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O que é Satide Coletiva? Ligia Maria Vieira-da-Silva * Jairnilson Silva Paim + Lilia Blima Schraiber INTRODUGAO A Satide Coletiva pode ser definida como um cam- po! de produgio de conhecimentos voltados para a com- preensio da satide e a explicagao de seus determinan- tes sociais, hem como o dmbito do priticas divocionadas Prioritariamente para sua promoedo, além de voltadas para a prevengdo e o cuidado a agravos e doencas, to- mando por objeto nao apenas os individuos mas, sobre- ‘tudo, os grupos sociais, portanto a coletividade (Paim, 1982; Donnangelo 1983), ‘Tratando-se de uma drea nova, nem sempre hd uma preocupagéo em distingui-la da Satide Publica. Por outro lado, observa-se que diversas instituigdes © programas de pés-graduagao ¢ graduagdo pertencentes a area da ‘Satide Coletiva tém nomes diferentes, como Instituto de Medicina Social, Departamento de Medicina Preventiva, Escola Nacional de Satide Publica, Mestrado em Satide Comunitéria ou Instituto de Satie Coletiva, Qual a razao para essa diversidade de designagies? Como ¢ pot que ocorreu a criacdo desse novo espago de saberes ¢ priticas no Brasil, nos anos 1970, com a deno- minagao de Satide Coletiva? Qual sua relagdo com movi- mentos semelhantes no eenévio intornacional? Qual eua importancia para a resolugéio dos problemas de satide da populacdo e para o atendimento das necessidades de saido? Embora a Satide Coletiva historicamente tenha sido constituida, principalmente, por médicos, outros profis- sionais, como cientistas sociais, enfermeiros, odontélo- 0s, farmacéuticos, e também agentes oriundos de ou- ‘tras dreas do conhecimento, como engenheiros, fisicos e arquitetos, contribuiram para sua construgdo. Trata-se, 'ampo estd sendo aqui empregado como os autores citados origi nalmente 0 utilizaram, ou soja, como coneuito que designaria um spago social msis amplo ¢ complexo que tuma simples drea de co shociment, LL portanto, de uma area multiprofissional interdiscipli nar. Para que a definigfo de Satide Coletiva aqui apre- sentada seja mais bem compreendida em sua especific dade e amplitude, em termos de agentes e disciplinas, ¢ necessirio rever brevemente a histéria de seus antece- dentes e seu nascimento, ANTECEDENTES Conhecimentos ¢ intervenedes sobre a saide em uma perspectiva colctiva foram contemplados na histéria por diversas iniciativas politicas e movimentos de ideias re- sumidos a seguir. Aritmética Politica e Policia Médica Embora diversas intervengdes voltadasa preservagao da saiide e ao enfrentamento das deengas, no Ambito po- pulacional, possam ser registradas desde a Antiguidade cléssica, foi apenas no periodo mercantilista e com o desenvolvimento do Estado Moderno que surgiram, na Alemanha, a Policia Médica, com Johann Peter Frank, ¢ na Inglaterra, a Aritmética Politica, com William Petty (Rosen, 1994 [1958)), A Aritmética Politica consistia na sistematizacao de informagées populacionais sobre natalidade © mortali- dade e na formulagio de recomendagdes para uma agio nacional, bem como de instancias organizativas na érea da sade. Petty, em 1687, propés a criaglo de um Conse- ho de Satide em Londres e de um hospital para o isola. ‘mento de pacientes com peste (Rosen, 1994 [1958)). dJéna Alemanha, a administragéo do Estado era de- nominada, desde 0 século XVI, Policia. Em 1655, Veit Ludwig Seckendorf formulou o que deveria ser um pro- grama de satide do Governo voltado para 0 bem-estar da populacao. A expressio Policia Médica foi usada por Wolfang Thomas Rau, em 1764, e posteriormente desen- 3 volvida por Peter Frank, entre 1779 e 1817, em uma Yolumosa obra que continha recomendagdes de ages voltadas para a supervisio da satide das populagies, 0 que conrespondia a regulamentagio da educagiio médiva, supervisio de farmécias e hospitais, prevengio de epi. demias, combate ao charlatanismo ¢ esclarecimento no iiblico (Rosen, 1994 [1958)) Higiene, Medicina Social e Saude Publica © termo higiene (hygeinos em grego) ex um adje- tivo que designava, na Grécia Antiga, aquilo que era “silo”. Até o século XVII, os manuais que tratavam da satide referiam-se a seu “cuidado” ou sua “conserva. So", mas a partir do século XIX passaram a denomi. har-se manuais de higiene (Vigarello, 1985), Sua trans. formagio em disciplina médica e em um corpo de eo. nhecimentos especificos ocorreu na Europa, entre o fi. nal do séeulo XVIII e o infcio do século XIX (Vigarello, 1985). Na Franca em particular, em 1829, foi langada a revista Annales d’hygiéne publique et de médecine lé- gale, que no prospectus de seu primeiro mimero apre- sentava a higiene puiblica como “..a arte de conservar @ satide nos homens reunidos em sociedade...” © como uma parte da medicina®, Nessa perspectiva, a medicina nio teria somente por finalidade estudar e curar as doengas, mas teria relagdes intimas com a organizacao social; 8 vezes ajudaria o legislador na elaboragdo de leis, esclarecendo frequentemente o magistrado em sua aplica¢do, e sempre velaria com a administragio pela manutengio da saiide do piblico, 0 movimento higienista foi caracterizado por alguns autores como sinénimo de medicina social, termo cunha. do om 1948 por Jules Guerin, editor da Gazeta Médicn de Paris. © historiador George Rosen considerava ter sido a medicina social francesa uma decorréneia dos desdobramentos da Revolugio de 1848 e do proceso de industrializacdo. Assim, para esse autor, a Medicina So. Gial Francesa apoiava-se em trabalhos sobre a situacao de satide dos operérios realizados por Villermé (1840) ¢ Benoiston de Chateauneuf, entre outros, ¢ propugnava modificagies sociais para a resolugao de problemas de satide, Também na Alemanha, ideias semelhantes foram desenvelvidas por Rudolf Virchow e Salomon Neumann, que consideravam a ciéneia médica essencialmente so. cial (Rosen, 1983). JA para o filésofo Michael Foucault, a medicina mo- derma é uma medicina social no sentido de que é uma Pritica social, ou seja, intervém sobre a sociedade e sofre 88 influéncias desta, mesmo quando atua sobre indivi. Guos. Analisando o corpo como uma realidade biopoli- S Annales dygiéne publique et de médecine tgale, ‘Série 1, 2.01), SegéoI + EIXos tica, ou seja, em suas dimensdes biolégica e do poder, esse autor considera que o controle da sociedade sobre 0s individuos comega com o corpo, Nessa perspectiva, oa- Facterizou 0 desenvolvimento da medicina moderna no perfodo supramencionado (final do século XVIII e infcio do século XIX) em trés configuragées: a medicina de Es. tado, a medicina urbana e a medicina da forca de traba. Iho (Foucault, 1979). 