares, no quadto dos ci- clos litirgicos, os grandes textos fundadores, como a saida do Egito. Em Atenas, 2 norma politica exige dos cidadios, como ja foi lembrado, assistit 0s concursos trigicos. Quanto & norma pedagégica, ela impée a leitura ea releitura dos clissicos, como faz Rousseau ao recomendat 0 Kabinson Crusoé aseu Emilio. Aqui nao é mais a narrativa que se apodeta da norma, é a nor- ma que se apodera da narrativa, A enunciacao do texto (sua leitura piblica, seu ensino comentado, sua retomada regular) nio é mais entio uma cis- cunstincia extrinseca a seu enunciado, mas patticipa de sua natureza: ha obrigacao de contar. O texto existe e 86 vive através dessas retomadas cole- tivas. A propria narracio produy historia, que se integra 4 historia narrada, Nos melhores casos (a narzativa eleva-se entio 4 altura do mito), a hist6ria é nao apenas recontada mas reescrita: Antigona, Fausto, Robinson, Dom Juan conheceram essa fortuna, A fancao de tememoragio (que mantém o instituido) fornece entfo 0 melhor dela mesma: produz efeitos instituintes, de mobilizacao de significagdes novas. Pode-se ver que essas observagies nos pdm no caminho de uma compreensio dialética das relagées direito-literatura — uma dialética que, como convém, atravessa cada um dos polos opostos. Em vez de um dilo- go de surdos entre um direito codificado, instituido, instalado em sua racio- nalidade e sua efetividade, e uma literatura rebelde a toda convensii, ciosa de sua ficcionalidade e de sua liberdade, o que esta em jogo sko emprésti- mos reciprocos ¢ trocas implicitas. Fintre 0 “tudo é possivel” da fico lite- titia © 0 “niio deves” do imperativo juridico, ha, pelo menos, tanto interagio quanto confronto. Essa tese essencial é sem diivida o postulado mais central do movimento “direito ¢ literatura”, como lembra James Boyd 29 D.Salan Alle Cans. Le te rive, Pats, Michal, 2002, p96 24 FRANCO Ost ‘White, um de seus principais representantes nos Estados Unidos. Em vez de opor um diteito, linguagem racional do poder, a uma literatura, fantasia recrcativa que obedece a critérios exclusivamiente estéticos (reencontramos af 0 Plato que bania os poetas), é preciso, a0 conteitio, procurar compre- ender a inspiragio comum de ambos." Os juristas aprendem na faculdade que o direito se origina no fato: ec facto is ovtta”. Pasa a xeflexdo — e seri o propésito deste livro demons- tri-lo— setia mais exato dizer: “ex fabula ius ortur® — 6 da narrativa que sai o dircito. Tudo se passa como se, entre toda a gama dos roteiros que a fie¢o &, imagina, a sociedade selecionasse uma intriga tipo que ela normatiza a se- guit sob a forma de regra imperativa acompanhada de sangdes. Mas as coi- sas nfio param af: to logo estabelecidas, essas escolhas sao discutidas, matizadas, modificadas — nos bastidores judiciarios em particular, que sio como a antecimara de uma legalidade mais flexivel. A intriga juridica, assim. que se estabiliza, retomna a fabula da qual se origina: os personagens reais vio além do papel convencionado das pessoas jurfdicas, ao mesmo tempo em que peripécias imprevistas obrigam o autor a modificar 0 script Entre direito ¢ literatura, decididamente solidatios por seu enraiza- ‘mento no imaginitio coletivo, os jogos de espelho se multiplicam, sem que se saiba em iiltima instincia qual dos dois discursos ¢ fiegio do outro. Um autor como Balzac, tio imbuido de direito quanto de literatura, mostra-o as ‘maravilhas, cle que consegue, por exemplo, a propésito da lei de 1807 sobre as faléncias, falar de uma instituigao jurfdica nos termos mesmos da critica literiria. Denunciando as iniimeras manobras que essa legislacio favorece, le coneluis “Moral: 0 devedor nomeia seus sindicos, verifica seus créditos € arranja cle préprio sua concordata. Com base nesses dacs, quem no adivinha as intrigas, manobras de Sganatelle, invengSes de Frontin, menti- ras de Mascarillee sacos vazios de Scapin que esses dois sistemas desenvol- vem? Nio existe faléncia que nfo produza o material suficiente dos catorze volumes de Clarisse Harlowe 20 autor que quisesse desctevé-los.”™! Comungando no elemento da linguagem, ¢ mergulhando suas rai- zes no imaginario, direito e literatura — esses dois imagindtios rivais —parti- 30 J.B. White, Frm spt ‘Michigan Bre, 200, p 3 ep 31H dea, Caer Bran, Pes, Gaimard obo, 2002, p58, “pian Esty o Law ad il Eatin, Ao Hato, The Universi of 25 PROLOGO Iham um mesmo destino. A contraprova verifica-o do mesmo modo: censure-se a literatura, ¢ 0 dircito saira perdendo também. G. Orwell dew uma ilustragio disso em 1984: 0 mundo do Big Broiber no se contenta em abolir as garantias juridicas, mas péc no index toda a literatura digna desse nome. Mais ainda: promove o empobrecimento sistematico da linguagem, origem comum de ambos. Ao progsamar o desaparecimento progressivo dos matizes ¢ das sutilezas da lingua comum, em proveito dos esteredtipos da Nonlingna, cle prepara a erradicac uma diferenga 10 da possibilidade mesma de exprimir Nesse estigio de nossa reflexo, podemos colocat a seguinte ques- ‘Ho: 0 que ganha o estudo do dircito nesse confronto com o espago literi- rio? (Dando a maior importncia & questo snversa, compreender-se~i que deixamos 40s literatos o cuidado de propor sua resposta.) No minimo, ¢ ‘mais superficialmente, 0 exercicio propiciaré uma diversdo erudite a vefexén- cia literdria opera entao como uma ornamentacio humanista eapaz de ins- tmuir a secura de uma demonstragio juridica — como as citacdes literixias, mais ou menos controladas, destinadas a “lorie” um discurso de reabertu- ra do Supremo Tribunal de Justica ou um arrazoado de processo criminal Garantia de cultura humanista, esse uso da literatura a reduz a um diseurso de apoio, to afastado da eritica literaria quanto da critica do direito.*? Tra- tados por meio de citagdes truncadas, utilizados sob forma de florilégios, 08 textos perdem enti o essencial de sua forga (seu estilo, seus efeitos de narracio, de contexto, de textura) -, dando a entender que se reduzem a seu “argumento” ou A sua “mensagem” ‘Muito mais fundamentalmente, hé de se esperar da literatura uma fancio de subversda eitca: a de Sécrates pondo seus juizes em acusagio, ade Meursault, o condenado inocente de LEtranger [O estrangeito] de Camus, a de Busiris, o jurisconsulto de retdrica desviada que defende e combate a mesma causa com uma idéntica auséncia de eserdpulos (La Guerre de Traie aura pas lien [A Guerra de Tréia nao acontecer’], de Giraudoux); sio 52. A. Tessier Lnaminges, Le Bent ca Pai, Descartes & Cie, 199, 9.265 (lea do “dio eer 0%. 53. Parr uma alte uminoaa do personagem de Buse das diosa fgums da douttna juris, ef. CChazal,"Amigone, Busts et Pot tie imagonssptealaes de a doctine” in Rem nae te oii, 20D, ps 26 FRANCO Ost incontiveis os personagens literitios que lembram 2o rei que ele esti nu © que sua can¢io soa falso. Ao “trapacear com a lingua”, como dizia R. Barthes, ao funcionar em suas dobras, intersticios e limites, a literatura dé ‘voz a0 outro recalcado: ela faz-se entio expresso do “pensamento do fora” (Foucault) — 0 do “homem do subsolo” evocado por Dostoievski.>* Enfim, em alguns casos, é uma fungio de conversa fundadora que ali- reratura assume, sem que o tenha necessariamente buscado: a narrativa faz-se “fundadora” — como a maior parte das que estudamos neste livto no apenas se dando a “pensar”, mas também a “valotizar” ¢ em seguida a “prescrever”. im a exploracio do avesso do cendtio juridico, que teri revelado suas fiegdes e suas consteugdes em zrompe-/eil, seus artificios e seus efeitos de cena, produzirf, no mesmo movimento, tanto um saber eritieo das construgées jusidicas quanto um comeso de refundagio destas com base num conhecimento ampliado dos poderes da linguagem, bem como dos ‘meandros da razao pritica. Ento poetas ¢ trigicos nao serio nem banidos da cidade nem arregimentados a servigo da ideologia oficial. As vezes dis- sonantes, outras vezes consonantes em rela¢io 4 norma, os personagens literirios prosseguiro seu caminho, um caminho que eruza o diteito obli- quamente (20 contririo do alinhamento servil ou do confronto negador), no cessando de lembrar a este 0 “discurso invisivel” que€ seu substrato.35 Essas primeiras conclusdes, que guiaram 2 escolha de nossos textos 0 tratamento que Ihes reservamos, merecem no entanto set aprofundadas, «¢, pata dizer tudo, ser fundadas filosoficamente. Sob os auspicios comuns de um pensamento do imaginério, nossas andlises mobilizam tanto uma fi- losofia da histéria quanto uma filosofia da obra literdria ¢ uma filosofia do ireito. Procuraremos agora apresentar seus rudimentos, sublinhando, 0 que € essencial para o nosso propésito, a profunda convergéncia delas. 34S. Ganwich, “Une pre lesion." 9d, p34, 35 Solve a jogo das disondnca comoninci of. Ch. Be, hp. 99 3 sobre o mitodo oblique (€0 comste de Perea, com ses ecude- explo, of. A Tener mings Bent de aio i 8 sobeco “siseuroinvisivel” que subjaran dco (ue sitar ear, e€.B, White, Hew Bay Es onthe Rist Pos te Lay, The Universi of Wsconsia Pres, 1985, p, 2. Un exempo dessa ob sevariobligus (oaierema externa encom aposiio do relator das Cartes pers de Montesqie, 27 PROLOGO ‘As paixGes que instituem as cidades No célebre primeiro stasimon [intermédio coral] de Antigona, S6fo~ cles pe na boca do coro estas palavras: “As paixdes que instituem as cida- des, o homem as ensinou a simesmo”> A profundidade da frase presta-se 3 confusio: apreciaremos primeiso a tensfio estabelecida entre “paixio” leis que instituem as cidades”; aqui as coisas sio ditas sem rodeio: na ori- gem das instituigdes politicas e dos cédigos, ha pulses, aspiragdes, todo tum jogo de paixdes. Por outro lado — segundo motivo de espanto — a edu- cago que transformou essas paixdes em leis civicas: “o homem as ensinow asi mesmo”. Como se pode ensinar a si mesmo? Essa forma reflexiva abre todo o dircito para a realidade paradowal da criagio: com o homem e sua capacidade imaginativa surge algo que no se reduz nem ao dado natural nem As evidéncias analiticas. E 0 que Séfocles assinala é que esse imaginé- tio é primeito e acima de tudo politico: ele forja as significagées coletivas ‘que vio assegurar 0 vinculo social. Toda a filosofia de L'Tnsttution imaginaive de la société [A instivuigiio imaginaria da sociedade] de C. Castoriadis est contida nesse trecho do pri- meito stasimon3? A extraordinaria diversificagao histérica das linguas, das culturas, dos costumes ¢ das leis testemunha de maneira notivel a justeza da frase de S6focles: na origem dessas criagdes cultutais, dessas significa Ges partilhadas, nfio hi nem determinismo naturalista em tileima instincia, ‘nem pura e simples tautologia légica-racional. No oposto dessas declina- Ges do “mesmo”, ha claramente o surgimento do “outro”, c esse diferente s6 pode provir de uma capacidade imaginativa. Assim como 0 ouro niio € naturalmente moda (mesmo se algumas qualidades predispunlam esse metal a exercer a fungao de equivalente universal), ou o individuo nao éna- turalmente ow logicamente cidadao, assim também a cidade escapa a toda determinidade desse género: é da imaginacio instituinte que ela procede, das grandes narrativas que o homem conta-se a si mesmo. 