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DESISTÊNCIA E FIM DO MUNDO: A DEPRESSÃO

1. Introdução

É setembro amarelo, mas em vez de falar sobre a morte auto infligida, prefiro falar sobre
um dos fatores que aparece associado ao suicídio e que, eu imagino, faça mais parte da
nossa vida, que é um certo mal-estar presente no mundo hoje que a gente tem chamado
de depressão.

Mas a depressão tem alguns tipos. Assim como o suicídio também os seus tipos. Tem um
sociólogo, o Durkheim, por exemplo que vai separar o suicídio em três tipos, o egoísta,
quando a pessoa se mata pra resolver um problema dela; o altruísta, quando ela deseja se
matar pra resolver um problema dos outros; e um terceiro tipo, o suicídio anômico,
quando a morte é decorrente de certas variações sociais, especificamente, na sociedade
industrial e comercial... eu vou falar mais disso depois. A gente tem ainda suicídio
decorrentes da loucura, quando a pessoa surta ela acaba encontrando no suicídio um meio
de se acalmar...

E, no caso da depressão, a gente tem pelo menos dois tipos, uma forma crônica, que é
quando a pessoa que apresenta esse estado de apatia, desânimo e tristeza desde muito
nova, e uma depressão mais “normal”, vamo dizer assim, que é aquela decorrente
situações da vida – perder o emprego, não passar no vestibular, por exemplo.

Não vou falar aqui dos sintomas da depressão, a gente imagina quais sejam, e a gente
imagina certo, porque a gente já conheceu alguém que tem depressão ou a gente mesmo,
já passamos ou estamos passando por esse estado. A pergunta que eu gostaria de colocar
é: “porque que esse negócio, esse sofrimento, tem abatido tanta gente no mundo de hoje?”

Se eu coloco a pergunta assim, é porque eu decidi abordar a questão por uma perspectiva
cultural ou histórica. Tendo tomado essa decisão, vou dizer que a depressão não é um
sofrimento que a pessoa tem, mas é algo que tem uma relação com a sociedade e com o
tempo em que vivemos, poderia fazer a pergunta em outros termos também: “porque o
nosso mundo tem produzido tantas pessoas deprimidas?” e pra responder a essa pergunta
a gente tem fazer um diagnóstico do mundo, então, em que mundo estamos vivendo?

Certamente, tem muita cosia boa no mundo hoje, pensem no que quiserem, mas como
vamos tratar aqui de um tipo de sofrimento, vou meio que abstrair tudo que possa ter de
bom no mundo e focar na parte ruim dele, vou focar no “copo meio vazio”, como se diz.
E pra focar nesse copo meio vazio eu vou começar falando da nossa experiência de futuro.

2. Futuro

Uma das características do futuro, é que ele fala com a gente, nos filmes de viagem no
tempo, tipo de volta para o futuro e o exterminador do futuro, o que acontece ali? Vem
um sujeito do futuro e ele fala, “olha, alguma cosia deu errada lá na frente, por isso a
gente tem que mudar alguma outra coisa aqui no presente pra podermos consertar aquele
bagulho”. Se a gente trazer isso pra nossa vida, suponhamos que a eu queria ser
engenheiro lá no futuro, então o que eu devo fazer no presente é focar nos estudos, por
exemplo; se eu tenho uma namorada e eu quero me casar com ela, eu devo iniciar a traçar
planos pra minha vida; se eu quero comprar um carro ou uma casa, eu preciso, no
presente, começar a economizar dinheiro... e é esse futuro que orienta nossa experiência
do presente, o futuro é uma fantasia que nos anima a viver um dia depois do outro.

Vou dizer assim, que o regime de expectativas orienta nossas vidas no presente.

Mas o regime de expectativas não é algo sumamente individual, eu ter expectativas


quanto à minha vida não é algo que depende só de mim... claro que depende de mim
também, depende da minha história de vida e do que eu construí da minha vida até o
momento. Porém, tem certas emanações do futuro, de um futuro socialmente
estabelecido, que acabam se depositando sobre mim.

