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FILOSOFIA E TEORIA POLITICA scene JINN INDICE Prefcio nnn Diretrizes do Culturalismo .... Espago, Tempo e Cultura — O A Priori Cultural. Euclides da Cunha, 0 Brasil e a Filosofia Rumos da Filosofia Luso-Brasileira A Filosofia Vista de Portugal e do Bras Posigdo de Vicente Ferreira da Silva Filho no IBF Paulo Carneiro, um Positivista Integral ...s..0 O Positivismo na Cultura Brasileira ...scsssssssssseensseees Da Experiéncia Juridica a Filosofia . Problemdtica da Justiga i Globalizagato e Estado Nacional. Autonomia e Separatismo Os Limites Legitimos da Legalidade 0 Mundo Seré Outro apés 11 de Setembro? A Falta que Faz a Reforma Polttica ... Fonte Constitucional da Crise Policial Idas e Vindas do Liberalismo’.. Sentido do Novo Cédigo Civil Subierréneos da Medida Proviséria Da Responsabilidade Civil e Penal. A Revolugdo Paulista de 1932 (Recordagdes de um Sol- dado) . Direitos e Deveres Invariantes Axiolégicas...... Principais Obras do Autor ... 101 13 129 var Nem hé novidade nessa complementaridade de indagagdes, pois, se remontarmos as origens do conhecimento filos6fico, tere- mos © exemplo incompardvel de Plato, sempre empenhado em desenvolver 0 mundo das idéias ¢ em fundar o Estado Ideal nelas baseado, sendo o seu didlogo sobre a Repiiblica a raiz de todos os estudos que a cultura ocidental tem dedicado aos problemas filosé- ficos e politicos. £ claro que, quando me refiro a Filosofia, estou com 0 pensa- mento voltado também para a Etica ¢ 0 Direito, cujo tema funda- ‘mental versa sobre a idéia da Justiga, a qual pode ser considerada o liame que une as meditagdes sobre os trés assuntos, 0 ético, o juridi; coe 0 politico, ‘Como se vé, o presente livro foi composto sob bons auspicios, nao representando uma recolta casual de estudos, mas a expressiio de uma complementaridade natural, notadamente se pensarmos em termos de juridicidade concreta e, por conseguinte, ético-politica. Observo, outrossim, que sempre preferi desenvolver o pensa- mento em conexo com os problemas da sociedade brasileira, 0 que nao podia deixar de implicar certas questes particulares, como, por exemplo, as relativas & ainda incompleta revisio da Constitui- gio de 1988. ‘So Paulo, 9 de julho de 2002. O Autor isi DIRETRIZES DO CULTURALISMO* Assim como se diz que 0 século XIX foi o século da hist6ria, pode-se dizer que 0 século XX foi o século da cultura, 0 que assi- nala relevante progresso na compreenséo do ser humano. E preci- s0, contudo, esclarecer em que sentido esta sendo feita por mim essa afirmagao. A palavra “cultura” é, com efeito, rica de sis ificados, a come- ac pleas geneco relat 1 0:3 psd aSERTSED xen ‘como se dé, por exemplo, no caso da agricultura. Quando, porém, se la dos valores da sensibilidade e do intelecto (cultura animi), empregamos o termo “cultura” para indicar 0 saber ou. > Concha aaa cea SD GaaFoi Cicero quem, pela primeira vez, fez a distingdo entre cultw. ra agri ¢ cultura animi, quase como uma sfatese das civilizagbes grega e romana, esta mais apegada a valores pragméticos, aquela mais inclinada aos valores do espitito Era natural que de uma compreensio, por assim dizer, subjetiva da cultura, se passasse a indicar, com a mesma palavra, 0 conjunto objetivo de bens artisticos, cientfficos, técnicos etc., resultante de nos- sa atividade criadora. Finalmente, apés terem os antrop6logos estuda- do a cultura ou civilizagdo dos povos primitivos, a palavra “cultura” wiriu uma significacio ainda mais extensa, servindo para indicar desde 0 machado de silex dos “selva- * Este © 0 prOximo ensaio reportam-se ao meu pequenolivro Cinco Temas do Cul- ‘turalisme, Sto Paulo, Saraiva, 2000, gens” As mais poderosas realizagdes da arte e da ciéncia contempor’- reas, sem esquecer 0 aprimoramento mesmo da mente € a extensio dos poderes da sensibilidade, da inteligencia e da