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Capitulo 16 ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 1 INTRODUCAO A idéia de um Estado verdadeiramente abstencionista em matéria eco- némica, em que a organizagado e a atuagdo do setor produtivo fossem in- teiramente orientadas pelas forcas de mercado (pela “mao invisivel” a que aludia 0 economista escocés Adam Smith), em que os individuos pudessem exercer, sem peias, qualquer atividade econémica visando exclusivamente ao lucro e ao seu proprio bem-estar (sob 0 pressuposto de que essa livre atuacao levaria naturalmente ao bem-estar geral), foi defendida com paixao pelos maiores pensadores dos séculos XVIII e XIX. As primeiras Constituigdes escritas, que marcaram o inicio formal do movimento denominado constitucionalismo (a Constituigao dos Estados Unidos, de 1787, ¢ as Constituigdes Francesas de 1791 e 1793), bem como as Constituigdes que foram promulgadas ou outorgadas em toda a Europa e nas Américas ao longo do século XIX, assinalam o triunfo politico de uma abrangente corrente de pensamento que sistematizou um amplo conjunto de axiomas concernentes a todas as esferas de atuagéo humana (filoséficos, econdémicos, juridicos etc.): 0 Liberalismo. As Constituigdes positivadas sob a égide do Liberalismo preocuparam-se, sobretudo, em declarar direitos fundamentais do individuo perante o Esta- do — conhecidos como direitos fundamentais de primeira geracdo, direitos de liberdade, de defesa — e em instituir mecanismos que assegurassem a limitagdo do poder do Estado (separacao funcional dos poderes e formas de controle reciproco entre os poderes — sistema de freios e contrapesos). Os principios basicos a serem respeitados eram a autonomia da vontade 920 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandring do individuo e a liberdade negocial, incluida a liberdade de empresa (lais- sez faire). Sendo as Constituigdes instruments politico-juridicos da classe burguesa hegeménica, ndo fazia qualquer sentido cogitar algo como uma “Constituigdo econdmica”. Sao sobejamente conhecidos os gravissimos conflitos sociais que resulta- ram da adogdo desse modelo de Estado. A atuacdo sem limites dos detentores do capital (e, por isso, do poder politico e econémico) — representantes da burguesia triunfante sobre 0 Absolutismo, guindada ao poder pelas grandes revolugdes liberais — simplesmente gerou para a imensa massa das popula- ges (os camponeses ¢ 0 proletariado) uma situagdo de miséria dantesca ¢ intoleraveis sofrimentos. Resultou insofismavel a total incapacidade das leis naturais da economia e do mercado para promover a distribuigdo da riqueza produzida, pelo menos em um nivel suficiente para assegurar a todos uma existéncia minimamente digna. A crise do Liberalismo e a superagdo do modelo de Estado por ele pro- posto redundaram no surgimento, de um lado, do Estado Social Democratico, que tem como marco as Constituigdes do México, de 1917, e, sobretudo, a Constituigéo Alema de 1919 (Republica de Weimar). Em outra vertente, a Revolugdo Russa de 1917 transformou em realidade um outro modelo — ra- dicalmente oposto ao liberal -, em que foi abolida a propriedade privada dos meios de producao e se adotou a total planificagao da atividade econémica pelo Estado (aboligao da livre iniciativa): 0 Socialismo. A necessidade de atuac4o do Estado no setor econdmico, dessarte, é hoje vista como um fato inelutavel. As forgas econémicas, quando nao direciona- das de algum modo, além de solaparem a livre concorréncia e acarretarem a concentragao de quase toda a riqueza produzida pela nacdo nas mos de uma diminuta plutocracia (em termos numéricos), podem mostrar-se extremamente prejudiciais 4 propria economia global do Estado, de que é exemplo mais emblematico a Grande Depressao da década de 30. Em nenhum Estado, atu- almente, é praticado, ou mesmo propugnado, o Liberalismo puro nos moldes dos séculos XVIII e XIX. A Constituigao de 1988 tem como nicleo a dignidade da pessoa humana. Embora esse fundamento esteja enunciado junto a outros quatro, logo no art. 1.