Tem um pintor do fim da idade média chamado Hieronymus Bosch que pintava vários
quadros com umas imagens de demônios, de vícios e degradação humana. É claro que
naquele tempo os demônios e essas representações que esse cara pintava não estavam ali
daquele jeito, empiricamente, contudo, a gente não consegue entender o fim da idade
média sem recorrer a essas representações, elas eram como que emanações daquele clima
hostil de desfazimento social, de proximidade do apocalipse que assombrava aquele povo
naquele tempo.

Algo parecido acontece conosco hoje, se vocês pegarem os filmes de ficção científica de
Hollywood da década de 70 em diante quase todos eles sem exceção vão tratar de um
futuro em que a humanidade ou está se destruindo ou se destruiu, em que uma grande
catástrofe se abateu pelo mundo... filmes como Blade Runner, Wall-e, O Garoto e seu
Cão, Happen, Um Dia Depois de Amanhã... proponho que esses filmes sejam tomados
como uma espécie de índice sobre como nós enxergamos ou sentimos o futuro hoje em
dia. Se eram as forças do progresso ou da revolução que animavam a humanidade do
século XVIII até o início do século XX, hoje, são as forças da catástrofe ou da
degeneração.

Mas como que essas forças se depositam sobre as pessoas? Todo momento as mídias nos
brindam com as notícias do perigo ambiental, a violência urbana, a ameaça de guerra...
essas ameaças globais. Contudo, não é necessário que a gente esteja preocupado com o
futuro da humanidade pra gente acabar se entristecendo, imagina que um dia vocês se
encontrem desmotivados com a escola, você para de fazer o dever, inicia um processo
gradual de desinteresse pela escola, mas, nem por isso você fica superinteressado em
futebol ou festa, você fica só meio desanimado, e vai se desanimando cada vez mais. Isso
pode ser um modo de sentir o futuro; assim como o artista pode representar o tempo em
que vivia numa pintura, através da representação de um demônio e, no nosso caso, por
meio de um filme que mostra uma catástrofe global no futuro, nós, podemos sentir o
futuro, ou a falta de futuro por meio de uma leve tristeza, de um leve desânimo ou, no
limite de uma desistência generalizada. Eu disse um pouco antes que o que impulsiona
nossas vidas é um regime de expectativas, são fantasias que estão ali no futuro, bom, se
não temos fantasias colocadas no futuro ou se o futuro é só o que ruim, porque que nós
vamos investir no estudo, na família ou na vida, se viver não vale a pena? Se não tem
motivos pra viver porque na, verdade, não tem futuro?

A desistência característica da depressão tem a ver com esse fechamento do horizonte de


expectativas, com o decrescente horizonte de expectativas vivido de uma maneira
individual.

3. Campo de experiências

Mas agora temos outro aspecto disso que tamos chamando de “mundo”. O campo de
experiências. Como que a gente pode descrever o modo de ter experiências no mundo
atual?

As nossas experiências, grande parte delas são vividas de duas maneiras no mundo de
hoje: como experiências individuais e como experiências de mercado. As nossas
experiências são individuais porque, via de regra, as lemos assim, quando um sujeito
perde o emprego a nossa tendência e a dele também é ler essa experiência como se o
culpado pelo ocorrido fosse ele, tem muita gente que diz que quem não trabalha é
vagabundo ou que o cara foi demitido por incompetência. Tudo bem, tem gente que não
trabalha, a gente pode ser, porque é vagabundo e tem gente que foi demitido porque é
incompetente, mas se vocês forem dar uma olhada nesse lance de automação, vocês vão
ver que muitos cargos no mundo hoje foram reduzidos ou eliminados por conta do
desenvolvimento tecnológico, então, em certa medida, não tem emprego pra todo mundo.
Daí, se o cara foi demitido, é muito difícil enxergar esse evento como se fosse um
problema mundial, o cara vai pensar “o que eu fiz de errado?”. Como se o erro fosse dele
e não do mundo. Do mesmo modo a depressão, quando a gente cai abatido, desanimado
e triste, a gente tende a pensar que tem algo de errado conosco, que tem algum defeito
fisiológico daí a gente vai lá e toma um remédio, pra consertar esse defeito fisiológico. A
gente pensa que a gente é fraco, porque não teve forças pra continuar jogando o jogo.