14 a denominacéo Savide Pablica surgiu na Ingla- terra. A industrializagdo, que se acompanhou do au. mento do ntimero de trabalhadores assalariados, tem sido associada ao agravamento das condigées sanitérias das populagdes urbanas (Engels, 2008 [1845)) e as res. Postas estatais a essa situagdo, Hese fenémeno foi ob- servado particularmente na Inglaterra, no século XTX. Uma comissao governamental designada para rever 4 legislagio voltada para os pobres e coordenada pelo ad. vorado Edwin Chadwick claborou, em 1842, um docu. mento intitulado “Relatério ou uma Investigagdo sobre 8 Condigdes Sanitérias da Populagao Trabalhadora da Grd-Bretanha’, que continha, além de um diagndstico sobre a situapao sanitaria, diversas proposigées de inter. vengies relacionadas com o saneamento das cidades o a correspondente organizagao administrativa estatal (Ro- sen, 1994 [1958]). Seguiram-se ao Relatério Chadwick Giversas iniciativas legislativas que culminaram com 0 Primeiro Ato de Saiide Publica, editado om 1848, e com a criaciio de um Conselho Geral de Satide (Rosen, 1994 (1958). As escolas e faculdades de Satide Piblica s6 fo vam criadas na Inglaterra na passagem do século XIX ara o XX (Paim, 2006). ‘Também nos EUA, a industrializagdo © as epide- ias do final do século XIX levaram o Congresso Ame. ricano a eriar um Departamento Nacional de Satide, Proposto por um movimento de reforma da satide or. Sanizado em torno da Associagéia Americana de Satide Publica, em 1879 (Fee, 1994). Embora com o advento da bacteriologia tenha sido conferida uma énfase A di. mensfo técnica da Satide Publica, concepedes mais am Plas foram explicitadas no inicio do século XX, como na clissica definicéo de Charles Edward A. Winslow, bacteriologista e fundador do departamento de Saride Publica da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale (Boxe 1.1), No Brasil, apes de satide © saneamento voltadas ara o espaco urbano eo controle de epidemias acompa- nharam 0 desenvolvimento do Estado Nacional na pri- meira Republica (1889-1930) (Lima et al., 2005). Bssas ages, bem como as formas de organizacio estatal cor. respondentes, sofreram influéncia, em certa medida, dos modelos europeus anteriormente mencionados (Trin. dade, 2001). Esse perfodo, marcado pela realizado de campanhas sanitarias para o controle da febre amarela urbana, coordenadas por Oswaldo Cruz, ficou conhecido ts Uma definigéo de Satde Pablica Em 1926, Charles Edward A, Winslow, entio professor de ‘Medicina Experimental da Universidade de Yel, foi procurado Por dois estudantes da graduacSo que queriam uma orienta- ‘60 sobre as careiras a seguir estando particularmente inte ressados em saber 0 que eva a Saude Pilblica, Winslow, ent, sentindo a necessidade de formular uma melhor definicao que englobasse as tendénciase possibilidades dessa drea que para ele representava uma das mais estimulantes atrativas abertu "a para estudantes universtirios naqueles dias, elaborou um atigo para a revista Science, onde formulou a seguinte defini ‘io para a Saide Piblica “Sate Publica é a ciéncia e 2 arte de prevenir 2 doenca prolongar a vida, promover a aude fsica e a eficiénca através dos esforcos da comunidade organizada para o saneamento do meio ambiente, o controle das infeccdes comunitris, a educa- ‘40 dos indviduos ns principios de higiene pessoal, a organiza «#0 dos servigos médicos ¢ de enfermagem para o diagndstico recoce ¢ © tratamento preventivo da deenga © 0 desenvohi- ‘mento da méquina social que assegurara a cada individuo na comunidade um pacrio de vids adequade para a manutencéo da sade" (Winslow, 1920:30 - traducéo lve) como “sanitarismo campanhista’. O perfodo seguinte, que vai de 1930 2 1964, correspondeu A progressiva ins- titucionalizagao das campanhas sanitérias, inicialmente em um Departamento Nacional de Saiide do Ministério da Educacéo e posteriormente no Ministério da Satie, criado em 1953 (Paim, 2003). Duas outras concepgies de sanitarismo desenvolveram-se nesse periodo: 0 deno- minado “sanitarismo dependente”, que correspondia ao modelo importado dos BUA, adotado pela Fundagao Ser- vigo Especial de Satide Pablica (FSESP), ¢ 0 sanitarismo desenvolvimentista, cujo pressuposto era que o desen- volvimento econémico resultaria em melhoria do estado de satide das populagies. Paralelamente ao desenvolvimento da higiene e da Satide Publica surgiram diversas instituigdes voltadas para a assisténcia médica individual, inicialmente fi nanciadas pelas caixas de aposentadoria e pensdo dos sindicatos e posteriormente pelo Estado, por intermédio dos Institutos de Aposentadoria e Pensio (IAP), para diversas eategorias de trabalhadores (maritimos, ban- cérios, comerciirios e servidores ptiblicos, entre outros). Essa assisténcia médica dirigida aos trabalhadores re sistrados formalmente nas empresas foi posteriormente estondida a suas familias com o apoio da Previdéncia Social, que também respondia pelas aposentadorias demais beneficios trabalhistas. Por isso, foi denominada “medicina previdencidria’ Progressivamente, desenvolveu-se um setor privado que passou a ser financiado em parte pelo Estado e om parte pelo mercado, como é 0 caso dos planos de satide privados, e que configurou um modelo assistencial pre- dominantemente hospitalar, teenificado e voltado para ‘as agdes curativas individuais Pair, 2003). Movimentos de reforma do ensino médico: a criagéo da Medicina Preventiva Entre as raizes histéricas da Saiide Coletiva est dois movimentos