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Universidade Federal do ABC

Trabalho Final para a disciplina Filosofia Política

Tema: A emergência da noção de que o indivíduo é o fundamento a


partir do qual se deve justificar o poder político.

Rousseau contra as duas teses sobre o indivíduo e a


cidadania de Aristóteles e Hobbes

Docente: Bruno Nadai


Discente: Pedro Henrique Carquejeiro

São Bernardo do Campo, Fevereiro de 2017.


Introdução

Soa estranha hoje a noção de que o indivíduo, ou um cidadão, não seja o


fundamento do poder político. Para defender que o indivíduo não fundamenta o
poder político, isto é, que as decisões políticas não devem ser referidas ao
conjunto dos indivíduos de um Estado (ou qualquer agrupamento político), seria
necessário afirmar uma diferença entre os dois termos – cidadão e indivíduo –,
o que para nós pode parecer um ultraje, um ataque a direitos já conquistados.
Isto porque, numa tal defesa, constaria como conclusão que, em primeiro
lugar, nem todo indivíduo de uma sociedade é nela cidadão, e que, em segundo
lugar, a política pode ser legitimamente exercida por um grupo dominante por
sobre os demais.
Contudo, no cânone ocidental, é a partir de Rousseau que os
questionamentos das conclusões ganham força. Por um lado, para Aristóteles,
a posse de terras estava ligada à cidadania, o que tornava possível que alguns
participassem da política e outros não, implicando diretamente que um grupo
pequeno de cidadãos possa exercer legitimamente o poder político. Já Hobbes,
ainda que possua uma concepção de indivíduo como cidadão, e portanto negue
que há alguém que pertença a um Estado e não seja nele cidadão, aceita como
mecanicamente necessário que o Estado seja regido por poucos.
Nos estados modernos (posteriores à revolução francesa de 1789), a
soberania popular fundamenta e legitima os governos democráticos e
autocráticos. É em nome da soberania do povo alemão que o nazismo ganha
força, e é em nome das liberdades individuais que se fazem as Diretas Já!. Para
refletir sobre a dupla condição da soberania popular (que pode gerar democracia
ou autocracia), é preciso entender não só como a noção de indivíduo surge como
fundamento do poder político, mas também o que se considera como cidadão.
Tomar todo indivíduo como cidadão limita o campo possível de expressão
política a um restrito conceito de cidadania. Estes conceitos de cidadania variam
historicamente, e neste trabalho limitarei a análise à passagem histórica que
tornou o indivíduo fundamento do poder político.
Nem todo indivíduo é cidadão, logo o poder político deve ser exercido por
poucos

A democracia grega que Aristóteles examina tem pouco a ver com o modo
como, no século XXI, a entendemos. Em seu tratado Política, o filósofo grego
mostra pontos divergentes que estão na raiz da diferença entre as duas
posições.
Em primeiro lugar, Aristóteles compreende o Estado como uma
comunidade de algum tipo, com vista a um bem. E como, para ele, as ações
humanas sempre visam uma concepção particular de bem, o Estado visa aquela
concepção que é a mais elevada (P. I, 1, 1252a1-6). Na prática política, portanto,
o Estado não age como um grande mercador, mas como um coletivo em busca
de um fim mais elevado, a eudaimonia, a felicidade do indivíduo, que é a mesma
da cidade:

There remains to be discussed the question, whether the happiness of the


individual is the same as that of state, or different. Here again there can be no
doubt – no one denies they are the same.
(Aristóteles, P. VII, 2, 1324a6-8).

