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Titulo original: Playing and Reality. Traduzido da primeira edigio inglesa publicada em 1971 por Tavistock Publications Ltd., 11 New Fetter Lane, London EC 4, Copirraite © 1971 de D. W. Winnicott Editoragao Coordenador: PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA Tradugdo: JOSE OCTAVIO DE AGUIAR ABREU e VANEDE NOBRE Revisdo: FRANCISCO DE ASSIS PEREIRA Capa: LEON ALGAMIS 1975 Direitos para a-lingua portuguesa adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA., Av. N. Sra. de Copacabana 330, 109 andar, tel: 255-2715, Rio de Janeiro, que se reserva a propriedade desta tradugio. Impresso no Brasil Printed in Brazit D.W.WINNICOTT OBrincar & aRealidade Colegio Psicologia: Psicanalitica Diregio de JAYME SALOMAO 92000015800 DEDALUS - Acervo - EACH Membro-Associado da Sociedade Brasileira de. Psicandli Rio de Janeiro. Membro da Associagao Psiquidtrica do Rio de Janeiro. Membro da Sociedade de Psicoterapia Analitica de’ Grupo do Rio de Janeiro. Ee ss & BIBLIOTECA 2) Rio de Janeiro 5 IMAGO EDITORA LTDA. 9, _\SOG% “Sovains! € estivesse relatando um sonho: ‘Sonhei que estava jogando pa- ciéncia’, entéo cu poderia utilizé-lo e, na verdade, fazer uma interpretacio, Poderia dizer-the: "Vocé esté lutando com Deus, ‘ou 0 destino, as vezes ganhando, utras, perdendo, com a inten- lo de contrclar os destinos de quatro familias reais.” Ela pode rosseguir a partir disso, sem auxilio, ¢ este foi seu comentario posterior: ‘Estive jogando paciéncia durante horas em meu quar- to vazio € 0 quarto estava realmente vazio porque, enquanto estou jogando paciéncia, nfo existo’. Aqui, novamente, disse: “Assim, eu poderia tornar-me interessada em mim.’ ‘Ao final, relutava em ir embora, no, como na ocasiio anterior e recente, devido a tristeza por deixar a tnica pessoa ‘com quem pode examinar as coisas, mas, nessa ocasigo em espe- cial, em virtude de que, indo para casa, poderia sentir-se menos doente, isto é, ménos rigidamente fixada numa organizacao de defesa, Agora, em vex de poder predizer tudo 0 que acontece- ria, nao mais podia saber se iria para casa e faria algo que desejasse, ou se o jogo de paciéneia a possuiria, Era evidente que sentia falta da certeza do padrdo da doenga © uma grande ansiedade sobre a incerteza que acompanha a liberdade de escolha. ‘Ao final dessa sesso, pareceu-me possivel reivindicar que © trabalho da anterior tivera efeito profundo. Por outro lado, permanecia bem ciente do grande perigo de tornar-me confian- fe ov até mesmo satiseito. Mais do que em qualquer outra parte de todo o tratamento, a neutralidade do analista tornava- se necesséria aqui, Nesse tipo de trabalho, sabemos que esta- mos sempre comecando de novo ¢ € melhor se no esperamos muito. 58 ut © BRINCAR Uma Exposicae Tedrica Este capitulo constitu’ a tentativa de exploragio de uma idgia a que cheguei por forga de meu trabstho, bem como atra- vés do meu proprio estidio de desenvolvimento atual, que di a meu trabalho um certo colorido. Nao preciso deter-me a res- eito dele, que é em grande parte psicandlise, e inclui também a psicoterapia, assim como seria desnecessirio, para os fins deste capitulo, tragar uma distingao clara entre os usos dos dois termos. ‘Ao enunciar minha tese, como muitas vezes aconteceu, des- cubro que ela é muito simples e poucas palavras se tornam ne- cessérias para abranger 0 assunto. A psicoterapia se efetua na sobreposisao de duas dreas do brincar, a do paciente e a do ferapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas, Em conseqiiéncia, onde 0 hrincar nao é possivel, 0 tra- batho efetuado pelo terapeuta € dirigido entéo no sentido de tracer o paciente de wn estado em que ngo é capa: de brincar ara um estado ent que 0 €. Embora nao esteja tentando passar em revista a literatura especializada, desejo prestar tributo ‘a0 trabalho de Milner (1952, 1957, 1969), que escreveu brilhantemente sobre o tema da formagao simbdlica. Contudo, ndo € minha intengéo que seu estudo, por amplo que seja, me impesa de chamar a aten¢a0 para o tema do brincar segundo minhas proprias conclusoes a respeito, Milner (1952) relaciona o brincar das crianeas & con- centragio nos adultos: "Quando comecei a perceber (...) que esse uso de mim poderia ser ndo apenas uma regressio defensiva, mas uma fase recorrente e essencial de uma felagao criativa com o mundo ( Milner referia-se a uma ‘fusdo pré-lésica de sujeito e obje- to; investigo a distingdo entre essa fusdo e a fusio ou desfusio 59 do objeto subjetivo do objeto objetivamente pereebido.' Acre- ito que minha tentative aqui expressa é inerente também a0 material da contribuigdo de Milner. Eis aqui outra de suas afirmagives ‘Os momentos em que v poeta original dentto de nos. criou 0 mundo externo, descobrindo 0 familiar no nio familiar, so talvez esquecidos pela maiotia das pessoas ‘ou permanecem guardados em algum lugar secreto da meméria, porque se assemelham muito a visitagdes de deuses para que sejam mesclados com o pensamento co- tigiano’ (Milner, 1957). Brincadeira ¢ Masturbagao Hai algo que desejo afastar do caminho. Nos trabalhos © estudos psicanalitices, 0 tema do brincar ja foi intimamente ¢ em demasia vinculado & masturbagdo € as variadas experigncias senstiais. E verdade que quando nos defrontamos com a mas- turbagao, sempre pensamos: qual é a fantasia? E é também verdade que, observando o brincar, tendemos @ ficar imaginan- do qual é a excitagio fisica que esti vinculada ao tipo de brin- cadeira a que assisiimos. Mas o brincar precisa’ser estudado como um tema em si mesmo, suplementar a0 conceito da su~ blimagio do instinto. E possivel que tenhamos perdido algo pela vinculacéo de- masiadamente estreita que temos feito em nossas mentes desses dois fendmenos (brincar ¢ atividade masturbatéria). Tenho pro- curado demonstrar que 0 elemento masturbatério esta essencial- mente ausente no momento em que uma crianga brinca; ou em ‘outras palavras, quando uma crianga esta brincando, se’a exci- tacdo fisica do envelvimento instintual se torna evidente, entio © brincar se interrompe ou, pelo menos, se estraga (Winnicott, 1968a). Tanto Kris (1951) quanto Spitz (1962) ampliaram o © Para estudo posterior desse tema, o leitor pode consultar meus artigos “Ego Intepration in. Child Development’ (1962) € "Communica. tng aed Not Communicating Iasig to\a Study of Ceftain Opposes 60 cconceito de auto-erotismo para abranger dados de tipo seme- Thante (ef. também Kahn, 1964). Estendo-me no sentido de um novo enunciado do brincar: isso me interessa quando pareco constatar na literatura psica- nalitica a auséncia de um enunciado iil sobre o tema da brin- cadeira, Como a analise de criangas, de todas as escolas, esti construida em torno do brincar da erianga, seria bem estranho descobrirmos que um bom enunciado sobre o brincar teria de ser encontrado entre aqueles que escreveram sobre 0 tema ¢ ‘nao so analistas (Lowenfeld, 1935, por exemplo). Naturalmente, voltamo-nos para a obra de Melanie Klein (1932), Em seus’eseritos, porém, Klein, na medida em que estudava a brincadeira, mantinha seu interesse centrado quase {que inteiramente no’ uso desta, © terapeuta busca a comunica- ‘so da crianga e sabe que geralmente ela nio possui um do- ‘minio da linguagem capaz de transmitir as infinitas sutilezas que podem ser encontradas na brincadeira por aqueles que as Procuram, Nao se trata de uma critica a Melanie Klein ou a outros que desereveram o uso da brincadeira por uma crianga na psicanalise infantil, Fazemos um simples comentério sobre a possibilidade de que, na teoria total da personalidade, 0 psica- nialista tenha estado mais ocupado com a utilizaglo do contet- do da brincadeira do que em olhar a crianga que brinca ¢ escre- ver sobre o brincar como uma coisa em si. E evidente que estou fazendo uma distinggo significante entre 0 substantivo “brinca- deira’ & 0 verbo substantivado ‘brincar’ ‘© que quer que se diga sobre o brincar de criangas aplica- se também aos adultos; apenas, a descrigao torna-se mais dificil ‘quando o material do paciente aparece principalmente em ter- ‘mos de comunicagio verbal. Sugiro que devemos encontrar 0 brinear tdo em evidéncia nas andlises de adultos quanto o € no caso de nosso trabalho com criangas. Manifesta-se, por exem- plo, na escolha das palavras, nas inflexdes de voz e, na ver- dade, no senso de humor. FENOMENOS TRANSICIONAIS (© significado do brincar adquiriu novo colorido para mim fa partir de meus estudos sobre os fendmenos transicionais, re- 6 montanda-os em todos os seus sutis desenvolvimentos, desde ‘© emprego primitivo de um objeto ou técnica transicional, os estadios supremos da capacidade de um set humano para a ex: Perincia cultural, Parece-me pertinente fazer referéneia aqui a generosidade demonstrada nos circulos psicanaliticos e no mundo psiquidtri- 0. em geral, com respelto a minha descrigao don fendmenos frangicionais, Interessa-me em especial « falo de que exatamente no campo do cuidado infantil essa idéia tenha sido bem rece bida , is vezes, penso que recebi mais do que minha recor Pensa merecida nessa area. Os fendmenos que chamei de trans ionais so universais, © tratou-se simplesmente de chamar a atenclo para eles ¢ para seu potencial de uso na construgio da teoria, Wulff (1946), como descobri, jé escrevera a respeito de objetos fetichistas usados por bebés’ou criangas, ¢ sei que ha clinica psicoterapéutica de Anna Freud tais objetos foram observados em criangas pequenas. Ouvi Anna Freud falar sobre ©, uso do talisma,,fenémeno intimamente afim (ef. A. Freud, 1965). A. A. Milne, naturalmente, imortalizou “Winnie the Pooh”. Schulz e Arthur Miller,' entre outros autores, inspiraram- Se nesses objetos que especificamente mencionei ¢ denominei Sinto-me incentivado pelo destino-feliz.concedido 10 con” ceito dos fendmenos transicionais e inclino-me a pensar que ‘minhas tentativas atuais de dizer 0 que penso sobre o brincar também possam ser prontamente accitiveis. Existe algo sobre © brincar que ainda no encontrou lugar na literatura psica- nalitica No capitulo sobre a experiéncia cultural ¢ sua localizagio (Capitulo VID), coneretizo minha ideia sobre a brincadeira, rei~ vindicando que o brincar tem wm lugar e um tempo. Nio é dentro, em nenhum emprego da palavra (e infelizmente é ver- dade que @ palavra “dentro” possui muitos ¢ variados usos no estudo psicanalitico). Tempouco € jora, 0 que equivale a Que no constitui parte do mundo repudiado, do néo-eu, aquilo lividuo decidiu identificar (com dificuldade e até mes. fento) como verdadeiramente externo, fora do con Miller (1963): historia acaba por decrescer para um final sentimental e, portanto, segundo me parece, abandona 0 vinculo.ditcto ‘com a observatio da infincia 62 tole mégico. Para controlar o que estd fora, hii que fazer coisas, no simplesmente pensar ou desejar, e fazer coisas toma tempo. Brincar & fazer. (© BRINCAR NO TEMPO E NO ESPAGO A fim de dar um lugar ao brincar, postulei # existéncia de um espaco potencial entre 0 bebé e a mie. Esse espago va- ria bastante segundo as experiéncias de vida do bebé em rela. g@o A mae ou figura materna, e eu contrasto esse espaco po- tencial (a) com o mundo interno (relacionado parceria p: ‘cossomitica), e (b) com a realidade concreta ou externa (que possui suas proprias dimensdes e pode ser estudada objetiva- Mente, € que, por muito que possa parecer variar, segundo 0 estado do individuo que a esté observando, na verdade perma- nnece constante), Posso agora reenunciar 0 que estou tentando transmitir Desejo afastar a atencéo da seqiiéncia psicanilise, psicoterapia, ‘material da brincadeira, brincar, e propor tudo isso novamente, a0 inverso. Em outros termos, é a brincadeira que é universal © que é prépria da sade: © brincar facilita o crescimento e, portanto, a satide; 0 brincar conduz aos relacionamentos gru- Pais; o brincar pode ser uma forma de comunicagio na psico- terapia; finalmente, a psicandlise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a servigo da comunicagao consigo mesmo € com os outros. © natural é o brincar, ¢ o fendmeno altamente aperfeigoa- do do século XX é a psicanilise. Para o analista, nio deixa de ser valioso que se the recorde constantemente no apenas aquilo que € devido a Freud, mas também 0 que devemos a coisa na- tural e universal que se chama brincar. Dificilmente € necessétio ilustrar algo tio dbvio quanto 0 brincar; nio obstante, proponho-me fornecer dois ex:mplos, Edmund, Dois Anos ¢ Meio de Idade ‘A mie viera fazer-me uma consulta sobre si mesma € trouxera consigo o filho, Edmund, A crianga ficou em minha sala enquanto eu conversava com sua’ mie, culu- 63 uci entre nés uma mesa © uma cadeirinha, que ele po deria usar, se quisesse, Parecia sério, mas nfo assustado ou deprimido. Perguntou: ‘Onde esto os brinquedos?” Foi tudo © que disse durante todo o tempo, Evidentemente, tinham-Ihe dito que talvez encontrasse brinquedos ali ¢ respondi-lhe que havia alguns na outra extremidade da sala, no chao, debaixo da estante. Encheu logo um balde com brinquedos e ficou brin- cando de maneira deliberada, enquanto a consulta entre mim e a mie prosseguia, A mae péde contar-me 6 mo- ‘mento exato significative em que Edmund comecara a ‘gaguejar, aos dois anos ¢ cinco meses de idade, apés 0 que deixara de falar, ‘porque a gagucira 0 assustava’. Enquan- to debatiamos uma situagao de consulta sobre ela propria € sobre ele, Edmund colocou algumas partes de um tren Zinho sobre a mesa e comecou a dispé-las, fazendo-as jun- tar-se e relacionar-se. Ele estava apenas a meio metro de distncia da mie. Logo subiu a seu colo ¢ teve um pe- queno momento de bebé, Ela reagin de modo natural © adequado. Depois, 0 menino desceu espontancamente ¢ voltou a brincar na mesa, Tudo isso aconteceu enquanto @ mie ¢ cu estivamos empenhados em uma conversa profunda, . Vinte minutos depois, aproximadamente, Edmund co- ‘megou a animar-se ¢ foi até o outro lado da sala, buscar Rovo suprimento de brinquedos. Voltou com um’ emars nhado de cordao. A mae (inegavelmente afetada pela esco- tha do cordio, mas nao consciente do simbolismo) fez observagio: “Em seu ponto maximo de nio-verbaliza- a0, Edmund ¢ muito apegada, precisando de contacto com meu scio real e necessitando