36 Versos 355-56: "tm ratios” Pars ums coment, fC, Castorais “Noves su quel royens de a pods in gue d psa Pais, Seu, 199, p34 5 {C.Castrids, Lion magna ls eit Pais, Seal, 1975, a 28 FRANGOWS Ost Para explicar isso, Castotiadis forja 0 conceito de “magma de signi- ficagdes”: um conjunto de significagdes imagindias sociais que conferem um sentido especifico aos dados da experiéncia; e ainda: as mais importan- tes dessas significagdes sio literalmente “constitutivas” das realidades que elas fazem advir a0 nomed-las: é 0 caso do pontifice, por exemplo, cuja existéncia ¢ o papel 36 se compreendem em relacio 4 instituigdo “Igreja”, ela propria referida a uma narrativa fundadora (Revelagao, Esorituras..) Assim que ganharn corpo, essas significaedes sociais imaginarias sio arras tadas num processo histdrico feito de momentos de estabilizacao e de cris- talizagio (formam entio o ponto de vista interno imanente ao mundo comum institufdo), seguidos de momentos de auto-alteragao (quando se fazem ouvir as torgas centrifugas dos imaginarios concorrentes). Esse processo de auto-alteragio é 0 movimento mesmo da historia, a respiracio dialética do instituinte do instituido. Assim como a lingua- gem é ao mesmo tempo cédigo comum e invengko permanente, assim também o magma de significagdes constitutive da Cidade. Para reconhecer ‘© justo valor desses magmas, niio se deve nem reduzi-los a “conjuntos” (no sentido de cédigos logicos obrigados a0 mesmo e a simples determinida- de: nesse caso, nada jamais se criatia) nem rejeité-los a titulo de “caos” de significagées ininteligiveis (nesse caso, jamais haveria ponto de vista co- ‘mum ¢ instituigio durivel). Reserva de significagdes em poténcia, o mag- por numerosas que sejam as significagdes determinadas que deles se obtiver, nenhuma esgotaté sua fe- cundidade.%8 Essa breve evocacio do pensamento de Castoriadis deveria ser-nos suficiente aqui para tecer a tela histériea, marcada pelo selo do imagindtio, em eujo fundo se operam as trocas da narrativa e do dircito, Pata nos con- vencermos, baste-nos evocar neste momento a pertinéncia das nogdes de “comunidade narrativa” ¢ de “narrativa fundadora” para a compreensio do direito contemporineo. Autores como M. Sandel ¢ Ch. Taylor mostraram bem, nesse as- ecto, 0 quanto uma comunidade politica esté ligada a um imaginario his- 38 Sobre mo 50, fC. Casto, Tein main dl neo icp. VU “Les sigiiaions imagimines soils” (457498); 1, “Tmaglaie et imagostion a erent Figo dpe oh ays 29 PROLOGO t6tico partilhado, ¢ o quanto sua identidade, sua meméria ¢ sua eapacidade de projeto sic devedoras da interpretacio do mundo produzida pelas nar- tativas findadoras. Desse ponto de vista, nunca seri demais sublinhar a importincia de alguns autores eandnicos, como W. Shakespeare por exern- plo, para a ctiagio da naco inglesa. 1. Ward nao hesita em escrever que uma pega como Henrique V possui uma importincia juridica maior que um tratado de direito constitucional: colocada de safda no micleo da constiu- ao natrativa da comunidade cultural, a obra determina toda uma tradigi0 de pensamento.Y Os juristas nfo escapam, portanto, a essa comunidade parrativa. Pelo contriio, € no interior dela, no meio de suas significacées, partilhadas, que eles opemm. As Constituigdes que eles redigem sio, desse ponto de vista, 0 relato da histéria da moralidade politica dessa comunida- de. “As Coastituigies, como exemplos de relatos que contam a histéria dos homens, dao um sentido a sua vida individual e coletiva”, escreve D. Rous- scau, que prossegue nestes termos: “As Constituigdes sio as mitologias das sociedades modernas”.” A hist6ria das grandes Declaracdes dos direitos do homem é muito reveladota a esse respcito: no Preimbulo de cada uma delas se achari um relato, ora muito desenvolvido, ora reduzido a algumas linhas, que evoca o que deverd fignrar doravante como 0 momento forte da comunidade (uma revolugio, uma declaracio de independéncia...) ou 0 que a liga a um passa- do imemorial fundador. Bis algumas. Bil! of Rights de 1689: relato circuns- tanciado da abdicagio de Jaime I ¢ da reuniio das assembléias em ‘Westminster, declaracio “como os antepassados o fizeram sempre em se- melhante caso para assegucar scus antigos direitos ¢ liberdades”; Declaragio de independéncia dos F:stadas Unidas (1776), longo relato politico que comeca nestes termos: “Quando no curso dos acontecimentos humanos torna-se necessario, para um povo, dissolver os lacos politicos que o ligaram a um outto...”; Declaragio dos direitos do bomen e do cidadzo (1789): “Os representan- tes do povo francés, constituidos em Assembléia nacional, considerando que a ignorincia, 0 esquecimento ou o desprezo dos ditcitos do homem sio as tinicas causas dos males piblicos e da corrup¢io dos governos...”; setae einai jig” in Kee rp dnd jriigaes, 199942, p 166 40 D.Rousseay, "Question de Contiton”it Le Nason Cease Mag on Fra de én Gan Pasi, Hance, 2, 96 30 a FRANCOIS OST Daclaragdo universal dos divitos do bomen (1948): “Considerando que 0 desco- ahecimento e 0 desprezo dos direitos do homem conduziram a atos de barbirie que revoltam a consciéncia da humanidade...” ‘A tradi¢io juridica anglo-americana sempre foi patticularmente sensivel a essa ligagio ainda atual 4 tradicao historical: a Constituigao nor- te-americana, sempte interpretada como uma heranga viva, continua a re- fletir a tradicio das deliberagdes em comum (0s famosos fwmall meetings que} fascinavam Tocqueville) ¢ é fonte ainda hoje de debates politico-just- dicos apaixonados.*? A técnica anglo-americana do julgamento em dilogo com os precedentes contribui também, de forma decisiva, para dar crédito A imagem de um dircito que se conste6i por sedimentacdes sucessivas ¢ fi- delidade a identidade narrativa do sistema juridico. Compreende-se melhor, nessas condigées, 0 sucesso da tese de R. Dworkin que apresenta o direito como uma pritica social argumentativa eujos protagonistas buscam fortalecer a intgrily — compreendida menos como consisténcia logica do que como coeréncia narrativa, fidelidade (cria- dora, porém) & histéria da moralidade politica da comunidade. E dentro, desse quadro que o fildsofo do dircito norte-americano péde propor sua célebre metafora que compara o trabalho dos juizes @ escrita de um “ro- mance em série’: cada caso sendo, para o magistrado que dele se ocupa, a ocasitio de escrever um novo capitulo da histéri juridica da nagio, sob a upla exigéncia do reapeito & integrity do dircito ca necessidade de particula- tizar da melhor maneira a soluco proposta.4? Pouco importa, aqui, que 2 imetéfora tenhha suscitado muitas objegdes ¢ criticas (as exigéncias de escrita dos juizes ¢ dos romancistas mio sio, por certo, simplesmente substitul- vis), 0 essencial esti noutra parte: Dworkin vé com exatidao quando apresenta os julzes como tutores da Constituigio, eapazes, pelo tratamento adequado dos precedentes, de vivificar com novos esforgos sua heranca 441 Nese sttido ef, Papudopoaos, “Pilrophicpoliique dels nai juridique. Lectures eres ana Asad Roald Derk Late cl, p 381814, Pre ergs ota eonatige itn, Qoebe,Y. Bis, 1998p. 19. 442 Ramet aga an feo de H. Aen, iad ian por M. Chesien, Pais, Gaia 1963. 48. R Devotion dita. por. Souci, Pais, PUP, 1994, p. 280 4 Sobesesas circunset, cf] Papadopoulos, Pais initia brave ii, oit pats 3 PROLOGO politica, agindo assim, a exemplo dos juizes federais, como os “contistas morais” do pais. Seria falso, no entanto, pensar que os jufzes norte-americanos tém ‘© monopélio dessa espécie de hermenéutica narrativa. Basta considerar a jurisprudéncia da Coste européia dos direitos do homem pata persuadir-se de que, nesse caso também, os juizes, inspirados no “patriménio comum de ideal e tradigdes politicas” de que fala o Preimbulo da Convencio, emi- tem sentengas que tomam a forma de “contos morais” ~ reelaboracio ima- gindria das significagdes sociais instituintes constitutivas da histéria da Europa democritica. Um dinico exemplo, entre dezenas de outros: 0 caso Refah Partisi (Partido da Prosperidade) contra a Tutquia.’® Nesse caso, 0 partido Retah, que fora 0 objeto de uma decisio de dissolugao pela Corte constitucional tatca, por representar um “centro de atividades contritio ao principio constitucional de laicidade do Estado”, solicitava da Corte euro- péia dos direitos do homem uma condenacio do Estado turco por violacio da liberdade de associagio (artigo 11). A Corte rejeitard 0 pedido, 20 cabo de uma aprofundada anilise da histéria turca ¢ mesmo européia, uma historia relida ¢ reinterpretada em relacio 20s principios democraticos de filosofia politica. Assim, ela observa em particular, “2 liberdade de pensa- mento, de consciéncia e de religido representa uma das bases de uma socie- dade democritica no sentido da Convengio. Ela figura, em sua dimensio religiosa, entre os elementos mais essenciais da identidade dos crentes e de sua concepeio de vida, mas é igualmente um bem precioso para os ateus, 0s céticos ¢ os indiferentes. O que esti em questio é 0 pluralismo, conquis- tado com esforgos a0 longo dos séculos, consubstancial a uma tal socieda- de Confirmando essa sentenga, a Grande Camara da Corte assinalari pot sua vez: “Nao é de todo improvavel que movimentos totalititios, orga- nizados sob a forma de partidos politicos, ponham fim 3 democracia, apés terem prosperado sob o regime democritico, Ha exemplos disso na histé- ria européia contemporines” 7 445. ectesn de 31 de uho de 2001, confiemad por una deiso da Assembla rn 13 de fever de 2003 46 Deeeta de 31 de uo de 200, § 8. 7 Deerta de 13 de Fevereiro de 2003, § 9. 