Esta felicidade, porém, não é a expansão do número de indivíduos sobre


o qual se tem poder, nem quanta riqueza o estado possui, já que a felicidade,
para Aristóteles, é a prática da virtude.
O ponto principal, porém, é que para Aristóteles o poder político deve ser
analisado, como em toda ciência, das menores partes que o compõem até as
mais complexas. E a menor parte das relações políticas para ele é a relação de
mando e subserviência entre homem e mulher, que é

[A] union of those who cannot exist without each other; namely, of male and
female (...), and of natural ruler and subject (...). For that which can foresee by
the exercise of mind is by nature lord and master, and that which can with its
body give effect to such foresight is a subject, and by nature a slave.
(Idem, I, 2, 1252ª26-33).
Começando com a relação de dominância dos homens sobre as mulheres
(“by nature”), Aristóteles prossegue à unidade da família. Se a relação entre
homem e mulher visa cumprir o mútuo interesse de gerar novos indivíduos, a
relação familiar visa, por outro lado, a conservação destes. A família, portanto, é
“the association established by nature for the supply of men’s everyday wants”
(1252b13-14). É somente quando muitas famílias se associam, porém, que pode
este conjunto almejar algo mais que a simples sobrevivência, na forma de uma
aldeia. Mas esta associação ainda não assume a forma de um Estado, por ser
governada por um rei e por não ser autossuficiente (1252b18-22).
O Estado só pode ser formado sob duas condições, para Aristóteles. A
primeira é que seja formado por diversas aldeias, de forma que possa almejar
algo mais que a própria sobrevivência. A segunda é que seja quase ou
completamente autossuficiente, de forma que possam almejar a boa vida
(1252a27-30).
Com isso, podemos observar que o Estado se fundamenta, nesta visão,
na relação entre os indivíduos, e se distingue quando os indivíduos podem deixar
de se ocupar somente com suas sobrevivências particulares.
É neste ponto que surge a relação entre compor o Estado como indivíduo
e buscar a boa vida (ou a vida virtuosa), e de onde surge a primeira implicação:
nem todos os indivíduos são cidadãos, já que aqueles que trabalham para a
própria sobrevivência não podem buscar nada além disso. Cidadãos são aqueles
que não trabalham, pois podem eles buscar a vida virtuosa. Disto Aristóteles
deriva a segunda implicação: que é legítimo, por natureza, que haja uma classe
que coordena o poder político e outra que o efetue, do mesmo modo que é
“natural” que o homem seja aquele vê adiante por um exercício da mente (no
caso, o desejo de reprodução) e a mulher efetue a visão através de seu corpo.
Aristóteles só pode argumentar desta forma, porém, porque compreende
que a natureza tem uma propriedade metafísica que será combatida na
Modernidade: a causa final. É a partir da ideia de que existe um fim para a polis,
para as aldeias, para o cidadão e para os servos, que fazem parte da natureza
e obedecem suas leis, que se pode dizer que o fim da polis é a felicidade do
povo. Povo, portanto, e não cidadãos, já que o interesse dos senhores e dos
servos é, para ele, sempre igual, e não haveria motivo para pensar que a
inclusão de todos os indivíduos (inclusive aqueles que não são aptos para a
virtude) nas decisões políticas pudesse melhorar a felicidade de todos. É à forma
como os cidadãos se organizam politicamente que Aristóteles chama de
democracia, e não a forma como o povo se organiza.

Todo indivíduo é cidadão, logo o poder político deve ser exercido por um.

Hobbes pensa a política de forma radicalmente oposta a Aristóteles


principalmente por duas razões. A primeira é que Hobbes não concebe mais a
ciência como uma atividade que busca explicar a finalidade das coisas, já que
sua física corpuscular e mecanicista não compreende qualquer noção mesma
de finalidade. No quinto capítulo de seu De cive, Hobbes expõe as causas que
levam à necessidade natural do governo civil

It is of it selfe manifest, that the actions of men proceed from the will, and the
will from hope, and feare, insomuch as when they shall see a greater good, or
lesse evill, likely to happen to them by the breach, than observation of the
Lawes, they'l wittingly violate them.
Hobbes, T. De cive. Cap. V, §1