de meu colo real’. Na época em que a gagueira surgira, ele comecara a disci- plinar-se, mas revertera i incontinéncia juntamente com 4 gagueira, e a isso seguira-se o abandono do falar. Esta va comegando a cooperar novamente, por ocasiao da con- sulta, A mie entendia isso como parte de uma recupera- G0 do retrocesso no desenvolvimento da erianca. Observando o brincar de Edmund, pude manter co- municagio com a mie. Agora, Edmund, enquanto brincava, fez crescer uma batha na boca. Ficou: preocupado com cordio. A mie comentou que ele recusava tudo, quando bebé, exceta o seio, até erescer e passar a accitar alimentar-se em xica- ras, “Ele nao tolera substituto algum’, contou-me, signitic cando que no accitava mamadciras; a recusa de substi- {utoy tomararse um aspecto permanente de seu cariter, Mesmo a av materna, de quem gostava muito, nio era integralmente aceta, por no ser a mie real, Sempre teve ‘a mie para acalenté-lo a noite. Quando ele nasceu, a mae teve problemas no seio e ele costumava apertar-Ihe 0 seio com a5 gengivas, nos primeiros dias e semanas, talvez como garantia contra a sensivel protegio que a mae con- cedia a si mesma, em consequéncia de seu estado delica- do. Aos dez meses, nasceu-lhe um dente e, em deter nada ocasiio, mordeu-a, mas nao tirou sangue. “Edmund no foi um bebé tio ffcil quanto o pri- meiro’ Tudo isso levara tempo para ser relatado e mistura- Varse aos outros assuntos que a mac queria debater co- ‘igo, Edmund parecia interessado na ponta do cordao que sobressaia do emaranhado. As vezes fazia um gesto como se ‘ligasse’ a ponta do cordio, como uma tomada, & coxa da mie, Era interessante observar como cle utili zava 0 cordio como um simbolo de unido com a mie, embora néo ‘tolerasse substituto algum’. Era evidente que © cordio constitufa simultaneamente um simbolo de sepa- Fagio e de unio pela comuncagéo, ‘A mae contou-me que ele possuira um objeto transi- cional chamado ‘meu cobertot’; podia usar qualquer co- bertor que apresentasse um debrum de cetim semelhante a0 do cobertor original de sua tenra infancia, Nese ponto, Edmund deixou de lado’os brinquedos com toda naturalidade, subiu 10 divi, rastejou como um animal na diregdo da mie e aninhou'se em seu colo. A mie reagiu com naturalidade, sem exagero. A crianga fi- cou assim uns trés minutos; éepois, desaninhou-se e re- tornou aos brinquedos. Coloceu agora o cordio (de que parecia gostar) no fundo do balde, como um forro, co megando a por os brinquedos ali, de modo que tivessem 65 66 tum lugar bom e macio para repousar, como um bergo ou ‘caminha. Depois de se'agarrar & mie mais uma vee e re- tomar aos brinquedos, estava pronto pard ir; tinhamos concluido, eu © sua mie, a consulta, Nessa brincadeira, ele ilustrara muita coisa de que a mae estivera falando (embora esta também estivesse falando de si propria). Comunicara existir nele 0 movi mento de maré montante © maré vasante, a afastar-se da ependéncia ¢ a ela retornando, Mas isso no era psico- terapia, pois cu estava trabalhando com a mie, O que Edmund fizera, fora simplesmente apresentar as idéias que ocupavam sua vida, enquanto sua mae ¢ eu conversiva- mos. Nao interpretei, € tenho de supor que essa crianca teria brineado do mesmo modo sem que ninguém estivesse ali para vé-la, ou para receber a comunicagéo que, nesse caso, teria sido talvez'uma comunicacdo com alguma parte do eu (self), 0 ego observante. Tal como aconteceu, eu espelhava com a minha presenca 0 que estava acontecen- do, concedendo-Ihe, assim, uma qualidade de comunica- sao (cf. Winnicott,” 1967b). Diana, Cinco Anos de Idade No segundo caso, tal como sucedera ‘com Edmund, tive de conduzir paralelamente duas consultas, uma com a mae, que se encontrava em dificuldades, ¢ um relacio- namento Iddico com a filha, Diana, Esta tinha um irmao- Zinho (em casa) mentalmente deficiente, afetado também Por uma deformidade cardiaca congénita. A mae viera debater 0 efeito que a doenca da crianga causava sobre si mesma e sobre a filha, Diana. Meu contacto com a mae durou uma hora, A crian- {ga esteve conosco durante todo o tempo e minha tarcfa foi triplice: conceder a mile atengio plena, por causa de suas préprias necessidades, brincar com a crianga, (com a finalidade de escrever esse artigo) registrar a natureza da brincadeira de Diana, De fato, foi a propria Diana quem tomou conta des- de 0 inicio: quando abri a porta para deixar entrar a ‘mae, uma meninazinha ansiosa se apresentou, mosttando um pequeno ursinho. Nao olhei para a mie, nem para cla, mas dirigi-me diretamente ao ursinko © perguntei: “Qual é 0 nome dele? Ela respondeu: 'S6 Teddy'.* Assim, um intenso relacionamento se desenvolvera fapidamente entre mim ¢ Diana, e tive de manté-lo em andamento, a fim de cumprit minha missio principal, que era atender dis necessidades da mae. No consultério, evidentemente. Diana precisou semtir todo o tempo que recebia minha atengao, mas foi-me possivel conceder a mie a tengo de qu: precisava e brincar também com Diana, Ao deserever esse caso, assim como ao descrever © de Edmund, apresentarei 0 que aconteceu entre mim ¢ Diana, deixando de lado o material da consulta com a Iistalamo-nos no consultério: a mae sentou-se no diva e Diana numa cadeirinha, perto da mesa de criangas. Logo em seguida, a menina colocava seu ursinho dentro do bolso de cima de meu palet6. Tentou ver até onde € examinou o forro do meu paletd; depois disso, interessou-se pelos diversos bolsos ¢ pela maneira como nndo se ligavam uns aos outros. Tudo isso acontecia enquan= to a mie e eu conversivamos seriamente sobre a crianga retardada de dois anos e meio de idade; Diana forneceu a informagdo adicional: “Ele tem um buraco no coracao’. Era como se escutasse com um dos ouvidos, enquanto brincava, Pareceu-me ser capaz de accitar a deficiéncia fi- sica do irmio, de etardamento mental ndo estivesse ao aleance de sua com- Preensio. Na brincadeira que Diana ¢ eu fizemos juntos, um brincar sem terapéutica em si, pude sentir-me livre para ser brincalhio. As criangas brincam com mais facilidade quando a outra pessoa pode e esta livre para ser brin- calhora. Repentinamente, fingi escutar algo do ursinho que estava em meu bolso ¢ disse: ‘Ouvi-o dizer algo!” Ela ficou muito interessada, Continuei: ‘Acho que ele * Os ursinhos de brinquedo tém, em inglés, o nome genérico de: teddy bears IN. do), 0 68 quer alguém com quem brincar’. Falei-the sobre 0 cordei- rinho cheio de 1d que poderia encontrar, se procurasse no outro lado da sala, entre os brinquedos misturados sob a estante. Talvez eu tivesse um outro motivo, ou seja, tirar o urso de meu bolso, Diana foi buscar 0 cordeirinho, consideravelmente maior do que © urso, ¢ aceitou minha idéia da amizade entre o ursinho ¢ 0 cordeito. Por algum tempo, pés ambos: juntos no diva, perto do lugar ond se sentava sua mie, Eu, naturalmente, continuava a mi nba entrevista com esta e podia-se notar que Diana se ‘mantinha interessada no que dizfamos, fazendo isso com uma parte de si mesma, a parte que se identificava com 05 adultos € as atitudes adultas. Durante a brincadeira, Diana decidiu que o ursinho € 0 cordeirinho