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REABILITACAO URBANA NA AREA CENTRAL DE BELEM-PARA: concepgées e tendéncias de politicas urbanas emergentes Saint-Clair Cordeiro da Trindade Jiénior* ‘Marcio Douglas Brito Amaral** RESUMO. Este artigo discute concepgées e préticas de planejamento e gestéo urbanos em Belém, ard, a partir da andlise de duas intervencées urbanas desenvolvidas nos diltimos anos na sua drea central. Norteadas por uma concepgao estratégica de planejamento gestéo, tais intervengées tém promovido a producéo de uma nova paisagem e de uma nova imagem para a cidade. Trata-se da criagéo de espacos de renovagao urbana que usam como pretexto @ natureza, a cultura a meméria como centralidade simbélica como forma de legitimar uma dada concepgdo de gestéo urbana. Polavras-chave: planejamento; gestao urbana; drea central; politicas urbanas; Belém. ABSTRACT The present orticle discusses urban planningand management concepts and practices in Belém, in the State of Pard Brazil. The discussion is based on the analysis of two urban interventions recently carried out in downtown Belém. Such interventions were based on planning and management strategy concepts ond provided new landscapes and image to the city, They brought about urban renovation centered on nature, culture and memory as symbolic ways of legitimating urban management concepts Key words: planning; urban management; downtown; urban policies; Belém. *Gedgrao, dovtorem Geogroie Hurvana pola Universidade de Séo Paulo (USP). Professor Asociado do Instituto de Flosoia © Ciéncios Humancs da Universidade Federal do Poré (UFPA),sciai@omaron come **Geégrafo, mestre em Plonejamento do Desenvolvimento, doutorando em Geografie Humana pela USP Professor Assstente | da Universidade Federal do Amapeé. marcicamarel@unifap.be ‘Atgo recebido para publcagdo em dezembro/20086, Aceito pore publicagdo em abel/2007. 5 DE DESENVOLVIMENTO, Cuba, v.11, 9 73-108, jee, 2006 B Reabilitagdo Urbana na Area Cental de Belém-Paré: concepeSes @ tendéncias de polticas urbanas emergantes INTRODUGAO Nos Ultimos anos, as politicas de renovacdo urbana tém ganho novas tendéncias. No Brasil, praticas emergentes buscam considerar a complexidade da vida urbana, a participagdo popular e a descentralizagdo. Mesmo com a pretensdo da novidade, algumas ‘experiéncias em curso tem combinado préticas convencionais com novos elementos que, pelo menos no plano da superficie, mostram-se inovadores, nao evidenciando, entretanto, uma ruptura definitiva ou pontos de inflexdo com relagdo as velhas praticas. Nao obstante as importantes diretrizes previstas da fungéo social da cidade, seja no Estatuto da Cidade, seja em Planos Diretores considerados inovadores, supée-se que ‘algunas vertentes de politicas urbanas emergentes ndo tém conseguido superar as praticas tidas como convencionais, mas principalmente readequé-las as novas demandas locais e globais. E a respeito desta problematica que a presente discussdo pretende avancar. A partir da andlise das intervencées urbanas realizadas na drea central de Belém, Pard, busca-se compreender o perfil das politicas urbanas que as orientaram, relacionando-as com a produgdo de novos espagos e com o tipo de imagem que se deseja para a cidade. Para isso, colocaram-se trés questées norteadoras: 1) qual o perfil de gestdo e de planejamento urbano que orientou as intervengdes do governo do Estado do Paré na rea central de Belém nos ultimos anos?; 2) que implicagées tais intervengdes trazem para a drea central e para a configuragao de uma nova imagem da cidade?; 3) que mudangas e permanéncias, relacionadas 4s politicas urbanas, sdo reveladas por meio dessas intervencdes? Para responder a essas questées, utilizou-se a sistematizacdo teérica desenvolvida por Souza (2002), que destaca oito critérios importantes para identificar tipos diferentes de gestdo e planejamento de cidades, a saber: idéia-forca central; filiagdo estética; escopo; grau de interdisciplinaridade; permeabilidade em face da realidade; grau de abertura para com a participacdo popular; atitude ante o mercado; referencial politico-filoséfico Depois de fazer a discussdo tedrica sobre a gestdo e o planejamento urbanos, procurou-se, com base na anélise de duas intervencées urbanas desenvolvidas pelo governo do Estado do Paré (complexos “Estacdo das Docas" e “Feliz Lusiténia”) e do confronto das mesmas com a teorizacdo desenvolvida por Souza (2002), tracar um perfil da concepcao e tendéncia das politicas urbanas na rea central e das imagens de cidade a ela vinculadas 1 A AREA CENTRAL E AS POLITICAS URBANAS EMERGENTES, O que define 0 centro e a centralidade de uma cidade? Por que as éreas centrais expressam uma tendéncia, nos dias de hoje, a serem revitalizadas? Que concepcdes préticas relacionadas ds politicas urbanas a “volta” ao centro busca traduzir a partir de projetos de intervencdo tdo recorrentes nos dias atuais? "A nova realdade da drea cerial de Belém sdo os intervengdes urbonas realizades pelos poderes publicos ‘municipal ¢ ested com o inuto de resgolar 6 Ho, © patric hstxico e 0 herance cultural come representogies Simbicas de cidade e da regido e de produzit espagos "pablicos”woltedos para a lazer # 0 turismo. m REVISTA PARANAENSE DE DESEWVOLVIMENTO, Cutbo, m1], »72-103, iden 2006 Saint-Clir Cordeiro de Tindode Jinior e Mércio Douglas Brito Amaral Para responder d primeira questdo, Sposito (2001) argumenta que a discussdo da érea central deve ultrapassar o plano da localizacdo das atividades comerciais e de