Aqui podemos ver a primeira diferença entre sua filosofia política e a de


Aristóteles. Os indivíduos buscam suas concepções de bem (ou de evitar o pior),
e nisso ambos concordam, mas para Aristóteles a união na forma do Estado
possibilitava o alcance, por aqueles livres do trabalho, de uma concepção mais
elevada de bem que é a causa final da polis. Para Hobbes, porém, a causa do
governo civil é garantir a paz, de forma a garantir a sobrevivência numa relação
de mútuo interesse.
Essa diferença epistemológica e metafísica, o abandono da causa final e
a elevação da causa eficiente como causa primeira, leva Hobbes a procurar não
o que o Estado almeja cumprir, mas os mecanismos pelos quais ele se
estabelece, as razões de cada cidadão, portanto, para que o Estado sequer
exista.
A mudança de concepção sobre o que significa explicar as causas de algo
nos dirige para a segunda principal diferença entre os autores. Para Hobbes, a
análise da política não será mais a análise das relações de poder, pois uma
relação não é um objeto sensível, e sim do poder como propriedade de cada
indivíduo particular. A transferência da análise das relações para o indivíduo
provoca, ao mesmo tempo, uma mudança na forma como se analisa os
indivíduos e como se analisa a natureza. Pois, para Aristóteles, o Estado e as
relações de poder são estritamente naturais, e o que hoje chamaríamos de
“cultural” são as constituições específicas de cada cidade-estado, sob o regime
das leis (naturais) que ele desenvolve em sua Política. Para Hobbes, porém, a
natureza é o objeto do qual os indivíduos dispõem, em primeiro lugar, como
direito, já que sem um governo civil todos os indivíduos possuem o mesmo direito
a tudo na forma de um estado de natureza de guerra de todos contra todos, como
vemos no De cive: “And we mean such a war as is of all men against all men;
such as is the meer state of nature”. (Idem)
Portanto, a igualdade de todos os indivíduos como cidadãos é a igualdade
de direito natural que todos têm a tudo, sem qualquer garantia de preservação,
mas com direito a todos os meios para realizá-la.
Mas se todos são indivíduos iguais por natureza nas suas disposições no
estado pré-civil, como se legitima um governo civil? Para Hobbes, este é um
processo natural, pelo qual os indivíduos, buscando suas concepções
particulares de bem e evitando o que lhes é ruim, buscam evitar também o
estado de guerra. A lei natural dita, por isso, que a paz é o estado que os
indivíduos buscam, pois é nela que encontram segurança da continuidade de
sua vida.
A paz já significa abdicar de uma parte, ao menos, do direito natural a tudo
que há. Para o inglês, contudo, é preciso abdicar não só de uma parte do direito
natural, e sim de todo ele, pois enquanto guarde o direito a algo que pode ser o
direito também de outrem, haverá guerra, e não paz, visto que têm sobre o dito
objeto um direito natural inalienável. Não havendo meios para que se decida
sobre qual quais direitos devem ser abdicados em vistas de outros, é preciso
abdicar de todos eles em nome de um contrato social, que estabelece um
governo civil na forma de um soberano.
Há em Hobbes uma inversão das derivações aristotélicas. Se para
Aristóteles o poder político se exerce de poucos sobre muitos porque nem todo
indivíduo é cidadão, na política hobbesiana é justamente a igualdade entre os
indivíduos como súditos (o que lhes confere cidadania) que justifica o medo
mútuo e o constante estado de guerra, que deve ser abdicado em nome de um
governo civil exercido não por poucos, mas por um. A menor parte das relações
de poder passa a ser não mais a relação entre homem e mulher, mas a relação
entre os homens enquanto indivíduos e a natureza.
Ainda que o indivíduo seja o fundamento da noção de poder, e fonte de
legitimação política do Estado, ser cidadão para Hobbes, como aponta
Rousseau, é o mesmo que ser súdito. Seria absurdo, portanto, que os indivíduos
abrissem mão de um estado de plena liberdade, que é seu estado de natureza,
em prol de um governo civil de servidão.

Todo indivíduo é cidadão, logo o poder político deve ser exercido conforme
a vontade geral.

