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Foederis arca 174 Tuberculosa .. 175 Flor do mar 178 Dilaceragdes .. 179 Regenerada 180 Sentimentos carnais .. 181 Cristais 182 183 184 185 186 187 188 189 190 192 193 194 196 197 198 199 Sinfonias do ocaso Rebelado ... Misica misteriosa Serpente de cabelos Post mortem Alda Acrobata da dor Angelus... Lembrangas apagadas Supremo desejo Sonata Majestade caida Incensos Luz dolorosa. Tortura eterna ... Notas .. 201 vu INTRODUCGAO, CEM ANOS DE SIMBOLISMO: BROQUEIS EALGUNS FATORES DE SUA MODERNIDADE Depois dos esforgos de Paula Brito, duas edito- ras destacaram-se no mercado livreiro do Brasil no século passado: Irmfios Garnier ¢ Laemmert. No ini- cio dos anos 90, surgiu Magalhies e Companhia. Por imposigio do mercado, essa editora teve de inves- tir em autores inéditos, sobretudo aqueles que, com algum escindalo, garantissem evidéncia av nove em- preendimento. Isso explica o langamento, em 1893, de dois livros estranhos a literatura de entio: Mis- sal ¢ Broquéis, de Cruz e Sousa. Langar um autor negro cinco anos apés a Abo- ligGo era um irresistivel apelo comercial. Além dis- s0, 0 jovem poeta liderava 0 grupo responsével pe- la divulgacdo do Simbolismo francés entre nds, em fragorosa oposigio ao dominio da poesia parnasia- na, Todavia, Cruz e Sousa no foi recebido com 0 esperado sucesso. Insensivel 4 hipétese de haver um IX grande artista negro no Brasil, a eritica do perfodo Gobretudo José Verfssimo ¢ Araripe Jinior) nfo soube apreciar o poeta, limitando-se a desestimular sua carreira. Entretanto, aquelas obras consolidavam, hd cem anos, 0 Simbolismo no Brasil. Missal (poemas em prosa) é um livro de realizagio insegura, permane- cendo sobretudo como documento das conquistas expressivas que levariam aos versos de Broquéis, Este sim, um grande livro. Resultado de paciente pesquisa nos dominios da linguagem, Broquéis representa nossa primeira experiéncia com a poesia pura, ba- seada ia idéia de que em literatura o significado nas- ce da forma, do chogue interno dos signos, das ima- gens ¢ dos ritmos impressivos. Em “Antifona”, poema-manifesto que abre o volume, hé uma estrofe sobre todas sugestiva, em que se acumulam diver- sos procedimentos do novo estilo, como a fusio si- nestésica dos sentidos, a exploracio musical das pa- lavras,a rarefagio do referente, a sugestéo cromati- ca, 0 emprego de maitisculas sem necessidade gra- matical ¢ a reiteragio do sinal de reticéncias: Indefiniveis misicas supremas, Harmonias da Cor e do Perfiam Horas do Ocaso, trémulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz reste. Esses versos so musicais nfo apenas no sentido de apresentarem aliterages ¢ assondncias sugestivas, mas sobretudo porque se baseiam no proceso da justaposigo cumulativa, Nao se relacionam pelo ne- x0 légico do discurso racional. Ao contrério, fun- cionam como se fossem notas musicais. Assim, 0 x sentido do primeiro verso soa isoladamente, para, depois, associar-se ao sentido do segundo e fundir- se com 0 das unidades seguintes, formadas pelos dois ltimos, Tsso quer dizer que Cruz e Sousa 6, com Broquéis,-o verdadeiro inventor do verso harm6- nico na literatura brasileira, Esse tipo de verso foi teorizado e proposto por Mario de Andrade em 1922, no “Prefécio interessant{ssimo”’, que é, como se sabe, um dos manifestos mais importantes da poe- sia modernista no Brasil. Mirio de Andrade definiu 0 verso harménico como uma espécie de combinagao de sons simulté- neos, de palavras isoladas que vibram sem conexio sintética, cujo sentido se completa com a ressondn- cia de um outro termo isolado posto adiante, nu- ‘ma modalidade verbal semelhante ao “acorde har- pejado” em musica, Além de palavras