servicos, enfatizando-se as relagdes existentes entre essa localizagdo e os fluxos que ela gera e que a sustentam. Para a autora, os fluxos permitem a apreensdo da centralidade, porque é por meio dos nédulos de articulagdo da circulagdo intra e interurbana que ela se revela. Propée, entdo, a compreensdo da diferenca entre centro e centralidade urbana. O primeiro se revela porque se localiza no territério, e a segunda é desvelada por aquilo que nele se movimenta, pelos fluxos, estando relacionada prevalentemente a dimenso temporal da realidade: Enquanto a localizagdo, sob o forma de concentracao de atvidades comercias ede servos, revela 0 que se considera como central, 0 que se movimenta insttui o que se mostra como centralidade. Duas expresses da realidede urbana que articulam com pesos diferenciados as dimensdes espacial e temporal desses espagos (SPOSITO, 2001, p.239) No conjunto dos espagos urbanos capitalistas é possivel falarde uma centralidade consolidada ao longo do tempo e que acaba por definir os centros principais das cidades.. Da mesma maneira que essa centralidade pode se reafirmar nas éreas consideradas como centros principais, pode também ocorrer uma redefinicao, uma relativizagao da mesma em relacéo a outras centralidades que surgem e que definem centros secundarios ou subcentros, cuja caracterizacao esté estritamente associada a processos ligados és acessibilidades e & condigdo de espacos relacionais Assim, se no passado os centros eram sinénimos de uma localizagao no coragao da cidade e do distrito comercial central, hoje 0 correlato espacial do centro pode ossumir vérias formas geogréficas, cabendo falar, inclusive, de um “centro” transterritorial, constituido de auto-estradas digitais e de intensas transagdes econémicas (SASSEN, 1998). Nao obstante, quando falamos de processos de revitalizagdo de espacos centrais, «as agées nesse sentido parecem se voltar, em grande parte, para o que se identificou acima como 0 centro urbano principal, traduzido muitas vezes como os centros histéricos das cidades. Isso acontece uma vez que, historicamente, alguns espagos com especificidades de localizagéo acabam por adquirir importéncia pela concentracao de atividades consolidadas ao longo do tempo e pelo valor simbélico que recorrentemente essas éreas assumem no conjunto da cidade, a despeito de outras centralidades que se definem no espago urbano. Tas referéncias simbélicas manifestam-se na paisagem de diversas maneiras, mas, em geral, estao ligadas a formas arquiteténicas ou aos tragados urbanos, que se associam és origens e aos antepassados da cidade, como igrejas, ruas, pracas, prédios puiblicos etc., tomando-0s espacos estratégicos, seja do ponto de vista de sua funcionalidade, seja por seus referenciais socioculturais. Nesse sentido, 0 controle do centro ndo deixou de ser importante, ainda que tenham mudado as suas funcionalidades, os agentes que o controlam, bem como a5 praticas e os usos cotidianos que nele se materializam, conforme sugere Villaga (1998). Dai a necessidade de afirmar que nao se vive de maneira generalizada um esvaziamento do centro, como buscam propagar os diversos discursos que propdem 0 NVOLVINENTO, Cuitba, 111, 973103, a de, 2006 1 Reabilitagdo Urbana na Area Cental de Belém-Paré: concepeSes @ tendéncias de polticas urbanas emergantes seu “embelezamento” e 0 seu “resgate"; pelo contrdrio, trata-se sobretudo da necessidade de definir novas funcionalidades, novas formas de controle e novos usos demarcados por relacdes de poder que incluem uma nova imagem e um novo discurso sobre a cidade a partir de seus centros urbanos principais Seguindo-se esse argumento, é possivel falar também de uma centralidade e de um controle de ordem simbélica relacionados aos centros urbanos principais: Dominaro centro eo acesso a ele representa néo s6 uma vantagem material concreta, mas também o dominio de toda uma simbologia. Os centros urbanos principals s60, portanto (ainda so em que pesem suas recentes decadéncias), pontos altamente estratégicos para 0 exercicio de dominagao (VILLAGA, 1998, p.244) Conforme admite Bourdin (2008), espagos renovados tomam-se atrativos e caros, pois supéem habitualmente grandes e pesados investimentos. Tais repercuss6es, por seu tumo, ganham vérias dimensées, tendo em vista a necessidade de que haja fluxes, tanto econémicos quanto simbélicos, capazes de dinamizé-los. Isso acontece porque nao se pode atribuir um novo valor econémico ao territério sem lhe atribuir um novo sentido ou uma nova imagem Trata-se de um conjunto de elementos (marketing urbano, servicos de toda ordem, ‘oparato institucional) estreitamente ligados e que visam reunir condigées para uma melhoria da performance econémica das cidades, nao raro associadas as intengées de planificacao ligadas & mundializagéo liberal, conforme também adverte Osmont (2002). Para esta autora, uma melhoria dessa performance pode ser atingida a partir de quatro condicées: 1) competitividade aprimorada por meio de correcées de disfuncées tisicas, administrativas ede servigos ds empresas; 2) melhoria da qualidade de vida na cidade; 3) boa gestao e governanga, com melhoria da captagdo de recursos e gestdo privada dos servicos; ¢ 4) "bancabilidade”, que assegura a garantia de empréstimos nos mercados financeiros. Tais elementos tém induzido a pensar a importéincia das dreas centrais em face do nove papel conferido ds cidades competitivas e as politicas urbanas emergentes. Areestruturacéo do espago urbano, em decorréncia das novas relaées que a cidade passa 1 