de reforma da medicina que bus reorientar a pritica médica por meio de mudangas formagio dos médicos nas escolas de medicina. Sao © movimento em prol de uma Medicina Integral, qu: sultou na eriagio do uma disciplina nova no curricul médico, a Medicina Preventiva, eo movimento pela Me dicina Comunitria (Boxe 1.2). Considerando que @ Medicina Integral ea Medicina Comuni= tirla foram movimentos surgidos jé no século XX, n5o podemos deixar de mencionar um grande reformador do ensino méic: ‘Abraham Flemer, também situado no sécule XX. Como explica- romos 2 seguir, porém, a reforma Flexner teve um caréter distin 10 desses outros dois movimentas. | Flexner, que viveu entre 1866 ¢ 2959, foi um pesquisador © professor emericano que realizou extensa investigacao sobre 28s condigdes do ensino médico nos EUA eno Canadé, apresen- tando resultados e propostas de mudanca curricular na publi- 2¢S0 Medical Education in United States and Canada. report | {fo the Camegie Foundation for the Advancement of teaching (Floxner, 1910), Sue preocupacgo central foi com o desnivel de qualidade entre 0s profissionais formados nas diferentes es coles médicas, Atento & base cientfica da medicina, enquanto conhecimento e prética profissioal, Flexner buscou apontar 2 necessidade da formacao do aluno tanto nas ciéncias em geral, cde maneira preparatéria 8 mecicina, como, em segundo esta gio, nas ciéncias basicas que d30 suporte direto 8 medicina, © que seria complementado com o aprendizad profissionali zante em préticas clincas hospitalaes conjugadas a investiga (20 laboratorial. Em suas palavras:"(.) Pode-se descrever com justeze que a modema medicina & caracterizade pelo manejo rtco da expariéncia. (.) No ambito pedagégico, e medicine ‘moderna, como todas as educagdes cientificas, & caracteizada pela atividade. © aluno nao mais apenas olha, ouve ou memo- vita ele faz. Sua propria etvidade no laboratério e na clinica & © fator principal em sua instrucdo e no ensino. (.) © progresso dda ciénciae da praca cientifica e racional da medicina empre- {98 exatomente a mesma técnica (..) Investigacdo e pritica sao, entéo, um s6 em espirit, método e objete. (.) O hospitl & ele préprio, em todos os sentidos um laboratério’ (Extra Schraiber, 1989: 109-10), Com essas caractersticas podomos dizer que a reform px posta por Flexnes © que foi amplamente acatadl, sister € formalizou as especificidades proprias & modernizacao <2 dicina e com isso impulsionou essa madernizacdo, em c om 2s proposias da Medicina Inageal eda Mecicina Co Fla, que apresentaram reformulagées para 0 mod de ensino médico. Fexner, alguns anos depois do refer estudo, exoandiy sua ‘avaliacio das escoles médicas também para alguns paises da Europa, comparando-as com a situaglo americana, na publica (80 Le formation du médecin en Europe e aux Etats-Unis: étude comparative (Flexner, 1927), Para uma melhor compreensio des especifcidades modemi- zantes da medicina consult Luz (1986) e Nogueira (2007, Seco + EIKOS Originados nos EUA, no periodo 1940/1960, esses movimentos constitufram importante base da eritica a0 modo progressivamente especializado e segmentador com que a pritica médica vinha sendo desenvolvida e ensinada. Isso porque esses movimentos pretendiam que os médicos, em sua prética cotidiana, nfo tratassem apenas da medicina curativa e, ainda mais, aquela cen- trada em ramos especializados, mas que fossem capazes de um cuidado global do paciente. Esse cuidado deveria buscar uma concepeao ampla de savide, como horizonte da assisténcia médica que ofereciam nos servigos, preo- cupando-se também com a prevengio ¢ a reabilitagao do doente para a retomada de suas atividades usuais na vida social (Schraiber, 195). Buscavam, assim, ampliar a visao do médico quanto a sua intervengao, acreditando com isso que 08 servicos teriam, por consequéncia, uma teorientagao assisten- cial, E para aleangar essa nova visio, acreditavam ser necessiirio e suficiente uma boa reforma curricular. No caso da Medicina Integral, a proposta girava em torno da concepsao de uma formagao mais ampla e integrada integral”), com um conjunto de disciplinas no ensino miédico que fosse capaz de rearticular o “todo biopsicos- social” @ que correspondia o paciente. Jé com certa cri tica a0 excesso de aprendizado hospitalar, afastando 0 aluno das condigées de vida usuais do paciente e, assim, tornando dificil sua formacdo inserida em um euidado global, « proposta da Medicina Integral viu na introdu ‘Go de uma disciplina voltada para a Medicina Preventi- vva.e imediatamente articulada com disciplinas das elén. cias da conduta e das ciéncias sociais, de que se trataré mais adiante também, o instrumento para a integragéio que postulava, entendendo que a propria Medicina Pre- ventiva teceria a coordenagiio das disciplinas biolégicas. No easo da Medicina Comunitéria, movimento que sucedeu ao da Medicina Integral, além de adotar tam- bém as referéncias anteriores, a critica a formagao do médico enfatizou 0 ensino exclusivamente centrado no hospital. Propiciando ao aluno apenas o aprendizado nas patologias mais raras © em situagdes apartadas da familia e da comunidade, o ensino hospitalar o impedia de interagir com as patologias mais frequentes e apren- der uma pritica tecnologicamente mais simplificada, A importéncia desses tiltimos aspectos na proposta estava dada polo momento hist6rieo em que surgiu: nos anos 1960, a medicina americana jé via dificuldades de cober- tura assistencial de parte de sua populaglo, sobretudo a mais carente e a de idosos, uma vez que tal cobertura estava, como ainda esté até hoje, muito associada A con- digo empregaticia. Considerando os custos crescentes da assisténeia médica, que se relacionam com as teeno- Iogias mais sofisticadas e a simplificagdo destas em pra- ticas voltadas para as patologias mais comuns, a Medi- cine Comunitéria surgia, naquele momento, como uma proposta de reforma capaz de satisfazer tanto a maior integracAo na atengao prestada, com énfase nas praticas de prevencio, como a diminuigéo dos gastos