32. FRANCO OST Como nfo ver na escrita, 20 mesmo tempo paciente ¢ criativa, des- sas sentengas (umas quarenta paginas de discussdes cerradas) uma ilustra- cio da arte de “ensinar a si mesmo as paixdes que insticuem as cidades”"? A obra de arte: contractiagio, desafio, aposta Nas anilises que precedem, uma filosofia implicita da literatura e, de mancira mais ampla, da obra de arte vinha sendo teagada. Chegou 0 mo- mento de exp zemos desempenhar, sempre sob os auspicios do imaginirio, entre o subs- trato da ago histérica, que acabamos de evocar, ¢ as produgdes juridicas. Ao opé-la ds obras juridicas, jé sugerimos vitios tragos essenciais da obra de arte; ela se caracteriza em primeito lugar por seu enigma, sua in- quictante ou maravilhosa estranheza: ela suspende nossas evidencias cot- dianas, coloca o dado & distincia, desfax nossas certezas, rompe com os ‘modos de expresso convencionados, Entregando-se a toda espécie de va- rages imaginativas, ela cria um efeito de deslocamento que tem a virtude de descerrar 0 olhar. Tudo se passa como se, por ela, o real desse & luz n0- vos possiveis que ele mantinha até entio enterrados em suas profundezas. Com cla, uma forma & carregada de significagio e esse surgimento 6 um evento Gnico. Fi 0 gesto mesmo da poiesis: um sentido que adeire forma.** na medida em que esse surgimento é um evento que nada impunha, ecm que esse sentido é original, o gesto poético & a expressfio mais segura de uma liberdade em ato.” Uma liberdade que se exerce num sentido que ad- quite forma, tal é em primeira anilise, a obra de arte Mas essa liberdade nfo se exerce num vacion, essa forma niio apare- ce num deserto. I aqui, seguindo a tese radical de G. Steiner, que propo- ‘mos a idéia de que a obra de arte é sempre, de algum modo, uma contra- ctiacio®: um desafio ao mundo herdado, & natureza circundante, 4 heranga tar e esclarecer sobretudo o papel de mediacao que lhe f- 45 G Steins, Raps Ler otc 8, por, de Pas Pai, Galimae, 1998, p25, 49 Van Ege, "Elements nefits delete” itt or cp. 50 G.Stcaer opp. 241 5 33 PROLOGO cultural, ¢ a aposta de que ainda est por ser dito algo de essencial que iti remodelar toda essa massa para fazer sair dela, enfim, um mundo novo. “Deus, esse outro artista”, dizia Picasso — traduzindo assim 3 sua maneiraa tivalidade, a raiva amotosa tio bem evocada pelo relato biblico do combate de Jacé ¢ do Anjo (Génsis 32, 22-32): a noite toda o artista se confronta com a fonte da prefiguragio, o modelo dos criadores — sairi claudicante desse combate, mas no exterminado: antes transformado, como 0 nome que o designa.3! Nao é precisamente essa luta amorosa que Baudelaire ex- prime no Confiter do artista? “Natureza, feticeira sem piedade, rival sem- pre vitoriosa, deixa-me! Cessa de tentar meus desejos ¢ meu orgulho! O es- tudo do belo é um duelo em que o artista grita de pavor com o ser venci- do.”52 Esse desafio @ criagao tem uma dimensio inegavelmente mefistofé- lica®; trata-se de uma pretensio de igualar-se ao Criador e de uma vontade resoluta de ter acesso a arvore do conhecit nento. Quantos autores niio tive- ram consciéncia, como Baudelaire ¢ Kafka, de passarem a escrever gracas a ‘um pacto feito com o diabo? Parece ser preciso passar por esse momento do negative — lembremo-nos da estética negativa de Th. Adorno, para quem a obra de arte é antes de tudo “resisténcia”** — para quea obra possa realmente dar a medida de suas potencialidades criativas. A obra de ficclo & um fiat, escreve G. Genette,* ecoando as palavras de A. Strindberg: “Imi- tar mais ou menos a natureza, e antes de tudo sua maneira de eriar”.* Mas isso esti longe de lancar 2 obra de arte no nillismo: sua rejeigo da criaclo niio é senio a condigio necessiria A liberagio de uma outra ctia- cio possivel, sua revogacao do efetivo é um preliidio A produgio de um acréscimo de realidade, algo como a regeneracio (no sentido proprio do termo) do dado. Por outro lado, ¢ esse tema vem matizar 0 aspecto de rup- cura radical proposto até aqui, a obra de arte € sempre, num certo aspecto, exercicio de meméria ou de renovacio: como se, 20 liberar uma forma nova, o artista revelasse 0 vestigio de um sentido, a lembranga de uma for- SL Bip. 2155 52 Ch Baudelaire, Oona plier, Pee, Seal, 1998 149. 53 L Van Lynde, “Cloner. op af 3238, SH T.W Adorn, Tide ed por M Jmence, Pai, Klincsee, 1989, p21 = 55 G. Genet, Fatowe dition Pai Seu, 1991p. 51. 586 Gado por L Van Byods, lement." of i p28 34 FRANCOIS Ost ma que adotmecia na meméria coletiva. Certamente nfo é por acaso que 0S gregos fizetam da Meméria 2 mie de todas as musas. Mas aqui antecipa- mos o tema da triplice mimesis (0 dado prefigura, o artista configura, 0 lei- corespectadot refigura) que tomaremos daqui a pouco emprestado a P. Ricoeur. Insistamos ainda: na obra de arte, um sentido adguire forma. Um sen- tido ainda virtual se faz real, uma imagem passa da poténcia ao ato. A narra tiva nao se contenta de evocar 0 mundo possivel que ela visa; de uma certa maneira, lhe da vida ¢ consisténcia, e pot meio dos recursos de sua matéria propria, alinguagem. Linguagem da qual o autor se reapropria c mobiliza a servico de seu projeto de ctiagio: o estilo, o fraseado, os tropos, tudo isso contribui paraa formagao de um “idioleto” pelo qual se anuncia a singulusi- dade da obra? Forma ¢ fundo indissociavelmente unidos cooperam entio pata a transformacio de todos os cédigos, a comegar pelo da linguagem, a fim de traduzit a marea distintiva da obra: sua irredutivel autonomia.** Au- tonomia paradoxal, no entanto, pois a obra, por original e subversiva que seja, comunica e tem como fundo uma capacidade comum de nomear as coisas que estio na origem de todo ato de linguagem. Enisso que a obra, se Gum desafio em relacio 20 dado, é também uma aposta no sentido e nain- tcligibilidade. ‘A verdadeira medida da radicalidade desse gesto poético pode ain- da ser notada na dupla inversio a que ele conduz: inversio do possivel edo seal, inversio do singular e do universal. Para o pensamento instrumental ¢ cognitivo dominante, o real goza de uma supremacia esmagadora: quando muito 0 possfvel é tolerado & margem do efetivo como uma eventualidade de importincia muito relativa, A obra de arte, como a natrativa de ficgio, testemunha, 20 contririo, que 0 proprio real nilo é senio uma modalidade do possivel? A obra da forma a um possivel, diziamos; vemos agora que esse possivel & que é precisamente a condiglo do real que surgiu em seu acontecimento singular, O conhecido nao é mais que uma regio localizada do pensivel, mesmo se ela é a mais bem balizada, e com isso temos o real despojado de sua inércia ontolégica, Compreende-se melhor, entio, esta 57 G.Seeinee ody p. 78s he Van yoda, "tlements.5 p27 $8 Sores actonomin da obra de are, e6 TW. Adon pp 2 $9 R.Celn Le Dinan ine de Pein iprane dee ite, nex publica, p12 35 ‘PROLOGO frase de Adorno: “O que seria preciso afinal inverter é a teoria da imitagio. Num sentido sublimado, a realidade deve imitat as obras de arte”. Talvez fosse mais oportuno ainda parar de raciocinar em termos de imitagao (da arte pela natureza, ou da natureza pela arte): trata-se antes de uma criago continua por caminhos milltiplos — concorréncia imaginaria de cesto modo, em que 0 dado (cultural, natural) sé se faz valer sob a condigio do posstvel 'A segunda inversio a que conduz essa filosofia da obra de arte di respeito ao particular ¢ ao universal. Também aqui os habitos de pensa- mento, fortemente marcados pelo fascinio do mesmo, levam a conceber 0 particular como uma entidade que s6 cxiste deixando-se subsumir sob 0 império do universal, como a espécie sob o géneto a0 qual pertenee. Deli- neia-se assim um universo bem-ordenado, marcado por uma logica linear e classificagées estritamente hicrarquizadas. Contra essa légica identitaria (reenconttamos 0 vocabultio de C. Castoriadis, que opde @ ldgica “identi- tiria-conjuntista”, propria dos “conjuntos” de significacGes codificadas, & légiea “imaginéria” dos “magmas” de significagGes sociais instituintes), 0 imaginario propde intsigas singulares que tém por efeito desarranjar (desa- fiar ainda) o universal Formal que gostaria de codificar todo o real. Po- der-se-ia dizer que a obra de arte altera 0 universal ¢, fazendo isso, convoca o julgamento estético que Kant chamava “reflexivo”, como se a figura sin- gular convocasse uma forma enriquecida, diversificada, de universal. A obra de arte certamente nio refuta a verdade estabelecida — faz algo me- hor: cla a multiplica infinitamente.1 Depois de termes insistido bastante no carter original da obra, sua originalidade, a ruptura que cla marca no curso das coisas, €0 momento de desenvolver um tema deixado até agora na sombra, a0 qual somente algu- mas alusdes foram feitas: 0 tema do enraizamento da obra no campo prati- co da a¢io (a montante da obra: mesmo sendo ruptura, ¢ preciso que cla o seja em relagao ao dado) e, ajusante, o tema da recepcio da obra por seus destinatatios (2 menos que se mergulhe no solipsismo estétil da “arte pela arte”). Tomaremos aqui a teoria da “triplice mimesi¢” de P. Ricoeur, que 60 TW, Adorno, op sp 174 G1 Barn uemadicusso aprofundada desea questo, cf 1. Van Hynde, “Hlemens." oh cp. 318 36 FRANGOIS OST ze-situa 0 momento propriamente criativo da obra (mimesis I: configura- ‘sio) sum arco hermenéutico que parte da estrutura pré-narrativa do cam- po pritico (mimesis ¥: prefigueacio) para chegar & retomada criativa da obra por seus Icitores-espectadores (mimesis Il: refiguracio). Com isso se manifestara mais claramente o papel mediador da obra (para nés, a narrativa de ficsa0) entre o campo historic do agir e as ques tes priticas (éticas, jutfdicas) que se colocam ao sujeito agente— sera assim preparado o terreno para uma teoria do “direito contado”, uma teoria do dicito articulada sobre a notmatividade subjacente a esse percurso herme- néutico, Minesis & pot mais inovadora que scja, a disposigio da intriga sem- pre se opera sobre o fundo de uma pré-compreensio partilhada do mundo da acio, Um Kéxico comum, uma gramética implicita traduzem essa estru- ‘ura que torna inteligivel a interagio humana, com seus jogos complexos de motivos, de volicdes, de contingéncias, de efeitos mais ou menos desejados ede interagdes maltiplas. Por sua vez, essa estrutura ji é 0 objeto, na expe- siéncia comum, de uma mediatizagio simbélica; nela, a acto aparece desde 0 inicio carregada de significagdes e provida de avalingdes que formam, elas prdptias, sistema: tal gesto é interpretado como um sito, que tem lugar num ritual, o qual por sua ver remete a um culto que, em iiltima instincia, reflete uma cultura — toda uma rede simbélica ¢ implicitamente mobilizada para interpretat 0 gesto mais anédino, Tudo se passa, portanto, como sea expe- rigncia humana estivesse desde o inicio repleta de significags «, diz Ricocur, como que 4 espera de narrativa.