° da Carta Politica, uma acurada andlise sistematica de seu texto permite concluir que todos os preceitos constitucionais devem ser interpretados ado- tando como marco referencial a dignidade humana. Assim, 0 fato de o constituinte originario haver agrupado normas cons- titucionais em um titulo (Titulo VII), que nominou “Da Ordem Econémica e Financeira”, s6 pode significar a pretensdo de, juridicamente, conformar a realidade econémica sob a perspectiva da dignidade humana, por outras palavras, 0 ordenamento juridico somente considerard legitima a atividade Cap. 16 + ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 921 econémica que tenha como fundamento e objetivo assegurar a todos condigdes materiais assecuratérias de uma existéncia digna (minimo vital). As consideragées do paragrafo anterior, repetimos, independem do conhe- cimento especifico das normas que integram o Titulo VII do Texto Magno. Elas decorrem da concepgao de Estado estruturado pelo nosso constituinte originario. E os principios da ordem econdmica somente podem ser com- preendidos a luz dos principios gerais orientadores de todo 0 conteiido de nossa organizagao politica. A Constituigao vigente, promulgada em 5 de outubro de 1988, é classi- ficada como uma Constitui¢ao tipicamente dirigente. Significa isso que ela nao apenas cuidou da estruturagao do Estado e do exercicio do poder, mas também estabeleceu expressamente os fins que devem ser perseguidos pelo Estado em toda sua atuacio. O Estado refundado pela Carta de 1988 é um Estado Social Democratico, vale dizer, devem seus érgdos atuar efetivamente — mediante o desenvolvi- mento de politicas piblicas ativas e prestagdes positivas — no intuito de se obter uma sociedade em que prevalega a igualdade material, assegurando a todos, no minimo, o necessario a uma existéncia digna (um dos objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil, vazado no inciso III do art. 3.°, é “erradicar a pobreza e a marginalizagao e reduzir as desigualdades sociais e regionais”; é finalidade geral da ordem econémica, plasmada no art. 170, caput, “assegurar a todos existéncia digna, conforme os ditames da justiga social”). _ Nossa Constituigéo de 1988 claramente originou um Estado capitalista. E fundamento da Republica o valor social da livre iniciativa (art. 1.°, IV). Sao fundamentos da ordem econémica, dentre outros, a livre iniciativa, a propriedade privada, a livre concorréncia (art. 170, caput, e incisos II e IV). Ora, conforme exposto acima, no Capitalismo, as forgas econdmicas, deixa- das a seu alvedrio, resultam em concentragao de riqueza, anulagdo da livre concorréncia e, sobretudo, em condi¢ées materiais de vida miseraveis para a quase totalidade da populagao. Dessarte, é evidente que o Estado brasileiro tem como uma de suas fungdes indeclindveis intervir no setor econémico, de sorte a assegurar que a riqueza produzida seja efetivamente um meio de prover a todos uma existéncia digna. Em sintese, a Constituigéo de 1988, conquanto nao tenha instituido um Estado Socialista, tampouco fundou um Estado abstencionista nos moldes do Liberalismo classico (na realidade, nado existem Estados assim no mundo atual). Nossa ordem juridico-politica prevé e autoriza a intervengao do Es- tado no dominio econémico, de variadas formas, sempre tendo como escopo possibilitar que a dignidade da pessoa humana seja um fundamento efetivo de nossa Republica, ¢ nao simples retérica. 