vontade, em virtude dos prodigiosos instrumentos de comunicagao de que dispomos. Ora, como toda Iuz tem sua sombra, também 0 processo cultu- ral gera valores negativos, desvalores em todos 03 setores da vida individual e coletiva, pois ndo deixa de pertencer também a histéria e A cultura a sociedade em que vivemnos, em continuidade ou em con- {lito com as sociedades do passado, Nao deve, por conseguinte, cau- sar estranheza, que nos pafses mais cultos surjam formas insuspeita- das de violéncia e de criminalidade, 0 que prova que no somos nem. ‘bons nem maus por natureza ou por cultura, Eis af, em palavras pobres, o quadro global da “cultura” que apontei como caracteristica primordial do século passado, 0 mais violento e revoluciondtio de todos os tempos, por sinal que condicio- nado por dois conflitos bélicos universais que ocuparam a sua pri- meira metade, projetando seus efeitos até nossos dias, com a Queda ‘do Muro de Berlim de permeio, apds os genocfdios nazista e soviéti- co, ambos igualmente atrozes, muito embora se costume esquecer ou perdoar o praticado pelos comunistas... E compreensivel que a humanidade tenha tardado a adquirir consciéncia de seu ser como cultura, ou do ser como dever ser, isto 6 como 0 mundo de valores e desvalores espirituais e materiais que 0 homem veio experienciando lentamente & sua imagem e semelhan- a, ainda mesmo quando julgava o estar construindo & imagem de Deus ou da natureza. Do sentimento perene do divino, raiz da religiosidade, segundo papa Jodo Paulo U, andou divorciada a ciéncia de nosso tempo. Na recente enciclica Fides et Ratio, emanada na véspera de seu vigési- ‘mo ano de pontificado, o pontifice vai além, proclamando que 0 di- vorcio é até mesmo entre ciéncia e filosofia, porquanto esta teria abandonado a meditagao dos problemas fundamentais sobre o ser ¢ sobre o homem, para se contentar com a andlise minuciosa dos pro- blemas da linguagem, cuidando os pensadores com afinco das técni- cas de comunicacdo e informagio, sem atentar para aquilo que se comunica ¢ se informa, 2 [Nao creio se possa negar razao ao grande papa de nosso tempo, porque, efetivamente, fil6sofos hé que, a meu ver, esto enroscados na teia de aranha dos problemas lingifsticos e semiticos, sem dar a menor atengo, ndo digo 8s questées religiosas, mas também aos problemas éticos, estéticos ou histéricos, pondo-se, desse modo, & ‘margem dos problemas essenciais do homem, Eis af uma perspectiva antiga que ressurge, em nossa época, com foros de novidade, porquanto, apds um perfodo de exaltago da existéncia, sob miiltiplas formas de existencialismo, sucedeu uma fase de predominio exclusivo de questtes de ordem formal. Até mes- ‘mo os juristas, sempre sensfveis em relagio aos problemas éticos, esvaziaram a Filosofia do Direito de seu contetido axiol6gico, para somente dar realce niio ao normativo quo zale, mas &s vestes extrin- secas da normatividade. Outro problema que esté a merecer renovado interesse € 0 de relagto da natureza com a cultura, antes no centro dos estudos huma- nisticos. No meu entender so quatro cs momentos fundamentais no multimilenar relacionamento do homem com a natureza. O primei- 0, 0 mais longo, é 0 da subordinaedo passiva da nossa espécie as imposig6es da natureza, nao faltando, é claro, 0 seu reflexo no plano filoséfico até hoje, sob todas as formas possfveis de “naturalismo”, prevalecendo a idéia de que a sabedoria consistiria em “obedecer & natureza”. Ainda hé poucas semanas, um famoso bi6logo asseverou, dogmaticamente, que nossa vida interior — quer se denomine alma, quer consciéncia ou espirito — nfo ¢ sendo o resultado de meros condicionamentos celulares, sendo 0 cérebro 0 6rgdo desse processo puramente material. Em_um segundo momento, porém, houve homens que se deram conta de seu poder proprio, irredutfvel ao determinismo naturalista, Lembro-me, mais uma vez, de