® Esses fragmentos de his- t6rias, essas intrigas potenciais que esperam apenas o contador para dar-Ihes forma ¢ sentido, estio jf orientados pelas mais varindas regras de significacio (0 cédigo simbélico) e mesmo por regras constitutivas que en- gendram priticas novas com valor convencional (doravante, por exemplo, tal pega deslocada “contaré como” um lance decisive no jogo de xadrez; doravante, tal palavra pronunciada equivalerd 4 promessa de reembolsar a ‘quantia emprestada...“\), Sem falar ainda de regra moral, a pritica suscita todo tipo de fegras que otientam c até mesmo estruturam o comportamen- s simbélicas 2B. Ric, Tempo ht I, Pts Sei (sa), 1983, p. 106 Tsp 14 4B. Rizcur, Saher mrad Pati, Seu, 1990, p 185 37 PRaLoGo to — um “rule governed bebariow?” [comportamento governado por regral (P. Winch) que, se nao fossem essas regras, mostrar-se-ia aleatério e desprovi- do de sentido. Em vez de um actimulo de episddios sem ligagdes e de peripécias contingentes, é uma estrutura simb6lica muito densa do campo pritico que se faz assim apreciar: um conjunto de regras de significagio, de avaliagées ¢ de notmas constitutivas que Hegel designava pelo nome de Sittlbseit (pré- via & teelaboracio reflexiva da Moralité), e que a antropologia cultural con- temporiinca estuda como a “normatividade imanente” & experiéncia, Pode-se portanto concluir com Ricocur: “Hi uma estrutura pré-narrativa da experiéncia”. Essa tese apresenta um triplice interesse pata 0 nosso estudo. Em primeiro lugar, tem o mérito de xeduzir o abismo que o pensamento analiti- co moderno, desde Hume, niio cessa de cavar entre 0 ser ¢ 0 dever ser, 0 fato © 0 ditcito: a0 contratio, o ser nos aparece sempre jé interpretado, car- segado de avaliacdes implicitas, orientado por regras que determinam seu modo de set. Depois, ainsisténcia numa “vida a espera de nartativa” anun- cia a tese que logo ixemos ver ¢ que faz do “contar” uma mediagio “entre descrever e prescrever”. Enfim, terceiro beneficio dessa conclusio: cla se alinha com nossa teoria do “direito contado”, para a qual a literatura niio é ‘mais vista como uma ornamentacio tanto gratuita quanto exterior, mas sim como o modo mais significativo de assumir essa estrtura pré-narrati- va da experiéncia comum ¢ suas avaliagbes implicitas. Entre deserever e prescrever, contar Isso conduz, diretamente & Méwesis IIL que nos transporta desta vez 20 lado do Ieitor ¢ da recepgio da obra: é 0 momento da refiguragio, que implica, 20 mesmo tempo, uma retomada criativa da obra e uma transfor- macio do leitor-espectador. E um desmentido, portanto, desta assergio de 65 P,Rieneus Tage no. cp . 38 8 FRANCOIS OST R. Posner autor norte-americano de um livro muito controvertido, Ditei- Woe literature: “A literatura nao tem influéncia sobre o leitor, ela nfo o trans- forma nem para o bem nem para o mal” ‘Assim como a experiéncia, diziamos, esti a espera de marrativa, as- sim também a narrativa, poder-se-ia afirmar agora, esta & espera de leitores. © mundo do texto, explica Ricoeur, esti como em suspenso, para além do escrito, em instancia de refiguracéo por seus Icitores.7 H.-G. Gadamer, por sua vez, observava: “A obra de arte é um jogo que s6 se oferua no aco- Thimento que Ihe reserva o espectador”.* Entse o mundo do texto € 0 mundo do leitor, artisea-se um confronto, as ¥ tes, ¢ tanto mais quanto 0 leitor no € uma tetra virgem, mas um ser jé en- ‘volvido em histérias, em busca de sua prdpria identidade narrativa. Certamente acontece, no romance modemno, por exemplo, de o au- tot mostrar-se particularmente esquivo em telagio ao Ieitor, procurando desorienté-lo, multiplicando as falsas pistas ¢ as aporias, privando-o de conclusio, até mesmo deixando-Ihe a tarefa de conduzie sozinho a intriga — ‘mas tudo isso, essas formas minimas do contar, fazem parte do jogo con- ‘vencional que se estabelece entre cles. Controntado a essa demanda de re-significagio, 0 leitor é chamado a desenvolver, como bem mostra G. Steiner, uma leitura responsivel — ‘uma Ieitura que responde 2o autor € que responde ao texto. Responsabil- dade adquire aqui um sentido muito rico. Steiner utiliza, com efeito, dois termos ingleses: de um lado, answerabliy, que poderia ser traduzido por “respondincia” e se xefere & capacidade psicol6gica c espritual de espon- deri expectativas do antor, de desempenhat o papel aque cle 0 convida, ¢, de outro lado, responsibility, entendido como a responsabilidade moral do leitor que se envolve pessoalmente ¢ de boa-fé no processo de execugio da obra que the assegura uma segunda vida." Uma tal Jeitura responsivel ¢ participante transforma 0 leitor: @ exemplo do anfitriio que livsemente acolhe um visitante que se convida, ele é levado a desenvolver uma ética do acolhiimento —“cortesia”, diz Steiner — da qual o termo “filologia” (amor es uma fusio de horizon- Brew tr, spor Ch Hive e Ph Jousy, Paris, PUP, 1996, 0.419. me Tom ri oot 2 BG Gane Vee GC Sete Risks anor por Sts, Pais, Sell, 1976, p94 wep lis 39 PROLOGO do /agos) conservou um trago.” Para além de toda espécie de pieguice, essa ‘emogio (essa mobilizacio do leitor) deve ser entendida como uma busca comum de sentido que, através da obra, tenta dizer-se. E como se a aposta constituida pela contracriagao attistica exigisse ser, se nfo validada, ao me- nos caucionada pelo leitor.7! Certamente essa caugio modificaré, por sua vez, 0 sentido que se arrisca a0 expor-se ~ mas essa alteragio, esses enri- quecimentos sucessivos, fazem parte da historia dos efeitos da prépria obra, Quanto ao leitor, ele & exposto, nessa operacio, ao risco de uma confianga as vezes decepcionada ¢, 20 mesmo tempo, é freqiientemente fortalecido pelo sentimento de confrontar-se, gragas 20 texto, 4 reminis- céncia de uma experiencia latente que estava a espera de natrativa.’? Sem elaborar aqui a teoria dos efeitos do texto sobre o leitor, itemos reter, com Ricoeur, estes dois efeitos principals: a aishesis¢ a catharsis A aisthesis &0 g0z0 cstético que acompanha a suspensio do cotidiano ea surpresa produ- zida pelo despaisamento, pelo desenraizamento da obra. Quanto & catharsis, tradicionalmente compreendida como purificagao (purgagio) das paixses, cla desemboca numa espécie de clatificagio, ou mesmo de ensinamento, obtida da experiéncia pritica e das perplexidades éticas a que o leitor foi confrontado. Certamente reconhecemos aqui a frase de S6focles que fala da “aprendizagem que o homem faz a si mesmo das paixdes que instituem as cidades”. Nesse ponto da andlise, compreende-se que a narrativa adquire uma dimensio ética: ela nfio apenas assume as avaliagdes subjacentes a es- trutura pré-normativa da experiéncia (seja denunciando suas imposturas, seja tentando clucidar suas ambigiiidades éticas), mas também exerce, como acabamos de ver, muitos efeitos priticos sobre o leitor, ele préprio sempre em busca do sentido de sua propria historia. Laboratétio do julga- mento ético cm situacao, a literatura submete nossas conviegdes a diversas, experiéncias de pensamento ¢ de vatiagées imaginativas. Alheia 2 todo dogma moralista, mas também a todo meio asséptico que estatia de algum 7 Bid, p 1805 Th Bids. 190. 72 Md, p. 215.217 TBP. Ricocur, Tope ist oh tp 319 6 40 FRANCOIS OST modo fora do bem ¢ do mal, a literatura cumpre uma funcio de descoberta e de experimentacio pratica: os mais vatiados tipos de roteiros, ¢ suas ava- liagdes correspondentes, so propostos ao julgamento pritico, Mas convém esclarecer: trata-se aqui de étiea e nao ainda de moral. Diferentemente da moral que se cristaliza em normas, imperativos eategd- ricos e sancdes, a ética (que opera a montante ¢ mais além da moral) deve ser compreendida como busca da vida boa e dos valores a ela associndos.”* Compreende-se, & luz dessa distingao, que a experiéncia literarin trabalha no nivel da discussto dos valores, ¢ nio no plano, mais formal e coercitivo, da aplicagao das normas morais. B exatamente nesse nivel mediano, entre 0 registro de fatos e gestos ¢ a prescrigio de regras, que a narrativa opera: “Entre deserever e prescrevet, contat”.”S Entre o ser ou 0 fato, ainda étono ou neutro, insignificante ou indi- ferente, ea norma ou o dever-ser, sobredeterminado de certeza e sobrecar- regado de imperatividade, desdobra-se o terreno infinito da praxis, atraves- sada por todo tipo de ambigdes éticas, de aspiragdes a valores, de preten- ses a0 diteito. Dominio ainda subdeterminado, por certo, conflituoso, ‘com cetteza, i espera de configuracio ~€ 0 dominio da teleologia ética, da tentativa de formulacio de ideais, do ajustamento progressive da visada dos valores. Nesse nivel, a ligacio entre nartativa e julgamento ético é mui- to profunda: é a narrativa, explica ainda Ricoeur, que fiz dessa visada étiea uma visio.% ‘Mais tarde, certamente, os valores assim entrevistos deveriio passat pelo crivo do julgamento propriamente moral e suas exigéncias universeli- antes, segundo a palavea de ordem da deontologia kantiana, Passado esse teste, o valor, que nesse meio tempo terd composto com valores tivais, as- sumiri a forma, ¢ eventualmente a san¢ao, da notma institulda. Mas 4 étita c a narrativa retomarao seu diteito a partit do momento em que, por sua ‘vez, essa norma (moral, juridiea) for confrontada 4 prova do julgamento moral em situacio. A pritica (como a dos tribunais) logo far re-problema- tizat as normas assim definidas: surgitio conflitos de dever, apresen- tar-se-to situagées inéditas que levario quem decide a reatar com a sabedo- Seca me at 1B 8. 78 hip 1805 16 Dip 134, noe 4 *PROLOGO ria pritica, ¢ as vezes com 0 trégico da agio: escolher nic entre o branco eo preto, mas entre o branco € 0 cinza ou, pior ainda, entre o cinza eo cinza, ‘uo cinza ¢ o preto.”” Na suspensio do julgamento normativo que se ob- serva nesses casos, pode-se esperar que se faga ouvir entio a vor do narra dor. O dircito contado © ponto de chegada do périplo que iniciamos sob os auspicios do imaginirio, e que nos conduziu sucessivamente das significagoes sociais instituintes de C. Castoriadis & wiplice mimesis de P. Ricocur, é 0 dominio do dircito. As andlises preeedentes prepararam a idéia de narratividade jucidi- ca, como categoria central de uma filosofia do direito conciliada com © imagindrio social instituinte. Ora, em vez de um dircito narrado, as faculda- des de direito continuam ocupadas apenas com o direito analisado. A teo- ria geral do dircito ainda hoje dominante permanece amplamente analitica, de inspiragio estato-legalista ¢ de método positivista. Nao € o objeto deste liveo propor uma teoria do direito contado (trata-se antes, ao estabelecer um didlogo com grandes obras literrias, de tecer o pano de fundo de uma tal teotia); 0 que nao impede, porém, de sugetit em algumas linhas as dife- rencas essenciais entre dircito analisado ¢ dircito contado. O direito analisado postula, com a forca de um dogma, a diferenca inredutivel do set ¢ do dever-ser; disso decorte, em particular, a distingao entre fato e direito (“o Supremo Tribunal de Justiga no conhece fato”, ‘acaba-se entio por afirmar). Contrariamente 4 essa tese, jé mostramos 0 quanto 0 fato é penetrado de significagdes mais ou menos valorizadas e, em sentido inverso, de que maneira, por meio de suas regras constitutivas, 0 dircito, como 0 jogo ou qualquer outra pritica convencional, é capaz de criar 0 “seu” fato, Com isso, a pritica juridica niio cessa de relativizar a dis- 7 id 184, 9018 42. FRANCO OST tinglo candnica do fato e do direito ~ especialmente no plano da validacio das regras? —, mas a teoria dominante ainda finge ignoré-lo, O direito positivo, como todo formalismo, esbarra no problema de seus pr6prios limites: o que garante a validade (juridica) da norma juridica superior? Em resposta a essa questo, H. Kelsen, lider do positivismo jurf- dico, pretende produzir uma “norma fundamental” 4 qual confere o estara- to de hipétese l6gico-transcendental: condicao de possibilidade da validade da ordem juridica inteira, Mais tarde ele reconhecer’, porém, que esta & uma ficcio; ¢, 2 despeito do estatuto exclusivamente formal que atsibui a ‘essa grundnorm, nbs mesmos pudemos mostrar sua estreita dependéncia a ‘uma teologia implicita.”