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SONS DE SINS E DE NAOS: A LINGUAGEM MUSICAL E A PRODUCAO DE SENTIDOS” Adalberto Paranhos” J& hd algum tempo, como que tateando outros caminhos, historiadores ¢ cientistas sociais tm procurado incorporar ao arsenal de recursos de pesquisa outras linguagens, para além das habituais. Esse ato, proprio de quem se langa ao desafio de experimentar novos sabores dos saberes, resultou numa bibliografia, de produgdo mais ou menos recente, que valoriza objetos de estudo tradicionalmente postos A margem pela academia. Nessas circunstancias, a mdsica industrializada vem assumindo crescente importan- cia como fonte documental, respondendo por uma parcela dos esforgos daqueles que sc empenham em insuflar novos ares nas pesquisas hist6ricas. O que com freqiiéncia muito grande a concentrar 0 foco se constata, no entanto, € que existe uma tendén de andlise quase exclusivamente ~ ou, pelo menos, prioritariamente — nas letras das cangdes. Por maior que seja a relevancia desse procedimento, sou da opinido de que ele por si s6 nao é suficiente para dar conta da complexidade do trabalho com misica, mesmo quando nio se tenha a pretensdo de realizar um estudo de natureza especifica- mente musicolégica. Do discurso mudo ao discurso falado Umas tantas implicagdes ou precaugdes metodolégicas se impoem quando os ca- minhos da pesquisa hist6rica se cruzam com os registros sonoros. + Versio resumida da oficina realizada durante 0 simpésio “Revisitando os Descobrimentos: Prétieas, Es- pagos e Linguagens da Comemoragio”, ** Professor do Departamento de Ciéncias Sociais da Universidade Federal de Uberlandia. Autor dos livros O roubs da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil € Dialética da dominagao. Proj, Historia, Sao Paulo, (20), abr. 2000 221 Ater-se apenas a letra de uma composigio muitas vezes pode nos levar a perder de vista a relagdo de complementaridade e/ou de oposigao que ela entretém com outros elementos da obra musical na sua realizagao histérica, ou, como queira, no seu fazer-se. Seniio vejamos. Em primeiro lugar, parece evidente que a decifragéio da linguagem estritamente musical, conectada & eventual filiagZo a “géneros musicais”, A familia instrumental que intervém na geragio de uma certa sonoridade ou formatagdo timbristica, nada disso é estranho a quem se disponha a percorrer todo 0 arco de opgées de trabalho com misica. Afinal, a musica fala sem recorrer necessariamente a palavras impressas € cantadas. Retomo um exemplo ja classico na hist6ria da MPB: 0 discurso sonoro pronunciado pela estridéncia das guitarras clétricas que deram impulso a Tropicdlia, no final da década de 60, valeu por mil palavras no combate a estreiteza nacionalista que dominava um determinado projeto politico nacional-populista que buscou se impor, também, como fator de legitimagiio de uma estética “nacional-popular”. Aquele discurso, nu de pala- vras, antecipou, sob varios aspectos, a critica, revestida de palavras, que, no fronte académico, colocaria em xeque 0 nacionalismo segundo o figurino dos anos 60 (repre- sentado, por exemplo, pela musica O subdesenvolvido', obra-prima da concepgao nacio- nalista do Centro Popular de Cultura da UNE, em choque, na €poca, entre outras coisas, com o internacionalismo bossa-novista).” Além do mais, as palavras que, aparentemente, injetam sentido numa cangiio nao deixam de passar, em muitas situagdes, por um processo de dessignificagdo e/ou de ressignificagdo. Dito de outra forma, o sentido das letras das misicas é cambiante, muda, por vezes, com o tempo, na dependéncia do contexto histérico em que ressurgem. Veja-se 0 caso de Pra ndo dizer que ndo falei das flores (Caminhando)', datada de 1968. Sua mensagem explicita, tornada emblemitica do enfrentamento com a dita- dura militar no pés-64, indicava 0 colapso do sonho dos que “acreditam nas flores }) consta do compacto duplo O igualmente, a regravagio de 1A gravagao original de O subdesenvolvido (Carlos Lyra ¢ Chico de A: povo canta, langado antes do golpe de 1964 pelo CPC da UNE. Carlos Lyra no compacto simples A UNE canta, UNE, 1986. 