soltas, Mé- so usa também frases isoladas (sem conectivo l6gi- co), de cuja somatoria resulta a “polifonia poética”, apresentada como novidade de seu livro Paulicéia desvairada, O poeta reconhece que a tradigio fez ‘uso esporidico e inconsciente do verso harménico, citando exemplos em Victor Hugo, Gongalves Dias ¢ Olavo Bilac. A sistematizacio do verso harméni- co é que constituiria a novidade programética de seu estilo modernista. Todavia, Mario de Andrade do registra a experiéncia da harmonia poética dos versos de Broquéis. Nesse livro, 0 verso harméni- co encontra-se amplamente sistematizado, com a principal diferenea de que 0s vocibulos dos poemas de Matio pertencem a esferas semanticas mais dis- taneiadas entre si do que os de Cruz e Sousa, ainda que unidas pelo grande tema do cotidiano urbano de Si Paulo. Em outros termos, a matriz simbo- XI lista produz.o efeito de maior fragmentagio no poeta modernista. ‘A justaposigdo de frases sem verbo é tio freqiien- teem Cruz e Sousa, que pode ser classificada como um dos principais esquemas construtivos de Bro- quéis, uma de suas chaves estilisticas. sso certamente se prende & natureza pouco meditativa do livro, & sua tendéncia para a exploragio intuitiva dos moti- vos, a0 gosto por atmosferas e ambientes sugesti- vos. Com efeito, ha em Broquéis intimeros poemas com seqiiéncias de duas ou mais estrofes desprovi- das de verbo, ou seja, apoiadas na estrutara do ver- so harménico ou da polifonia poética. Nesses ca- 505, 0s versos trabalham quase sem movimento, mas com forte permeabilidade semfntica, pois 0 senti- do deles decorre da sobreposigio dos elementos, cujo verbo (um Unico para uma enorme enfiada de su- jeitos) se encontra bem adiante, no fim da enume- rapio nominal, Por exemplo, os dezoito primeiros versos de “Antifona” organizam-se dessa maneira, com 0 verbo principal no décimo nono e com ape- nas um outro secundério no fim da terceira estro- fe, Algo semelhante ocorre no infcio dos poemas “Vesperal”, “Tuberculosa” e “Angelus”. Hi tam- bém em Broquéis sonetos cujos quarvetos dependem de um verbo localizado apenas no comego do pri- meiro terceto, como “Deusa serena” e “Supremo desejo”. Sio bem mais freqiientes os sonetos cujo primeiro verbo principal sé aparece no segundo quarteto, conforme se pode observar em “Cristo de bronze”, “Bracos”, “Afra”, “Sati” e “Tortura eterna”. Em todos esses textos, os sintagmas sem verbo constituem-se da enumeragao caleidoscépica XDI de prismas diversos do mesmo motivo, da mesma impressio ou da mesma atmosfera. ‘A titulo de comprovagio da hipétese apresenta- da aqui, compare-se o poema “Inspiracio”, de Pau- licéia desvairada, com as quatro primeiras estrofes de “Angelus”, em Broquéis, tendo em vista a do- minante sintatica dos text. Inspirasio Sio Paso! comocio de minha vida Os meus amores sio flores feitas de original! Arlequinall.. Trajes de losargos... Cinza e ouro. Luz e Bruma... Forno e inverno morno... Elegincias sutis sem escindalos, sem cistmes. Perfumes de Paris... Arys! Bofetadas liricas no Trianon... Algodoal Sio Paulo! comogao de minka vida. Galicismo a bervar nos desertos da América, begs Ab! lilases de Angelus barmoniosos, Neblinas vesperais, crepusculares, Guslas gementes, bandolins sandosos, Plangéncias magoadissimas dos ares. Serenidades etereais @’incensos, De salmos evangélicas, sagrados, Saltérios, harpas dos Azuis imensos, Névoas de céus espiritualizados. Xm Angelus fluidos, de luar dormente, Diafaneidades ¢ melancolias... Siléncio vago, biblico, pungente De todas as profundas litwrgias. Como se vé, ambos pretendem sugerir uma at- mosfera particular, baseando-se na justaposigio de frases nominais, utilizadas & maneira de notas mu- sicais, cujo resultado