922 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino MEIOS DE ATUACAO DO ESTADO NA AREA ECONOMICA A atuagao do Estado na area econémica pode assumir duas formas basicas: atuagiio direta e atuagdo indireta. Essas formas de atuagdo na economia nao sao excludentes; um mesmo Estado pode atuar diretamente em determinados setores e indiretamente em outros. Diz-se que o Estado atua diretamente na economia quando ele desem- penha o papel de agente econémico (Estado empresario). Nesses casos, 0 Estado ~ normalmente mediante pessoas juridicas por ele constituidas e sob seu controle — atua, ele mesmo, na produgao de bens ou prestag&o de servi- gos de contetido econémico. A atuagdo direta do Estado pode verificar-se em regime de monopélio (absorgdo) ou em concorréncia com outras empresas do setor privado (participacdo). A atuagdo indireta do Estado na economia ocorre de diversas formas, visando, em linhas gerais, a corrigir as distor¢des que se verificam quando os agentes econémicos podem atuar de modo totalmente livre (merecendo destaque a coibigdo 4 formagao de oligopdlios, de cartéis, a pratica de dumping = venda de produtos por precos inferiores aos custos —, enfim, a vedagao a qualquer pratica contraria a livre concorréncia). As mais conhecidas formas de intervengao indireta do Estado na economia sao, genericamente: (J) indugdo: 0 Poder Publico direciona a atuago dos agentes econémicos privados, incentivando determinadas atividades ¢ desestimulando outras. A indugdo, portanto, pode ser positiva (fomento), operando-se por meio de beneficios fiscais, subsidios, construgdo de infra-estrutura, financiamento de projetos etc., ou pode ser negativa, consubstanciando-se, por exemplo, na imposigdo de elevadas aliquotas de tributos sobre a importagdo de deter- minados produtos, na tributagdo cxacerbada de produtos industriais lesivos a satide ou perigosos para a populacio (cigarros, bebidas, armas de fogo etc.), na cobranca de taxas progressivas em fungdo do nivel da poluigdo provocada por indastrias ete.; (2) fisealizagao: é exercida primordialmente pela Administragao Publica, manifes- tando-se pelo exercicio do poder de policia. O Estado condiciona determinados comportamentos dos particulares, proibe outros, aplica sangdes pelo descum- primento de suas determinagées, enfim, atua visando a impedir que a pratica de atividades privadas possa acarretar prejuizos populagdo, aos consumidores, ao meio ambiente, a ordem pablica ou a propria economia do pais; (3) planejamento: o planejamento impede que 0 Estado atue de forma aleatéria ou caprichosa, E por meio do planejamento que o Estado pode identificar as necessidades presentes e futuras dos diversos grupos sociais ¢ orientar (inclusive mediante induc&o positiva ou negativa) a atuago dos agentes econdmicos visando ao atingimento de fins determinados. Cap. 16 * ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 923 Além dessas formas de atuagao do Estado, diretamente referidas as ativi- dades de grupos de agentes econémicos privados, a manipulacao das politicas monetaria, cambial ¢ fiscal pode ser utilizada para, intencionalmente, produzir efeitos gerais sobre a economia. Assim, uma politica monetaria contracionista pode ser utilizada para desacelerar a atividade econdmica como um todo (visando, por exemplo, a evitar inflag%o); uma politica de desvalorizagao da moeda nacional pode aumentar a atividade dos setores exportadores (visando, por exemplo, a corrigir desequilibrios na balanga comercial); uma politica fiscal consubstanciada em vultosos gastos publicos pode ser utilizada na tentativa de se evitar uma recessio, pelo aumento da demanda agregada; etc. 3. A ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA NA CONSTITUICAO DE 1988 O Titulo VII da Constituigéo vigente trata, nos arts. 170 a 192, da “Ordem Econémica e Financeira”. Esta dividido em quatro capitulos: “Dos Principios Gerais da Atividade Econémica”, “Da Politica Urbana”, “Da Po- litica Agricola e Fundidria e da Reforma Agraria” e “Do Sistema Financeiro Nacional”. Vejamos as linhas gerais de cada um desses assuntos. fe Fundamentos e principios gerais da atividade econdémica A analise das matérias disciplinadas no Capitulo I do Titulo VII (“Dos Principios Gerais da Atividade Econémica” — arts. 170 a 181) permite con- cluir que, no Brasil, a atividade econémica, em sentido amplo, abrange nao 86 as atividades comerciais, industriais e de prestagdo de servigos privados, mas também os servigos publicos. Essa concluséo advém do fato de que o art. 175 6 especificamente