? Portanto, a suposta “teosia pura” do diseito reve Jase tributiria, ela também, de uma grande narvativa fundadora. A tradigio moderna ¢ republicana do Estado de dircito no 0 € menos, cla que se ori- gina na fibula da saida do estado de natureza que o Ocidente narra a simes- mo desde o século XVII (Hobbes, Locke, Kant, Rousseau.) Um autor norte-americano, Robert Cover, propde 0 conceito de ‘tomas para explicar essa necesséria imbricacio das narragées e das prescri- «Bes: nossos corpos de regras estao cercados de narrativas, o conjunto for- mando “mundos de significagdes a habitar” que sio 20 mesmo tempo fontes de julgamentos, de compromisso, de debates e de avaliagdes.%0 “A cada constituigio corresponde uma epopéia’”, ele escreve, “a todo decilogo ‘uma eseritura.”®! A teoria analitica do direito entende apoiar-se, para aplicar a seguir suas normas, numa base de fatos empiticos, devidamente estabelecidos pot modos de prova fatuais. Em realidade, verifica-se que a empiria & qual se refere o ditcito é muito amplamente reconstruida pela rede de qualifica- g0es convencionais do direito eo jogo de suas regras constitutivas: mesmo se isso no é muito poético, observar-se-4, por exemplo, que, 20s olhos do cédigo civil, os pombos dos pombais no sio aves livres como 0 at, mas 8H fetaaguialusod wo uidimensoal da valde, F.Onte Mc van de Kerchove, De lpm a Pra se tie ketigae d dhut, Beasls, ubliations des FUSL, 2002, p 364 19 E Ose Mi van de Kerehov, "La retzences Dieu dante thiore du doit de Kelen, in Ow ne ia, Bewss,Pblenions des FUL, 1985, 285 5. 80 RM Cover,"Nemoserameton” de. Micha, Le Dad nmr Pad Rat M. Coe fers Patis arma, 201, p69. st ted, 7, 43. PROLOGO “iméveis por destinagio”. Como 0 jogo, o direito infunde seus possiveis no seio do real: 6 essa fungio de nomeacio que é propria do direito (muito antes que suas ances repressivas ¢ reguladoras). Nomeagio que € 20 mesmo tempo normatizagio ¢ institui¢fo no sentido de que, realmente aqui, “dizer é fazer”. O direito identifica as pessoas ¢ as coisas; literalmente cle as faz vie & existéncia juridica, nfo hesitando, por exemplo, em personi- ficar corpotagdes ou patriménios. A essas pessoas, o direito atribui papéis cestatutos 20s quais se associam direitos e deveres. Toda essa construgio & doravante convencional, ¢ a verdade que sc the atribui 6, ela propria, cons- trafda ou intesna A narrativa juridica: far-se-4 “como se” tudo isso fosse verdade, como diz muito bem 0 adigio “es indicate pro veritate habetur” (a coisa julgada € tida como verdadeira”). Compreende-se, nessas condigées, que as ficgdes que proliferam no direito (a extraterritorialidade das sedes diplomaticas, por exemplo), longe de serem uma excegio intrusa, uma aproximagio da qual seria melhor prescindir, exprimem com certeza a na- tureza real da discursividade jusidica como um todo? Frente a esses fatos “empiricos”, a teoria classica do diteito analisa- do estabelece as regras que ela estuda; essencialmente, notmas de conduta que declinam as diversas modalidades da imperatividade: obrigacio, per- missio, proibicao. Ja a teoria do direito contado, instruida da teoria dos atos de linguagem (Searle, Austin), sublinha antes a importincia das tegras constitutivas, que nao se limitam a regular comportamentos ja existentes (ccafegar 8 dircica, parar ao sinal vermelho), mas constituem literalmente 08 comportamentos por elas visados, do mesmo modo que as regras do jogo de xadrez, explica Searle, “criam, por assim dizer, a possibilidade mesma de jopar”.® Essas regras constitutivas sio, e € 0 ponto essencial, produtoras de instituigGes: elas habilitam os jogadores e definem seus poderes respec tivos, determinam os objetos em disputa, fixam os objetivos do jogo. Assim, J. Ray tem muita razio ao escrever que “o cédigo civil no é um conjunto de prescrigSes; é um conjunto de instituigdes que s6 comandam 0 imporem ao homem a figuragio intelectual dos esquemas aos quais deve 2 F.OxeM. vande Kerchows Le Dai sprees dj, Pai, POF, 1992p. 151-161 83 JR Seale Lesage El de ppc deg, ad. por H.Deucaed, Pars, Heomana, 1972p 7. 44 FRANGOWS OST se conformar sua atividade para ter uma eficécia juridica. Quando se exa- mina sem idéia preconcebida o texto do Cédigo, fica-se impressionado de ‘ver que a preocupacio do legislador é constantemente dizer 0 que pode ser feito. Isso porque, acreditamos, 2 lei geralmente nfo propée tanto delimitar aesfera de liberdade das partes quanto fixar as condighes de eficécia de sua agdo". O dircito, poder-sevia dizer, escreve roteiros que deixam aos atores uma grande parte de improvisacio. E preciso, porém, que 0s atores con- cordem em “entrar no jogo”: & precisamente a questio da forca petforma- tiva —mais do que imperativa — que se atribui as normas juridicas. Portals, principal redator do eédigo civil francés de 1804, nada ignorava do dina- mismo desse estilo performativo: “A palavra ‘ordenay’ que é utilizada para exprimir uma das atribuigdes da lei”, ele escrevia, “tem uma significagio ‘mais extensa do que se supde”. Com efeito, ordenar nao é apenas mandar, é primeiramente nomear ¢ classificar (“pdr em ordem”), é sobretudo per- formar: A maneia de um fiatjuridico, o dizer acarreta um fazer—um estado de coisas visado adquire uma forma social consistente. Essa pretensio ver- bal bem-sucedida, esse ato de “magia social” que se impée, pressupSe cer= tamente, como mostra P. Bourdieu, a reuniio de condigdes. sociais favoriveis®; que nos seja suficiente anotar aqui sua importincia para uma teoria do direito contado. Com base nas premissas que foram lembradas, no é surpreendente que a tcoria analitica do direito conceba o raciocinio juridico segundo um modo formal e dedutivo, do qual a coeréncia légica 6 0 ideal, ¢ 0 silogismo notmativo, 0 modelo ("a lei aplica-se ao fato”). Inversamente, a teoria do dircito contado, privilegiando o espirito do dircito, preocupa-se antes com a “coeténcia narrativa” do raciocinio, ¢ evidencia a importineia da intet- ptetacio dos textos ¢ da natureza argumentativa das discussdes jutidicas:jé foi lembrado a esse respeito a metifora dworkiniana do julgamento como “escrita de um romance em série”, Um autor como B. Jackson pode mos- ‘rar também que tanto 0 direito quanto o fato adquirem a forma de narrati- vas que convém comparar ¢ ajustar mais do que distinguir c inferir. Como 45 PROLOGO acontecia no direito antigo, em que as leis tinham o carter de mininatrati- vas, ecomo acontece hoje no direito jurisprudencial, 0 juridico tem por vo- cagio oferecer “modelos narratives” que o juiz confronta 20 relato construfdo a partir dos fatos da causa: fato e diteito, descri¢io ¢ avaliagio esto indissoluvelmente implicados a cada etapa do raciocinio compreen- dido assim como “narrativizagio da pragmética’”.* ‘A teotia dominante do diceito nio se caracteriza apenas por seu ca- riter analitico; é também profundamente matcada por uma concepgio instrumental ¢ utilitarista do racional. Inscreve-se na vasta corrente de ex- plicagio do social em termos de busca, pelos atores, de seus interesses bem compreendidos: o homo economicus da teoria econdmica, que busea sempre maximizar sua satisfaco, ou ainda o home politcas da teotia politica, susceti- vel de estabelecer o melhor equilibrio dos “bens primeitos” que cle busca (J. Rawis). Se pensarmos, a0 contririo, que © homem aio é sempre, nem necessariamente, racional neste sentido, mas que busca também satisfagdes simbélicas porque adere a “significacdes imagindrias instituintes”, um lu- gar devera ser dado a um modo complementat de interpretacio da socieda- de, do qual a teoria do dircito contado constitui um elemento. Com efeito, ahistéria e a experiéncia cotidiana estio repletas de exemplos de compor- tamentos itredutfveis a uma explicagio em termos de eficicia instrumental: como se compreenderia, por exemplo, que tanta gente accite “morzer pela pétria” ou por alguma causa privada ou piblica, nobre ou menos nobre? O jogo do dircito é mascado pelo menos tanto por comportamentos simbdli- cos quanto por cileulos esteatégicos: nos processos judiciais, 0s protago- nistas buscam ao menos tanto “coloeat-se em cena”, “dar-se em represen- taco", obter um reconhecimento simbélico, quanto auferir essa ov aquela vantagem pecunisria. O préprio politico, que assume hoje de bom grado a forma do Estado-espeticulo, nio escapa a regra importante, assim, que a teoria do dir 10 contado reconhega essa face simbélica do diteito, e especialmente o papel pedagégico que ele exer- ce ao proclamar seu apego a valores. J. B. White tem razio a0 sublinhar: 0 dircito “institui” também nesse sentido essencial; 20 propor “contramun- 8B Jackson LaF id Narn Colom, Merseyside, Deborah Chiles, 1989, p. 1.6 89-129. 