é o que Mario de Andrade cha- maou “polifonia poctica’”, Nesse sentido, o texto de Cruze Sousa & até mais radical que o de Mario, pois acumula trés estrofes sem nenhum apoio verbal, ao ppasso que o primeiro apresenta duuas frases com ver- bo. Por outro lado, se 0 texto de Paulicéia desvai- rada ostenta aparéncia de maior modernidade, esta nfo resulta do processo sintético, e sim da selecao vocabular, de feigio mais cotidiana, Nao se descon- sidere, porém, que a sonoridade do primeiro texto & também de origem simbolista, podendo-se admi- tir, para exemplo, que a rima interna Paris Arys cor- responde mais ou menos, embora com menor po- der de sugestio, 20 jogo eufénico trémulas extre- mas, da estrofe de “‘Antifona” citada atrés. Todavia, tal aproximagio néo enfatiza tanto a modernidade de Broguéis quanto relativiza o aleance das inovagées de Paulicdia desvairada, que ¢ efeti- vamente um livro de concepeio conservadora, sem acrescentar muita coisa de essencial 4s conguistas do Simbolismo. Mas, de qualquer forma, a existéncia do verso harménico em Broquéis ensina que a musicalidade deste livro € antes estrutural que ornamental, aproximando-se tanto dos experimentos de Mallar- mé quanto dos de Verlaine, embora até hoje sua XIV construtividade mallarmaica jamais tenha sido posta em relevo, Sabe-se que Edmund Wilson classificou os simbolistas franceses em duas grandes familias: a sério-estética (Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, etc.) ea coloquial-irénica (Tristan Corbiére e Jules La- forgue). Dessa segunda linhagem nossos simbolis- tas nfo tomariam conhecimento. E muito menos a critica brasileira, tanto a do perfodo quanto a pos- terior, exceto o poeta-critico Augusto de Campos, 4.cujos ensaios e tradugdes se deve o conhecimento dessa poesia entre nds. Notavel é 0 caso de Camilo Pessanha em Portugal, cujo Clepsidra representa uma curiosa ¢ inventiva sintese das duas tendéncias do Simbolismo francés, conforme observou, em tex- to inédito, o professor Francisco Achcar. Na familia sério-estética da poesia simbolista possivel vislumbrar a existéncia de dois ramos: a ver- tcnte construtivista, de inspiragio mallarmaica; ¢a vertente neo-romintica, de inspiragio verlaineana. Cruz ¢ Sousa tem sido considerado um visceral re- presentante desta segunda tendéncia, em fungdo so- bretudo da exploragio de lances autobiogréficos em sua poesia, o que é verdade, mas somente a partir de Fardis — jamais em Broquéis. Insista-se que, além da melopéia do tipo da de Verlaine, ha nesse livro uma extrema preocupacio construtivista, da qual resulta sobrevudo a criagdo do verso harménico — correlato, sem dtivida, da concepgio de que o sig- nificado do poema é inseparavel de sua estrutura for- male de que as unidades significantes do texto de- vem antes se unir por justaposicéo sensorial que pelo nexo légico. Isso é nitida filia¢io a0 construtivis mo mallarmaico. xv 20K O procedimento reiterative é enfim, uma das prin- cipais chaves para o entendimento literario de Bro- quéis, manifestando-se também na desenireada env- meracio dos adjetivos, presente em quase todos 03 poe- mas do livro. Hid casos de adjetivagio bindria, tern’- ria, quaterndtia e até de cinco ou mais membros, co- mo se vé em “Incensos Rolos ’incensos alvadios, finos E transparentes, flgidos, radiantes, Que elevamse aos espacos, ondulantes, Em Quimeras ¢ Sonbos diamantinos. HA intimeras estrofes assim em Broguéis. O poe- ta parece identificar-se com a fluidez, dos elementos, observando-lhes os movimentos e as nuancas cromé- ticas, a0s quais associa uma sutil musicalidade e cer- tos tons odoriferos. No processo da percepeao desses speneavalhaniated ad areeeeivabeoeee {ere inusitado poder expressivo ao