dedicado aos servicos publicos. Portanto, falaremos em atividade econémica propriamente dita, ou em sentido estrito, quando estivermos nos referindo as atividades comerciais, industriais e de prestagdo de servigos nao enquadraveis como servigos pu- blicos, ¢ em atividade econémica em sentido amplo, quando estiverem abrangidos, além dessas atividades, os servigos publicos. ae Fundamentos: livre iniciativa e valorizagao do trabalho humano O art. 170, em seu caput, estatui que a nossa ordem econdmica é “fundada na valorizagao do trabalho humano e na livre iniciativa”, e sua finalidade é “assegurar a todos existéncia digna, conforme os ditames da justiga so- cial”. Essas disposigées, que so as mais gerais acerca da ordem econémica, 924 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino revelam nitidamente o carater compromissério de nossa Carta Politica. Em vez de assumir como um dado inelutavel a consagrada cisdo entre “capital e trabalho”, 0 histérico antagonismo entre “empresario e trabalhador”, 0 texto constitucional procura transmitir uma idéia de integracio, de harmonia, de sorte que assegura a livre iniciativa (portanto, a apropriagao privada dos meios de produgao, a liberdade de empresa),' mas determina que o resultado dos empreendimentos privados deve ser a concretizacao da justiga social, o que exige, entre outras coisas, a valorizacao do trabalho humano. De todos os fatores de produgao, portanto, o trabalho humano deve ser aquele colocado em primeiro lugar. O empreendedorismo é um valor con- sagrado, desde que valorize o trabalho humano e contribua para assegurar a todos uma existéncia digna. Observe-se que essa idéia de harmonizagao entre “capital e trabalho”, em lugar de contraposigao, é encontrada em outros pontos do texto consti- tucional, por exemplo, no inciso XI do art. 7.°, que estabelece como direito dos trabalhadores “participagiio nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneracao, e, excepcionalmente, participagao na gestao da empresa, con- forme definido em lei” Na mesma toada, a valorizagdo do trabalho humano encontra eco em outros dispositivos constitucionais, sendo talvez o mais ébvio deles o inciso IV do art. 7.°, que assegura como direito irredutivel dos trabalhadores o “salario minimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a necessidades vitais basicas e as de sua familia com moradia, alimen- tagdo, educagio, satde, lazer, vestudrio, higiene, transporte e previdéncia social, com reajustes periédicos que lhe preservem o poder aquisitivo”, sendo garantido, ainda, “salario, nunca inferior ao minimo, para os que percebem remuneragiio varidvel” (art. 7.°, VI). 312. Principios bdsicos da ordem econémica Tendo como referéncia a livre iniciativa e a valorizagao do trabalho humano, fundamentos da ordem econdmica, a Constituig&o enumera, nos incisos de seu art. 170, como principios basicos da ordem econémica: 1 — soberania nacional; Nos termos do art. 966 do Cédigo Civil, “considera-se empresario quem exerce profissio- nalmente atividade econdmica organizada para a produgao ou a circulagao de bens ou de servigos”. Portanto, podemos conceituar “empresa” ou “empreendimento” como “atividade econémica organizada para a produgao ou a circulagdo de bens ou de servigos”; note-se que “empresa” a atividade, no 0 conjunto dos fatores de produgao (estabelecimento), nem a pessoa que os organiza e administra, por sua conta e risco (empresario). Cap. 16 * ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 925 11 — propriedade privada; III — fungo social da propriedade: IV — livre concorréncia; V — defesa do consumidor; VI — defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e servigos e de seus processos de elaboragio ¢ presta VII — redugdo das desigualdades regionais e soci: VIII ~ busca do pleno emprego; IX — tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituidas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administracao no Pais. Vejamos cada um. 3.1.2.1. Soberania nacional A soberania é um dos fundamentos da Republica Federativa do Brasil (art. 1.