com a as- sisténcia médica, o que propiciaria uma cobertura mais fécil de ser estendida a toda a populagao. ‘Areforma entiio sugerida foi a de acrescentar & forma- ‘¢80 médica a experiéncia do akuno em préticas assisten- cinis extramuros do hospital-escola, localizando-se diteta- mente nas comunidades e de preferéncia entre as poptla- oes mais carentes, Desse modo, a Medicina Preventiva e a Comunitaria propuseram uma certa rearticulagio dos conhecimentos biomédicos na dimenséo social e populacional do adoeci- ‘mento, o que ampliaria, segundo os proponentes dessas refarmas, a concepeiio acerca do processo satide-doenca e seus determinantes que « medicina eliniea vinha eons- truindo quando enfatizava uma abordagem individual e biomédica. Essa critica seria retomada na Satide Co- Jetiva, que, no entanto, apontou para a necessidade de reformas nfo s6 educacionais, mas, sobretudo, do pri- prio sistema de satide ¢ da sociedade: das condigées e mercado de trabalho dos profissionais, dos modelos de atengio A populagao, bem como das politicas eeondmicas Departamentos de Medicina Preventiva ea Medicina Social A partir da proposta da Medicina Integral, da criagho de departamentos de Medicina Preventiva nas escolas médicas americanas e dos seminérios promovidos pela Organizagao Pan-Amerioana da Saride (OPAS) para a di- fusio dessas ideiae ¢ a implantagao dessas unidades aca- démicas (OPS, 1976) foram eriados os primeiros departa- mentos no Brasil, na década de 1960. Contudo, sua ins titucionalizagio e expansfo ocorreram, efetivamente, na década seguinte, apés a Reforma Universitéria de 1968. Embora muitos estudos analisom essa oxperiéncia na América Latina e no Brasil, dois se destacam por sua abrangéncia e contribuigées criticas. O primeiro, inicia- do em 1967 (Garcia, 1972), visava a avaliagao do ensino dos aspectos preventivos ¢ sociais da medicina, mas foi ampliado para contemplar o processo de formaco e suas rolagSes com a pratica médica ea estrutura social. Entre ‘8 t6pieos analisados no ensino dos departamentos de Medicina Preventiva destacavam-se as medidas preven- tivas, a epidemiologia, a medicina quantitativa, a orga- nizagdo e administragio de servigos de satide, além das chamadas “ciéncias da conduta’, incluindo a sociologia, a antropologia e a psicelogia social. O segundo estudo (Arouca, 2003), conchuido em 1975, partia do reconhe- cimento das dificuldades no ensino desses aspectos em sociedades que nio produziram mudancas nos sistemas de saide e atribuiam diferentes valores a vida humana Capitulo 1 + 0 que € Sauide Coletiva? em funcdo de sua estrutura de classes sociais, situagao ae configurava 0 “dilema preventivista’” A penetragio da questo do “coletivo” de mancira sistemaitiea como também pertinente a assisténcia mé- ica aparece como um dos efeitos da implantagao dessos departamentos. Originalmente tratava-se de uma certa redugio do social limitada a suas manifestagies no in. Gividuo Donnangelo, 1983) e nfo como compreensio da estrutura social em suas relagGes com a satide, seja como uum setor produtivo, um estado da vida ou uma area de saber. Bsse entendimento vai sendo construfdo, progres, sivamente, por meio de novos estudos, tempos depois, im, as contradigdes e conflites presentes na s0- ciedade brasileira possibilitaram uma critiea ao preven. tivismo e uma aproximagao as concepgdes da Medicina Social elaboradas na Europa no século XIX, a partir das Iutas sociais ali desenvolvidas e, especialmente, das con. ‘uibuigdes de Rudolf Virchow (Rosen, 1979; Paim, 2006). A produgéo de conhecimentos no Brasil diversifiea te. as, objetos © metodologias, com distintas conotagdes para a nogio de “coletive’: como mefo ambiente; come colegio de individuos; como conjunto de efeitos da vida social; como interacio entre elementos; o “coletivo trans. formado em social eomo campo especifico o estruturado de priticas” (Donmangelo, 1983: 27), Esta iiltima acep. so, ou sea, 0 “eoletivo” que toma o social como cbjeto Privilegiado na produgao do saber e na intervencéo, vai marear 0 desenvolvimento da Medicina Social no Bra- sil, especialmente em programas de pés-graduagio de determinados Departamentos de Medicina Preventiva e Social e de Bscolas de Saiide Piiblica, Quando governo passou a apoiar algumas linhas de pesquisa em Medicina Social, por moio do Programa ‘de Estudos Socioecondmicos em Satide (PESES) da Fio- cruz, com 0 auxilio da Financiadora de Estudos e Proje. tos ~ Finep (Bseorel 1999), desenvolveu-se um trabalho tedzieo voltado para a Medicina Social entre alguns de. Partamentos de Medicina Preventiva e Eseolas de Satide Piblica. Esta aproximagio a Medicina Social, no plano académico, era alimentada por movimentos sociais que colocavam em debate a questio satide e propostas de re. Aefinigdo das politicas de satide no Brasil que resulta, tam na Reforma Sanitaria Brasileira e no Sistema Unico de Sade (SUS) EMERGENCIA DA SAUDE COLETIVA (A expresso satide coletiva era utilizada desde a dé cada de 1960 como referéncia a problemas de satide no nivel populacional (OPS, 1976) e em documentos oficiais que mencionavam uma dada matéria do curriculo mi- nimo do curso médico, proposta pela Reforma Univer- sitéria de 1968, Essa matéria incluia a epidemiologia, ® estatistioa, a organizacdo ¢ administragao sanitéria,) as cléncias sociais, entre outras. Portanto, a introduggo Gesses contetidos na graduagao dos profissionais de sat. de fot iniciative dos departamentos de Medicina Preven. tiva, junto a seus equivalentes nas escolas de enferma. fem, farmécia, veterindria, odontologia ete. Nos cursoa de aperfeicoamento © especializagio, essas disciplinas cram ministradas pelas escolas de satide publica que osteriormente passaram a contribuir para a constitui. fo da area, (No final da déeada de 1970, a expressto satide coleti- vva foi usada como titulo do primeito encontro nacional de cursos de pés-graduagHo entio existentes no Brasil, de. nominados Medicina Social, Medicina Proventiva, Satide Comunitéria e Saide Publica. Nessa oportunidade, fol