Cicero, que, fiel ao voluntarismno de sua gente, contrapunha-se ao naturalismo dos est6icos, afirmando: “est aliquid etsi in nostra potestate”, algo existe, todavia, em nosso poder de querer. Dando grande salto na historia das idéias, diria que coube a Kant revelar com seguranca o valor do eu perante a realidade natu- ral, mostrando, com sua “revolugao copemicana” (uma virada de 3 180° no plano do conhecimento), que, para conhecer, nao hé ade- quatio rei ac intellectus, ou sej2, no nos adequamos aos objetos, mas so estes que so constituldos como tais em virtude do poder legislador ou nomotético da mente, Haveria, assim, condigbes subje- tivas ordenadoras ou legisladoras da realidade, as chamadas “condi- ‘gBes transcendentais”. Creio que essa mudanga radical na esfera do conhecimento permitiu ir além de Kant através de Kant, digamos assim, para compreender melhor como o “natural” se converte em “cultural”, ao envolver tanto qiuem pensa como aquilo que é pensado € se torna elemento e fator de nosso agit. Pois bem, emum terceiro momento, houve exagero na conside-, aco da natureza como 0 “p6lo negativo” do conhecimento, até o onto de Hegel, continuador de Kant, dizer que 0 espirito esté “alie- nado” enquanto ndo se liberta da natureza, superando suas leis cau- sais. Tobias Barreto, pensador sergipano que lecionou na Faculdade de Direito do Recife, entendia que é a cultura que supera o que ha de selvagem no homem, sendo “a antftese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudanga no natural, no intuito de faz8-lo belo e bom”. Como no Nordeste, conforme dito de José Amético de Almei- da, “a natureza € menos mie do que madrasta”, compreende-se a ‘visio negativa que Tobias tinha da natureza. 4 agora, abstragZo feita de certos “culturalistas” extremados, prevalece o entendimento de que a natureza esté na base da cultura, constituindo ambas um bindmio incindfvel, o que nao nos impede de reconhecer o primado do espitito e a sua irredutibilidade ao fisico ou 20 biolégico. 0 “culturalismo”, tal como vem sendo estudado no Brasil des- de a década de 1940, e se acha em pleno desenvolvimento, compar- tilha desse conceito moderado de cultura. Seja-nos permitido ponde- rar que nessa matéria hé uma contribuigSo minha, no recebida da filosofia alienfgena: € a idéia de que a cultura no um ente interca- Jado entre a natureza e 0 espfrito, entre os fatos ¢ os valores ideais, conforme tese de origem neokantiana, mas representa o correlato da natureza, sendo um ente auténomo, que abrange “nudo o que é e juanto deve ser”, isto Nao seré 4 demais acrescentar que esse reconhecimento da cultura como objeto auténomo $6 adquire plenitude se é atribuida autonomia a0 valor, visto por mim como expressio do dever ser (Sollen) e ndo do ser (Sein). Nao & ele um “objeto ideal”, como os légicos ou mateméti- cos, tal como erroneamente sustentavam Max Scheler e Nicolai Hart- mann, mas sim algo que se poe como fim que deve ser realizado. Grande passo deu 0 conhecimento humano, a cavaleiro dos sé- culos XIX e XX, quando se passou da teoria deontoldgica do bem (objeto final da conduta ética) para a reoria dos valores, condigbes transcendentais de todas as objetivagdes intencionais do espirito, abrangendo tudo 0 que o ser humano pode criar, do plano filosético 20 religioso, do ético ao politico, do cientifico ao estético, e assim por diante, 0 que quer dizer aquilo que hoje denominamos cultura, Daf minha afirmagio de que o ser do homem é 0 seu dever, uma vez que ele, a um s6 tempo, é e vale como pessoa, que € 0 valor-fonte de todos os valores, ¢, por conseguinte, a raiz primordial da cultura. Esclarecidos esses pontos cardeais, pode-se concluir que o “cul- turalismo” — que veio assumir no Brasil configuracao e sentido pré- prios — é uma doutrina que pie 0 conceito de cultura no centro de suas indagagSes sobre o ser humano e suas realizagées, consideran- do-a um tema essencial da filosofia, ¢ nfo apenas da antropologia, como ciéncia positiva das formas de vida e civilizagdo da espécie humana desde as suas origens. ¥ claro que o culturalismo assume modalidades diversas, de maneira que vou me limitar a expor meu ponto de vista, apresentado em varias obras, duas das quais basicas, Experiéncia e Cultura e Verdade e Conjetura, completadas por um trabalho recente, intitula- do Cinco Temas do Culturalismo. 