°, I). Ao enunciar a soberania nacional como principio geral da ordem econémica, o constituinte nao esta sendo redundante. Deve-se extrair dai a nogao de nao-subordinagdo, de independéncia perante os Estados estrangei- ros economicamente mais fortes. A politica econémica é assunto brasileiro, voltada para os interesses brasileiros, e deve ser elaborada sem interferéncia de pressées e interesses econémicos alicnigenas. No se trata de tecer loas a xenofobia, muito menos de aversao ao capital estrangeiro. Pelo contrario, a Carta Politica prevé expressamente a atuagdo do capital externo em nossa economia, deixando 4 lei a tarefa de estabelecer 0 respectivo regramento. De fato, na dicgao de seu art. 172, “a lei disciplina- ra, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivara os reinvestimentos e¢ regulara a remessa de lucros”’. E importante registrar que o texto origindrio da Constituigéo de 1988 distinguia “empresa brasileira”, como género, de “empresa brasileira de capital nacional”, como espécie, estabelecendo alguns privilégios para as ultimas, ou autorizando que a lei o fizesse.?_Esses conceitos e normas encontravam- se no art. 171 do Texto Magno, inteiramente revogado pela EC n.° 6/1995. ® Era conceituada como empresa brasileira de capital nacional “aquela cujo controle efetivo esteja em carater permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas fisicas domi- ciliadas e residentes no Pais ou de entidades de direito publico interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e 0 exercicio, de fato e de direito, do poder decisorio para gerir suas atividades” 926 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrine Hoje, temos t&éo-somente 0 conceito de “empresa brasileira”, que é aquela “constituida sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administracao no Pais”? Nao existe atualmente base constitucional para diferenciar entre si em- presas brasileiras, sendo ilegitima qualquer previsdo de tratamento favorecido estribado na origem do seu capital ou nacionalidade do controlador. 3.1.2.2. Propriedade privada e sua fungao social A propriedade privada é tratada como principio da ordem econémica, significando que é admitida a apropriagao privada dos meios de produgao, ou seja, que o Brasil obrigatoriamente é um Estado capitalista. A proprie- dade, entretanto, deve atender a sua fungao social. Essas regras, de forma genérica, encontram-se no art. 5.°, incisos XXII e XXIII, como direitos e garantias fundamentais. Além de arrolar, genericamente, a propriedade privada e sua fungdo so- cial como principios da ordem econémica, o titulo constitucional em estudo detalha, em dois capitulos separados, a disciplina da propriedade privada no ambito da politica urbana e no ambito da politica agricola e fundiaria, incluindo disposigées acerca da reforma agraria. Analisaremos a frente esses capitulos. 3.1.2.3. Livre concorréncia A livre concorréncia relaciona-se 4 exigéncia de que a ordem econé- mica assegure a todos uma existéncia digna. Isso porque, em um ambiente no qual impere a dominagao dos mercados pelo abuso de poder econémico, teremos lucros arbitrarios e concentragao de renda. Além disso, a economia tende a ser menos eficiente, reduzindo de forma global a propria produgéio absoluta de riqueza. Todas essas distorgdes so incompativeis com 0 obje- tivo de “assegurar a todos existéncia digna, conforme os ditames da justig¢a social” (art. 170, caput). O “abuso do poder econémico que vise 4 dominagio dos mercados, a eliminagao da concorréncia e ao aumento arbitrério dos lucros” sera reprimido, na forma da lei (CF, art. 173, § 4.°). Como reforgo, estabelece © texto constitucional que a lei dispord acerca da responsabilidade das pessoas juridicas, sujeitando-as as punigdes compativeis com sua nature- 3 Esse conceito de “empresa brasileira’, embora se encontrasse no revogado inciso | do art. 171, permanece plenamente aplicével, como deflui, por exemplo, do inciso IX do art. 170 e do § 1.