2 Oentrechoque politico-cultural que opés nacionalistas e bossa-novistas atingiu em cheio a prépria Bossa Nova como movimento, cindindo-o em alas politicamente bem demarcadas. Ver, sobre 0 assunto, Adalberto Paranhos “Novas Bossas ¢ Velhos Argumentos (Tradi¢%o e Contemporaneidade na MPB)", Historia & Perspectiva, n. 3, Uberlandia, UFU, 1990, pp. 5-111 (esp. pp. 7-26). 3 Pra ndo dizer que ndo falei das flores (Caminhando), de ¢ com Geraldo Vandré, gravada ao vivo no Maracanazinho em 1968 ¢ relangada no CD Geraldo Vandré, RGE, 1994. 222 Proj. Historia, Sao Paulo, (20), abr. 2000 vencendo canhao”. Vandré, mais do que pegar no violdo, formulava, para os bons cn- tendedores, um inequivoco apelo para que se pegasse em armas na luta pela derrubada do regime. Ora, essa cangiio, transformada em signo de resisténcia d ditadura, adquiriu, sob certo prisma, uma relativa autonomia ante 0 seu significado literal imediato. Pelos idos de 76/77, cla virara insignia do movimento estudantil em ago pelas liberdades democraticas. Em 79 animard — ao lado de O bébado e a equilibrista, na vor de Elis Regina’ — manifestag6es de protesto pela anistia ampla, geral e irrestrita. Por esse pe- riodo, os gritos de “vem, vamos embora/ que esperar ndo € saber/ quem sabe faz a hora/ ndo espera acontecer” saltavam da boca dos metalirgicos do ABC em greve por melhoria salarial, liberdade sindical ¢ direito de greve. Numa palavra, os fios da histéria enredam-se nas tramas da cangdo. Quando nio permanecemos reféns da mera literariedade das letras das misicas, estamos aptos para perceber, enfim, que o significante nao se acha irremediavelmente preso a um significado tinico, esvaziado de historicidade. E 0 caso ainda de Caminhan- do, que mais recentemente teve seu verso-chave apropriado de maneira conservadora por pegas publicitdrias do género “gente que faz”, numa aluso a pequenos empresdrios mento comum na “cultura de massa”, envolvendo uma operagdo lingiifstica tipica de “roubo da fala’* que “venceram na vida”, proce Polissemia ou a multiplicidade e a ambigitidade de leituras De fato, uma cangao esta longe de reter um sentido fixo, pré-fabricado ou prede- terminado. Dialeticamente, a produgio de sentidos abriga miltiplas leituras possiveis, por mais ambiguas ¢ contraditérias que sejam. O sim pode transmutar-se em no, ¢ vice-versa, ou em talvez. Uma coisa pode se converter, para falar @ la Guimaraes Rosa, na outra-coisa, na sobre-coisa, quando nfo na anti-coisa, até porque no se pode falar simplesmente na coisa em si mesma. E essas coisas as vezes no estavam na mente do compositor, O 4 O bébado e a equilibrista (S080 Bosco ¢ Aldir Blanc), com Elis Regina, LP Elis, Essa Muther, WB, 1979 (relangada no CD homénimo pela WEA, 1989). 5A semethanga da fala mitica, evideneia-se, aqui, uma pritica lingiiistica de direita, como diria Roland Barthes, em Mitologias, Sao Paulo, Difuso Européia do Livro, 1972, em especial 0 ensaio “O Mito, Hoje”. Proj. Histéria, Sao Paulo, (20), abr. 2000 223 que traz & tona outro problema paralelo a ser deslindado em algumas circunstancias: nem sempre os objetivos de um autor se expressam em sua obra. Lembro-me, a pro- pésito, dos ensinamentos de Lucien Goldmann em seus ensaios sobre historia da lite- ratura*, Por vezes se cava tamanha distancia entre autor e obra, quando esta circula