texto, assumindo a dificil capacidade de concretizar as mais abscratas sen- sages. Com efeito, imagens desse tipo parecem en- carnar 4nsias e impulsos do poeta, os quaisse confun- dem com as palayras, coisificam-se no fluxo verbal do texto. Considere-se a seguinte estrofe do soneto “Bragos”: Bragos nereosos, brancas opuléncias, Brumais brancuras, fillgidas brancuras, Alwuras castas, virginais alvuras, Lactescencias das raras lactescéncias. Redundancias dessa natureza sto freqiientissimas em Broquiéis, ora com maior ora com menor ampli- XVI tude, Mas em todos os casos devem ser interpreta- das como redobres musicais, como unidades signi ficantes que geram o fato estético, Nao sio meros portadores de contetidos ou sentimentos. Conceben- do 0s vocabulos como volumes geradores de signi- ficado, o poema nesses casos apresentarse como um organismo, uma montagem viva em que 0 meio é a propria mensagem, como na miisica. Na sexta estrofe do poema “Tuberculosa” tam- bém hé uma experigncia reiterativa bastante ousa- da, em que se acumulam nada menos do que nove adjetivos para um s6 substantivo, afiés ausente do sintagma frasal: Thica e branca, esbelta, frigida ¢ alta E fraca e magra e transparente e esguia, Tem agora a feigiio de ave pernalta, De une péssaro alvo de aparéncia fria Nio apenas os dois primeiros versos apresentam uma curiosa ousadia expressiva, mas também os dois tiltimos, pois o quarto é uma reduplicagao do ter- ceiro, uma espécie de retomada retificadora, que ofe- rece um detalhe a mais da imagem do animal que substitui a mulher de que se fala. Esse tipo de reite- ragio deve ser interpretado como um modo frag- mentario e prismético de conhecer a realidade: ca- da repeti¢ao corresponde a um prisma diferente de uma impress. Assim, a adjetivagio reiterativa de Broquéis, mais que um simples recurso retérico, & sobretudo uma modalidade de conhecimento, um tipo de apreensio da realidade, essencialmente sen- sorial e poético, que as vezes se confunde com o de- Lirio e © maravilhamento dos sentidos. XVIL Broquéisé, enfim, o primeiro livro a sistemati- zar 0 uso da repeti¢ao ostensiva em nossa literatu- ra, o que se constitui em flagrante fator de moder- nnidade, De fato, a repeticéo viria a se tornar um dos recursos mais expressivos da poesia contemporinea, como se depreende do mais ligeiro exame da obra de Drummond (“No meio do caminho”), de Joio Cabral (O cio sem plumas) ou de Haroldo de Cam- pos (Galéxias). ‘Outro fator de modemidade em Broquéisé a per- cepgiio metaforica da realidade, que se acha no cer- ne da poesia de Cruz ¢ Sousa. Ele néo apreende 0 mundo senio pela transfiguragio dos sentidos, pe- lo envolvimento sensorial com a realidade, Nessa relagio, os elementos mais dispares da natureza se associam em poderosas transformagdes. Sua poesia & uma espécie de espelho no qual a imagem do mun- do sempre se reflete distorcida. Sua sensibilidade pa- rece uma ldmina delicada que se exacerba ao mais ténue estimulo exterior. No soneto “Luz dolore- a...”, uma minima variagao da luz no espago & re- presentada como conseqiiéncia da agio de serpen- tes abocanhando 0 ar: Como que ocultas dspides flexéceis Morden da Luz os gérmens invistveis Com 0 téxico das céleras sombrias. Assim, as imagens de Brouéis pertencem ao ti- po deformador da realidade, a que poderfamos cha- mar de gongorismo expressionista, nfo s6 em virtu- de da dissolugio dos limites, como também por seus constantes exageros cromaticos. A alegoria das co- res & como efeito, um trago estilistico muito im- XVII portante em Brogucis. A freqiiéncia do branco nesse livro é particularmente intensa. Trata-se de um dos arquétipos mais estranhos ¢ inquietantes de nossa poesia, jé por ter sido criado por