° do art. 176, ambos do vigente texto constitucional. Gap. 16 + ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 927 za, nos atos praticados contra a ordem econémica e financeira e contra a economia popular, sem prejuizo da responsabilidade individual dos seus dirigentes (art. 173, § 5.°). Vale mencionar que o Estado atua em defesa da livre concorréncia nao apenas mediante imposicao de medidas sancionatorias contra os abusos, mas também preventivamente no ambito de sua fungao fiscalizadora e regulato- ria, merecendo ser citada a atuagao de algumas agéncias reguladoras e, em especial, do Conselho Administrativo de Defesa Econdmica (CADE), de que trata a Lei n.° 8.884/1994, Também preventiva é a atuagdo prevista no art. 146-A da Constituigdo, acrescentado pela EC n.° 42/2003, segundo o qual “lei complementar podera estabelecer critérios especiais de tributagao, com o objetivo de prevenir desequilibrios da concorréncia, sem prejuizo da competéncia de a Uniao, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”. Deve-se ressaltar que a garantia da livre concorréncia é corolario do principio da igualdade, no 4mbito do dominio econémico. Por essa razdo, impde ao Estado nao apenas a prevengdo ¢ a repressio ao abuso de poder econémico, mas também obsta que o Poder Publico crie distingdes ou esta- beleca beneficios arbitrarios para determinadas empresas, setores ou grupos econémicos, a menos, é claro, que a discriminaco esteja determinada no proprio texto constitucional. Exemplo patente dessa ultima situago temos no inciso IX do art. 170, que erige em principio da ordem econémica o “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituidas sob as leis brasileiras e que tenham sua séde ¢ administragao no Pais”. Essa exigéncia de tratamento favorecido em fungao do porte da em- presa é reforgada e detalhada no art. 179, nos termos do qual “a Unido, os Estados, 0 Distrito Federal e 0s Municipios dispensarao 4s microempresas e as empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento juridico diferenciado, visando a incentiva-las pela simplificagio de suas obrigagdes administrativas, tributarias, previdenciarias e crediticias, ou pela eliminagao ou redugdo destas por meio de lei”. Cumpre anotar que esse art. 179, que é obra do constituinte originario, teve esvaziada parte de seu objeto com a edigao da EC n° 42/2003. Com efeito, essa emenda acrescentou a alinea “d” ao inciso III do art. 146, bem como um pardgrafo nico ao mesmo artigo, prevendo a edigéo de uma lei complementar da Unido que institua um regime tributario favorecido para as microempresas e as empresas de pequeno porte, de 4mbito nacional (abrangendo tributos de todos os entes federados). Complementarmente, a mesma EC 42/2003 acrescentou o art. 94 ao ADCT, estatuindo que os regimes tributirios criados pelos entes federados com base no art. 179 da 928 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino Constituigdo cessarao a partir da entrada em vigor do regime tributario favorecido nacional. O regime tributdrio favorecido nacional das microempresas e empresas de pequeno porte foi implementado pela Lei Complementar n.° 123/2006, com vigéncia a partir de 1.° de julho de 2007. Com a entrada em vigor desse regime, chamado “Simples Nacional”, restou inécuo o art. 179, no que respeita 4 matéria tributaria. Outra hipotese de discriminagao constitucionalmente prevista, nao infrin- gente, portanto, do principio da livre concorréncia, esta no § 2.° do art. 174, nos termos do qual “a lei apoiard e estimulara o cooperativismo e outras formas de associativismo”. Complementa essa disposi¢ao a alinea “c” do inciso II! do art. 146, que da a lei complementar da Uniao atribuigao de estabelecer normas gerais sobre 0 “adequado tratamento tributario ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”. 