46 FRANGOWs Ost dos” conformes aos valores que deseja impor, cle resiste & pressao dos fa~ tos, as influéncias da opinido ou as manobras do poder.” Assim, dando a protegio da Primcira Emenda da Constituicio (liberdade de expressio) @ ‘uma invectiva vulgar lancada por um protestatitio contra a guetta do Viet- 1, o Supremo Tribunal norte-americano, inspirado pela opiniio do juiz Harlan, resiste& trivializacao da experiéncia: transcendendo de certo modo ‘caso em questio, ele fixa 4 sociedade um ideal de liberdade mais elevado ¢ contribui para que os protagonistas, considerados dignos dele, evoluam nessa direcio. Ao mostrar assim que uma “outra histéria” é possivel, a de- cisio desempenha um papel ao mesmo tempo literirio e politico, conclu J. B. White." Muitos outros aspectos poderiam ainda diferenciar dircito analisa- do e diteito contado., Mencionaremos mais dois, que nos contentamos de evocar. No plano temporal, em primeiro lugar, a teoria analitica, mais preo- cupada com estruturas do que com histéria, é incapaz de pensar as transi- es jutidicas: um dado estado do sistema juridico sucede a um outré como as imagens de um filme que desfilam de mancira sincopada, as vezes com uma imobilizagio da imagem, sem que se explique a seqiiéncia geral da his- t6tia, Somente o direito contado, por integrara dimensao diacrénica do di- reito, tem condigées de restituir o roteiro da narrativa.®* Por fim, notaremos que o diveito analisado, que se aticula em tormo de pirimides de normas ¢ escalonamentos de poder, apreende com dificul- dade o caso particular e as pessoas individuais, enquanto 0 ponto de vista inverte-se, evidentemente, no caso do ditcito contado. Aqui, é a partir da historia singular que o diteito se reconstrdi, € 2 partic do caso particular que sua racionalidade é posta & prova. Clato, nenhuma teoria esté protegida contra objegdes ou derivas. Como 05 demais, 0 direito contado niio escapa 2 esses tiscos. Nio evocare~ ‘mos aqui as numerosas critieas suscitadas especialmente pelo movimento Law and Literature nos Estados Unidos, onde é mais desenvolvido ~muitas elas retomam a velha desconfianga platénica: redugio da seriedade politi- 57 J.B Whit, “Human digainyand the clin of meaning: Athesian tragic drama and supreme cov opi ons” Joma of Sgr Ct Hit 5 8 E.On, Ls Temps de ite Pai, OU Jab, 199. 47 PROLOGO ca ftivolidade estética, diluigéo da racionalidade formal nas contingéncias ateriais, extravio do discito na “n3o-realidade” da ficcio.® Hii dois riscos, no entanto, a0s quais 0 direito contado se expe € que devem ser avaliados em sua justa proporcio: o perigo de expanstio do subjetivismo ea ameaca de fechamento politico num comunitarismo auto- rititio ¢ intolerante. Hsses riscos siio reais, mas existem balizas que permi- tem conté-los. Contra o perigo de submersio pela emocio — que se expri- me em certas defesas de causa, em certas opinides judiciarias ou, mais grave ainda, mesmo em decisbes de justi¢a, e que sto fortemente valorizadas pela subcorrente do “legal storytelling" —, contra esse recutso nio critico i empa~ tia c esses excessos de paixZio cumpre fazer valer, nesse caso, os métitos do formalismo juridico, o estrito respeito dos procedimentos, @ absoluta ne- cessidade de conformar-se a argumentos “intersubjetivamente validos”: textos de autoridade reconhecida ¢ elementos de prova suscetiveis de dis- cussio, Certamente cada uma dessas balizas presta-se 4 interpretagio ¢ ava- liaglo, mas pretender dispensi-las em nome de uma empatia de primeiro grau é retirar toda eficdcia A mediacio juridica (que tem como uma de suas catacteristicas, precisamente, o distanciamento). © segundo perigo consistiria, para uma coletividade fortemente reunida em tomno das narrativas fundadoras que Ihe conferem identidade, memétia c projeto, em desenvolver atitudes regressivas de intolerinciae de rejeigio do outro, ou mesmo lancar-se em empreendimentos integristas: maquinagées nacionalistas, purificagdes étnicas e outras guetras santas. 5 ocasiao de lembrar que o momento ético-narrativo de intui¢io dos v (a perspectiva ética que visa essa ou aquela forma de vida boa) deve, num segundo momento, submeter-se a0 duplo teste da universalizacio (0 que vale para tie para mim pode ser transposto a um outro, a0 sorins abstrato, a uum terceito qualquer?) c da objetivagio sob a forma de reescrita do valor ético nos moldes da norma moral juridica." Entéo nos situaremos na perspectiva de um comunitatismo moderno ¢ abetto que faz dialogar a lores Sobre exe eas, ef especialmente. Papadopoulos, Pts rity dy p45 85 Miche, “Lemouvenent it tlre’ sux Has-Us, a sex publiado (Mian P. ah Sobrecst movinento,ef 1. Papadoponios,“Guetetpaiven dot etinéraat” in Naw insite despues, 999-2, p.181 5 91 PL Rieu, Sata come net oi 237 48 NGOS identidade narrativa, bascada em hist6rias coletivas e destinos singulates, ¢ a identidade argumentativa, apoiada sobre normas gerais e razSes partilha- veis. Sem renegar a tradi¢ao da qual se fala, nem diluir-se numa ilus6ria identidade universal, cada protagonista passa a dialogar com outras tradi- ‘Ges: delincia-se assim um espaco puiblico de discuss4o em que se accita a reconstrucio critica das prOprias narrativas € o reconhecimento do outro. Nessa “ética reconstrutiva”, como diz JM. Ferry’, cada um é levado a re~ escrever sua propria narrativa: & luz da exigéncia de reconhecimento feita pelo outro, as omissées da narragio primeira apatecem, assim como as dis- torcdes de interpretagio praticadas ¢ as censuras de argumentagao delas obtidas, Contrariamente as exiticas que As vezes lhe sio dirigidas, pensamos que é nessa dialética reconstrutiva das narrativas que se pode encontrar 0 melhor da corrente “dircito ¢ literatura”, de literatura ¢ dieito coma literatura (Os estudos commmente classificados sob o nome geral de “discito ¢ literatura” (nos Estados Unidos, Law and Literature) podem, em realidade, assumir formas bastante diversas que é possivel agrupar em trés correntes distintas.® Ao lado do direito da literatura, que estuda a mancira como a lei ca jurisprudéncia tratam os fendmenos de escrita literitia, distinguc-se 0 dircito como literatura, que aborda o discurso jutidico com os métodos da anilise literdria (¢a abordagem dominante nos Estados Unidos), ¢ por fim o diteito naliteratura, que éa perspectiva adotada no presente livro e que se debruga sobre a mancira como a literatura trata quest6es de justiga c de po- der subjacentes 4 ordem jutidica, 982 JoN ery 1bipe msn Pats Ce 1963 também F. Ost NL van de Kerchove, Dean ‘a not fp yp S33-534F On, Le Top dat p27 Ccspecidmeate A Juv, "ntadcion, in Lar ade, Coren lal sues, 198, vo 2, ited Sp. Freeman and A. Let, Oxford Univesity Pres 1989, p. ll 0 lo ~contovetida~ de R Posner Dr et dtr conte rs partes ue abrangem bem esis eens cocetes 1 Os temas ‘cos aerate O dns com forma eet: O dines repuamentgiod erat. 49 PROLOGO Notemos, de passagem, que essa diversidade de orientagdes pod apenas reforgar o interesse da perspectiva “direito ¢ literatura” para a for- magio dos juristas. Interesse técnico ¢ pritico do estudo do direito da lite- ratura, do qual se ocupa um niimero no negligenciavel de praticantes; interesse filosdfico da terceira perspectiva, que € um prolongamento itil dos cursos de anilise ctitica do dircito; interesse também do estudo do di- reito como literatura. Essa perspectiva, que consta no programa de quarenta por cento das faculdades de direito norte-americanas, entre clas algumas das mais prestigiosas, suscita uma série de expectativas. Um autor como R. Weisberg nao hesita em eserever que ela contribui diretamente para incul- car “competéncias primordiais de nossa disciplina”: a capacidade de escu- ta, a aptidio de fazer um discurso que leve em conta a sensibilidade dus ouvintes, 0 dom de convencer tendo em vista atingira meta que se fixou.* J.B. White, por sua vez, insiste aa aprendizagem da traducio: pelo con- Fronto que opera entre 0 relato dos queixosos ¢ 0 texto da lei, 0 juiz esta ‘numa situac2o compariivel 2 do leitor que, por sua leitura, atualiza um clis- sico: a tarefa é a0 mesmo tempo necessiria ¢ parcialmente aporética, de modo que o exercicio serve de iniciacio a fungio de “integracio” incrente a0 diteito: reconhecer a diversidade dos pontos de vista ao mesmo tempo em que se buscam convergéncias c campos de acordo.’s Do confronto dos futuros juristas com os métodos c os textos lite- ratios, espera-se portanto a aquisicio de competéncias técnicas (melhora- mento do estilo esctito ¢ oral, capacidade de escuta ¢ de didlogo) bem como a difusio das capacidades morais necessirias 3 profissio de jurista: a atengio mais fina dirigida 4 diversidade das situagSes e, em particular, dos mais marginalizados, o refinamento do senso de justica, a aquisigio de um sentido das responsabilidades politicas inerentes is fungSes de juiz e de ad~ vogado.% Outros autores sublinham ainda a utilidade desse estudo para a formacio da imaginacio dos juristas, qualidade muito raramente evocada: “Confronto meus estudantes A literatura para mostrar-Ihes o que os juristas niio podem ainda imaginar: as hist6rias que o diteito ainda precisa inventar, 94 R.Welserg “Herman Mobile, Vie els commarieaion bine roi eons sues appar ot dela tera” in Lite desis, 3°40, 200, p 397 a 95 J. BLWhite, Fn Espino Epes, ip 99-10 96 Ch especialmente L Wat, "Liners eeaginaitejuique, pp 3 50 FRancow Ost 08 dircitos ainda por descobrir ¢ o tratamento dos problemas que foram mostrados mas diante de cuja dor permanecemos sem voz", escreve J. Resnik.2” A mensagem parece produzir seus frutos, pois um juiz como Stephen G. Breyer nfo hesitard em declatar, por ocasifio de uma audiéncia pela comissio do Senado norte-americano prévia a sua nomeagio a0 Su- premo Tribunal, que o estudo da literatura continuava sendo uma das coi- sas mais citeis (beffu) 20 exercicio de suas responsabilidades de magistrado. O direito da literatura no representa, propriamente falando, um samo especifico do direito, mas sim uma abordagem transversal que abran- ge questiies de dircito privado ircito de autor e cppyright), de direito penal (coda a variedade de delitos que se podem cometer “por meio da impren- sa” injttias, caliinias, difamaces, ultraje aos costumes, declaragdes racis- tas, atentado ao chefe de Estado — em algumas legislagdes, ainda, a blasfémia), de dircito piblico (liberdade de expressio e censura), ¢ até mes- mo de dircito administrativo (regulamentagio dos programas escolares, das bibliotecas piblicas). Sem sequer evocar aqui os processos movidos no século XIX a Flores do male a Madame Bovary pot “atentado & moral péblica”? nos con- tentaremos em remeter o leitora uma obra recente que di uma idéia da va- riedade das questées que os tribunais franceses 86 vietam a conhecer durante a segunda metade do século XX.10 Citemos em particular, sem en- trarem pormenores, a revisfio do processo de Baudelaire em 1949 (a cfima- 2 criminal do Supremo Tribunal reconhecer que a decisio de 1857 “revelou-se arbitréria € no foi ratificada nem pela opinio piblica nem pelo julgamento dos letrados” — reconhecimento bastante excepcional da perdnéncia do julgamento Ceito pelo publico), as disputas editorials que ‘opuseram Montherlant a seu editor Grasset, numerosos casos de embargo 97 J. Resnik, "Changing herp, Law and Litera Symposia, in Caos Stade i ol trate, ‘ol 8, 1986, 950, 98 Chad por M Nusa, Pfu Te ir gar and Poi, Boston, Nass, Bescon Pres, 1995, p78 99 Aspens pips do process det Fld pits 6 requsitria do pomoror Paar © dfs dG. Chs st Ang, peso se eacontadas em Ch, Baud, Ls Flr dal por]. Deb ‘bro, Pais, Magar, 1986p 638 100. 