eram seus filhos. Colocou-0s sob sua rou: pa, fazendo-se grivida deles. Apés um perfodo de gr dez, anunciou que iam nascer, mas que ‘néo iam ser gé- meos’. Deixou bem evidente que 0 cordeiro deveria nas- cer primeiro ¢, depois, o ursinho. Depois que se deu o nascimento, colocou os dois filhos recém-nascidos juntos sobre uma cama que improvisou no cho, e cobriu-os. A principio, colocou-os em lados opostos,'dizendo que, se ficassem juntos, brigariam, Poderiam ‘encontrar-se no meio da cama, sob as cobertas ¢ brigar’, Depois, colo- cou-os dormindo juntos, pacificamente, sobre 0 leito im- provisado. Afastou-se, entio, e apanhou uma porgdo de brinquedos num balde'e em algumas caixas, Sobre 0 assoa- tho, em torno da parte de cima da cama, dispés 08 bri quedos e com eles brincou; o brincar era ordenado e havia diversos temas diferentes, os quais desenvolvia, mantendo cada um deles separado do outro, Intervim novamente com uma idéia minha, Disse: ‘Oh, olhe s6! Vocé esta espalhando no cho, em volta das cabecas dos bebés, os sonhos que eles esto tendo, enquanto dormem’. A idéia intrigou-a, ela a aceitou ¢ continuou a desenvolver os di- vversos temas, como se sonhasse para os bebés os sonhos deles, Tudo isso nos concedia o tempo livre de que pre- cisivamos, para levar a cabo o trabalho que estivamos fazendo. Houve um momento em que a mie comegou a chorar, muito perturbada, Diana levantou a cabega por ‘um instante, prestes a ficar ansiosa, Eu adverti: ‘Mamie est chorando porque esti pensando no seu irmaozinho,, que esta doente’. Isso a trangiilizou, porque tinha sido direto © concreto; ela falou: “buraco no coragio’, € con- inuou a sonhar os sonhos dos bebés para eles. Assim, Diana, que nao viera para uma consult bbre sii mesma, € Sem qualquer necessidade especial de auxilio, tinha ‘brineado comigo ¢ sozinha, e, ao mesmo tempo, estava envolvida na condigio de sua mae, Pude perceber que esta tivera necessidade de trazer Diana, como a evitar uma confrontagdo direta comigo, devido a seu estado ansioso relativo ao distirbio muito profundo que sentia por ser mae de uma crianca doente, Posteriormen- te, a mae veio ver-me sozinha, sem precisar mais da dis- tragio da crianca, Quando, em data posterior, recebi a mae sozinha, pu- demos repassar 0 que aconlecera quando a vi com Diana, © entio ela pode acrescentar um pormenor importante, explicando-me que o pai de Diana explora o progresso da filha e dé demonstragéo de preferi-la quando ela se parece exatamente com um adulto pequeno, Pode-se per- eeber no material uma pressio no sentido de um desen- volvimento prematuro do ego, uma identificagéo com a ‘mie e uma participacdo nos problemas desta que se origi- na do fato de 0 irmio ser realmente doente e anormal. Voltando a deter-me sobre 0 que aconteceu, acho Possivel dizer que Diana preparou-se antes de vir, embo- a a entrevista nao tivesse sido marcada em seu benefic Daquilo que a mae me contou, pude ver que Diana esta~ va organizada para o contacto comigo, tal como se sou- besse que vinha ver um psicoterapeuta, Antes de sair, reunira o primeiro de seus ursinhos e também seu objeto transicional abandonado. Nao trouxera consigo o tltimo, mas viera preparada para organizar uma experiéncia algo regressiva em suas atividaces licidas. Ao mesmo tempo, a mie ¢ cu estivamos assistindo a capacidade de Diana de identficar-se com ela, nio apenas com respeito a gra videz, mas também com referéncia 4 tomada de respon- sabilidade pelo cuidado com o irmio. co ‘Aqui, tal como acontecera com Edmund, a brineadeira f de um tipo autocurativo, Em ambos 0s casos, 0 resultado foi ‘comparivel a0 de uma sessio psicoterapéutica em que a historia tivesse sido, pontuada por interpretagdes por parte do terapeuta, Um psicoterapeuta talvez se abstivesse de brincar ativamente com Diana, tal como fiz, quando Ihe disse ter ouvido o ursinho falar algo, '¢ também quando falei sobre os sonhos dos brin- quedos espalhados pelo chao. Mas essa disciplina auto-imposta Poderia ter eliminado um pouco do aspecto criativo da expe- rigneia Nidica de Diana. Escolho esses dois exemplos, simplesmente porque foram de dois casos consecutivos em minha clinica, que me vieram a0 encontro em determinada manha enquanto me empenhava em eserever o artigo em que esse capitulo se bascia, TEORIA DA. BRINCADEIRA E possivel descrever uma seqiiéncia de relacionamentos so- bre o processo de desenvolvimento, examiniclos, e ver a que lugar pertence o brincar. A. 0 beds € 0 objeto esto fundidos um no outro. A visio que o bebé tem do objeto é subjetiva ¢ a mie-se orienta no sentido de tornar concreto aquilo que o bebé esta pronto a encontrar, B. objeto € repudiado, aceito de novo e objetivamente percebido, Esse processo complexo é altamente dependente da mie ou figura materna preparada para participar e devolver 0 que € abandonado, Isso significa que a mie (ou parte dela) se acha num Permanente oscilar entre ser 0 que o bebé tem capacidade de encontrar ¢ (alternativamente) ser ela propria, aguardando set encontrada, Se a mie pode desempenhar esse papel por certo tempo, sem permitir impedimentos (por assim dizer), entdo 0 bebé tem certa experiéncia de controle migico, isto é, experiéncia daquilo ue € chamado de ‘onipoténcia’ na descrigao de processos intra siquicos (cf. Winnicott, 1962). No estado de confianca que se desenvolve quando a mie Pode desempenhar-se bem dessa dificil tarefa (ndo se for 70 paz de faz8-la), 0 bebé comega a fruir de experiéncias baseadas num ‘casamento’ da onipoténcia dos procesos intrapsiguicos Com: o controle que tem do real. A confianga wa esperar greet visto que 0 bebé, até certo ponto, experimenta onipoténcia. Tuco isso relaciona-se estreitamente com o trabalho de Erikson sobre formagio de identidade (Erikson, 1956). Chamo isso de playground porque a brincadeira comega aqui. O playground & tum espago potencial entre a mde e o bebé, ou que une mae © bebe. ‘A brincideira é extremamente excitante. Compreenda-se que é excitante nao primariamente porque os instintos se acham envolvidos; isso est implicito. A importancia do brincar é sem- pre a precariedade do interjogo entre a realidade psiquica pes- soal ¢ a experigncia de controle de objetos reais. E a preca dade da propria magia, magia que se.origina na intimidade, num relacionamento que esta sendo descoberto como digno de con- fianga. Para ser digno de confiana, o relacionamento & neces- sariamente motivado pelo amor da mae, ou pelo seu amor-6dio ‘ou pela sua relagdo de objeto, nao por formagées reativas. Quan- ddo um paciente nao pode brincar, o psicoterapeuta tem de aten- der esse sintoma principal, antes de interpretar fragmentos de conduta, CC. 0 estidio seguinte é ficar sozinho na presenca de al- guém, A crianca esta brincando agora com base na suposigio de ue a pessoa a quem ama e que, portanto, ¢ digna de confianca, e Ihe da seguranca, esta disponivel ¢ permanece disponivel quando € lembrada, ap6s ter sido esquecida. Essa pessoa é sen- tida como se refletisse de volta 0 que acontece no brincar.: D. A crianca, agora, esté ficando pronta para 0 estidio se- guinte, que € permitir e fruir uma