vivenciar, dentre elas a definigGo de novas éreas centrais, de subcentros e de novas centralidades, repercute no papel assumido pelos centros principals das cidades, considerados ‘como uma de suas referéncias simbélicas mais importantes, como jé pontuamos. O esvaziamento por parte de algumas atividades, e mesmo a deterioragao de determinadas formas espaciais, refletem espacialmente uma dada caracterizacao dos centros urbanos, em especial daqueles que se convencionou chamar de centros histéricos Mais que espacos vazios, entretanto, trata-se de novos usos, novas fungées e novos territérios que passam a ser demarcados, em grande parte, por relacées cotidianas nem sempre consideradas estética ¢ funcionalmente desejdveis, seja por parte de agentes privados produtores do espaco urbano, seja por parte de um imaginario coletivo, que tende a ganhar forca quando se pensa a cidade como espago estratégico de investimentos ¢ atrativos turisticos, por exemplo. No verdade, caracterizagao dos centros principais se expressa notadamente em virtude de estes se revelarem como sintese de miltiplos processos. Sua insergao hé mais tempo no conjunto do cidade foz deles espacos de intensa redefinigao e de assimilacao 6 REVISTA PARANAENSE DE DESEWVOLVIMENTO, Cutbo, m1], »72-103, iden 2006 Saint-Clir Cordeiro de Tindade Jinior e Mércio Douglas Brito Amaral direta e indireta de processos diversos que se manifestam e se configuram na totalidade urbana, Da mesma forma, a relocalizagdo de funcées no conjunto da cidade faz as éreas centrais subtrairem alguns papéis que antes lhes estavam reservados, provocando, assim, deterioragdo das formas espaciais, muitas vezes relacionada aos processos de inércia elou de substituicéo (CORREA, 1989) Nessa condi¢do, de espacos “deteriorados”, pouco ligados a uma dindmica mais moderna da economia urbana e, sob essa perspectiva, considerados mesmo como subaproveitados, aparece o discurso da “volta ao centro”. Na representacdo do espago ligada ds novas estratégias de planejamento e gestdo, coloca-se a possibilidade de esses espacos serem "reembalados”. Para as cidades com certa carga de tradicao em sua histéria e, de alguma forma, com a paisagem da meméria relativamente preservada, busca-se um resgate do centro a partir de sua reobilitagdo/requalificagdo ou de sua renovagéo (MARICATO, 2001). No primeiro caso, trata-se de uma ago que preserva os usos jé configurados e a populagéo moradora, evitando-se grandes rupturas ou alteragées, sendo aquelas que visem 4 reabilitagdo/requalificagdo do patriménio histérico, arquitetnico, artistico, paisagistico e das formas arraigadas de uso e apropriagdo do espaco. Diferentemente, na renovagGo urbana parecem estar presentes novos mecanismos de apropriacdo e controle do espaco, com flagrantes vantagens para os agentes mais diretamente ligados a uma légica de mercado e preocupados com uma nova imagem dos centros urbanos, dela tirando vantagens de acordo com interesses muitos especificos. Pressupée mesmo processos de gentrificagdo? do espaco mediados por apelos culturais, paisagisticos e de marketing urbano. Amendola (2000) denomina essas préticas de “estratégia da aparénci advertindo que os destinatarios das imagens promocionais da cidade pressupéem uma variada populacdo, que inclui empresdrios e menagers, politicos, jornalistas, turistas e intelectuais, tratando-se, portanto, de um publico heterogéneo, portador de culturas cédigos de comunicagdo diferentes e em contraste entre si. Acrescenta 0 mesmo autor que, nesse contexto, duas estratégias principais se fazem presentes: a modernista, que aponta para a competéncia, para a modemizacao, para o dinamismo, para a intencionalidade e para o espirito empresarial; e os patrimonialistas, que enfatizam o monumento, as culturas locais, as tradigées e os valores paisagisticos. No caso brasileiro, essas estratégias de reabilitacdo urbana nas reas centrais acabam por refletir diferentes tendéncias de politicas urbanas que se fazem mais presentes nos tltimos anos. Tais politicas passam a integrar a agenda dos governos com 0 intuito de promover a cidade. De acordo com Sénchez (1999), as novas politicas urbanas tém em comum o fato de buscarem, entre outras coisas, recuperar sua legitimidade no que se refere as intervencoes piiblicas, produzir uma imagem urbana como estratégia de internacionalizacdo da cidade, "Processa que decore da dinémica de revialzagéo de éreas antigas e considerodas degeadades, seguda de uma conseelente substuigdo de populagdes pobres por classes mois abastodas, acomparhande a revolorzagée da ambiente construlda (SMITH; WILLIAMS opud CRIEKINGEN, 2006), REVISTA PRRANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Cro, Le Reabilitagdo Urbana na Area Cental de Belém-Paré: concepeSes @ tendéncias de polticas urbanas emergantes obter efeitos internos, principalmente quanto 4 construgdo de uma ampla adesdo social ao seu modelo de planejamento e gestdo urbana, e apagar a imagem de que o planejamento urbano é apenas um discurso ideolégico que ndo se concretiza em praticas reais. Para a mesma autora, existe uma série de fenémenos que estdo exercendo pressdo sobre os instrumentos tradicionais de planejamento. Dentre eles, destaca o dinamismo das mudangas econémicas mundiais, as crises geopoliticas, as inovagées tecnolégicas e as novas atitudes socioculturais; os diversos agentes econdmicos que atuam no espaco urbano e que exigem do poder puiblico um conjunto de intervencées voltadas para a competitividade; o processo de globalizacéo e de regionalizacéo (integracéo dos mercados e formacdo de blocos econémicos), que abrem espaco para a competitividade urbana pela atracdo de investimentos, empregos, turistas e financiamentos piblicos (SANCHEZ, 1999). Dente as perspectivas de planejamento e gestdo urbana que buscam enfrentar esses novos desafios colocados pela realidade, algumas tém sido consideradas nas discussées tedricas recentes, recebendo diferentes denominagées, como planejamento politizado, planejamento estratégico e planejamento participativo. Villaga (2004) argumenta que na década de 1990 houve um novo impeto em termos de planejamento urbano no Brasil, que procurou rejeitar os planos tradicionais, os superplanos e os diagnésticos técnicos, e que buscou legitimar uma nova forma de planejamento e gestdo, fundamentada na politizagdo do plano diretor. Nessa nova proposta, 0 problemas a serem enfrentados ganharam uma dimenséo muito mais politica que técnica, passando a estar na pauta dos movimentos populares e dos partidos politicos. Interpretando essa fase mais recente e as politicas urbanas emergentes, Sanchez (1999, 2003) destaca o planejamento estratégico como pritica recorrente do planejamento € da gestdo urbana no mundo contempordneo. Surgido nos Estados Unidos nos anos citenta, propagou-se depois para a Espanha, como “modelo de Barcelona", e, nos anos noventa, para a América Latina, através das consultorias espanholas. Neste ultimo continente, o planejamento estratégico e o marketing de cidades tém se apresentado ‘como instrumentos recorrentes em face do processo de globalizacdo da economia, obtendo grande indice de adesdo. As principais propostas desse modelo estado relacionadas ao redesenho espacial das cidades com o fito de romper com a caréncia infra-estrutural e implantar novas relagées de producdo. Nessa perspectiva de competitividade, as dreas centrais t8m sido mobilizadas constantemente como espaco de investimentos e de formacdo de uma nova imagem para as cidades que se langam ao mercado, procurande atrair consumidores e investidores. E 0 que acontece nas praticas de planejamento e gestdo urbana na Grea central de Belém nos titimos anos, onde um conjunto de intervengées, voltadas principalmente para o lazer e turismo, foram realizadas. Dentre essas intervencées, pode-se destacar 0 complexo “Estagdo das Docas” e © projeto "Niicleo Histérico-Cultural Feliz Lusitania", obras realizadas pelo Governo do Estado do Paré. A questéo central que se coloca, neste caso especificamente, é saber quais as concepgées de gestdo e planejamento urbanos que guiaram essas intervencées € que tipo de imagem da cidade e de pratica espacial liga-se a essas concepcées, de maneira a identificar mudangas e permanéncias nas praticas de intervencdo urbana. 8 REVISTA PARANAENSE DE DESEWVOLVIMENTO, Cutbo, m1], »72-103, iden 2006 Saint-Clir Cordeiro de Tindade Jinior e Mércio Douglas Brito Amaral 2 A AREA CENTRAL DE BELEM COMO CENARIO DE NOVAS EXPERIENCIAS DE POLITICAS URBANAS Na definicdo da paisagem urbana das cidades amazénicas, um elemento de significativa importancia tem historicamente contribuido para a configuragdo das dreas centrais: as vias fluviais. Definidas como as principals vias de circulacdo de pessoas ¢ mercadorias quando do proceso inicial de insergao da regiao & economia mundial, os rios assumiram papel de destaque na configuracdo das cidades e, igualmente, de suas Greas centrais. No caso de Belém, o dinamismo econémico existente, e que definiu a centralidade do atual nticleo histérico da cidade, é atribuido, em grande parte, ao contato com a mais importante via de transporte nos primeiros momentos de sua histéria. Aeexisténcia de atividades diversas, como a portudria, a comercial, e mesmo a incipiente atividade industrial, ajudava a fazer presentes condicées de externalidades positivas que tornaram as dreas préximas aos rios principais? espagos que se destacavam pela centralidade urbana e que, gradativamente, inseriram a paisagem beira-rio na chamada Grea central de Belém. Por outro lado, o desenvolvimento comercial, advindo em especial da economia da borracha, criou espagos diferenciados no contexto intra-urbano de algumas cidades amazénicas, que canalizaram determinadas vantagens com essa dinémica econémica, a exemplo do porto de Belém, que se tomou o principal centro exportador daquele produto. Tal diferencialidade espacial decorreu, inclusive, do carter dendritico da rede urbana regional, estabelecendo padrées de organizagao interna da cidade, em que Contato com as vias fluviais passou a ser o elemento de maior importéncia no sentido de definir ndo sé as dreas centrais mas também as centralidades; dai grande parte das reas centrais das cidades amazénicas estar voltada para essas vias. E assim que Moreira (1989), por exemplo, ao periodizar a expansdo urbana de Belém, define sua fase ribeirinha como uma expressdo intra-urbana do papel dessa cidade na rede urbana regional. O desenvolvimento econémico implicou, igualmente, adensamento ¢ concentragao do comércio e dos servigos na érea central. Assim, a funcao comercial desses espacos parece se justificar por uma série de fatores que favorecem a existéncia de uma economia de aglomeracao nessas éreas, a tal ponto que sé com 0 surgimento de novos eixos de circulagao na Amazénia e com a redefinico da geografia comercial das cidades (aparecimento de embrides de subcentros comerciais e de servicos) é que se dé uma descaracterizacao mais intensa desses espacos centrais, momento em que ocorre também uma mudanga de escala na dinémica urbana e se colocam outros esquemas de localizacao das atividades econémicas. Assim, 0 surgimento de rodovias na regido foi responsével, em grande parte, por redefinir « geografia intra-urbana de muitas dessas cidades, a exemplo de Belém. Isso acontece porque novos esquemas de circulacdo e de localizagao urbana foram estimulados pelas novas vias de circulacdo. Nesse proceso, novas centralidades foram definidas, assim como novas fungées passaram a ser estabelecidas para as éreas centrais.. 