7 Assim sendo, torno a insistir que, quando emprego a palavra “cultura”, néo me refiro a seu sentido mais corrente, como 0 conjun- to de conhecimentos que nos habilita a fruir de um néimero cada vez maior de valores materiais e espirituais, mas sim & cultura como tudo (Lebenswelt). Nao é demais acrescentar que a evolugéo cultural se 5 desdobra em longos periodos histéricos que denominamos civiliza- ges, a0 longo das quais se configuram duragées a que ‘Fernand Brau- del da o expressivo nome de conjuunturas. Nao ser exagero afirmar que, desde quando o homem adquiriu maior consciéncia de si mesmo e de sua posigo no mundo, comegou a duvidar da verdade daquilo que pensava; ou do acerto de seu modo de agir, dando, assim, nascimento, ainda que de forma imprecisa e ‘elementar, a0 que, bem mais tarde, viria a constituir, respectivamen- te, o dominio da “teoria do conhecimento” € da “ética”. Passaram-se milénios antes que se elaborassem esses dois cam- pos de investigagio. Se a ética, como teoria da conduta em razio do: ‘bem, se organizou mais cedo, atingindo um de seus pontos mais al- tos no pensamento de Aristételes, a indagagZo sobre os limites do conhecimento humano, como uma problemética auténoma, somente surgiu na Epoca Modema e, mais claramente, através de um proces- 50 cognoscitivo que vai de Descartes a Kant. Pois bem, é com Kant, nas tiltimas décadas do século XVIII, que a teoria do conhecimento adquire contornos mais precisos, en- tendendo ele que somente pode ser considerado certo 0 que é verifi- ceével pela experiéncia, dependendo de certas condicdes subjetivas, ‘ou seja, de propriedades proprias do sujeito cognoscente como tal € que, por serem condicionantes do saber, ele as declarava transcen- dentais ou a priori, isto €, anteriores ao conhecimento mesmo. Noto que néo hé como confundir transcendental com transcendente, visto ultrapassar este as relagdes entre 0 sujeito cognoscente e a experién- cia, sendo, por isso, a seu ver, incognosctvel (0 absoluto). Em tiltima andlise, a partir desses pressupostos, segundo Kant, seriam cientificamente cognosciveis somente os fendmenos da natu- reza, havendo uma vinculagao incindivel entre teoria da nanureza © teoria do conhecimento, s6 podendo a ética resultar de imperativos ue emanam imediata e diretamente da consciéncia como imperati- vvos categéricos. Por outro lado, a histéria ou, por melhor dizer, os fatos histricos s6 poderiam ser objeto de conjeturas, colocacao esta que eu iria depois reviver, mas com outra significagao, no meu livro Verdade e Conjetura, no qual também analiso o problema da metafi- sica para akém do mundo fenomenal. 6 rear Pode-se dizer que grande parte da filosofia, depois de Kant, se propds a superar o impasse por ele criado entre natureza ¢ cultura, ou natureza e histéria, com a exclusio da ética do plano do experienci- vel, 0 que era grave, por ficar a liberdade humana insuscetivel de ter seu valor demonstrado 2o longo do processo hist6rico, Daf o gi- ‘gantesco esforgo de Hegel no sentido de tudo englobar em sua con- cepcio monista e dialética da histéria, na qual “o que € real é racio- nal ¢ 0 que € racional é real”, No meu entender, superado o monismo hegeliano, por sinal que convertido por Marx em materialismo histérico, era preciso voltar as origens da teoria do conhecimento, para revisé-la. Foi o que fez Hlus- setl, que, embora reconhecendo a existéncia de condigdes subjetivas