Proposta a criago da Associagao Brasileira de Pés-gra- Guagio em Saiide Coletiva (ABRASCO), cuja formaliza, so passou a ser discutida em reunides posteriores em Ribeiro Proto e no Rio de Janeiro e que foi fimdada em setembro de 1979 em Brasilia, (Com base no relatério final do I Encontro Nacional de Pés-graduaciio em Satide Coletiva, realizado em 1978 na cidade de Salvador, um dos cursos participantes pro- curou explicitar o que se entendia por satide coletiva (ver Boxe 1.3). Portanto, essa drea do saber busca entender a satide/doenea como um proceso que se relaciona com a estrutura da sociedade, o homem como ser social e histé- Tico, ¢ 0 exereicio das agies de smide como uma prética social permeada por uma pritiea técnica que é, simulta. neamente, social, sofrendo influéncias econdmieas, pol ticas ¢ ideoldgicas (Paim, 1982). ) ( Percebe-se, desse modo, a constituigao de uma nova area de produgéo de conkecimentos cientificos que se desloca de abordagens téenicas de temas especitioos pre- valentes na satide publica tradicional (satide materno. ‘infantil, dermatologia sanitéria, saneamento etc.) ou de enfoques convencionais de epidemiologia o da admin tragio ¢ planejamento de satide para uma abordagem multidisciplinar. A ineorporagio das ciéncias cociais em sua constituiglo tornava possivel o redimensionamento tanto da epidemiologia como da politica, da gestio e do planejamento de satide. ) As primeiras publicagdes da ABRASCO tinham como denominagio Ensino da Satide Publica, Medicina Preventiva e Social no Brasil (ABRASCO, 1982). Nesse particular, a realizacdo do I Encontro Nacional de Mes. trados e Doutorados da Area de Satide Coletiva em Si0 Paulo (1982), 08 estudos sobre 0 ensino e a pesquisa em Satide Coletiva no Brasil (Donnangelo, 1983; Magaldi & Cordeiro, 1983) ¢ a realizagio do 1? Congreso Nacional da ABRASCO, realizado em parceria com a Associagio Paulista de Satide Pablica em So Paulo, entre 17 ¢ 21 de abril de 1983, parecem reforgar a denominagio de Satide Coletiva. Na segunda metade da década de 1980, © titulo da referida publicagdo da ABRASCO, sintoma- 8 PEE see cote guna tesco de reeréncia '2) A saide, enguanto estado vital setor de producto e campo de saber ests erticulade & estrutura da socedade através das suas instincias econémicas e poltco-ideolégicas, apresen tando, portanta, uma hstoriidade, [As acoes de saide (promoc3o, protecio, recuperagto, rea blitacao) constituem uma prética sociale trazem consigo as influéncias do telacionamento dos grupos sociais. 9 O objeto da Satide Colativa é construido nos limites do bio- Tgico e do social e compreende a investigacao dos determi- rentes da producéo socal das doencas e da organzacio dos Sservicos Ge saide e 0 estudo da historcidade do saber e des praticas sobre os determinantes. Nesse sentido, 0 caster in- ferdiscilinar desee objeto sugere uma intagracdo no plano do ‘conhecimento,e no no plano da estratégia, de reunir prois- sionals com miltiplas formagses. 6) O ensino da Saiide Coltiva envohe a critica permanente dos sucessvos projetos de redefinic2o das praticas de sade suri dos nos paises coptalitas, que t2m influenciade a reorganiza~ {fo do conhecimento médica e a reformulagio de modelos de prestacio de servicos de said: Refotma Senitéri, Medicina Social, Medicina Integral, Medicina Preventiva e Medicina Co rmunitétis © 0 proceso ensino-aprendizagem no & neutro. Representa lum memento de apropriagao do saber pelo educando e pode ‘ser acionado coma pratica de mudang2 ou de manutencéo. 4) O conhecimento nao se da pelo contato com a reaidade, mas pela compreensio de suas les e pelo comprometimento com 13s forces capazes de transforma [A paicipacéo ativae criatwa do educando e do educador no processo ensino-aprendizagem pressupde o privilegiamento Ge uma pritica pedagdgica fundamentalmente dialégica & Antiautortria, na qual © aluno no se limita a receber con- texidos emitidos pelo professor Ou sea tanto o aluno come ‘0 professor aproveitamn-se do momento pare problematizar 2 Tealidade, o mado de peneirla eo préprio processo de produ (io-transmiss20-apropriacéo do conhecimento, hy © ensino da Saude Colativa remete @ uma concepcéo ample ide prstca. Nela se incluem a pratica técnica, a pratica teori- a € pratica politica, entendidas como dimensoes da price social Nessa perspective, as prticas exercidas pelos alunos ¢ professores tandem a se articular com os movimentes mais amples das forcas socias. |} O coneeito de insergde no complexo de sade admite 3 par- ticipagdo de docentese discentes em distintos niveis politico "sdministratvos, técrico-acminstratvos e técnico-operacio ais. A anise das priticas de sade deservolvidas pode de- Finear como pritca pedagdgica 2 pratica das mudancas no complexo de satde. |) © concelta de participagio em satide transcende © envolvi mento dos grupos intaessados no Ambito do planejamento, (gestBo e aveliaco das agbes de saide. Esse conceto passa pela democratizagéo da vida socal, © que implica a aco orge- rizada sobre o processo politico (Pam, 1982: 18-9) b 9 ticamente, foi substituido por Estudos em Satide Cole- tiva. Embora a proposigao do movimento que resultou na criagio da ABRASCO fizesse uma critica clara 4 Me~ dicina Preventiva e A Satide Pablica institucionalizada, essas denominagies e concepgdes persistem até hoje em algumas instituigée ‘A crise do setor saide desde a década de 1970 vai propiciar tentativas de reatualizagio na formagio de re- SecdoI + £IXOS cursos humanos, diante das propostas de extensiio de co- bertura de corvigos de satide, conformanido uma “tendén- cia racionalizadora”, Beta possibilita uma confiuéncia de {nteresses com o preventivismo e com um projeto eritico de Medicina Social que se expressa, contraditoriamente, nos programas de residéncia om medicina preventiva e social, tratando-se de uma “tentativa deconciliar a Sade Pablica com a medicina social ¢ com a medieina preven- tiva” (Ronseca, 2006: 34). Ji a formacio dos sanitaristas, em um contexto em que o Estado, sob a influéncia do liberalismo, favoreeia