8. Goudemare eE Pierat, Eio rps, Pais, éo Scheer, 208 51 PROLOGO ede censura de textos que denunciavam a tortura por ocasiio da guetra da “Argélia (ptetenso atentado & “seguranga do Estado”), os contenciosos de abuso do diteito de citagio (o jornalista André Passeton citado em juizo pelos herdeiros do general de Gaulle), 2 saga judiciéria relativa a0 “prego ‘inico” do livro (Jei Lang), as acBes judiciais intentadas contra os autores de Suicide, mode d'emploi Suicidio, modo de usar] (sera adotada inclusive uma lei que ocasionari a interdicio da segunda edicio do livro), as disputas entre herdeitos (espirituais e/ou materiais) de J. Lacan, R. Barthes eM, Foucault ‘a propésito da edicio de seus escritos péstumos, as acusacées de plagio fei- tas a Régine Desforges (La Bigolette blew {A bicicleta azul) pela sociedade detentora dos direitos de Autent en enporte le vent [O vento leva tudo] de Margaret Mitchell. Quanto a0 direito como literatura, que supde 2 aplicagio ao dircito dos métodos da critica literatia, ele constitui na verdade um campo de estu- do imenso, do qual nao existe ainda, em lingua francesa, uma sintese real Ora sio sublinhados os parentescos que existem entre os métodos de inter- pretacdo das Ieis e dos textos literirios (a exegese juridica do século XIX, por exemplo, devia muito aos métodos filolégicos que prevaleciam na mesma época nos dominios literirio ¢ teolégico™), ora é trazida & luz a contribuicao do estilo jusidico, suas raras felicidades de escrita, 20 éxito de sua magia social, ao sucesso dos performativos que ele tenta impor.!@ Mas esses estudos permanecem ainda parciais; nos Estados Unidos, em troca, certos autores, ampliando o olhar, conseguiram propor uma concepgio li- teritia do dircito como um todo: pensamos especialmente em Poetic Justice de Marthe Nussbaum ¢ em The Legal Imagination de James Boyd White.) Essas obras apclam, basicamente, & imaginacio dos juristas: a exemplo de um Dickens, de um Tolstoi ou de um Zola, um juiz deve ser capaz de daz voz aos sem-voz, de arrancar 0s sujeitos do anonimato ¢ dos clichés redu- tores nos quais o discurso dominante os encerra. Apenas nessa condi¢io 101 B.Fiydinan, seg pillage: wneae dherméncigu compact’ in Ratna i rigs, 1 94-33, p 59-85 cf rambém D. Nainguenens, "Literpetaion des estes liners et des tex jutiques”, in Iterative drt sola deo de P.Amscek, Bros, Brulang, 1995,p. 61 12 A propdsio da emereencia da con do abuso do dco cf. P. Marien, “Thémis et se plumes. Reflex es su erie juin”, Nemes inne on dit Hoan 2 Fram Rigs, Bx, Basha, 1098, p35 103 J.B. Whi, Le Lee Imation, Chicago, Uaiversy of Chicago Press, 1985, poder honrar a exigéncia de igualdade que se espera dele." O jurista é um “artista da linguagem”, afirma J. B. White; sabendo de seus meandros pela pritica dos textos litersrios, ele & consciente do carter construtivo ficticio das interpretagdes que propde: uma opinio judiciéria, uma defesa de causa, uma sentenga so sempre construgies de possivcis juridicos que envolvem a responsabilidade de seus autores. Longe de deduzir-se de pre~ missas formals ¢ a prion, o diceito deve ser imaginado no meio mesmo das selagGes de interlocucao e das demandas de reconhecimento que formam a trama do tecido social Nao € nosso propésito apresentar mais adiante essa perspectiva, nem discuti-asit6 para isso seria preciso um livro inteiro. Vastos canteiros de obra abrem-se aqui aos pesquisadores curopeus. Hi um, no entanto, que gostariamos de mencionar em poucas linhas, pois ji sio numerosos 0s materiais de scu emprego. Caberia realizar uma histéria da escrita juridica; referimo-nosa uma histéria das manciras plas quais o direito se comunica, se fala, se escreve, se narra; no é vedado imaginar quantos patalelos inte~ ressantes poderiam ser estabelecidos, tendo ao fundo a historia do imagi- nario social, com a evolugio dos estilos ¢ dos géneros literitios. Ver-se- iam, por exemplo, as formas primitivas da oralidade juridica, sua tradugio «em aciigios, ditados e outros provérbios lembrados ou proclamados no tri- bunal.!"” Ainda hoje, o adégio desempenha um papel que consiste em abrir caminho 4 solugio: “O adagio fala a imaginagio, escteve G. Cornu: nesse papel de aperitivo, ele incita, convida, abre, mostra o caminho” 8 Seria lembrada a seguir, na companhia de Vico," a origem comum do direito ¢ da poesia; jé evocamos, a esse respeito, os Preimbulos canta- 104M Nussbaum, Pein ity p79 (Pca Je. 10S. J.B. White, Fo eatin, oh p68 1G. Paracas lsutet,ofTelser mings, Le Bon it oh ip 2892, Oautreaponts ote de ‘iodo isi ocular pal ain com da eran ingen. Lake en nin parce iso co ms pate pave essa mantendo reps no espinado o que dingueo cio da ere pe “Asim ov aesado") WO Cay poresarpi, 3 Ryeemane ¢C, Nwlansebi Baws, Dram ah. Pees ier Kony 2 Hlaman, 1992. Os atone euniam nko menos ue 1120 poverine judo, cleador no ‘eConge begs (1954-1960, BG Gon, Lit ig, Pasi Monch, 1990p 37 25) ad ekgojoe, Bat, Gina, 193, Lira I,"Doe elemento, 1S, ‘PROLOGO dos de Plato; evocar-se-iam também as leis versificadas de Licurgo ¢ de Dricon; seria lembrado que a lei somana das XII Tabuas se exprimia, basi- camente, em versos adénios, um estilo que Cicero imitou na redagio de suas ptoprias Leis." Para os romanos das origens, 0 carmen (nossa poesia) & ao mesmo tempo a formula magica, 0 feitigo, o encantamento, 0 oréculo € a prece, mas também a lei ou, mais exatamente, a formula da lei”.1" Essa origem poética do direito jamais sera cotalmente esquecida: em 1607, Loisel, em suas Institules coutumiéres [Institatas consuetudindtias], recolhe ‘no menos que 908 miximas cuja memorizacio e a eficicia repousam so- bre a rima, a aliteragao, a assonincia, como para sugetit a proximidade do justo ¢ do belo. No século XIX, 0s itmios Grimm voltaram a dar vida 2 esse movimento na Alemanha ao defenderem, contra o racionalismo uni- ‘versalizante dos cédigos, um diteito consuctudinitio e popular do qual os adagios teriam conservado o segredo, Nao & surpreendente, nessas condi- ‘GOes, que Ihes devamos a0 mesmo tempo contos infantis, uma grantatica alema e costumes jurfdicos."? ‘ssa historia da literatura juridica reconheceria também o valor do estilo das decisdes de justiga da tradigio do Connon Law. um estilo muito li- vere, deliberadamente pessoal, ainda préximo da oralidade, espécie de con- vversa¢io juridica entre o juiz, os demandantes a tradi¢io dos precedentes. Ela comportaria também um importante capitulo dedicado a época clissica, durante a qual se observa uma forte convergéncia entre estilo juri- dico € escrita literitia. De um lado, vemos as defesas de causa ¢ 08 factums judicidrios adotarem uma forma naturalmente litetitia ¢ serem editados com destino 20 piblico dos “homens de bem”, enquanto que, invessamen- te, a literatura adota em muitos dominios a forma da casuistica, na qual a exposigio do caso, misturando relato e argumentagio, destina-se a levar & descoberta ¢ @ aplicacao da lei que se supde convir a essa intriga.1" Nuaca, como na época clissica, foi tio marcada 2 proximidade dos homens de le- 110 C.Le Meu, "Litéetur ot it, Quelqueréfeione” in Anite dpi dai 6, 2002p 341 111 Acliing"La poet dans le ein reine dpi de dei of 40,195, p 136 112 Mihelet tener inspira om Grimm, redigrum enaio de Simba dodo espace de roman ‘ee gpeo do dre (“Ones d doit raga erees dans es symbols et formas du doi uve {elvan Ou api, Pas, Phmmaton 3,9. 565) Mas aobra anactnixe reaconii, permane- ceed vem fu. 113. Sole eo iso, Ch Bit, Di iti ue sn Rigi op. yp CD FRaNcons Ost tras edos homens de toga ~ uns e outros desenvolvendo, aliés, carreitas ge- ralmente paralelas. Mas, com a modemidade, a escrita do diteito haveria ainda de se ttansformar: sob a influéncia dos modelos racionalistas do direito natural e no contexto do fortalecimento das soberanias de Estado, 0 direito concen- tra-se agora em textos esctitos. O fendmeno culmina no século XIX com 0 sucesso das codificagdes que traduzem 0 ideal de unidade e de coeréncia Logica da ordem juridica. Uma ordem relacionada a um “legislador racio- nal”, centro tinico ¢ onipotente da perspectiva, a exemplo do “nanador onisciente” dos grandes romances realistas da mesma época." Suposta- mente situado fora da agio, mas controlando-a inteiramente, esse autor-le- gislador assume, segundo a expressio de Flaubert, “o ponto de vista de Deus” ~ Rousseau, ali, jé havia escrito: “Seriam precisos deuses para dar leis aos homens”. No século XX, porém, essa unidade se fragmenta: as leis especiais se multiplicam, desbaratando a coeréneia dos cédigos; por outro lado, 08 jnizes se fortalecem, ¢ Holmes, juiz no Supremo Tribunal dos Estados Uni- dos ¢ lider do movimento que sera chamado o “realismo americano”, sus- tentari que o dircito niio & senfio a profecia daquilo que os tribunais deciditio. As hierarquias tradicionais so assim invertidas, do legislador 20 jz, do autor ao Ieitor. No romance, do mesmo modo, sfio abolidas a f- gura do narrador onisciente, a unicidade de perspectiva ¢ a linearidade da narragio. As perspectivas confundem-se e multiplicam-se, a lincaridade temporal da lugat, na técnica dos “fluxos de consciéncia”, 20 emaranhado do presente, do passado e do futuro. O préprio sujeito perde sua centrali- dade © sua soberania, “torna-se um fluxo de estados de alma em Proust ¢ Joyce, um ‘outro’ com Rimbaud, um ‘homem sem qualidades’ em Mu sil? Essas tendéncias no cessato de se acentuar ao longo do século ‘XX, Progressivamente, o sistema juridico abandonari a forma hietarquiza- da da piramide para adotar a forma de rede. Iniimeros autores interagem, suas esctitas se enredam, se interrompem, sc cortigem: o legislador é pelo 114M. Vogtion, "Detauther so thapsode’ ou le zetour de orl dan e dct cantesporain” in Rowe teins teins, 208-5, 9695, 1S ta ad 96. 