no ato cognoscitivo, declara necessério indagar também de suas con- dicdes objetivas, ou seja, das pertinentes as coisas mesmas, para as quais se dirige a consciéneia intencioral, a qual no as poderia cap- tar se nelas ndo houvesse algo que as tomasse apreensiveis € que constituem o que ele denominou a priori material, dando, desse modo, valor tanto ao sujeito que conhece quanto ao objeto conhecido, Dado esse passo, foi possivel a Max Scheler e Nicolai Hartmann reintro- duzir a ética no mundo do conhecimento e da cultura, a0 mesmo tempo que os renovados estudos sobre o valor (exiologia), a partit das tiltimas décadas do século XIX, permitiram que ele fosse 0 ele- mento mediadot entre natureca e cultura, ou, como prefiro dizer, entre o que é 0 que deve ser, iluminando o sentido a ser dado ao objeto cultural, que “é enquanto deve set”. Nem se pode esquecer que se deve a Bergson a facanha de desvincular a liberdade dos ne- os causais da natureza, sem o que nao teria sido posstvel reconhe- cer a autonomia da cultura. Lembrado, nesse breve escorco hist6rico, como veio se deline- ando o culturalismo — que, no Brasil, teve como precursor Tobias Barreto ao correlacionar Kant com o antropélogo Hermann Post ¢ 0 Jurista Thering —, cabe-me observar que, segundo minhas tltimas ‘meditagGes, ha um terceiro a priori a considerar, 0 relativo &s condi- Ges existenciais da correlagdo sujeitc/objeto no plano do conheci- mento: € 0 a priori cultural, transcendentalmente inerente ao ato de conhecer. Em verdade, a cultura nao €algo que vem depois — como ‘geralmente se pensa —, mas € coeva e concomitante com 0 surgi- 1 mento do ser humano na face da Terra, como 0 comprovam seus instrumentos e desenhos encontrados nas cavernas primitivas. Essa projecio da cultura 4 origem do homem altera radicalmente a pro- blemitica do culturalismo, podendo-se afirmar que a cultura é “a objetivizago das intencionalidades humanas a0 longo da histéria”, a partir da noo de que “conhecer é conhecer algo no mundo”. Husserl, com 0 seu conceito de Lebenswelt (mundo da vida) distinto do mundo dotado de categorias cognoscitivas, tal como, por exemplo, o mundo da ciéncia — abre camino & admissao de um a priori cultural. & que o Lebenswelt nao representa uma fase anterior da evolugdo histérica, mas constitui uma realidade perene, a qual coexiste com 0 mundo sujeito a diversas formas de categorizagio resultantes do poder nomotético do espitito. O tempo do Lebenswelt niio 6, assim, tempo histérico (como tal categorizado), mas mero tempo cultural correspondente a0 mundo intuitivo da vida cotidiana, a espontiinea experiéncia comum ou corrente nZo ordenada em obje- tos do conhecimento'. Se assim é, pondero eu, cumpre reconhecer a universalidade a priori da cultura, a qual € inerente a0 ser humano, que desde as ori- gens no pode deixar de ser visto como um ente cultural Em verdade, quando surge @ cultura? Quando o ser humano se vale de suas propriedades individuais e introduz algo de novo na natureza, passando do grito animalesco — que sempre o mesmo — para a fala, que nasce, se transforma e se desenvolve; ou, entdo, plas- ma os dados da natureza para converté-los em utensilios, deles se servindo para méltiplos fins, desde as armas de defesa ao preparo de alimentos, no faltando a espontanea disposigéio & danga € a0 re~ creio, bem como a inclinagao a fazer os primitivos desenhos ¢ escul- turas, que até hoje nos surpreendem, como projecio de originaria forga emocional. Como contestar que essas criagées jé no implicam © poder a priori de instaurar cultura? E com base, pois, nesses dados ¥ Sobre o conceito husserliano de Lebenswelt e respectva bibliografia, cf. Miguel Reale, Experiéncia ¢ Cultura, 2 ed. revista, Campinas Bookseller, 2000, pags. 126 segs. Quanto a distingdo entre tempo cultural ¢ tempo histérico, v., no mesmo Livro, Cap. VIII, § TV, pags: 254 e