You are on page 1of 2

p.

05- Dias, desde esse tempo, e parece que já mesmo antes, nunca largou esse
ofício de pajear malucos. Não é dos mais agradáveis e é preciso, além de paciência
e resignação para aturá-los, uma abdicação de tudo aquilo que faz o encanto da
vida de todo o homem. É ele, por assim dizer, obrigado a viver no manicômio, só
podendo ir ter com a família, ou o que com isso se parece, a longos intervalos,
demorando-se pouco no lar. Ouvir durante o dia e a noite toda a sorte de
disparates,
receber as reclamações mais desarrazoadas e infantis, adivinhar as manhas, os
seus trucs e dissimulações — tudo isto e mais o que se pode facilmente adivinhar,
transforma a vida desses guardas, enfermeiros, num verdadeiro sacerdócio.

p.10- Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de


loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as
manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se
percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte. Não há espécies, não há
raças de loucos; há loucos só.

...De resto, quase nunca os filhos dos loucos são gerados quando eles são
loucos; os filhos de alcoólicos, da mesma forma, não o são quando seus pais
chegam ao estado agudo do vício e, pelo tempo da geração, bebem como todo o
mundo.

p.21- Quantas coisas, dos seus usos e costumes, eles nos legaram? Muitas! A
farinha da mandioca, do milho, certas tuberosas, nomes de rios e lugares, muitos,
adequados e expressivos. Hoje, a vaidade nacional batiza os lugares com os mais
feios nomes que se podem esperar. Enseada Almirante Batista das Neves! Só falta
um doutor, também. Esta nossa sociedade é absolutamente idiota. Nunca se viu
tanta falta de gosto. Nunca se viu tanta atonia, tanta falta de iniciativa e
autonomia
intelectual! É um rebanho de Panúrgio, que só quer ver o doutor em tudo, e isso
cada vez mais se justifica, quanto mais os doutores se desmoralizam pela sua
ignorância e voracidade de empregos. Quem quiser lutar aqui e tiver de fato um
ideal
qualquer superior, há de por força cair. Não encontra quem o siga, não encontra
quem o apoie. Pobre, há de cair pela sua própria pobreza; rico, há de cair pelo
desânimo e pelo desdém por esta Bruzundanga. Nos grandes países de grandes
invenções, de grandes descobertas, de teorias ousadas, não se vê nosso fetichismo
pelo título universitário que aqui se transformou em título nobiliárquico. É o Don
espanhol.

p.24-... Num dado momento, trepado e de pé na cumeeira, falando, cabelos


revoltos, os braços levantados para o céu fumacento, esse pobre homem surgiu-me
como a imagem da revolta...
Contra quem? Contra os homens? Contra Deus? Não; contra todos, ou
melhor, contra o Irremediável!

p.32- Dizia Catão, segundo Plutarco, que os sábios tiram mais ensinamentos dos
loucos que estes deles, porque os sábios evitam os erros nos quais caem os loucos,
enquanto estes últimos não imitam os bons exemplos daqueles. Plutarco, página
178. 2v.

p.44- — Uma manhã, levei Chagas a almoçar comigo. Chagas era um excelente
rapaz de coração, generoso, cavalheiro, poeta sem verso nem prosa, mas tomava
para mexer comigo, no dizer familiar, uma atitude satânica e cínica. Logo que
entrou
e deu com a moça, disse-me em vez baixa:

— Olha que ela não é má, Mascarenhas. Para Musa é pouco escultural, tem
muito pouco de Deusa; na rua das Marrecas, há mais perfeitas; mas, para o fabrico
dos feijões e dos bebês, deve ser excelente.

Fechei a cara e Chagas não continuou nesse diapasão.

p.59- O curto encontro com esse rapazola criminoso, ali, naquele pátio,
mergulhado entre malucos a delirar, a fazer esgares, uns; outros, semimortos,
aniquilados, anulados, encheram-me de um grande pavor pela vida e de um
sentimento profundo da nossa incapacidade para compreender a vida e o universo.

Lembrei-me, então, dos outros tempos em que supus o universo guiado por
leis certas e determinadas, em que nenhuma vontade, humana ou não, a elas
estranhas, poderia intervir, leis que a ciência humana iria aos poucos
desvendando... Não sorri inteiramente; mas achei tal coisa ingênua e que todo o
saber humano só seria útil para as suas necessidades elementares de vida e nunca
conseguiria explicar a sua origem e o seu destino. Tudo mistério e sempre mistério.

Em tal estado de espírito, penetrado de um profundo niilismo intelectual, foi


que penetrei no hospício, pela primeira vez; e o grosso espetáculo doloroso da
loucura mais arraigou no espírito essa concepção de um mundo brumoso, quase
mergulhado nas trevas, sendo unicamente perceptível o sofrimento, a dor, a miséria,
e a tristeza a envolver tudo, tristeza que nada pode espancar ou reduzir.
Entretanto,
pareceu-me que ver a vida assim era vê-la bela, pois acreditei que só a tristeza,
só o
sofrimento, só a dor faziam com que nós nos comunicássemos com o Logos, com a
Origem das Coisas e de lá trouxéssemos alguma coisa transcendente e divina.

Shelley, se bem me recordo, já dizia: “Os nossos mais belos cantos são
aqueles que falam de pensamentos tristes”...

p.62- Minha mulher nunca teve para mim uma palavra azeda, uma palavra má; e,
conquanto às vezes birrento, mudo, nunca a tratei senão com delicadeza e cordura.
Se tenho algum arrependimento das minhas relações com ela, não é por nenhum
dos meus atos externos; era pela minha reserva de alma e de pensamento, que
sempre mantive em face dela; é da minha incompreensão dela, enquanto viveu, e da
grande esperança e do grande desejo que eu realizasse o meu destino.

You might also like