a ‘medicina privada, mas buscava a contengiio das doencas cepidémicas e endemias rurais, enfatizava o adestramen- to na especializagio com instrumentos ¢ téenieas, pois, ocarvia uma certa correspondéncia entre o saber produ- ido e os modos de intervongao. Para tal formagio no eexistiam grandes eontradigdes entre o campo de saber € 0 dimbito das priticas Todavia, o desenvolvimento do projeto critica de Me- dicina Social nos programas de residéneia em medicina preventiva e social, bem como nos cursos de mestrado e doutorado, deflagrava tensbes académicas e, sobretudo, politicas em fungi das criticas realizadas a situagio de satide e as politicas de satide implementadas pelos go- ‘vernos autoritérios, Essas trés tendéncias ~ preventivis- 1a (Medicina Integral), racionatizadora (Satide Publica) ¢ tebrico-critica (Medicina Social) — conviveram contra- ditoriamente nos programas de pés-graduagiio durante a década de 1980 e, possivelmente, se reproduziram na Reforma Sanitaria Brasileira (RSB) enquanto correntes, liberal-sanitarista, racionalizadora e eriico-socialisia Portanto, desde suas origens, a RSB carregava distintas concepodes © projetos politicos para a satide em suas di- ‘mensdes cetorial societéria (Paim, 2008). Um dos estudos pioneiros para a fandamentagio conceitual ¢ tedrica da Satide Coletiva Donnangelo, 1983) efetuou uma delimitacio aproximada dessa area de conhecimento nio por meio de definigdes formais, mas examinando um conjunto de priticas relacionadas com ‘a questiio satide na sociedade brasileira, considerando-a sum campo de saber e de pratica. ‘Ao trazer para a roflexiio a nosao de “campo”, aler- tava que essas tendéncias néo afetavam a dominancia da medicina individual e que o carter politico da Satide Coletiva nao podia ser ocultado, como geralmente ocor- re na medicina quando apela para a cientificidade das ciéncias naturais. A Satide Coletiva, ao contrério, a0 lidar com uma multiplicidade de quostes que atraves- sam as ciéneias naturais e sociais, implica a necessidade de construgo do social como objeto de anélise e como campo de intervengio (Donnangelo, 1983). Hsse social 6 diverso ¢ supée, obviamento, diferentes interesses, po- sigSes ¢ projetos daqueles que 0 compdem em distintas conjunturas. Capitulo 1+ © que £ Sade Coletiva? Na década de 1980 foi realizada uma reunifio sobre as Ciéncias Sociais em Saude, promovida pela OPAS, ‘quando a denominagio Satide Coletiva passou a ser di- fundida internacionalmente, agrupando pesquisas reali- zadas (Nunes, 1985; 757). 6 possivel inferir, a partir dai, a influéncia dessas contribuigdes, quando alguns autores passam a usar na América Latina termos como Medici- na Social ou Saide Coletiva, em vex de expressies que designavam disciplinas ou grupos de disciplinas (Garcia, 1985). Os dotalhes dessa “inveneao” brasileira, sua ¢o- ciogénese e as condigbes de possibilidade histérieas tém sido objeto de estudos e pesquisas. CONDIGOES DE POSSIBILIDADES HISTORICAS DO SURGIMENTO DA SAUDE COLETIVA Que fatos © processos histéricos possibilitaram a criaglo da Satide Coletiva brasileira? Pode-se afirmar que o financiamento das fundagdes amerieanas (Rocke- feller, Kellog, Milbank, Ford), a agio politico-institucio- nal da OPAS, os auxilios da Finep, a conjuntura politica a situagao do campo intelectual e do campo médico bra- sileiro nos anos 1960 ¢ 1970 contribuiram nessa direcio. Modernizagao do ensino da medicina e as. agéncias americanas (Kellog, Rockefeller e Milbank) Embora existam controvérsias sobre a introdugfio da medicina experimental no Brasil, se no século XIX ou no infeio do século XX, a vinda da miso Rockefeller, em 1916, impulsionou 0 processo de moderniza¢o do ensino médico, na esteira do relatério Flexner (Boxe 1.2), e com o aporte de recursos consideraveis para a Faculdade de ‘Medicina e Cirurgia de Sao Paulo tendo posteriarmente viabilizado a eriacao do Instituto de Higiene de Sao Pau- Jo, que, em 1945, viria a se transformar na Faculdade de Satide Publica (Faria, 1999). O objetivo da missao Rockefeller era substituir o mo- delo francés do ensino médico pelo americano com a prio- ridade dada ao regime de tempo integral e & pesquisa Jaboratorial, o que implicava a introdugao de uma clinica experimental, ou seja, uma cliniea apoiada na pesquisa bésica, Ao lado disso, tinha também por objetivo fomen- tar 0 ensino da higiene e apoiar ages de saneamento, controle de endemias ¢ educagao para a sade (Faria, 1999), Na Bahia e em outras universidades do sul, como foi o caso da Universidade do Estado do Rio de Janci- ro (VERS), esse processo ocorreu a partir da década de 1950. A introdugao do ensino da Medicina Preventiva contou com a participagio da OPAS e foi financiada pela Fundagao Kellog, que concedeu bolsas de estudo a médi- cos recém-formados do Brasil e de outros paises da Amé- rrica Latina que fizeram residéncia ou mestrado em areas Dasicas. Além disso, a Fundagio Kellog financiou a eria- cdo dos Mestrados em Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e de Xochimilco, no ‘México, em 1974, e diversos outros departamentos. Organizagéo Pan-Americana de Satide (OPAS) e Juan Cesar Garcia A OPAS foi a instituigao que protagonizou a difusio do ensino da Medicina Preventiva na América Latina, tendo patrocinado a realizacio dos semindrios de Viiia del Mar (Chile) e Tehuacan (México), na década de 1950 (OPS, 1976). Posteriormente, apoiou e promovew o desen- volvimento da denominada Medicina Social Latino-Ame- ricana, prineipalmente devido & atuagio de Juan Cesar Garcia, médico e sociélogo argentino (Nunes, 1989). Garcia nao apenas formulou as linhas gerais de um programa de estudos e ago, mas também desempenhou 0 papel de lideranga politica, tendo mobilizado recursos ins- titucionais para apoiar os programas emergentes de me- dicina preventiva e introduzir neles o ensino das ciéneias sociais em savide de abordagem histérico-estrutural (Spi- nelli et al., 2012). A OPAS contou com o financiamento da Fundagao Milbank nessas atividades. Seus programas visavam & formacao