segs. 8 de experiéncia que afirmo existir um apriori cultural como conditio ‘sine qua non de projecio do poder nomotético do espirito, Se, como geralmente se admite, 0 ser humano é um ente histé- rico, € porque originariamente é um agente cultural, instaurador dos bens de cultura, gragas a0s a priori subjetivo e material que Kant e ‘Husserl souberam determinar no ato cognoscitivo. Ohomem, em suma, desde sua chegada a0 mundo, é um agente cultural, sendo, a um s6 tempo, natureza e cultura, estando a proje- 80 desta a priori em sua mente, ou melhor, em sua subjetividade ctiadora. Isto posto, a extensio que fiz da fenomenologia ao mundo histérico-cultural importa no reconhecimento de um a priori cultu- ral, sem 0 qual no surgiria a relagdo sujeito-objeto, base da ontog- noseologia, Este € 0 ponto comum de partida da infinita aventura universal do espirito. (2001) ESPACO, TEMPO E CULTURA — OA PRIORI CULTURAL* Na histéria das idéias sobre as condigdes que tomam o conheci- mento possivel, problema inicial basico da gnoseologia, foi Kant 0 primero fil6sofo a referir-se ao espago e a0 tempo como condigSes subjetivas da sensibilidade. Ambos sio concebidos, na Critica da Razdo Pura, como “pu- ras intuiges que contém a priori a condigio da possibilidade dos objetos como fendmenos, tendo a sintese que af se opera valor obje- tivo” Ummanuel Kants Werke, Bd, Erust Cassiter, tomo Ill — Kritik der Reinen Vernunft, Berlim, 1922 , pég. 109). Espago e tempo sto, pois, “intuigSes puras” condicionadoras transcendentalmente da experiéncia, tomando possiveis os objetos do conhecimento, gracas 20 “poder nomotético” do espirito. E sabido que coube a Husserl ctiticar ¢ superar essa posigaio gnoseolégica puramente subjetiva, fazendo ver que 0 conhecimento dos objetos nao seria possivel se neles nao houvesse a priori algo (aliquid) que os torna suscetiveis de agreensao pelo sujeito cognos- cente, Trata-se do a priori material que vem complementar 0 a prio- ri subjerivo, numa diade incindivel. Essa colocagao do problema do conbecimento feita pela feno- ‘menologia husserliana abriu caminho & compreensdo subjetivo-ob- jetiva de toda cognigao dos objetos, com significativo retorno a teo- ria dos objetos de Brentano e Meinong, mas sob um Angulo novo, + Comunicagéo ao VII Congresso Brasileizo de Filosofia, realizado em Joto Pessoz, u que leva em conta a contribuigo do criticismo kantiano superador do realismo tradicional que subordina o conhecimento a uma reali- dade jé dada. Isto posto, poder-se-ia dizer que o conhecimento no correspon de a visio kantiana de um processo circular — do qual 0 sujeito cog- noscente seria o centro irradiante —, mas sim a um processo eliptico tracado em razso de dois pélos, um subjetivo eo outro objetivo. E nessa ordem de idéias que fui levado a afirmar que, ao invés de Gnoseologia (a Teoria do Conhecimento a partir do sujeito), & ‘mais apropriado falar em Ontognoseologia, termo que expressa a correlacao dual supra-exposta. * Chegado a esse ponto, convenci-me de que tanto Kant como Husseal situam o problema do conhecimento de maneira estdtica, sem atentarem para 0 cardier dialético da relagao que liga 0 sujeito ¢ 0 objeto. Sem essa dialeticidade, penso eu, a dualizagao seria impossi- vel, 0 que demonstra a condicionalidade cultural do ato de conhecer. Se reconhecermos, dessarte, que © homem é um ser essencial- mente cultural e hist6rico, é impossivel fazer abstragao da tempora- lidade do sujeito, nem tampouco de sua situagdo espacial, 0 que ja prevalece nos dominios das cineias naturais com a concepeéo uni- téria do espago-tempo genialmente afirmada por Einstein. ‘Dafa primeira conclusio a que pessoalmente cheguei, de que 0 processo ontognoseolégico esta em sintonia com o processo cultu- ral, havendo necessidade de distinguir-se entre tempo histéricoe tem- po cultural, muito embora sejam complementares. Essa