55 PROLOGO. menos tanto leitor-comentador de outros textos quanto autor dos seus proprios, ¢ 0s juizes contribuem oficialmente para a reescrita das leis. Nes sas condic6es, ninguém mais ditige o desenrolar da intriga, o final da hist6 tia nunca € conhecido € os personagens sc emancipam de seus papéis. Como nos romances em que 0 proprio leitor é 0 heréi, algumas legislagSes recentes deixam a seus destinatirios 0 cuidado de definirem eles préprios seu papel e seu estatuto.1"6 ‘Alguns puderam ver nessa natrativa contemporinea do diteito um retorno da oralidade, marcado especialmente pela “oralizagiio” da escrita juridica: estilo frouxo, expeditivo, muito fortemente contextualizado ¢ a todo momento revisado.!"” Pode-se assim reconhecer nessas evolugdes a influéncia da escrita informatica e do tratamento de texto: uma matéria ju- tidica volitl e efemera, escrita por um mimero indefinido de mios, a todo ‘momento atualizada e procedendo por remissdes sistematicas ao interior da tela da rede juridica™® Quer se trate de ler 0 dizeito como um estoque de informagées pro- duzidas por um mimero indeterminado de “jurinautas” sempre 07 line, ou ento como um conjunto de pequenas narrativas costuradas nas extremi- dades por juristas “rapsodos’”™, percebe-se que 0 direito permanece deve- dor de uma anilise feita nos termos de uma critica da escrita, ea perspecti- va do “direito como literatura” tem ainda belos dias pela frente. O direivo ne li Mostear que a literatura contribui diretamente para a formulagioea clucidagao das principais questdes relativas a justica, a lei e a0 poder, tal éa posta do presente livro. Ele se inscreve, portanto, na terceira perspectiva 116 J.-M. Ceci “Ua systtme jig dont vous se os.Smegonce da sue de ein Rem te ipa tee jigs, 200-48, 1 LT MWe ep. 103 18 F.On,"LarGguabon:desonoges et des ages.” jo abe ane mien peice a resin de. Jdoce F. Ot, Bruce, Pubcon des PSL, 1995p. 7s 119 MVoght ap. 1135 36 Francois Ost evocada: 0 dircito na literatura. Aqui também, no entanto, diversas pistas, poderiam ser seguidas. Pensamos primeiro no género enciclopédico da antologia. Sob esse aspecto, convém saudat a obra pioneira de Philippe Malautic que, pela primeira vez no mundo franeéfono, realizou um baliza- mento do terreno, em relagio & literatura em lingua francesa essencialmen- te Ywes Guchet dedicou-se a0 mesmo exercicio no que concere as relagdes entre literatura ¢ pensamento politico."! Pode-se também privile- ‘iar uma época: foi o que fez Christian Biet, que estuda as telagdes do direi- toe da literatura no Antigo Regime,!® partindo da idéia de que a cxitica literitia tem tudo a ganhar com o estudo do pensamento juridico, que constitui com freqiiéncia uma das representagées do mundo mais expli- citas ¢ determinantes da época em questo. Pode-se igualmente — como ‘Thierry Pech 20 estudat 0 crime na época da Contra-Reforma — privilegiar 0 mesmo tempo um tema e uma época.' Muitos sio ainda os autores que preferem concentrar-se numa instituigio juridica, num autor ou até mesmo ‘numa obra.!2 Quanto a nés, escolhemos privilegiar um certo mémero de narrati- ‘vas fundadoras — geralmente mitos reescritos em épocas ulteriores — que so outras tantas “entradas” ou fontes de dircito: no comego era alei (Moi- sé3.€ 0 Sinai), no comeco era 0 juiz. (4s Enménides), no comego era a minha ‘consciéncia (Antigona), no comeco era o meu direito (tema ilustrado por duas narrativas: Rabinsou Crusoé ¢ Fausto) — eno fim? (O Proceso e diversos textos juridicos de Kafka, que sio também uma entrada no direito, num sentido muito particular que veremos,) Cada um desses textos (¢ suas mill- tiplas reescritas) constituem 4 sua mancira “narrativas de instituicio”, se~ gundo a expresso de C. Castoriadis: monumentos literdrios que criam magmas de significagdes sociais instituintes. Verdadeiras matrizes cultu- sais, essas narrativas engendram mundos novos, no sentido do names de M. Ph, Malas, Di lita. Ueto, ati, Cs, 1997. 21 Y, Gace, ata peli, Pati, A. Can, 200 (Ch Bes po Pea un etd do romance smericane © exopea ans seul Xt 30 A Roi Pron, Le Diets pole ido, Lil, Peses universes du Stetson, 1998 “Th Pech, Coatrb oe dit aae wk Cnt Rha iin gig” (1589-64), Pais cn commun nat Ethos Michal, drs por A. Garapon eL. Eagel, como ii sasuces paces, apecalmeme un Balrac(P-F. Moan) um Rabel (1 i ctado (DS 87 OO PROLOG Cover, univetsos de nacragies ¢ de prescrigdes constitutivos de uma civili- zacio juridica. F claro, num plano estritamente analitico, que cada ordem juridica comporta essas diferentes entradas: 0 legislador, 0 juiz,a vontade dos parti- cculates, 0s ptineipios juridicos superiores da consciéncia constituem outtas tantas “fontes” do diteito. Mas, na histéria efetiva, essas fontes sio sempre desigualmente distribuidas, ¢ a repartigio desses poderes transforma-se: cada civilizacio juridica € marcada precisamente por um tipo de acentua- fo especifica, ¢ pensamos que a contribuicio dos grandes textos que estu- damos é determinante nessas transformagdes do olhar. Comprecnde-se que, assim esclatecido, nosso propésito no deve se embaracar com nenhuma preocupagio de exaustividade: outros textos poderiam ter sido escolhidos, outras perspectivas privilegiadas. De resto, nds mesmos consideramos dar prosseguimento a este li- ‘vro; poderia set estudada, por exemplo, a face “desinstituinte” do direito depois de ter-se examinado sua vertente instituinte: 0 comico € 0 grotes- co, aparentemente tio distantes da seriedade jutidica, teriam af um lugar decisivo, Poder cas de atualidade a partir de textos literatios: a lei penal deve sempre ser aplicada (Medida por medida de Shakespeare)? Que destino dar ao erimino- so (Dostoievski)? Ao docate mental (Musil)? © que pensar da anistia (O hitor de B, Schlink)? Que desconto dar aos efeitos perversos das leis mais bem intencionadas (L# Contrat de mariage [O contrato de casamento] Lilnterdidtion [A interdigio] de Balzac)? c-ia também examinar toda uma série de questdes justdi- © canteiro de obras, como se percebe, também aqui € imenso. Alias, este livto pode set lido, ele proprio, de trés manciras diferentes, pelo menos. Ao lado da leitura exaustiva ¢ linear que conta evidentemente com 0s favotes do autor, é possivel também ler separadamente cada uma das, narrativas que 0 compdem. Elas foram concebidas como pequenas mono- grafias aut6nomas, cada uma representando um mundo juticlico em simes- mo. Pareceu-nos importante dar-lhes uma certa amplitude por respeito a propria escrita lterdria, que em nenhum momento quisemos reduzir a sim- ples ilustracdo de uma teoria juridica ou de uma tese filosdfica. Enfim, uma terecita forma de leitura poderia consistic em encadear, apés a presente in- troducio, as “homenagens” que introduzem as cinco partes deste livro: adotamos ali uma escrita diferente do corpo do texto, mais informativa ¢ 58 FRANCO Ost mais enciclopédica — com alusdes, em particular, a muitos outros autores, como Shakespeare, Kleist, Melville, Balzac, Dickens... De resto, nao duvi- damos de que © leitor saber tracar, para seu préprio proveito, percursos originais ¢ inéditos no material que Ihe apresentamos. Correrfamos o risco de estender desmedidamente esta introducio apresentando agora as partes constitutivas do livro — 0 que seta 0 objeto, especialmente, das “homenagens” introdutérias. Baste-nos dizer que, em cada caso, procuramos mostrar a contribuicio da obra a0 mesmo tempo 3 “subversio exitica” do direito ¢ a “conversio fundadora” de que falamos mais acima, Em cada caso também evidenciamos os deslocamentos decisi- ‘vos que a natrativa imprime as questées convencionadas, ¢ as respostas inéditas que o imaginario literério contribui para Ihes dar. O jurista que desembarca em terra liteniria assemelha-se a Colom- bo pondo os pés no novo mundo — ignorante da natureza exata de sua des- coberta: ilha ou continente? india ou América? Muitas outras surpresas ainda 0 esporam, ¢ ele certamente ser4 obrigado a modificar mais de uma ‘vez 0 tracado dos mapas que tracou presuntivamente. Pensava ele partir em busca dos fundamentos do direito? Se os encontrou seguramente do Jado da lei, do juiz.¢ da consciéncia, no faltaram abismos abrindo-se a seus pés¢ recolocando a questio do lado do crime, da impostura, da violéncia e de uma Ici muito arcaica de necessidade. Pensava descobrit 0 segredo das leis em seu contetido? Ei-lo temetido de volta a suas condicGes de recep- fo: a liberdade no deserto (Exod), 0 aides (respeito) na cidade (Protégoras). Acreditava celebrar o triunfo da justiga sobre a vinganca? Ele percebe que a questiio passa pelos desvios da linguagem ¢ a emergéncia da autonomia pessoal Cam Plato, que sabia o papel do imaginario politico, mas contra Pla- to, que queria conduzic A ordem os poetas, este livro alimenta uma grande ambicio em relagio ao direito: ao fazé-lo reatar com as raizes da cultura, a0 mergulhé-lo nos recursos do imaginitio, ele quer fazé-lo contribuir nova- mente i instituigio da sociedade. A aposta deste livro é devolver a0 diteito uma dimensao cultural que cle esqueceu ou recaleou, ¢, lembrando-o assim de sua vocacio, restituir-lhe um papel social diferente do de esctivio, dele- ou policial. A “cultura”... aquilo que resta quando se esqueceu tudo da tica, do poder, e € preciso inventé-los de novo... Resta-me por fim agradecer a todos aqueles que acompanharam a génese deste livro e o tornaram possivel. A Editora Odile Jacob, que prati ca, com charme ¢ autoridade, a arte sempre delicada da maiéutica dos auto- ses. A minha universidade, as Faculdades Universitarias Saint-Louis, que aceitou minha proposta de criago de um curso opcional interdisciplinat de “Dircito c literatura”, que tenho o prazer de conduzir. Os estudantes que seguem esse curso, e que me ajudaram a escrevé-lo bem mais do que imagi- nam, merecem igualmente minha gratidio, O mesmo em relacio is autori- dades do Fundo Nacional da Pesquisa Cientifica (Bélgica) que sustenta as, atividades do grupo de contato “Dietito ¢ literatura”, que pude ctiar. Agea- decimentos também & Faculdade de Dircito de Gencbra ¢ 3 Academia Eu- ropéia de Teoria do Dircito, nas quais tive a oportunidade de fazer seminitios sobre diversos temas deste livro. Uma mencio igualmente & “Universidade de Todos os Saberes” (Patis), que me solicitou, em 1° de no- vembro de 2002, uma conferéncia, amplamente divulgada por diferentes canais, sobre a perspectiva “Dircito e literatura”. Duas pessoas merecem enfim minha gratidio muito particular. Mi- nha filha Isabelle, romanista e fil6sofa que, a0 longo de numerosas conver- ‘sas, me abriu muitas pistas, especialmente do lado do cémico. Meu colega amigo Laurent Van Eynde, filésofo apaixonado por literatura, que eriow nas Faculdades Universitésias Saint-Louis um seminario que jé conta com um reconhecimento internacional: 0 Seminétio Interdisciplinar de Pesqui- sas Literirias (SIRL). A interdisciplinaridade que tento praticar neste livro seré sempre uma arte dificil: posso dizer, no que me concerne, que minba iniciagio A compreensio do literétio deve o essencial de suas conquistas aos trabalhos do SIRL ¢ a seu infatigivel animador.

You might also like