de liderangas, permitindo que inte- lectuais criticos imprimissem a diego ao provesso, cujas iniciativas eram vistas como inovadoras (Garcia, 1985). Contradigées da conjuntura politica nacional No perfodo analisado, particularmente nos anos 1960 ¢ 1970, havia no mundo uma experiéneia socialis- ta em curso, e grande parte da intelectualidade latino- -amoricana era marxista. No Brasil, 08 partidos com essa orientagao politica tinham projetos de transforma- fo socialista da sociedade, seja pela via da reforma, seja pela via da revolugdo. A Medicina Social, inspirada nos movimentos reformistas © revoluciondios franceses do séeulo XIX, conforme meneionado anteriormente, apare- cia coma um projeto altemnativo. A maioria dos fumdadores da Satide Coletiva teve participacdo atuante nas lutas pela democratizacao do pais e contribuiu para a construgio de um movimento com ampla participagao de diversos grupos sociais — a Reforma Sanitiria Brasileira (Paim, 2008; Escorel, 1999). As principais ideias acerea do que seria a Medici- na Social latino-americana ocorreram nos anos 1960 e, segundo Garcia, sofreram influéneia do tagdo de 1968 (Garcia, 1985). Por outro lado, durante 0 Governo Geisel, em um contexto de crise econdmica e crescente insatisfagao s0- cial, foi formulade o IT Plano Nacional de Desenvolvi- lima de constes- 10 mento (II PND), que propunha explicitamente a redis- tribuicdo indineta de renda mediante a oferta de bens servigos sociais, Além disso, foi feito um investimento no desenvolvimento da pesquisa e pos-graduagio por inter- médio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cienti- fico (CNPq) ¢ da Finep, que desenvolveu linha de finan- ciamento para programas sociais, entre os quais estava a satide, Um desses programas, 0 Programa de Apoio 20 Desenvolvimento Social, estimulou a formulagao de trés programas importantes para a constituigio da Satide Co- letiva: o Programa de Estudos Socioecondmicos em Satide (PESES), o Programa de Estudos ¢ Pesquisas Populacio- nais e Epidemiolégicas (PEPPB) e o programa de apoio & pés-graduactio em Medicina Social do Instituto de Medi- cina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERI) (Ribeiro, 1991). DESENVOLVIMENTO DA SAUDE COLETIVA A evolugiio da Satide Coletiva brasileira, desde 0 ano da fundagio da ABRASCO, em 1979, da qual participa- ram os seis Programas de Pés-graduagao entio existen- tes, até a realizagao da avaliagio trienal pela CAPES referente ao periodo 2007-2009, revela uma expansiio € coneolidagaio dessa rea. Bm 2009, existiam 48 programas de Pés-graduago em Satide Coletiva, contando com 944 docentes (Brasil, 2012a). Destes, 20 programas obtiveram conceitos 7, 6e 5, o que corresponde a critérios de exeelen- cia nacional e intemacional. Trés anos depois, em 2012, 6 existiam 68 programas de Pés-graduagao em Saide Coletiva recomendados pela CAPES (Brasil, 2012b). Quando se analisa a formacio académica dos docen- tes desses programas, verifica-se que, embora a maiorisa tenha graduagéo em medicina, é crescente, ao longo dos anos, a participagio de outras profissbes da area da sai de, om particular da enfermagem, nutrigao, psicologia, odontologia e fisioterapia. O conjunto das areas relacio- nadas com as ciéneias humanas e sociais (sociologia, his toria, politica e outros) ocupa também importante posi- io desde o inicio de sua constituigao®. Acriagio dos cursos de graduacaio em Saride Coleti- va, recentemente, ocorreu como um produto dese pro- cesso. Em 2002, realizou-se em Salvador um seminéxio em que foram discutidas a pertinéncia e as possibilida- des de criagéo de uma graduacio em Sadide Coletiva. Esse semindrio, organizado pelo Instituto de Satide Co- letiva (ISC/UFBa), reuniu diversas instituigées, como Ministerio da Satide (MS), ABRASCO e Fundagio Os- waldo Cruz (Fiocruz), além de doventes de varias uni- versidades (Bosi & Paim, 2010). Naquele momento de expansio e desenvolvimento do SUS, estimativas eram feitas acerca da existéncia de milhares de postos de tra- ‘Silva et ul, 2011. 0 Espago da Saide Coletiva, Relatévio e pesquisa. ISCIUFBa, Segéol + EXOS batho que demandavam os saberes prdprios e especificos da Satide Coletiva, particularmente aqueles relaciona- dos com a epidemiologia, a gestio de sistemas de satide ea coardenagao de processos grupais e participativos. Desse modo, iniciou-se um debate sobre a profissio- nalizagdo om Satide Coletiva (Bosi & Paim, 2010). Em 2012 existiam seis cursos de graduagio (bacharelado) ceredenciados junto a0 MEC com a denominagio de Sai- do Coletiva (UNB, UFMT, UFBa, UFAC, UFPR, UFRJ) e dois com a designagio de Gésto em Satide Ambiental (UFU e FMABC) (Brasil, 201%). Desses cursos, a pri- meira turma a colar grau foi a da Universidade Federal do Acre, em agosto de 2012. A Saride Coletiva brasileira consolidou-se como es- ago multiprofissional (que retine diversas profissées) ¢ interdisciplinar (que exige a integragao de saberes de diferentes disciplinas). Seu desenvolvimento, tanto tedrico como no que diz respeito ao ammbito das pritticas correspondentes, tende a ultrapassar as fronteiras dis- ciplinares. Nessa perspeetiva, sua evolugdo tem sido na diregiio de um campo, no sentido coneebido pelo socislo- go Pierre Bourdieu’, que corresponde a um microcosm social relativamente auténomo, com objeto espeeifico ~ fa saiide no ambito dos grupos e classes sociais e com pritieas também espeeificas, voltadas para a andlise de situagdes de satide que incorpora o conhecimento pro- duzido sobre os determinantes sociais e biolégicos da saiide-doenga, a formulagao de politicas ¢ a gestio de processos voltados para o controle desses problemas no nivel populacional. CONSIDERAGOES FINAIS: RELAGOES ENTRE A SAUDE COLETIVA, A REFORMA SANITARIA E O SUS Como conclusées deste capitulo, ¢ possivel destacar que a Saide Coletiva no Brasil apresenta a peculiari- dade de ser construfda a partir de uma conjuntura na qual a questio democritica era debatida pela sociedade civil, especialmente por movimentos eociais, incluindo os segmentos