é, em dltima anélise, a tese que desenvolvo em meu livro Experiéncia e Cultura (2 ed, revista, Campinas, Bookseller, 2000), aquela atuando como foco revelador desta em incessante processo hermentutico, Se falo em tempo cultural é porque a cultura abrange tudo o que aconteceu e acontece no mundo, enquanto a histéria abrange apenas aquilo que tem uma duraco (durée), ou seja, uma significago no tempo, 0 que é resultado de incessantes operacées seletivas, questo esta de uma complexidade extrema, cuja compreensio se confunde com 0 sentido da histéria, motivo pelo qual me parece que Historia © Axiologia so duas faces do que denominamos Cultura, considera da esta no intelectualmente como capacidade de acesso aos valores 12 historicamente revelados, mas sim em acepgdo antropoldgica, isto 6, como o conjunto unitirio de tudo 0 que o ser humano hermeneutica- ‘mente descobriu e produziu ao longo de sua existéncia sobre a Terra, abrindo campo a sempre novas conquistas tedrico-praticas. As contribuigdes de Kant e Husserl foram, em suma, decisivas para se ficar sebendo 0 que hé de subjetivo e de objetivo complemen- tarmente no conhecimento, mas essa compreensZo cognitiva deve também ter em conta a sinagdo néo apenas espécio-temporal e de certo modo abstrata, mas também cultural do sujeito e do objeto no ato concreto de conhecer. ‘No basta dizer, a meu ver, que “conhecer & conhecer algo”, porque é também necessério pensar na circunstancialidade em que o conhecimento se dé ou se processa, A afirmagio de Ortega y Gasset de que “eu sou eu e a minha circunsténcia” implica o reconhecimen- to de que “eu conhego algo sempre em dada circunstancia”. Essa conclusio implica 0 superamento de uma visio gnoseol6- ¢gica estética para projeté-la no plano hist6rico, ov, por melhor dizer, “histérico-cultural”, uma vez que é indispensdvel remontar ao mo- ‘mento origindrio em que ocorreu o primeiro ato de conheces. E preciso, com efeito, nao olvidar que somente o ser humano conhece, o que importa em reconhecer que os demais animais nunca superam a fase da sensibilidade, sem passar para o momento consti- tutivo ¢ inovador da inteligéncia e da raza. Por mais que habilmente se treine um co ou um papagaio, en- sinando-Ihes a praticar determinados alos, como, por exemplo, a des- cobrir a localizagao de certos produtos ou pessoas, ou, entdo, a pro- ferir palavras, tas atos representam agerfeigoamento da sensibilida- de, mas sem jamais a converterem em “imaginagao criadora”, que € privativa do ser humano, tanto nos dominios das artes e da poesia ‘como nos das cigncias. Em tiltima andlise, por mais que eles possam ser instruidos a fazer algo de surpreendente, os outros animais nfo atingem o plano 4a intentio, da intencionalidade como qualidade essencial prépria da consciéncia, tal como o demonstrou FHusser! com o conceito funda- mental de consciéncia intencional, riz ou fonte do conbecimento ¢ da cultura, 13 Isto posto, cabe reconhecer que 0 surgimento do ser humano quo tale corresponde 20 surgir da intentio, quando o homem primi- tivo passou do grito & fala e aprendeu a langar a primeira pedra para a sua defesa pessoal, ou, logo depois, a fabricar os primeiros ins- trumentos ¢ utensilios como afirmagao existencial, quer para ali- mentar-se, quer para sua protecdo contra toda forma de agressiio, tanto de outros animais como da natureza. E gragas a mera intuigao que nos damos conta dessa experién- cia origindria, que dé um passo decisivo quando o grito se converte em fala, aparecendo a palavra como signo distintivo por exceléncia da espécie humana, o que induz. alguns pensadores a reduzir, exronea, mente, tudo & linguagem. ‘Acconclustio a que a priori se chega éa de que o primeiro ato de conhecimento foi concomitantemente um ato de cultura, razio pela qual, em pequeno ensaio inserto em meu livro Cinco Temas do Cul- turalismo (Saraiva, 2000), afirmo