superposicio de duas reas, de brincadeira, Em primeiro lugar, naturalmente, € a mie quem brinca com o bebé, mas com cuidado suficiente para ajustar-se as suas atividades iddicas. a . nu mais tarde, entretanto, ela introduz seu pro- prio brnear © descdee ome € arn s‘capacdade dos bebts Examine! um aspecto mais aperfeigoado dessas experiéncias em ‘meu artigo "The Capacity 10 be Alone” (1958). n de aceitar ou nao a introdugio de idéias que nio thes. sae Préprias, ™ Dessa maneira, esta preparado © caminho para um brincar conjunto num relacionamento. Quando repasso os artigos que assinalam o desenvolvimen- to'de meu proprio pensamento ¢ compreensio, verifico que meu resente interesse pela brincadeira, no relacionamento de con- fianga que pode desenvolver-se entre o bebé ¢ a mic, sempre constituiu caracteristica de minha técnica de consulta, tal como ‘© exemplo seguinte, de meu primeio livro, demonstra ( Wi Gott, 1931). Dez anos depois, deveria elaboré-lo em meu a “The Observation of Infants in a Set Situation’ (Winnicott, 1941), Caso Mustrativo Aos sete meses foi novamente trazida’ jue come- gr i vn ae oe Sra tn es es 2 ‘Com um ano de idade, sofria quatro a cinco convul- sbes por dia, Notou-se que as vezes se sentava apés uma refeisio, dobrava-se sobre si mesma e desmaiava. Davam- Ihe suco de laranja e depois desmaiava, Faziam-na sen- tar-se no chio © comegava uma convulsio. Certa manha, acordou ¢ imediatamente teve uma convulsio; depois, dor ‘miu. Logo despertou novamente ¢ teve outra convulsio, Nessa época, as convulsées comecaram a ser seguidas pelo desejo de dormir, mas mesmo nessa fase grave a mae podia freqilentemente interromper uma convulsio em sua pri- meira fase, distraindo a atengao da filha, Na ocasiio, to- ‘mei a seguinte nota: “Colocada sobre meus joethos, chora incessantemen- te, mas nao demonstra hostilidade. Puxa minha gré vata de maneira descuidada, enquanto chora. Voltan- do a0 colo da mae, nao mostra interesse na mudanca continua a chorar, chorando cada vez mais lastima- velmente enquanto € vestida; continua assim, até ser levada para fora do prédio. Nessa época, assisti a uma convulso, que se carac- terizou por fases {Gnicas e clénicas ¢ foi seguida por sono, A crianga estava sofrendo quatro a cinco convulsdes did rias e chorava durante o dia, emBora dormisse a noite. Um exame cuidadoso nfo revelou qualquer sinal de doenga fisica. Conforme a necessidade, era-lhe dado bro- meto durante o dia, No corter de uma das consultas, fiquei com a erianca sobre 0s joelhos, observando-a. Ela tentou, furtivamente, morder minha junta dos dedos. Trés dias mais tarde, co- oquei-a novamente sobre os joelhos ¢ esperei para ver 0 que faria. Mordeu minha junta dos dedos, por trés vezes, to fortemente que quase me cortou a pele, Brincou entZo de atirar espitulas no chao, incessantemente, durante quin- ze minutos. Chorava durante todo 0 tempo, como se esti- vesse infeliz. Dois dias depois, tive-a sobre os joelhos por meia hora, Ela sofrera quatro convulsées nos dois dias anteriores. A principio, chorou como de costume. Mordeu. novamente a minha junta, com forga, dessa vez sem de- B monstrar sentimentos de culpa, e depois brincou de morder ¢ de jogar fora as espatulas; enquanto-estava sobre meus Joethos, tornou-se capaz de sentir prazer em brincar. Apss Certo tempo, comegou a mexer nos artelhos com os dedos. de modo que fiz com que Ihe tirassem os sapatos eas reias. O resultado disso foi um periodo de experimentagio gue absorveu todo o seu interesse. Parecia estar descobrin. do ¢ experimentando, repetidas vezes, para sua grande satisfagao, que, enquanto as espatulas podiam ser postas na boca, jogadas fora e perdidas, os artelhos nao podiam set arrancados fora gout dias mais tarde, a mie informava que, desde a altima consulta, o bebé tormara-se ‘uma criange diferen- te’. Néo 36 no mais tivera convulsdes, como também has Via dormido bem a noite — feliz durante todo o dia, sem tomar brometo. Onze dias depois, a melhora se mantivera, sem remédios; ndo tivera convulsdes durante quatorze diag © a mie pediu sua alta, Visitei essa crianca um ano mais tarde © soube que, desde a ilkima consulta, nio mais apresentara qualquer sintoma. Encontrei uma ‘crianga inteiramente sadia, f inteligente e amistosa, que gostava de brincar, liberta day ansiedades eomuns, . PSICOTERAPIA ‘Aqui, nessu area de superposigao entre o brincar da crianca € 0 brincar da outra pessoa, hi possibilidade de introduzir enti. Quecimentos, O professor visa a0 enriquecimento; em contraste, 6 terapeuta interessa-se especificamente pelos préprios processos de crescimento da crianga e pela remogao dos bloqueios 20 de- senvolvimento que podem ter-se tornado evidentes, Foi a teoria Psicanalitiea que contribuiu para a compreensio desses blo. Gueios. Ao mesmo tempo, constituiria visto estreita supor que a psicanilise € 0 tinico meio de fazer uso terapéutico do brin. car da crianga, E bom recordar que o brincar é por si mesmo uma terapia, Conseguir que as criangas possam brincar é em si mesmo uma Psicoterapia que possui aplicagéo imediata e universal, ¢ inclut 4 © estabelecimento de uma atitude social po 420 brincar. Essa atitude deve incluir o reconhecimento de que o brincar € sempre passivel de tomar-se assustador. Os jogos ¢ sua organizago devem ser encarados como parte de uma tenta- tiva de prevenir o aspect assustador do brincar, Pessoas res. onsiiveis devem estar disponiveis quando criangas brincam, mas i qe precisem ingressar no brincar das eriangas. lo 0 organizador tem de se envolver, numa posicao de administrador, ocorre entdo a implicagao de que a erianga ou ctiangas so incapazes de brincar 0 sentido sriativo que pre- tendo expressar nessa comunicagao. A caracteristca essencial do que desejo comunicar refere-se 40 brincar como uma experiéncia, sempre uma experiencia cria- tiva, uma experiéncia na continuidade espaco-tempo, uma forma bisica de viver. A precariedade da brincadeira esti no fato de que ela se acha sempre na linha tebrica existente entre o subjetivo e 0 que € objetivamente percebido, Minha intengio aqui é simplesmente recordar que o brincar das criancas possui tudo em si, embora o psicoterapeuta traba- Ihe com 0 material, o contesdo do brincar. Naturalmente, numa hhora marcada, ou profissional, manifesta-se uma consielacdo mais precisa do que a que se_apresentaria numa experiéncia atemporal no assoatho do lar (ef, Winnicott, 1941); mas a com- Preenslo sobre nosso trabalho sera auxiliada se nos inteirarmos de que a base do que fazemos ¢ o brincar do paciente, uma experiéncia criativa a consumir espago e tempo, intensamente real para ele, Essa observagio ajuda-nos também a compreender como uuma psicoterapia de tipo profundo pode ser efetuada sem traba ‘ho interpretativo, Bom exemplo disso é 0 trabalho de Axline (1947), de Nova York, Seu trabalho em psicoterapia € de gran. de importincia para nés. Aprecio-o em particular, pela sua liga- ‘io a0 que denomino de ‘consultas terapéuticas’, ou seja, que 0 momento significativo é aquele em que a crianca se surpreende 4@ si mesina, © no 0 momento de minha arguta interpretacio (Winnicott, 