popular, estudantil, sindical e de classe mé dia (intelectuais, profissionais de satide, artistas, advo- gados etc.), além da academia (universidades, institutos de pesquisa e escolas de satide publica). Eseas forgas, ‘a0 mesmo tempo que combatiam a ditadura, defendiam a democratizagao do Estado ¢ da sociedade, bem como o resgate da divida social acumulada em perfodos de creseimento econémico, quando o Produto Interno Bruto (PIB) crescia, em média, 10% ao ano (1968-1973), Destaca-se naquela conjuntura 0 movimento pela democratizagio da satide, conhecido como Movimento da Reforma Sanitaria ou "movimento sanitirio”, que pro- ‘Tgja Capitulo 98, no qual esse probloma é diseutido, Capitulo 1 + 0 que € Satide Coletiva? uu punha o reconhecimento do direito A satide como ineven- te a conquista da cidadania. Tem como marco a criacao do Centro Brasileiro de Estudos de Satide (Cebes), em 1976, que promoveu debates e a divulgagio de textos, socializando 0 conhecimento eritico produzido por de- partamentos de medicina preventiva ¢ social, escolas de satide puiblica e programas de pés-graduacio e pesquisa. Este conhecimento eritico nfo s6 apontava para a de- igradacio das condigdes de vida e da satide da populagio brasileira, mas procurava explicar a determinagio social do proceso satide/doenga da organizagdo das priticas de satide. Muitos professores, pesquisadores e estudantes de graduagio ¢ pés-graduacio envolvidos em atividades de ensino, pesquisa e extensfo, junto aos sezmentos populares e dos trabalhadores, também participavam do movimento sanitério. Propuseram, desde 1979 e por meio do Cebes, a criagao do SUS, com carter piblico, descentralizado, integral, democratico e com uma ges- 80 participativa. Da perspectiva académica realizaram ‘uma critica aos limites da Medicina Preventiva, da Me- dicina Comunitiria, da Savide Pablica e da Medicina da Familia (Paim, 2006). Surgiu dai a Satide Coletiva, como ‘a possibilidade de construir algo novo, seja no eonheci- mento, seja nas agies de satide, inicislmente apenas ‘como uuma designacao alternativa mas, progressivamen- te, como a construgéo de um campo interdisciplinar Ambito de praticas. Consequentemente, esse “algo novo” j4 surge articu- lado a ideia da Reforma Sanitéria. Muitos dos formula- dores da Satide Coletiva também foram construtores & nilitantes da RSB. O Cebes, como um de seus sujeitos coletivos, utilizou a revista Satide em Debate ¢ a publi- cagio de livros para divulgar muito do conhecimento produzido nas instituigdes académicas, bem como as exporiéncias dos servigos de satide e das comunidades organizadas em defesa do direito A satide. B a criacao a ABRASCO veio somar esforgos pela concretizacio da RSB. Assim, essa associagio e seus docentes e pesqui- sadores contribuiram com a elaboracio de textos © pa lestras para a realizagdo da 8 Conferéneia Nacional de Saiide, destacando-ze 0 documento de referéncia intitu- Jado “Pelo Dixeito Universal A Satide”. Do mesmo modo, tiveram um importante protagonismo no proceso de elaborago da Constituigéo de 1988 na temética da sai- de, bem como na aprovacio das leis 8.080/90 ¢ 8.142/90, que estabeleceram, respectivamente, a organizagao do SUS o 0 controle social mediante conferéncias e conse Ihos de satide. Diversos autores sugerem, portanto, uma forte ar- ticulaglo entre o campo da Saide Coletiva e a RSB, pelo menos em sua origem e na conjuntura de transizao democréitica. Ainda que 2 ABRASCO, enquanto “porta- vor” do campo, mantenha-se nas trés dltimas décadas como sujeito coletivo atuando em prol da consolidacao do SUS, na dependéncia da composi¢do de suas diretorias ¢ da correlagio de forgas presente nas conjunturas, ha indagagées sobre a permanéncia desse vinculo orgiinico entre @ Saiide Coletiva ea RSB. Quando a RSB foi investigada como ideia, proposta, projeto, movimento e proceso (Paim, 2008), foi possivel identificar indicios dessa organicidade, pois o estudo, indizetamente, abordava e refletia sobre um campo em ‘emergéncia —a Saxide Coletiva. ‘Na contemporaneidade, pode-se afirmar que a Sai de Coletiva instituin-se, consolidando espaco especifico ¢ auténomo, ¢ como tal, vive em continuo processo de reafirmar-se socialmente. Mas reafirmar-se, reproduzin- do os valores e as perspectivas historicas que animaram sua criagio, é também estar envolto em novos questio- namentos @ exigirem sua renovacdo, reapresentando- se novamente como campo eapaz de propor “algo novo” (Schraiber, 2008). O vinculo com a Reforma Sanitéria conquistado em suas raizes histiricas e o sistema de satide existente sio hoje parte desses questionamentos: de que modo cles ainda estariam representando “algo novo”? Para além da Reforma Sanitaria e do SUS, es; indagagio igualmente perpassa o conjunto das conquis- tas da Satide Coletiva, expressando a tensio entre 0 que jd se tornou uma tradigdo, seu corpo instituide de sabe- res ¢ priticas, e novos desafios, por fazer mais ¢ melhor em torno do conquistado, reinventando-se como campo. Trata-se, portanto, de formular novas perguntas para que este “novo” seja sempre posto em questo, ou para confrontar com o tradicional, evitando certas res- tauragies, ou para realizar pesquisas © reflexdes que fandamentem a praxis transformadora de sujeitos indi- viduais e coletivos, Referéncias ABRASCO. Ensino da sade piblice, medicina preventva ¢ social no brasil Rlo de Janero, Nicleo de Tecnologia Educacional para Sai: de, UFR), Centro Latino Americano de Tecnologia Educacional pars a Saide (Organizagio Panamericana da Saude). Escola Nacional ce Satide Pablica,Flocruz, 1982. ‘Arouca ASS. O dileme preventivsta: contribuicio pare a comereen ‘sho e critica da medicina preventiva, Sdo Paulo-Rio de Janeiro: UUNESP-Ed,Fiocruz, 2003. {Bo:i MLM, Paim JS. Graduacio em Sadide Coletva limites e possi dades como estratigia de formacao profissonal, Ciénc e Saude Coletiva Umpresso) 2010; 15:2029-38. Basil. Coordenagao de Aperfeicoamento de Pessoa! (CAPES) -Planihas comparativas da Avaliaca0. 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