que a Teoria do Conhecimento deve ser estudada em conexdo com a Teoria da Cultura. Nesse sentido, a contribuic¢go fundamental de Kant quanto a0 “poder nomotético” do espirito, até 0 ponto de apresentar-se 0 ho- mem como “legislador da natureza”, deve ser completada com a ve~ rificagio, primeiro, de que essa normatividade instituidora, base trans- cendental de todas as formas de saber, ndo seria possivel se nos obje- tos (aliquid) jé nao houvesse condi¢des materiais transcendentais possibilitantes de sua apreensto (¢ essa foi a contribuico primordial de Husser!) e, em segundo lugar, que esse conhecimento subjetivo- objetivo ocorre, também transcendentalmente, em correlacio neces- sfiria com os primeitos atos culturais. Daf a minha conclusao de que a cultura nao é um consecutivum cow 0 resultado empirico de sucessivas experiéncias — conforme se continua ainda a dizer —, mas é a priori, desde as primeiras experi- @ncias, o correlato necessério das formas origindrias do conhecimento. Dessarte, devemos, a meu ver, deixar de afirmar que a cultura é ‘uma conquista do conhecimento, por estar demonstrado que nao hé conhecimento algum que j& nao esteja correlacionado com esta ou aquela outra forma de cultura. As cavernas primitivas, com seus gri- fos e restos de utensflios fabricados pelos primeiros seres humanos, 4 so a prova plena de que o homem é um ser transcendentalmente hist6rico-cultural. Nessa ordem de idéias, seja-me permitido transcrever, nesta comunicacao, o que escrevi a pag. 31 de Cinco Temas do Culturalis- mo: "No meu entender, embora Heidegger ngo se tenha proposto, ou ‘melhor, pressuposto o problema gnoseol6gico, abriu novos caminhos A gnoseologia, ao distinguir duas esferas da tealidade, a originéria realidade da coisa (‘Sachfeld) e a dos objetos (Gegenstandsgebiet), sendo esta o campo da experiéncia e das ciéncias positivas, enquanto que aquela seria 0 da fenomenologic convertida em Ontologia”. Nao me parece, todavia, seja necessério seguir Heidegger no aque se refere &s suas conclusGes ontolégicas, para reconhecer que, 1a linha de seu pensamento, conforme diz Costantino Esposito, fica demonstrada a insuficiéncia da subjetividade para explicar 0 rico con- tetido cultural do sujeito e a sua articulagdo intencional (cft. Costanti- 1no Esposito, I! Fenomeno dell’ Essere — Fenomenologia e Ontolo- gia in Heidegger, Bari, 1984, pag. 37). Nesse sentido, vale lembrar que também Husserl reconheceu a participagao da “heranca cultural” (que, a0 lado da “heranca genéti- ca”, condiciona 0s atos humanos) ao apresentar o “mundo da vida” (Lebenswelt) como 0 da empitica experiéncia cotidiana, a qual ja- mais deixou de existir, mesmo apés o advento da experiencia critica. © Lebenswelt, todavia, como experiéncia empirica que conti- nua a acumular conhecimentos independentemente do saber cientifi- o categorizado, constitui apenas uma parte do mundo da cultura, © qual abrange todas as formas de coshecimento, razo pela qual o meu livro Experiéncia e Cultura tem como subtitulo “Para a Funda- do de uma Teoria Integral da Experiéncia”. Do exposto resulta que, a meu ver, a Teoria do Conhecimento se tomna cada vez mais Teoria da Cultura, visto como esta acompa- nha todas as iniciativas humanas, desde 0 aparecimento do homo sapiens sobre a face da Terra. Nao é demais ressaltar que a idéia de a priori cultural vem com- pletar a visio metodol6gica de Kant e de Husserl, inserindo no co- mhecimento a componente existencial que Ihe faltava. 1s E por esse e outros motivos que considero 0 culturalismo a maior contribuicao brasileira ao pensamento filos6fico universal, néo dei- xando se envolver pelo chamado “p6s-modernismo”, que se desgar- ra da Filosofia critica, legada por Descartes, Kant, Husserl, Heideg- ger e seus continuadores, nada colocando em seu lugar, em absurdo 16

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