Daí entramos no segundo aspecto, nossas experiências são vividas como experiências de
mercado. A experiência de mercado é uma experiência que se caracteriza por duas coisas:
competição e superficialidade.

3.1. Superficialidade

Vamos pensar primeiro na experiência de superficialidade. Qual a experiência mais


superficial que podemos ter no mundo hoje? A resposta é, umas das experiências que
mais temos, a experiência de compra e venda. Imaginem quando vocês vão num
supermercado, depois de ter enchido o carrinho de compras, você passa as compras pelo
caixa e daí você entrega o dinheiro, ele te dá o troco e você vai embora. Essa relação, nós
podemos dizer, foi uma relação muito superficial, você não precisa saber o nome da caixa
do mercado pra fazer as compras ali, a tal ponto que, você não precisa nem mais ir no
mercado, você pode fazer compras pela internet e daí não precisa se relacionar com
ninguém. Assim, nossa experiência superficial também aparece em outros lugares onde
outrora não apareceriam, por exemplo no instagram. Ali a gente compartilha uma foto
esperando recompensas que se parecem com essa compra no supermercado. Depois de
compartilhada a foto, as recompensas são um tanto anônimas ou impessoais, o pessoal
curte a parada, comenta um pouco e é nisso que se baseia, em grande parte, nosso convívio
social hoje em dia. Parece que vivemos tanta coisa num espaço de tempo tão curto,
notícias, fotos, encontros de todo tipo, mas não conseguimos tirar daí nada de muito
significativo pra nossa vida... assim como as compras feitas no supermercado não
significam muito pra nós, toda essa vida vivida de maneira mais ou menos superficial
parece que não é bem integrada no nosso tecido vivido, na nossa história, não tem muito
significado.

3.2. Competição

Por outro lado temos a competição, como segunda característica da vida vivida como
mercado ou mediada pelos pressupostos do mercado. A competição, a gente pode
caracterizar ela como um jogo no qual sua posição é hierarquizada, e, num limite, alguns
ficam sem recompensas. Por exemplo, não tem vaga pra todo mundo no mundo. Não tem
vaga pra todo mundo que quer ser médico ou engenheiro, não tem o último IPhone pra
todo mundo e quanto mais escasso é o bem, mais prestígio tem aquele que o possui. Se o
mundo se fundamenta em grande medida pelos bens escassos, cada colega, cada outra
pessoa é um usurpador, um antagonista ou um competidor em potencial, o que, acaba por
reforçar a experiência individualista do mundo. A hostilidade e a competição que é
comum em todas as sociedades é vivida na nossa por meio desse ambiente empresarial
ou mercadológico, é vivida nessa disputa por bens escassos que nos conferem prestígio.

4. Resumo

Bom, então, até agora eu falei aqui de alguns fatores com os quais a gente pode
caracterizar o mundo de hoje: primeiro eu falei do horizonte de expectativa decrescente,
de como que a gente tem representado o futuro de maneira negativa; depois eu falei do
campo de experiências, sobre como nossas experiências são mediadas pelo
individualismo, como que o peso do mundo acaba recaindo sobre o indivíduo, a
responsabilidade do sucesso ou do insucesso depende toda do empenho desse sujeito e
depois eu falei sobre como que a competição e a superficialidade no campo de
experiências acabam também drenando nosso tesão ou nossa vida. Antes de continuar
vou contar um caso.