um negro entre brancos, jé por se associar & exaltagio da mulher ariana*, Menos forte, mas também muito expressi- va, éa presenca da noite e do azul. A partir de Fa- r6is, 0 vermelho tinto assume também proporgdes simbélicas e arquetipicas. Mas 0 ponto alto das inovagdes reconhecidas de Broquéis observase no estrato fSnico do poema. As renovagdes nesse mbito sio responsaveis talvez, pelo aspecto mais popular da sofisticada técnica de Cruz Sousa: a sonoridade ou harmonia imitativa, que decorre de um agudo senso do valor da repeti¢io como elemento de surpresa em poesia. Esse seria 6 aspecto de maiores conseqiiéncias na historia de nossa literatura, como deixam ver as influencias exer- cidas sobre uma das vertentes da poesia modernis- ta dos anos 30, representada sobrevudo por Cecilia Meireles Gregério de Matos, talvez o primeiro de nossos poetas, deixou um curioso acervo de experiéncias fonéticas, nZo s6 em suas misturas do poctugués com elementos do tupi e do africano, como também nos textos em que s6 operou com recursos do proprio yernéculo. Em ambos os casos, realizou preciosas * Abelardo Montenegro levantou a hipétese de que Broqueis representa as idealizagdes do noivado do poeta. Consultar Maria, Helena Camargo Régis, “TIntrodusio” a Poesia completa de Cruz e Sousz. Florianépolis, Fundasio Catarinense de Cultu ra, 1982, p, XIL XIX aueetyndg combinagdes sonoras, sobretudo com os fonemas duros e vibrantes. Todavia, os seus ensaios na poe- sia sonora foram acidentais, apesar dos resultados definitivos. Em Cruz e Sousa, ao contrério, a poe- sia sonora é essencial. Tanto por imposigao da es- cola, quanto por sua natureza sensorial e intuitiva. E no s6 por isso, como também por uma aguda ciancia para a miisica das palavras, obtendo dela re- sultados de sofisticada inteligéncia construtiva. Mui- tas vezes, esse virtuosismo fonémico é aplicado em delicadas composigdes de sons vocilicos, portado- ras de harmonias singelas e brandas, de que é exem- plo o belo poema “Vesperal”. Em outras ocasides, 6 poeta é arrebatado por ruidos mais evidentes. Os sons vocslicos mistirram-se, ento, aos consonantais, lembrando fanfarras, com clarins e grandes fulgu- rages, Mas, em todos os casos, a misica estard sem- prea servigo do sentido, variando conforme a at- mosfera que deseja sugerir. Veja-se como exemplo de musicalidade funcional a seguinte estrofe, extrafda de “Angelus”: Apareces por sonbos neblinantes Com requintes de graca e nervosismos, Fulgores flavos de festins flamantes, Como a Estrela Polar dos Simbolismes. E também muito freqiiente nos poemas de Bro- quéisa paronomésia. As vezes, ela surge sob a for- ma de anagrama sonoro, sempre com efeito ono- matopaico, agenciador do sentido, como ocorre em “Acrobata da dor”. A forma ri, do verbo rir, per- passa anagramaticamente todo o soneto, da primeira Altima estrofe, promovendo a fusio paradoxal de XX riso e dor, que marca a vida do palhago e do cora- cio humano. Algo semelhante ocorre com 0 pric meiro quarteto de “Lésbia’”, dominado pela juncéo real e virtual do r com o 4, para figurar a imagem acistica da gargalhada sugerida no poema: Nasse libio mordente ¢ convulsivo, Ri, ri risadas de expresso violenta O Amor, trégico e triste, e passa, lenta, A morte, 0 espasmo gélido, aflitivo... A confluéncia de procedimentos radicais envol- vendo os trés niveis de organizacio da linguagem faculta a Cruz e Sousa uma verdadeira alquimia ver- bal, rigorosamente singular em nossa poesia. Em suas experiéncias expressionais, nota-se 0 constan- te abandono da Idgica aristotélica em favor de uma logica do absurdo, de feigSo onfrica e freudiana, co- mo meio de engendrar imagens que representassem lampejos do inconsciente, Esse foi 0 