7A cidade de Belém, localzada na estudrio amaztnica, & banhada pelo rio Guamé e pela bala do Guajar REVISTA PRRANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Cro, Reabilitagdo Urbana na Area Cental de Belém-Paré: concepeSes @ tendéncias de polticas urbanas emergantes Nesse contexto, a paisagem beira-rio, estreitamente relacionada das éreas centrais, perdeu, igualmente, sua importéncia inicial. A cidade, por assim dizer, tende a “virar as costas para os rios”. Tal negaco acompanha, em grande parte, o movimento que redefine também o papel dos éreas centrais. Isso porque, muitas vezes, na histéria mais recente das cidades da Amaz6nia, 0 rio tem sido objeto de uma constante negacdo por parte da vida urbana, cinda que muitas vezes ele esteja presente nas imagens ¢ representaces que sdo construidas sobre essas mesmas cidades. Um exemplo dessa intencao pode ser constatado nos projetos de revitalizagao urbana, com fortes apelos turisticos, que buscam fazer intervengdes urbanisticas nas paisagens beira-rio. Trata-se de formas espaciais, novas ou herdadas do passado, que redesenham o cendrio urbano da Grea central tendo como pano de fundo 0 rio e seus atrativos, a exemplo do que se verifica na cidade de Belém. Longe de serem intervengdes que revelam prticas originais e especificas, trata- se muito mais de estratégias que, apoiadas em discursos regionalistas, reproduzem légicas de apropriagdo e de gestdo do espace aplicadas a outras realidades, como as européias. A concepgdo desses projetos de renovacdo urbana enquadra-se perfeitamente nas idéias de waterfront, 4 semelhanga de outras praticas jé realizadas em outras cidades do mundo, em que as intervengdes buscam normalmente a revitalizagdo de dreas degradadas, com a incorporagGo de elementos naturais presentes no espaso, reafirmando a relagdo cidade-dgua. No caso belenense, hd um conjunto de intervengées urbanas realizadas pelo Governo do Estado que fazem parte de uma nova concepcao de cidade e que se associa & imagem do rio, as tradigées culturais e ds herangas histéricas da cidade, desenhando uma nova imagem para a cidade. 3. “ESTACAO DAS DOCAS” E “FELIZ LUSITANIA’: a drea central como objeto de intervengées urbanas © complexo “Estagao das Docas” eo projeto “Feliz Lusitania” sao dois ‘empreendimentos realizados pelo Governo do Estado do Pard tendo a frente a Secretaria Executiva de Cultura a partir de uma perspectiva de desenvolvimento urbano direcionado a0 lazer, co turismo, as préticas culturais, & recuperagdo do patriménio edificado e & busca de referéncias histéricas, sociais, econdmicas e de ocupagao territorial da Amazénia e do Paré, conforme se verifica nos documentos e material de divulgacdo oficial e na imprensa local referentes aos dois projetos de intervencdo.* ‘A"Estacao das Docas”, inaugurada em maio de 2000, corresponde ao projeto de revitalizacéo urbana, realizado na drea portudria de Belém. Por meio desse projeto foram aproveitados trés grandes galpées pertencentes ao antigo porto da cidade, construido para satisfazer ds necessidades de exportacdo da borracha na Amaz6nia no final do século XIX € inicio do século XX. O projeto abrange uma drea de 32.000 m?, oferecendo servicos como bar-café, restaurantes, lojas, agéncias de turismo, bancos, teatro e dois memorials (memorial do Porto e Fortaleza de Séo Pedro Nolasco). Além disso, possui uma estagio fluvial e uma extensa drea de passeio e contemplagdo com vista para a bata do Guaja “As informagbes sobre esse projet foram sstoratizades o port dos seguintes fortes: Poré (20002, 2000b, 2001, 20029) eESTACAO (2002). 80 REVISTA PARANAENSE DE DESEWVOLVIMENTO, Cuitbo, m1,» 72-103, iden, 2006 Saint-Clir Cordeiro de Tindade Jinior e Mércio Douglas Brito Amaral Depois do processo de revitalizacdo, os antigos armazéns do Porto, construidos no final do século XIX e inicio do século XX, passaram a ter um novo uso. O armazém 1, denominado Boulevard das Artes, foi destinado em sua parte térrea a uma drea de café, cervejaria, quitutes regionais, exposicdes de arte, antiguidades, artesanato e ao Museu do Porto e das pecas encontradas por ocasido da prospecedo realizada na érea da antiga fortaleza de So Pedro Nolasco (rea do atual anfiteatro e de um pequeno jardim), sendo a érea externa transformada em grandes varandas, extensées das dreas internas, com cadeiras e mesas, e passeio com vista para a bata. Na parte superior do armazém, no mezanino, encontra-se a galeria de lojas de servicos © armazém 2, chamado de Boulevard da Gastronomia, abriga em sua parte inferior (térreo) cinco restaurantes (de mariscos, de comida oriental, de comida internacional, de comida paraense e de comida italiana), além de sorveteria regional. Em suas varandas, de frente para a baia, com presenca de cadeiras e mesas, encontram-se as extensées dos restaurantes; em sua parte superior (mezanino) hé restaurantes de fast-food, com pizzaria, comida a quilo, sanduiches etc. © armazém 3, Boulevard de Feiras e Exposicées, 6 composto por um teatro — Maria Sylvia Nunes, em homenagem a uma grande dama do teatro paraense - de 400 lugares e equipado com um moderno sistema de luz e som, sendo o restante da rea destinado as grandes exposicées e feiras. © antigo galpao Mosqueiro-Soure, que servia de terminal para o transporte regional, transformou-se em um terminal hidrovidrio para fins de lazer e turismo, recebendo um flutuante (balsa de 671 metros quadrados, com capacidade para quatro embarcacées de até 70 pés) para atracagGo de barcos de passeios turisticos. © complexo “Feliz Lusitdnia” refere-se a revitalizacdo urbana de uma érea de aproximadamente 50.000 m?, realizada pelo Governo do Estado do Paré no niicleo istérico de fundagGo da cidade.