socialmente, que a criagdo exprime ampla autonomia em relagao ao criador, a ponto de chegar até a significar 0 ndo-pensado. S6 para exemplificar, de volta ao terreno musical: a0 comporem Coragéo de estu- dante’, em 1983 — parte integrante da trilha sonora do filme Jango, langado em 1984 -, Wagner Tiso ¢ Milton Nascimento nao poderiam prever a destinagdo que a midia ele- trénica Ihe daria dali a dois anos. A fé investida nos estudantes, na “nova aurora a cada di (ou seria Sdocredo Neves?), servindo-Ihe de epitafio. E, no caso, nem mesmo o enga- jamento de Milton Nascimento na defesa da “Nova Reptblica” autoriza suspeitar que ’, foi canalizada para o culto post mortem da figura “messianica” de Tancredo Neves ele antevia 0 que seria feito de sua musica. Ou, para ser mais preciso, de sua letra, pois a mdsica propriamente dita é de autoria de Wagner Tiso. Que, por sinal, mais tarde rompeu politicamente com Milton e criticou a brutal instrumentalizagio politica da obra de seu parceiro pela “Nova Reptiblica”. Logo se vé que ha mais coisas entre miisica e realidade do que geralmente se supdc. Se se trata, neste momento, de enumerar um elenco de dificuldades que poem a mostra os desvaos do trabalho com miisica, aponto pelo menos mais uma. Interpretar, do meu ponto de vista, implica também compor. Quer dizer, quando alguém canta e/ou apresenta uma mtsica, sob esta ou aquela roupagem instrumental, atua, num certo sen- tido, n&io como mero intérprete, mas igualmente como compositor. Ao cantar, por exem- 6 Ver, por exemplo, Lucien Goldmann, Dialética e Cultura, Rio de Janeiro, Paz. ¢ Terra, 1967, em especial © ensaio “Materialismo Dialético e Histéria da Literatura”. 7 Coragdo de estudante (Wagner Tiso ¢ Milton Nascimento), com Milton Nascimento, LP Milton Nasei- mento ao Vivo, Barclay, 1983 (também disponivel em CD). 8 Em outro texto examino as armadilhas em que podemos cait ao elegermos os registros fonogréficos como testemunho musical irrefutivel de uma época. Prova disso, por exemplo, € que, inicialmente, gravadoras © maestros ndo conseguiam transpor para o disco a nova combinagdo ritmico-sonora do samba que comandava 0 impulso criador dos compositores do Esticio de $4, no Rio de Janeiro do final dos anos 20. A leitura predominante nos discos de entio se prendia muito mais ao samba do passado do que ao novo samba em ebuligio. Ver Adalberto Paranhos, “O Brasil Dé Samba? (Os Sambistas ¢ a Invengzio do Samba como *‘Coisa Nossa’)", Muisica Popular en América Latina, Santiago de Chile, Rodrigo Torres, editor, 1999, pp. 193-232 (em especial pp. 195-197). 224 Proj. Histéria, Séo Paulo, (20), abr. 2000 plo, 0 agente opera, em maior ou menor medida, na perspectiva de recompor e/ou decompor uma composigao. E isso ocorre de modo consciente ou inconsciente. Uma subversdo deliberada do sentido pri extremado da gravagiio, em 1970, de Chao de estrelas, pelos Mutantes’. Essa compo- sigdo dos anos 30, um classico da miisica popular brasileira, foi submetida a um processo tropicalista de destruigdo como simbolo da tradig&io. Unindo os seus talentos ao do maestro Rogério Duprat, os Mutantes fizeram dessa misica 0 bode expiatério na pro- positalmente ridicula metamorfose do sério em hilariante. Numa gravagiio onomatopai- iro de uma cangao estd no exemplo ca, esses agentes provocadores reagiam energicamente ante a censura raivosa dos seus criticos “tradinacionalistas”, no dizer de Augusto de Campos". E disparavam — os tiros nessa regravacdo sao ao pé da letra - contra 0 culto xendfobo a tradigao, desfazendo-a em cacos. Num outro caso, em que a mutaciio de sentido se dé de maneira inconsciente, Gora d’dgua, de Chico Buarque, vale como ilustragiio. Quer na gravagdo do autor, quer na ou menos