5. A Fazenda

Eu li uma tese de doutorado de uma socióloga em que ela estudava reality shows, e daí
ela conta de uma edição da Fazenda da Record, em que uma participante chamada bárbara
um dia juntou as coisas e saiu da casa, simplesmente, sem nenhum alarde sem falar com
ninguém, ela simplesmente saiu. Ela desistiu do jogo. Quando eu li isso eu pensei que é
um negócio muito parecido com o tipo de desistência do depressivo. Ele não dá um show,
ele não briga com a família, quebra a escola, xinga o chefe, ele simplesmente desiste,
silenciosamente. Ele se recolhe. Porém, diferentemente da Fazenda, onde a participante
saiu do jogo, na vida real, quando a gente se recusa a jogar o jogo, o jogo meio que nos
cobra a participação e nos pune por isso. Se a tem um cara mal porque perdeu emprego
ou porque não tá indo bem na escola ou porque simplesmente o que ele tem vivido não
faz sentido, a sociedade vai cobrar dele essa desistência. Pode ser que as pessoas digam
explicitamente, “você tem que estudar”, “tem que trabalhar”, “tem que sair do quarto”,
mas mesmo se não dizerem nada, mesmo que ninguém diga ele sente esse peso, esse
espírito social falando com ele: “você é fraco, sua vida não tem valor”.

6. Desistência

Então, o depressivo é alguém que desistiu do jogo, porque o jogo tá sendo jogados nesses
moldes, um jogo que é um fim em si mesmo, posto que não tem futuro, um jogo que é
deletério, porque individualista e mercadológico (competitivo e superficial).

É curioso notar como esses vídeos de empreendedorismo e algumas coisas de coach


promovem exatamente isso, “batalhe, empreenda, seja um vencedor!” e o depressivo é
exatamente alguém que não quer vencer porque esse jogo é um jogo que não faz sentido
pra ele. Mas, ao mesmo tempo em que o jogo não faz sentido, não existe nada além do
jogo. Vocês percebem? A experiência do mundo é toda tomada pelo individualismo e
pelo mercado, e a experiência que, em tese, estaria fora do mundo, ou seja, o futuro, tá
destruída. Daí a clausura do depressivo. Daí o desafio dessas pessoas e, o que espero ter
mostrado, também, o desafio do nosso tempo, um desafio que é, também coletivo, essa
tristeza que toma conta de muitos de nós é a tristeza do mundo é um sentimento que,
muitas das vezes, não é coisa particular – se nosso cachorro morre a gente fica triste, se
um dia nossos pais sofrem um acidente, a gente também fica triste, tem um monte de
tristezas que não têm a ver com o mundo, têm a ver com a nossa vida particular –, mas
tem uma tristeza que tá meio generalizada que ela existe e não é culpa de ninguém, ou
ainda, que é culpa de todo mundo.

7. Conclusão

E eu não tô aqui pra dizer pra vocês qual a solução ou qual a resposta, de certo modo,
cada pessoa que passa por esse mal-estar do nosso tempo tem que inventar meios de
atravessar essa difícil jornada que é estar vivo. Tem gente que gosta de arte, outros de
política, outros de religião ou esporte, as respostas são das mais variadas e o depressivo
é aquele que ainda não encontrou um jeito seu de habitar esse mundo estafante. Alguém
que por ora, perdeu seu desejo. E que, num limite máximo, tem vontade de perder-se a si
mesmo também, tirando a própria vida.

Tem um serviço chamado CVV, centro de valorização da vida, em que eles têm um
telefone, o 188, em que o atendente é um voluntário, com pouco treinamento mas
nenhuma formação, e essa pessoa voluntária tá lá só pra escutar, a pessoa em aflição liga
e só de ela ter a possibilidade de pôr pra fora o que ela tá sentindo isso já causa um grande
alívio. É comprovado esse canal de fala ou de escuta tem um efeito enorme em dirimir
suicídios.

Em determinada medida, esse sujeito triste que passa por processos de sofrimento muito
fortes, é um rebelde em relação ao mundo, é um rebelde quanto a isso que chamei de
“jogo”. No mundo de hoje, você pode fazer tudo, menos não “jogar o jogo”, daí o sujeito
deprimido é um rebelde porque escolheu não jogar o jogo, mas, ainda não escolheu nada
pra pôr no lugar, por isso ele se encontra prostrado e sozinho, daí, os canais de escuta já
seriam um jeito de romper com esse sofrimento mudo ou com o desejo que no momento
se encontra anestesiado.

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