* Essa intervenco constituiu-se de quatro etapas. Abrangeu, num primeiro momento, a Igreja de Santo Alexandre e o antigo Palacio Episcopal, que passaram a acolher o Museu de Arte Sacra do Pard. Num segundo momento, promoveu-se a revitalizagGo de cito edificagées situadas na Rua Padre Champagnat, anexas a Igreja, desapropriadas e restauradas. O terceiro momento compreendeu a renovacéo do Forte do Presépio, que acolheu 0 Museu do Forte. Num quarto e ultimo momento revitalizaram-se a Casa das Onze Janelas (antiga residéncia e Hospital Militar) e seus anexos, jardins e entorno imediato (PARA, 2002b). Para 0 Governo do Estado do Pard, a revitalizacao do niicleo de fundagao da cidade de Belém significou 0 resgate de simbolos do processo de formagéo da cidade, referéncias histéricas e arquiteténicas luso-brasileiras. Na verdade, trata-se de retomar imens6es urbanisticas, paisag(sticas, arquitetdnicas e histéricas da cidade de Belém, do periodo colonial: 1 edificagées que remontam ao século XVII e XVIII, € t8m seus limites entre a Baia de Guojaré e « Praga Frei Caetano Brando. Monumentos de reconhecido valor histérico, tombados em nivel federal, passiveis de um programe de preservacéo auto-sustentével, dentro de uma TAs Informagéea sobre cate projeto foram stematizades a petr de Prd (2002), REVISTA PRRANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curio, III, 73103, jlde, 2006 al Reabilitagdo Urbana na Area Cental de Belém-Paré: concepeSes ¢ tendéncias de polticas urbanas emergantes perspectiva de desenvolvimento urbano direcionado ao social, a0 turismo cultural e & recuperagéo do patriménio edificado (PARA, 2002b, p.8). Ainda de acordo com o projeto, a revitalizagao do niicleo histérico da cidade foi orientada por dois principios basicos. O primeiro refere-se a retirada de todos os acréscimos que agrediam e descaracterizavam as instalagdes mais originais de cada prédio. O segundo estabelece a preservacéo das mudangas realizadas em diversas épocas e que foram consideradas como contributivas & artisticidade do conjunto, Para alcancar tal objetivo, toda a intervengao urbanistica realizada no complexo foi fundamentada em pesquisas e prospeccées, de modo a evitar a reprodugdo de solucdes marcadas por um “falso histérico". A primeira etapa do projeto “Feliz Lusitania” foi inaugurada em setembro de 1998, Referiu-se a transformacao da Igreja de Santo Alexandre e do antigo Palacio Episcopal (monumentos tombados pelo Instituto do Patriménio Histérico e Antstico Nacional - PHAN) no Museu de Arte Sacra do Paré (MAS). Além do espaco do museu, esse conjunto arquiteténico possui também cafeteria, galeria de arte, loja de produtos culturais, oficina de restauragdo, auditério para 50 lugares, biblioteca, érea de servigo, Grea de administracao e igreja. A gestéo desse conjunto arquitetnico do Museu de Arte Sacra fica sob responsabilidade da Secretaria de Cultura do Estado, que busca preservar tanto a arquitetura quanto a colecdo de obras de artes ai presentes segundo os critérios mais modernos de restauro. A segunda etapa do projeto, que possui uma rea construida de 1.968 m2, foi concluida em dezembro de 2002 e consistiu na restauracéo do casario da Rua Padre Champagnat, um conjunto composto por oito edificagées com caracteristicas da arquitetura luso-brasileira e que se localizam na lateral esquerda da Igreja de Santo Alexandre. As oito edificagdes da Rua Padre Champagnat foram direcionadas para fung6es como: comércio e services voltados para o turismo e lazer, museu, saléo de recepcdo e espaco administrativo do Departamento de Patriménio Histérico, Artistico e Cultural do Estado (DPHAC) A terceira etapa consistiu na revitalizagéo do Forte do Presépio, uma érea de ‘aproximadamente 8.500 m? inaugurada em dezembro de 2002, que buscou promover uma refuncionalizago desse ambiente, adequando-o para fins museolégicos, cuja edificagdo é considerada o principal acervo: A.adequacéo do forte para uso museolégico, tendo como primeiro acervo singulara prépria, edificagdo, buscaré em seu discurso museolégice implementar o nticleo embrionério em toro do qual se estruturou a cidade, que registra ndo sé o contato entre os portugueses e indigenas 1no bajo do proceso amplo de colonizagdo, como também consolida, em verdadeiras camadas temporais, « evolugao do uso da propria edificagao, a vida cotidiana do cidade e a expansao urbana compreendida entre 1616, ano de fundagéo da cidade, até 1962, ano em que a cedificagtio fol tombada pela IPHAN (PARA, 20025, p.35). Segundo consta no documento analisado, a importancia cultural e histérica é projetada nessa intervengGo urbana. Existem duas exposi¢ées permanentes instaladas no Forte do Presépio, uma delas em sua area interna, mais precisamente no antigo a2 REVISTA PARANAENSE DE DESEWVOLVIMENTO, Cuitbo, m1,» 72-103, iden, 2006 Saint-Clir Cordeiro de Tindode Jinior Mércio Douglas Brito Amaral