claramente, de Simone dos seus bons tempos", a composigiio assut seu tom de denuncia das atrocidades promovidas nas c4maras de tortura da ditadura. Tudo isso, ¢ Sbvio, sob uma trama que engendrava ao mesmo tempo um discurso amoroso que possibilitasse, particularmente aos olhos e ouvidos dos censores federais, uma outra leitura. Nesta éptica, Mm: JA Ihe dei meu corpo, minha alegria jé estanquei meu sangue quando fervia olha a voz que me resta olha a veia que salta se casava com 9 Confrontar Chao de estrelas (Silvio Caldas e Orestes Barbosa) com Silvio Caldas e com os Mutantes. A gravagdo original do autor aparece em 78 rpm, Odeon, 1937 (relangada no CD Velha Guarda, EMI, 1998). A regravagdo dos Mutantes figura no LP A divina comédia ou Ando meio desligado, Polydor, 1970 (relangado em CD pela mesma gravadora, s/d). 10 Emprego 0 termo usado por esse poeta ao investir contra o “nacionalismo nacionaldide” da TEM. ("Tradicional Familia Musical”) constituida pelos “iddtatras dos tempos idos”, Augusto de Campos, Balanco da Bossa e outras Bossas, 4. ed., $20 Paulo, Perspectiva, 1986. Il Gota d'égua (Chico Buarque), com Chico Buarque, LP Chico Buarque & Maria Bethania ao Vivo, Philips. 1975 (relangado em CD pela mesma gravadora em 1993), e com Simone, LP Gotus d’dgua, Odeon, 1976 (também disponivel em CD), Proj. Historia, Sao Paulo, (20), abr. 2000 225 por favor, deixa em paz meu coragdo que ele & um pote até aqui de magoa e qualquer desatencao, faga nao! pode ser a gota d'égua como combustivel de mais um desencontro sentimental. E bem verdade que, especial- mente a gravagdio de Simone, com arranjo de Wagner Tiso, ndo sugeria apenas isso: a voz de Milton Nascimento ao fundo, numa sessao de vocalise, langava no ar, de forma estilizada, a sugestdo de vozes que vinham de longe, como que se erguendo dos pordes da ditadura onde se abafavam os gritos dos que lutavam pelo fim do regime. Passando, agora, de um extremo a outro, quem ouvir a gravagio de Beth Carvalho’ verificaré que ela decompés ¢ recompés a composigao, indo ao ponto de dilui-la ¢ esvazid-la daquilo que, originalmente, cra a sua significagdo mais profunda. Parece que estamos todos, cachaga 4 mio, reunidos numa roda de samba em que se choram dores de amores, com os cotovelos a flor da pele (0 que é acentuado pelo clima musical criado pelo belo arranjo de Paulo Moura). Nisso, porém, Gota d’dgua escapa pelo ralo. Era o que faltava, como diz a letra do Chico, “pro desfecho da festa”. Paro por aqui. Nao sem antes fazer uma observagao inteiramente alheia a preocu- ISCOS pagées de ordem metodoldgica. Nestas breves anotagées, tentei mostrar uns tantos a que nos expomos ao lidarmos com 0 discurso musical c/ou com registros fonograficos. Por conseqiiéncia, a misica ficou relegada A condigio de meio, de fonte documental. De minha parte, isso, nem de longe, implica ignorar a significago da musica — e, por extensiio, da arte — como um fim em si mesmo. Ela é, bem 0 sabemos, um camaledo sonoro com o qual compartilhamos na vida cotidiana sentimentos ¢ estados de espirito contrapostos, como lembraram Sucli Costa e Abel Silva em Musica, Miisica: “irma, ima, irma/ feroz como a ira do Ird/ ou mansa como o Gitmo carinho/ quando ja chega a manha”, Por essa razio entendo, pesquisas parte, que ela nio deve ser encarada tdo-somente como um trampolim em diregao a outras esferas. Por que nao pensé-la, igualmente, como um “inutensilio”, para langar mo da palavra-chave com que Paulo Leminski classificava a sua propria poesia? 12 Gota d’dgua (Chico Buarque), com Beth Carvalho, LP Pandeiro e viola, Tapecar, s/d (1975), (também disponivel em CD). 226 Proj. Historia, Sao Paulo, (20), abr. 2000

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