1971). Interpretagio fora do amadurecimento do material € dou- twinagao © produz submissio (Winnicott, 1960a). Em conse- iva com respeito 18 alléncia, @ resisténcia surge da interpretagio dada fora da irea da superposicio do brincar em comum de paciente e analista, Interpretar quanto o paciente nio tem capacidade para brincar, simplesmente no € util, ou causa confusio, Quando existe um bbrincar miituo, entio a interpretagio, segundo os principiox Psicanaliticos aceitos, pode levar adiante o trabalho terapéu Esse brincar tem de ser espontineo, ¢ nao submisso ow aquies. cente, se & que se quer fazer psicoterapia, RESUMO (a) Para uma aproximagao 8 idéia do brinear, é til pen- sar na preocupardo que caracteriza o brincar de uma crianga -Pequena, O contetido niio importa, O que importa é o estado de ‘quase alheiamento, aparentado a concentragdo das criangas mais velhas ¢ dos adultos. A crianga que brinca habita uma area que ilo pode ser facilmente abandonada, nem tampouco admite fa- cilmente intrusdes. (b) Essa étea do brincar nio é a realidade psiquica inter- na, Esté fora do individuo, mas no é 0 mundo externa, (c) A crianca traz para dentro dessa area da brincad objetos ou fendmenos oriundos da realidade externa, usando-os a servigo de alguma amostra derivada da realidade interna ou Pessoal. Sem alucinar, a erianga poe para fora uma amostra do Potencial onirico e vive com essa amostra num ambiente esco- Ihido de fragmentos oriundos da realidade externa. (4) No brincar, a crianca manipula fendmenos externos & servigo do sonho c veste fenémenos externos escolhidos com significado e sentimento oniicos. (e) Hi uma evolugdo direta dos fenémenos transicionais ara o brincar, do brincar para 0 brincar compartilhado, e deste Para as experiéncias culturais. (A) _O brincar implica confianga.e peitence ao espaco po- tencial existente entre (o que era a principio) bebé e figura ina terna, com o bebé num estado de dependéncia quase absoluta ¢ a fungdo adaptativa da figura materna tida como certa pelo bebe. (8) 0 brincar envolve, o corpo: (1) devido & manipulagio de objetos; 76 (AD porque certos tipos de intenso interesse estio associados a certos aspectos de excitagio cor- poral (h)_A excitagao corporal das. zonas erdgenas ameaca constantemente o brincar e, portanto, ameaca o sentimento que a erianga tem de existir como uma pessoa, Os instintos consti- tuem a principal ameaga tanto a brincadeira quanto ao ego; na sedugio, um agente externo explora os instintos da erianca e ajuda a aniquilar 0 sentimento que ela tem de exist como uni dade auténoma, tornando impossivel o brincar (cf. Khan, 1964). (i), Brincar, essencialmemt, satisfaz. Isso é verdade mesmo quando leva a um alto grau de ansiedade, Ha um grau de ansie- dade que € insuportivel este destréi o brincar. (i) elemento prazeroso no brincar traz consigo a im- plicagdo de que o despertar instintual nao ¢ excessivo; 0 desper- {ar instintual além de um certo ponto tem de conduzir.a: (D_ climax; (ID) climax fracassado ¢ uma sensagio de confusio mental e desconforto fisico que $6 0 tempo po- de cortiir; (IID) climax alternativo (como na provocagio da rea- so dos pais, ou social, na ira, etc.). Pode-se dizer que 0 brincar atinge seu préprio ponto de saturagio, que se refere A capacidade de conter a experigncia, (4) 0 brincar ¢ inerentemente excitante ¢ precirio. Essa caracteristica ndo provém do despertar instintual, mas da preca- riedade propria ao interjogo na mente da crianga do que € sub- jetivo (quase-alucinagio) ¢ do que é objetivamente percebido (Wealidade conereta ou realidade compartilhada). C Vv © BRINCAR A Atividade Criativa ea Busca do Eu (Self) Eno brincar, ¢ talvez apenas no brincar, que a erianga ou o adulto fruem sua liberdade de criacho. Essa importante earac- teristica do brincar sera examinada aqui como desenvolvimento 40 conceito de fendmenos transicionase leva em conta também uum paradoxo que precisa ser aceito,tolerado e no solucionado —e € 0 que constitui a parte mais dificil da tearia do objeto transicional : ‘Um outro pormenor da teoria refere-se & localizagéo do brincar, tema que desenvolvi nos Capitulos Ill, VII e VIII. A importincia desse concsto reside em que, enquanto a realidade psiquica interna possui uma espécie de localizagio na mente, ‘no ventre, na cabega ou em qualquer outro lugar dentro dos limites da personalidade do individuo, e enquanto a chamada realidade externa esta localizada fora desses limites, o brincar € 4 experigncia cultural podem receber uma localizagao caso uti- lizemos 0 conceito do espaco potencial existemte entre a mie € o bebé. E pertinente reconhecer no desenvolvimento dos diversos individuos que a tereeira drea de espaco potencial entre bebé é extremamente valiosa, segundo a experiéncia da cri ‘ou adulto que esteja sendo considerado. Refiro-me a essas idéias novamente no Capitulo V, onde chamo @ atengdo para o fato de que néo se pode fazer uma descrigio do desenvolvimento emo- cional do individuo inteiramente em termos do individuo, mas considerando que em certas dreas — e essa € uma delas, talvez a principal — o comportamento do ambiente fez parte do pré- rio desenvolvimento pessoal do individuo e, portanto, tem de Ser incluido, Como psicanalista, acredito que essas influenciam num trabalho, sem que modifiquem minha adeséo aos importan- {es aspectos da psicandlise tal como a transmitimos a n0ssos estudantes e que representam um fator comum no ensinamento da psicandlise tal como a consideramos enquanto oriunda da obra de Freud, 9 alee de ine einai p Eston nd pol eg 2 ere trabalho, Se & o paciente que nio pode, entio algo precisa ser Iocan poder © es ae ‘A BUSCA DO EU (SELF) Neste capitulo, todo o meu interesse esta centrado na busca do eu (self). Insisto em que certas condigies se fazem necessd rias, se 6 que se quer alcangar sucesso nessa busca. Essas condi (g8es esto associadas aquilo que é geralmente chamado de cria- tividade, E no brincar, e somente no brinear, que o individuo, cerianga ow adulto, pode ser criativo e utilizar’sua personalidade integral: e € somente sendo criativo que o individuo descobre 0 eu (self). _Ligado a isso, temos o fato de que somente no brincar & Possivel a comunicagio, exceto a comunicagao direta, que per tence a psicopatologia ou a um extremo de imaturidade Constitui expetiéncia freqiiente no trabalho clinico 0 con- tacto com pessoas que desejam ajuda, que buscam 0 eu (self) ¢ ue esto tentando encontrar-se nos produtos de suas experién- ias criativas. Mas, para auxiliar esses pacientes, temos de saber Sobre sua propria criatividade. E como olhar um bebé nos seus estédios primitivos e passar a olhar a crianga que tenta cons. truir algo com as fezes ou qualquer outra substincia da mesma contextura, Embora esse tipo de criatividade seja valido e bem compreendido, torna-se necessério um estudo em separado da ctiatividade como aspecto da vida e do viver total, Estou suge- indo que a busca do eu (self) em termos do que pode ser feito com produtos excremenciais constitui uma busca fadada a ser interminavel ¢ essencialmente mal sucedida Na busca do eu (self), a pessoa interessada pode ter pro- lo algo valioso em termos de arte, mas um artista bem suce- zi 80 dido pode ser universalmente aclamado ¢, no entanto, ter fra~ cassado na tentativa de encontrar o eu (self) que esté procuran- do. O eu (self) realmente no pode ser encontrado no que é construido com produtos do corpo ou da mente, por valiosas que essas construgdes possam ser em termos de beleza, peric © impacto, Se o artista através de qualquer forma ce expresso estd buscando 0 eu (self), entio pode-se dizer que, com toda probabilidade, ja existe um certo fracasso para esse artista nc campo do viver geral criativo, A criacio acabada nunca remedi a falta subjacente do sentimento do eu (self). ‘Antes de levar adiante essa idéia, tenho de expor um segun- do tema, relacionado com o primeiro, mas que necessita de tratamento isolado: aquele que procura nossa ajuda pode esperar sentir-se curado com nossas explicagées, Poderia mesmo dize ‘Percebo 0 que quer dizer; eu sou eu mesmo quando me sinto criativo e quando executo um gesto criativo; a busce esté termi- nada.’ Na pritica, isso nfo acontece. Sabemos que nesse tipo de trabalho, mesmo a explicacio correta € ineficaz. A pessoa a quem estamos tentando. ajudar necessita de uma nova expe- rigneia, num ambiente especializado. A experiéncia é a de um estado ndo-intencional, uma espécie de tiquetaquear, digamos assim, da personalidade nio integrada, Referi-me & isso como amorfia na descriggo de um caso (Capitulo 11). £ necessério levar em conta a fidedignidade ou a ausénci dela no ambiente em que o individuo esti operandc. Somos le- vvados de encontro a uma necessidade de diferenciagio entre atividade intencional e a alternativa de ser nio-intercional, 1s30 se relaciona a formulacdo de Balint (1968) da regressio benig- na e maligna (ver também Khan, 1969). Estou tentando referit-me aos elementos estenciais que tor nam possivel o relaxamento, Em tetmos de associacio livre, isso significa que se deve permitir ao paciente no divi, ou ao paciente crianga entre os brinquedos no chao, que comuniquem luma sucesso de idéias, pensamentos, impulsos, sensagdes sem conexio aparente, exceto do ponto de vista neurolégico ou fisio- logico, ou talvez. além da detecgao. Isso equivale a dizer: & ali, conde ha intengio, ou onde hé ansiedade, ou onde ha falta de ‘onfianga baseada na necessidade de defesa que o analista po- deri reconhecer © apontar a conexio (ou diversas conexdes) at existemte entre os virios componentes do material da associagao livre, ‘No relaxamento prépri 4 confianga e & accitagio da fide- dignidade profissional do ambiente terapéutico (seja ele anali- tico, psicoterapéutico, de assisténcia social, etc.) ha lugar para 8 idéia de seqiléncias de pensamento aparentemente.desconexas, as quais o analista fard bem em aceitar como tais, sem presumit a existéncia de um fio significante (cf. Milner, 1957, especial mente 0 apéndice, pags. 148-163). © contraste entre essas duas condigdes relacionadas talvez possa ser ilustrado ao se considerar um paciente capaz de re- Pousar apés o trabalho, mas incapaz de atingir o estado de repouso a partir do qual um alcance criativo pode acontecer. Segundo essa teoria, a sssociacio livre que revela um tema coe rente jf estd afetada pela ansiedade, e a coesdo das idéias é uma organizagao defensiva, Talvez seja necessario aceitar que alguns Pacientes precisam as vezes que o terapeuta possa observar o absurdo préprio ao estado mental do individuo em repouso, sem a necessidade, mesmo para o paciente, de comunicar esse absur- do, o que equivale a dizer, sem que o paciente tenha necessidade de organizar o absurdo. © absurdo organizado ja constitui uma defesa, tal como 0 caos organizado é uma negagio do caos. O ferapeuta que nao consegue receber essa comuhicagio, empe- nha-se numa tentativa va de descobrir alguma organizagio no absurdo, em conseqiigncia de que 0 paciente abandona aren do absurdo, devido a desesperanca de comunicé-lo, Uma opor- tunidade de repouso foi perdida, devido & necessidade que 0 terapeuta teve de encontrar sentido onde este nio existe. O pa- ciente no péde repouser, devido a um fracasso das provisoes ambientais, que desfez 0 semimento de confianga. O terapeuta, sem saber, abandonou o papel profissional, eo fez, desviando-se para pior, a fim de ser um analista arguto e encontrar ordem no 20s, E possivel que esses temas se reflitam em dois tipos de so- no, as vezes denominados de REM e NREM (rapid eve move. ‘ments [movimentos rapidos dos olhos] © no rapid eve mo- vements [movimentos nio rapidos dos olhos]}). Ao desenvolver @ cue tenho a dizer, terei necessidade da seqiiéncia: 82 (a) relaxamento em condigdes de confianga baseada na (b) atividade criativa, brincadei (©) a somagio ‘dessas experitncias formando a base do sentimento do eu (self). isica e mental, manifestada na A somagio ou reverberagao depende de que 0 individuo ossa ter refletida de volta a comunicacio (indireta) feita ao terapeuta (ou amigo) em quem confia, Nessas condigdes alta- mente especializadas, o individuo pode reunir-se e existir como unidade, nao como defesa contra a ansiedade, mas como expres sfo do EU SOU, eu estou vivo, eu sou eu mesmo (Winnicott, 1962). Nesse posicionamento tudo € criativo, CASO ILUSTRATIVO Desejo utilizar material extraido do arquivo de uma pacien- te em tratamento comigo, cujas sessdes sio realizadas uma vez or semana. Ela ja fizera um longo tratamento numa base de cinco sessées por semana, durante seis anos, antes de vir pro- curar-me, mas descobriu que precisava de uma sessio de dura- sao indefinida, 0 que eu s6 podia conseguir-Ihe uma vez por Semana. Logo ficou combinada uma sessdo de trés horas, horé- rio reduzido posteriormente para duas horas, Se eu puder fornecer uma descrigio correta de uma'sessio, 0 leitor observaré que durante longos periodos retenho interpre- tagGes e permanego freqiientemente em siléncio, Essa disciplina estrita tem dado bons resultados sempre. As anotagdes que tomei me foram de grande auxilio num caso com que entro em contac- to apenas uma vez por semana; descobri que, nesse caso, tomar notas ndo prejudica o trabalho. Também com freqiiéncia alivio a mente, anotando interpretagdes que, na realidade, retenho Para mim. Minha recompensa por essa retencao surge quando a propria paciente faz a interpretagdo, uma hora ou duas depois, talvez, Minha descrigio equivale a um pedido a todo terapeuta para que permita a manifestagao da capacidade que 0 pi tem de brincar, isto é, de ser criativo no trabalho analitico. idade do’ paciente pode ser facilmente frustrada por um 83 ferapeuta que saiba demais, Naturalmente, no importa, na rea lidade, quanto o terapeuta saiba, desde que possa ocultar esse conhecimento ou abster-se de anunciar 0 que sabe. Permitam-me que eu tente transmitir o sentimento do que é trabalhar com essa paciente, e pediria para isso a paciéncia do Ieitor, tanto quanto precsei ser paciente a0 me empenhar nesse trabaiho. EXEMPLO DE UMA sEssio Em primeiro lugar, alguns pormenores sobre a vida da pa- ciente e disposigdes de natureza pritica: sobre o sono, que é ¢s- tragado quando fica