prédio do corpo da guarda e no armazém, que apresenta como esséncia temdtica a arqueologia brasileira e amazénica, a arqueologia urbana, a fundacdo da cidade, 0 Forte como nucleo fundador e as referéncias cronolégicas do mesmo até 1962; e outra que acontece na érea externa, na érea de urbanizacdo do Forte, formada por dois centros entrelacados, o de materiais de antlharia e o de evidéncias construtivas, enquanto fortificagao e defesa. A revitalizagéo do Forte do Presépio promoveu uma série de alteracées na paisagem, pois a opgao feita para renovacdo urbana da area consistia na retirada dos anexos implementados pelos militares ao longo do tempo em que se instalaram no local: galpées, hotel de trdnsito, quadra de esportes, loja de artesanato, restaurante muro do aquartelamento. O objetivo dessas alteragdes foi o de resgatar a relacdo existente originalmente entre o Forte e a cidade. A quarta e ultima etapa do projeto consistiu na revitalizacdo da Casa das Onze Janelas, uma érea de 7.280 m2, também inaugurada em dezembro de 2002 a partir da revitalizagdo de um sobrado construido em meados do século XVIII para residéncia particular e que foi reformado pelo arquiteto italiano Anténio José Landi ainda nesse século, antes de ser transformado em hospital militar e depois em Companhia de Guarda e drea de suprimento para o exército no Para. A reabilitagdo da Casa das 11 Janelas teve como objetivo a integracao de iferentes paisagens e ambientes em que natureza (rio), prédio do século XVIII intervengdo do século XX pudessem conviver de forma “harménica”, proporcionando. a0 visitante desfrutar de cultura, lazer e turismo: ‘ACasa das 11 Janelas pretende ser um local que integre paisagem, histéria, lazer e cultura, funcionando, predominantemente, como espago referencial de arte modema e contempordinea brasileira, para regides Norte, Nordeste e paises vizinhos (PARA, 2002b, p.4) Depois da revitalizagdo, a Casa das 11 Janelas ficou organizada da seguinte maneira: no andar superior e parte do térreo da residéncia ficou a exposigéo permanente de arte contempordnea de acervo pertencente a0 Governo do Estado, além de uma “sala de experimentagdo”; na maior parte do térreo esté alojada a administragao do Sistema Integrado de Museus do Estado e 0 “Boteco das Onze", um ambiente que funciona durante o dia como restaurante, e que 4 noite abriga um bar com musica ao vivo; além disso, 0 espaco possui também uma drea que se localiza 4 esquerda da Casa das 11 Janelas, que funciona como espelho d’agua, anfiteatro e pier voltado para contemplacao do rio Guama. 4 RECONHECENDO PRATICAS E CONCEPCOES DE PLANEJAMENTO E GESTAO A partir das intervengées apresentadas é possivel caracterizar as concepcées & «5 praticas de planejamento e gestdo que se fazem presentes na érea central de Belém. Utilizaremos para isso 0s critérios arrolados por Souza (2002) no sentido de tragar um perfil dessas mesmas intervencées; dai ser necessério, antes, esclarecer cada um dos critérios considerados por este autor: REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curio, 111, 73103, jlde, 2006 83 Reabilitagdo Urbana na Area Cental de Belém-Paré: concepeSes @ tendéncias de polticas urbanas emergantes a) b) 3 a idéia-forca central consiste na concepgdo € no principal objetivo a ser perseguido nas praticas de planejamento e gestdo. Contribui de forma decisiva para determinar 0 “espirito da abordagem”, funcionando como um norte para os seus praticantes; a filiagdo estética & uma varidvel muito importante nos casos em que se trabalha com modalidades de planejamento mais arquiteturais, uma vez que diz respeito a questies de tracado e de estilo de uma dada intervengao. Para Souza (2002), a filiagéo estética nao tem poder discriminador quando se trata de outras abordagens de gestdo e planejamento, que tendem a nao focalizar questées estéticas; © escopo é 0 critério que demonstra se 0 planejamento é estritamente “fisico-territorial” ou se apresenta um cardter “social abrangente” O modelo fisico-territorial cléssico/convencional "consiste na concepcéo do planejamento como a atividade de elaboragao de planos de ordenamento espacial para cidade ideal” (SOUZA, 2002, p.120). Trata-se de elaborar diretrizes e metas a serem seguidas a fim de se alcangar a cidade desejada no futuro. um modelo preocupado fundamentalmente com 0 tragado urbano, com densidade de ocupagao e com uso do solo. O planejamento nao estritamente fisico-territorial é aquele que possui uma natureza "social abrangente”, em que a espacialidade é uma entre diversas dimensoes, ainda que seja uma “dimensao crucial” (SOUZA, 2002); © grau de interdisciplinaridade, segundo Souza (2002), pode ser avaliado por meio de uma escala que varia do muito pequeno— as correntes que trabalham essencialmente com a profissdo de arquiteto ~ ao muito grande, caso do modelo autonomista que aposta na no compartimentagtio do conhecimento, trabalhando com uma visGo transdisciplinar ou mesmo adisciplinar; a permeabilidade em face da realidade considerada a partir de uma escala que inclui trés tipos de abordagem: 0 apriorismo, o semi-apriorismo € © reconstrutivismo. Na primeira, a observagao do real, a coleta de dados e de informagées servem simplesmente para contextualizar uma determinada proposta de intervencdo, que se baseia em um modelo normativo da “boa forma urbana”, cuja idéia-forga é a ordem, funcionalidade, a eficiéncia, entre outras. Na segunda, a observacao do real, a coleta de dados e de informagées e a elaboragdo de conjecturas estdo relativamente