real motivo da incompreensio do livro 3 altura do langamento, pois nao se concebia entdo um verso sem imediata refe- réncia 4 vida aparente dos fatos ou das emoges fa- cilmente identificaveis. Devia, portanto, ser dificil aassimilagio de seqtidncias como a seguinte, do so- neto “Dilaceragdes”, que nao se distancia muito da estética surrealista: Carnes virgens e tépidas do Oriente Do Sonho e das Estrelas fabulosas, Carnes acerbas e maravilhosas, Tentadoras do sol intensamente... XXI Broguéis contém 54 textos, dos quais 47 séo sone- tos. Embora sejam dominados pela opacidade de uma espécie de trobar clus que nio raro os aproxima da poesia sem assunto, podese perfeitamente vislumbrar nesses poemas alguns motivos bem delimitados. Jé em 1893, a critica se queixava da dificuldade em saber do que falavam os poemas, alegando que a musicalidade 0s igualava e tornava o conjunto monétono. Ainda hoje, num contato desprevenido, essa impressio pode- se repetir. Todavia, a leitura atenta revelara a inde- pendéncia e 0 valor dos textos, que podem ser agru- pados em torno de sete motivos prineipais. Ha certa técnica de composicéo que acompanha a matéria dos poemas, cuja esquematizagio certamente tornard mais acessivel a leitura do livro. 1. Esbocos de atmosfera vaga Hi quinze poemas neste grupo: “Sideragées”, “Em sonhos”, “Monja”, “Carnal e mistico”, “Lua”, “Pri- meira comunhio”, “Velhas tristezas”, “Vesperal”, “Cristais”, “Sinfonias do ocaso”, “Musica misterio- sa’, “Angelus”, “Sonata”, “Incensos”, “Luz doloro- sa”, Além do estranho lirismo alvar, talveza nota mais marcante desta série seja 0 suposto contato do poeta como cosmos, mediante a luz dos astros e uma migi- ca musicalidade do espago. Tais poemas realizam as propostas de“ Antifona”, constante do conjunto me- talingiifstico abaixo relacionado e que mantém {nti- ma conexio com este primeiro grupo. Aqui esto os verdadeiros poemas simbolistas de Broguéis, domi- nados pela vaguidade, pela abstragio ¢ pela configu- ragio ondulante e volétil dos elementos XxXIL 2. Metalinguagem Grupo composto por dez poemas: “‘Antifona”, “Siderages”, “Clamando...”, “Sonho. branco”, “Torre de ouro”, “Sonhador”, “Foederis arca’”, “Post mortem”, “Supremo desejo”, “Tortura eter- na”. Sio manifestos ou poéticas que tematizam o ato criativo ou a condigio do poeta. Quando falam da criagio literdria, reivindicam a abstragio, a mu sicalidade, a sugestio, o exotismo e o requinte for- mal. Pretendem também que 0 objeto da poesia se- ja a infinitude do cosmos, dos espacos impensdveis do mundo interior, das sensagdes dos desejos. Ao falarem do poeta, consideram-no um ser diminuf- do pela incompreensio mediocre dos contempor’- nneos, mas que se eternizaré pela forca redentora do canto. Hé uma espécie de teoria do poeta maldito. Ocorre também o tema da inania verba, isto &, da impoténcia do verbo em face da incapacidade ex- pressiva do homem, presente sobretudo em “Tor- tura eterna”, de feigio parnasiana, A metalingua- gem assume em Broquéis dimensdes menos expli- citas do que na poesia contemporinea. O soneto "Si deragdes", por exemplo, fala da escalada dos dese- jos e das ansias rumo 3 eternidade dos Astros, quer dizer, tematiza a comunicagio do individuo com 0 Absoluto, habitado por visdes, anjos e incriveis abstragdes rutilantes ¢ musicais. 