excitada e precisa de livros para dormir, um “bom” ¢ um “de horror”; cansada, mas excitada, tio inquie: 1a; taquicardia, como agora. Depois, certa dificuldade sobre co- “Quero poder comer quando sinto fome’. (Comida e livros parecem de certa forma igualados na substincia desse falar des- conexo). =, Quando toquei a campainha, espero que voce tenha percebido que eu estava alta (excitada). Respondi: — Sim, suponho que sim, Descrigdo de uma fase de melhora um tanto falsa: — Mas eu sabia que no estava bem, — Tudo parece tio esperangoso, até que me dou conta disso... — Depressi e sentimentos assassinos, isso sou eu, ¢ tam- bbém sou eu quando estou alegre. (Meia hora se passou, A paciente tinha permanecido sen: tada numa eadeira baixa, ou no cho, ou caminhando pelo con- suk6rio.) Longa ¢ lenta descrigéo dos aspectos positives e negativos de um passeio que fizera, — Parece que me sinto incapaz de SER inteiramente, .. Nao sou eu realmente a olhar... Uma tela... Olhando através de culos. .. Olhar imaginativo, nao ha. E isso, apenas doutrina sobre o bebé a imaginar o seio? No tratamento anterior que fiz, quando eu voltava para casa, depois de uma sesso, havia um avito, em vbo alto, Contei ao’analista, no dia seguinte como me imaginara, subitamente, sendo o avido, voando alto. Entdo ele 84 se espatifou no solo. terapeuta disse: ‘Isso é 0 que Ihe aconte- ‘ce quando vocé se projeta nas coisas e isso provoca um desastre interno’? — Dificit de lembrar. Nao" sei se esta certo... Real- mente nfo sei o que quero dizer. E como se s6 houvesse uma cconfusio dentro, um desastre. (Trés quartos de hora se passaram.) ‘Ocupava-se, agora em olhar para fora da janela, ao lado da qual estava parada, observando um pardal bicar um pedago de Pao, ¢ repentinamente, ‘levando-uma migalha para seu ninho — ou para outro lugar’, Depois: — Oh, de repente lembrei-me de um sonho, 0 Sonko “Uma estudante continuava a trazer-me quadros que dese: nhara, Como podia dizer-Ihe que esses quadros néo apresenta- vam methoras? Achara que deixando-me ficar sozinha e enfren- tando minha depressio... £ melhor que deixe de olhar para aqueles pardais. Nao consigo pensar. (Estava agora no chdo, com a cabesa apoiada numa almo- fada da cadeira.) — Nio sti... Contudo, veja voce, tem de haver uma espé- cie de methora. [Pormenores de sua vida, fornecidos como ilus- tagio.] E como se nao houvesse realmente um EU. Livro hor- rive, do comego da adolescéncia, chamado Devolvido Vazio, E como me sinto (Nessa ocasido, wna hora se passara.) Continuou falando sobre o uso da poesia, Recitou um poe- ma de Christina Rosetti: “A Expirar — “Minha vida termina com um tumor em botio'. Depois, para mim: — Vooé me tirou meu Deus! (Longa pausa.) "Esto 36 vomitando em voeé tudo o que aparece, Nio sei do que estive falando, Nao sei... Nao, (Longa pausa.) 1” Ni disponho de meius de conferir a. pre interpretagio do. analisia antetior esse relito da 85 (Olhando pela janela, de novo, Depois, cinco minutos de ‘uietude absoluta,) ~ $6 deixando-me levar, como as nuvens, (0 tempo passava; cerca de uma hora ¢ meta.) = Sabe como Ihe disse que pratiquel pintura com os dedos ‘Ro assoalho © como fiquei assustada, N&O contigo pintar com os dedos. Estou vivendo numa contusio, Que devo fazer? Se Ime foro let ou pintar, adianta alguma coisa? [Suspiros] Nao Sci... Mas, veja, de certa maneira nio gosto da sujeita nas-maos, na pintura com os dedos. (Cabeca repousando na almotada, novamente.) — Repugna-me entrar nessa sala, (Siléncio.) nao. .. Sinto-me sem importincia, Pormenores dispares de meu modo de lidar com ela, como uma implicaglo de que ela nao tinha importancia para mine — Continuo pensando que podem ter sido apenas’ dez ‘minutos que me custaram toda uma vida [referéneia 20 trauma original, ainda no especificado, mas a ser todo o tempo claber ado} -z__imzino que uma ferida tem de ser repetida com muita freqilncia, para que seus efeitos possam atingir tdo profandas mente Descricio da visio que tinha sobre sua prépria infancia, em diversas idades; como ela sempre tentara senti-se importants de alguma forma, ajustando-se ao que se esperava dela, tal come cla ‘pensava. Citasio apropriada do poeta Gera Manley Hopkins (Longe pausa.) = Etta sensacio desesperada da ndo-importincia das coisas. Nadi me importa... Nao existe Deus ¢ eu nfo me sme Porto. Imagine s6, uma moga em fétias mandou-me um carido postal Nesse ponto, comentei = Como se'voc8 importasse a ela, Ela, em resposta — Taber, " Eu the disse: — Mas vocé nao se importa com ela nem com ninguém, — Achio que tenho de descobrir se existe tal pessoa Epere 86 fncia), alguém que tenha importéncia para quem eu tenha importincia}, alguém que te i ja capaz de receber, de estabelecer contacto com oe mas clhes tram e meus covdeseuvram, Mor setia desist; nao vejo. .. Nao... sade da co (Solugando, no chio, curvada sobre a almofada da c lira Se ase pois, recomptrse'ds vis formes out Ine em culiares e ajoelhou-se. rere Veia, de Tato cu ainda nfo estabelesi contacto algun com voeé, hoje. - Murmurei uma resposta afirmativa, Faria a observacao de ue, até agora, o material era da natureza de um brincar sens6- foe moto, de nanireza inorganizada e amorfa (cf. pag. 54, acima), do qual surgira a experiéncia da desesperanga e do solugar. Ela prosseguiu: — Exatamente como duas pessoas que se encontram pela primeira vez. Conversa polida, sentadas numa cadeira de encos- to duro, a (Na realidade, sento-me numa cadeira de encosto duro sesso dessa paciente.) sou $6 eu, Novos exemplos de minha conduta, que indicavam: era apenas ela, de maneira que nao importava, ete. (Pausa, com suspiros, manifestando sentimento de deses- peranga e insignificdncia) A consecucéo (isto ¢é, apds quase duas horas) Efetuava-se agora uma mudanga clinica, Pela primeira ver, durante en seo, @ pacete parca tr na a como Tratava-se de uma sesso extraordinaria que eu Ihe cone lera, como intuito de compenséla porque ela tivera de perder sus hora habitual co : Como se fosse a primeira observagio que me rigisse, ela omer Fico contente por vocé saber que eu presisava dessa sesso, 87 © material versava agora sobre édios especificos, ¢ ela co- megou a procurar certas canetas de feltro coloridas que eu tinha ali na sala. Depois, apanhou um pedago de papel'e a caneta peta de feltro ¢ desenhou um cartio comemorativo de seu ani. versirio. Chamou-o de seu ‘Dia da Morte.* Estava agora presente na sala comigo. Omito pormenores de um conjunto de’ obsevagdes do-presen, odes dee ns nadas de édio, “s =— pes (Pausa.) Comegou, entao, a rememorar a sesso. — 0 problema é que nao posso lembrar 0 que Ihe disse — ou estava falando comigo mesma? Intervengao Interpretativa Nesse ponto, fiz uma interpretacao: — Todos 0s tipos de coisas acontecem e definham. Sio essas as miriades de mories que vocé morreu. Mas, se existir alguém através de quem vocé possa receber de volta o que acon teceu, entéo, qualquer detalhe ganha em importincia: dessa mac neica, tornam-se parte de voc$ e néo morrem,! Ela perguntou se podia beber um copo de leite.? Respondi: — Beba, Ela disse:

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