Como vimos até agora, não é necessário que o conceito de cidadania


envolva todos os indivíduos de uma sociedade, e mais surpreendente, Hobbes
concebe um Estado no qual a cidadania é direito de todos e esse direito significa,
em primeiro lugar, a abdicação de suas liberdades.
Rousseau, para estabelecer outra possibilidade de teoria política, precisa
modificar os pressupostos de Hobbes. E o pressuposto que ele transforma é ao
mesmo tempo metafísico e epistemológico: a noção de perfectibilidade do
homem. Para Hobbes, não há qualquer diferença entre a natureza humana no
estado de natureza ou no governo civil, todos agem segundo seus próprios
interesses em busca de suas concepções particulares de bem. Rousseau
introduz aí um componente histórico não somente às relações entre os humanos,
mas também à própria concepção de natureza humana. Pois o ser humano é,
para Rousseau, a única criatura que pode tornar-se melhor a cada geração, e
produzir diferentes obras.
Esta mudança nas premissas permite a Rousseau afirmar que aquela
descrição que Hobbes dá como o fim acabado da natureza humana é, na
verdade, ainda uma passagem para um verdadeiro governo civil. Um governo
civil no qual o contrato social não é a abdicação das liberdades naturais em nome
da paz e da segurança, mas a abdicação da liberdade natural em prol da
liberdade civil.
Na leitura de Derathé, Rousseau compreende que o contrato entre os
indivíduos nos moldes hobbesianos origina não mais que uma associação,
gerada pelo mútuo constrangimento (Derathé, p.329). E isto porque, Derathé
continua, Rousseau concebe o povo (o soberano como personificação da coisa
pública) como uma das partes contratantes. A diferença entre o francês e o inglês
fica clara então porque Hobbes jamais concederia que é possível um contrato
com uma figura abstrata. Rousseau, porém, não é ingênuo: esse contrato só
pode assegurar a existência de um corpo político porque encontra no soberano
seu fiador. Portanto, como afirma Derathé, “[t]rate-se, para Rousseau, de chegar
à mesma conclusão por uma outra via, e a partir de princípios que não parecem
conduzir a ela” (Idem, p.332).
Para chegar a essa conclusão improvável, Rousseau lançará a tese de
que o contrato social não obedece às leis comuns do contrato, porque quem a
estabelece é cada cidadão com o soberano, mas o soberano incorpora a própria
ideia de povo. Ou seja, é um contrato de uma parte com o todo ao qual pertence,
o que fundamenta a ideia de vontade geral.
A vontade geral é a vontade do soberano (não como indivíduo mas como
personificação do povo), que tende por sua natureza à igualdade (Rousseau,
Contrato Social, II, 1). E tende à igualdade pois qualquer ato do soberano contra
um indivíduo em particular é um ato de si contra si mesmo. Por compreender a
figura do soberano constituída pelos indivíduos particulares, e não como Hobbes
como alguém a quem todos acordam em ceder suas liberdades naturais, o poder
político é sempre exercido, após o pacto social, por todos, através do corpo do
soberano, na forma de expressão da vontade geral.
Isto nos leva, por fim, a uma concepção de cidadania que está diretamente ligada
ao exercício do poder, diferentemente de Hobbes, e que inclui necessariamente
todos os indivíduos de um Estado, diferentemente de Aristóteles. Por isso
Rousseau pode subverter as duas consequências da relação entre cidadania e
poder, e afirmar que todo indivíduo é cidadão, logo o poder político deve ser
exercido conforme a vontade geral.
Bibliografia

ARISTÓTELES. Politics. In: The complete works of Aristotle. Editado por


BARNES, J. Volume 2, Bollingen Series. Princeton University Press: Princeton,
1995.

DERATHÉ, R. Rousseau e a ciência política de seu tempo. Ed. Barcarolla:


SP, 2009.

HOBBES, T. De cive. 1642. Disponível em:


http://www.unilibrary.com/ebooks/Hobbes,%20Thomas%20-
%20De%20Cive.pdf

ROUSSEAU, J.J. Du contrat social. 1762. Disponível em:


http://classiques.uqac.ca/classiques/Rousseau_jj/contrat_social/Contrat_social.
pdf

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