3. Erotismo sensual Grupo com dez poemas: “Lésbia", “Mumia”, “Lubricidade”, “Bragos”, “Encarnagio”, “Tulipa XXII real”, “Danga do ventre”, “Dilaceracées”, “Senti- rmentos carnais”, “Serpente de cabelos”. Alguns des ses textos se distanciam sensivelmente da poética simbolista propriamente dita, embora se filiem ao erotismo agressivo de Baudelaire. So poernas algo esculturais, de muita contensio verbal ¢ extrema contundéncia, dominados por matizes escuros e pe- sados. Celebram a excegio e 0 excesso sexual. Al- mins so singularmente provocantes, como “Lés- ia”, “Midmia” e “Lubricidade”. Neles, a constan- te cumulagao de metéfora sobre metéfora, de adje- tivo sobre adjetivo, de cor sobre cor produz a im- pressio de que o poeta deseja redimensionar 0 mun- do, barbarizando-o de acordo com sua revolta pes- soal. Alguns desses procedimentos subvertem as di- menses do real, aproximando-se da técnica defor- madora de algumas correntes das primeiras vanguar- das do século XX, sobretudo o Expressionismo ale- mo. Origindria do satanismo de Baudelaire, tal pos- tura viria a desembocar no lirismo escatolgico de ‘Augusto dos Anjos, sensivelmente influenciado por Broquéis. Além dos poemas de feigo expressionis- ta, hd neste grupo textos moldados segundo a rare- facio semantica do Simbolismo, embora se apdiem ‘num sensualismo nio muito proprio da escola. Es sa segunda tendéncia dos poemas lascivos de Bro- quiéis poderia ser classificada de erotismo evanescen- te, pois se baseia na enumeragao caleidoscbpica de aspectos abstratos da motivacéo sexual, exemplifi- cada de maneira convincente em “Encarnacio” e “Bragos”. XXIV 4, Brotismo espiritual Grupo com seis poemas: ““Cangio da formosu- ra’, “Beleza morta”, “Deusa serena”, “Flor do mar”, “Alda”, “Lembrangas apagadas”. Sao textos em que a musicalidade abstrata e a transparéncia himinosa dos termos se harmonizam com a concepedo plato- nizante e contemplativa do amor, sendo por isso ti picamente simbolistas. Todos esses poemas apresen- tam tonalidades claras ¢ leves, embora “Flor do mar” seja predominantemente sombrio, mas com rasgos de luminosidade noturna. Os demais sio indefecti- velmente radiantes, fazendo erer que, na sensibili- dade do poeta, o amor espiritual se associava 3 cla- reza eis radiagdes da luz. O soneto mais radicalmente Mcido desta série é 0 famoso “Alda”, concebido co- mo uma verdadeira experiéncia com 0s sons ¢ as co- res claras, Nio menos luminoso o segundo quar- teto de “Deusa serena”, cujos versos apresentam, to- dos, uma ou mais tonalidades do branco: Agucena dos vales da Escritura, Da alvura das magnilias marcessiveis, Branca Via-Ldctea das indefiniveis Brancaras, fonte da imortal brancura. 5. Retratos extravagantes Grupo com sete poemas: “Sati”, “Afra”, “Judia”, “Tuberculosa’”, “Regenerada”, “Rebelado”, “Ma- jestade caida”. Trata-se de esboros psicoldgicos de pessoas ou entidades em estado de anormalidade psi quica e/ou fisica. Com excecdo de ““Tuberculosa”, XXV que apresenta imagens novas para a época, os demais textos desta série demonstram vocacio para o forma- lismo escultural do Parnasianismo. Mas nem por is- so deixam de ser interessantes, com um ou outro mo- mento de requintada agressio do tipo expressionista, tem que se barbarizam as formas ¢ 0s limites do real Rigorosamente, esses poemas deveriam pertencer a ‘uma subdivisio, mais fraca, do grupo trés, que tam- bém se compée de retratos extravagantes, acrescidos da tonalidade erotizante. 6, Visdes misticas Grupo com cinco poemas: “Cristo de bronze”, “Regina coeli”, “Noiva da agonia”, “Visto da mor- te”, “Aparigo”. Trata-se de contemplagdes religio- sas, com vocabulario e tonalidade predominantemente simbolistas. A atmosfera de mistério e misticismo.con- fere singularidade aos textos. Os trés iltimos sio alu- cinagdes misticas do tipo barroco. O tom visionério desses poemas deve ter influenciado 0 lirismo mor- tuirio de Alphonsus de Guimaraens. “Cristo de bron- ze” & a composigio mais inclassificével desta série. Configura-se a partir de uma enorme seqiiéncia de vo- cativosa Jesus, ora referido como estétua, oracomo homem, ora como Deus. Hé fusio de imagens devo- tas com alusdes a impulsos de lasctvia. 