permedveis co mundo real, sendo que suas “pesquisas” apresentam pouca rigorosidade do ponto de vista da investiga¢ao cientifica. Na terceira, de cardter cientifico, a despeito da fundamentacao teérica e dos balizamentos metateéricos, o que existe é uma dialética entre teoria e empiria, em que a proposta de intervencao é © resultado da interacéo entre as mesmas e a fundamentagao teérica é reconstruida constantemente no decurso da andlise e da critica do mundo real (SOUZA, 2002); REVISTA PARANAENSE DE DESEWVOLVIMENTO, Cuitbo, m1], » 72-103, iden 2606 Saint-Clir Cordeiro de Tindade Jinior e Mércio Douglas Brito Amaral )_o.grau de abertura para com a participagao popular leva em conta uma escala de avaliagéo sobre o grau de participagéo na tomada de decisées eno processo de gestao, indo desde a situagéo de ndo-participacdo até a de participacdo considerada auténtica;* @) aatitude em face do mercado diz respeito & forma de levar em conta a légica do mercado, destacando-se posturas como a de aceitago sem restrigGes dessa mesma légica; a critica moderada, que aspira ao controle, a0 disciplinamento e & domesticagao do mercado; ¢ 0 criticismo forte, que critica o préprio modelo capitalista. Dentro desta vitima postura, pode-se identificar, ainda, trés vertentes: a que aceita o modelo, porém de forma tensa, visando a controlar e a disciplinar o mercado e a propriedade, de maneira a estabelecer maior justica social; a que aceita o modelo de forma tética e pragmética, no sentido de trabalhar para sua superacéo como forma de estabelecer maior justiga social; e a que rejeita pura € simplesmente o capitalismo, preocupando-se com a organizagao de uma sociedade pés-revolucionéria; h)_ 0 referencial politico-filosético busca levar em conta estratégias politicas de agao, considerando posturas que vao desde 0 ultraconservadorismo capitalista, em sua verso neoliberal, até a sua superagdo, passando por vis6es de centro-esquerda, de social-democracia, e daquilo que Souza (2002) identifica como “liberalismo de esquerda” Pode-se dizer que a idéio-forga central do planejamento e da gestao urbana na Grea central de Belém muito se aproxima do modelo estratégico de cidades ou “mercadéfilo” (SOUZA, 2002), que tem como finalidade a modemizagao do espago, com privilégio 4 cidade competitiva economicamente. “Nessa escola, tomse: 1 coargdo = stuagio em que ndo se permite nem mesmo 0 acesso as apardncias, cecorrenda, no geal, em regimes dtatorols etotaltrls; 2° manipulagda- stuagdes em que @ papulogde & Induzida a ‘cellar determineda intervengéo, por meio de propagandas macigs e eutros mecanismes, O Estado, para nda usar 6 {orca flicrbrute, busca outros mecanismos de corvencimonto, ressatando-se que, nesse processo, 0 diloga néo & estabolecido verdedeiramente; 3.*informagae - 0 Estado disponibilze os informagées sobre as intervencées realizedas, sendo que, dependendo da cultura paltica edo grau de trensparéncia das regras do jogo, essasinformacées serdo mals fou menos completas, menas ou mais ideolégicas; 4° consulta - o Estado ndo apenes permite 0 acesso & informacéo, como também consulta 0 populogae pore saber sua opinide e sugestdo sobre a Intervencéo; no entento, 6 fata de consular no goronte que os opinises © sugestées selam Incorporadas, pois na malora das weses so os argumentos técricos que tém maior valor 5° cooptogdo faz olusdo & cooptagéo individual (de ideres populares ede pessoat-chave) cou de sogmentos mais ator (atvates), que fazom parte de adminsiragao, de conais partcipatvos ou de insténcias de partcipagdo. Assim como na cansulta, a ponulacéo, por meio de incviduos selecionades elou de conais de paricipaséo, 6 ouvida, cinda que ndo possua poder deliberative. O evenca (se é que existe) em relagta & infarmacao @ & consulte consist no fata de que aqui so cradas insténcias ptmnanentes. A caoptacdo & vantojose para cpenas alguns indviduos, parm pora a coletvdade ela & pemiciosa; 6 porceria ~ ¢ 6 primeiro grou de paticipacdo auténtico, em que 0 Estado #0 sociedode cv organizade colaboram, por melo de dislogo e da transparénca, pore « implontagée de determinade poltica publica; 7“ delegagéo de poder - corresponde a um avango em relagéo 8 parceria, pois 0 Fatodo abre mao de lgumos de suas “prerogatives exclusives’, transferindo-os pare a sociedade cil; 8° autogestdo - tratase de ur nivel «que vai para além do paracigma coptalite, pressupendo uma sociedade cutinome, 0 que ndo impede que ela sia utlizada de forme residual dentro do modelo coptalista. As principals caractersticas da autogestéo so: a auséncia de tum poder que estdacime da Sociedade (Estado), a enistincla de ume seciedede auténome, a partcipagée de indivdues les © consclentes de seu popel social ete NVOLVINENTO, Cura, 111, 73103, a de, 2006 85 Reabilitagdo Urbana na Area Cental de Belém-Paré: concepeSes ¢ tendéncias de polticas urbanas emergantes Assim, as intervengées urbanas foram produzidas com o objetivo de tornar a cidade e 0 Estado do Pard mais competitivos, inserindo aqui a renovagdo urbana da érea central. Tal intengdo pode ser observada em material publicitério do Governo do Estado: Uma das grandes maravihas de Paré€ que os boas oportunidades de negéctos estao todas abertas, desperados investdores que enxergam longe. Ndo sé no stor detusmo, mas também tem agfeutura e ogrlnddsra e mineragdo, E al que o Estodo estéinvesinde come nunca, construindo uma infa-estrtura moderna e segura em todo o estado. A eornecar pelo novo . Acesso em: 20 jun. 2002. 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