7. Alegorias pessimistas Grupo com dois poemas: “A dor”, “Acrobata da dor’, Ambos possuem feigio parnasiana. Repre- XXVI sentam 6 mundo como o império da afligio e do sofrimento. Por tentarem wm esbogo de poesia fi- loséfica, esses textos parecem ter caido nos dom{- nios do gosto popular. No primeiro, aparecem duas refertncias mitolégicas, praticamente inexiscentes em Broquéis. No segundo, ressurge uma sintaxe meio cléssica, com algumas subordinagdes, quase in- teiramente abandonadas no resto do livro. A estru- tura desse soneto é curiosa e revela um alto domi- nio do andamento construtivo do soneto. Formal- mente, tratase do desenvolvimento de um simile entre o coragio humano e o palhaco. Mas tem-se a impressio de que o seu nticleo tematico ¢ 0 se- gundo termo da figura, quando na verdade o ter- mo conereto e principal da comparacéo ¢ o primei- ro. Essa confusio resulta de uma aprecidvel sedu- eo Iidica do texto, charme a que certamente se deve sua popularidade, Ao lado de ““Majestade caida”, “Acrobata da dor” talvez seja a composi¢&o mais parnasiana de Broguéis, o que em nada perturba 0 Seu Virtuosismo sonoro, © Parnasianismo foi uma das correntes estéti- cas mais poderosas de nossa literatura, tendo influen- ciado, sem nenhuma excegiio de relevo, todos os poe- tas que escreveram entre 1880 ¢ 1920. Manuel Ban- deira, nfo obstante seja um dos criadores do Mo- demnismo, ainda mantém em seu segundo livro (Car- naval, 1919) alguns poemas do mais puro recorte parnasiano. Imagine-se, entio, qual nao teria sido © esforco de Cruz e Sousa para criar, no inicio da década de 1890, uma resisténcia eficaz contra essa estética. Foi um esforgo notavel e bem-sucedido. XXVIL “Traduziu-se nfo apenas na invengio de nosso Sim- bolismo, mas também em ataques abertos 20 Par- nasianismo e seus consumidores, como deixam ver os sonetos “Clamando...” ¢ “Torre de ouro”. Pa rece, portanto, estérila insist&ncia académiica em de- monstrar que o nosso primeiro livro simbolista con- serva ainda muitos tragos parnasianos. Tais tragos existem de fato, mas so irrelevantes no conjunto. Representam aquilo que as correntes renovadoras tradicionalmente preservam do movimento prece- dente. Do ponto de vista da evolugdo das formas, ‘0 que importa para a caracterizagio de obras nessa situag%o € o grau de inovagio e a dominante estilis- tica que se impde ao texto. Assim, mais do que sim- bolista, Broguéis é instaurador da sensibilidade con- tempordnea em nossa poesia. Sobretudo por eleger a invengio lingiistica ea consciéncia formal como suporte da expressio. Ao completar cem anos, ¢ ain- da um livro pouco envelhecido. XXVIII CRONOLOGIA DA VIDA E OBRA. DE CRUZ E SOUSA 1861. Nascimento do poeta, em 24 de novem- bro, na cidade de Nossa Senhora do Desterro, atual Floriandpolis, entdo capital da Provincia de Santa Ca- tarina, Os seus pais eram o escravo Guilherme e a lavadeira Carolina Eva da Conceigéo, ambos negros sem mistura, Foi educado em casado marechal Gui- Iherme Xavier de Sousa, como filho adotivo. 1869, Ingresso na escola ptiblica, depois de re- ceber as primeiras letras de sua mie adotiva. Decla- maces de poesia em festas escolares ¢ caseiras, 1871, Matricula no Ateneu Provincial Catari- nense, onde estudaria com distingdo grego, latim, in- slés, francés, portugués, matematica e ciéncias natu- rais. Nessa escola teve aulas com o sébio alemao Fritz Miiller, de quem o futuro poeta receberia elogios en- tusiastas. Esse naturalista era amigo e correspondente de Darwin e Haeckel, Morte de Castro Alves, no in- terior da Bahia. 1877. Inicio daatividade profissional, como pro- XXIX,

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