3.1.2.4. Defesa do consumidor O inciso V do acima transcrito art. 170 enuncia como principio geral da ordem econdmica a defesa do consumidor. E facil perceber que esse principio integra-se a diretriz geral do caput deste artigo, que determina que a ordem econémica assegure a todos uma existéncia digna. Deveras, € mediante relagdes de consumo que as pessoas adquirem os bens materiais necessdrios 4 obtengdio, pelo menos, de seu “minimo vital”. Na realidade social, constata-se uma enorme disparidade de poder econdmico entre o consumidor e as empresas vendedoras dos bens ou prestadoras dos servigos que ele necessite adquirir, sendo essa discrepancia mais acentuada no caso justamente daqueles que mal tém possibilidade de obter 0 seu “minimo vital”, Em poucas palavras, 0 consumidor, como regra, é hipossuficiente quando comparado economicamente com os seus fornecedores de bens e servicos. Em casos que tais, o Dircito “compensa” essa desigualdade material ou fatica instituindo uma desigualdade juridica em favor dos hipossuficientes, mediante regras protetivas imperativas, isto é, nao passiveis de derrogagao por meio de um pretenso “acordo de vontades” (presume-se inexistir, para 0 hipossuficiente, “vontade livre”). A prote¢ao ao consumidor, no Brasil, esta regulada pela Lei n.° 8.078/1990 (Cédigo de Defesa do Consumidor). Cap. 16 » ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 929 © Supremo Tribunal Federal ja decidiu que 0 Cédigo de Defesa do Consumidor (CDC) é aplicdvel as relacdes entre as institui¢des financeiras e seus usudrios.* Por fim, é oportuno lembrar que a defesa do consumidor é, também, um direito fundamental, expresso no inciso XXXII do art. 5.°, consubstanciando nao apenas um direito subjetivo, cuja tutela pode ser buscada individualmen- te, mas também um direito difuso, passivel de ser defendido, por exemplo, mediante agao civil publica (Lei n.° 7.347/1985, art. 1.°, II). 3.1.2.5. Defesa do meio ambiente A defesa do meio ambiente é outro principio geral da ordem econd- mica. Sua insergao no rol de principios do art. 170 da Constitui¢ao tem por finalidade explicitar que as atividades econémicas nao se legitimam pura e simplesmente pela necessidade de que sejam produzidas riquezas. Ainda que as riquezas produzidas fossem, teoricamente, distribuidas de forma razoavelmente eqiiitativa (0 que se coadunaria com a exigéncia de que a ordem econémica assegure a todos uma existéncia digna), a atividade econémica que acarretasse destrui¢do insustentavel do meio ambiente seria coibida pelo Estado. Impende observar que 0 meio ambiente também é tratado, e muito mais detalhadamente, no Titulo VIII da Constituigao vigente, como matéria inte- grante “Da Ordem Social”, especificamente no art. 225, em cujo caput se lé que “todos tém direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial 4 sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Publico e a coletividade 0 dever de defendé-lo e¢ preserva-lo para as presentes e futuras geracdes”. Em resumo, nao basta produzir riquezas, hoje, a qualquer custo ambiental. A atividade econémica de que resulte produgio de riqueza, mesmo que esta seja bem distribuida, 86 se legitima se for compativel com a protegao do meio ambiente, consubstanciando o denominado “desenvolvimento sustentavel”. Com efeito, ainda que a produgdo ambientalmente irresponsavel de riqueza pudesse gerar algum desenvolvimento hoje, resultaria, inexoravelmente, na ruina das geragdes futuras (e ruina nado sd econdémica). O direito a um meio ambiente equilibrado é direito difuso, passivel de tutela, entre outras, por meio de agao civil publica (Lei n.° 7.347/1985, art. 1.°, I). A EC n.° 42/2003 explicitou, na parte final do inciso VI do art. 170, que a defesa do meio ambiente pode operar-se “inclusive mediante tratamento * ADI 2591/DF, rel. orig. Min. Carlos Veloso, rel. p/ 0 acérdao Min. Eros Grau, 07.06.2006. 930 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO = Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino diferenciado conforme 0 impacto ambiental dos produtos ¢ servigos ¢ de seus processos de claboragdo ¢ prestagao”. E interessante notar que a EC n.° 42/2003 tratava, toda ela, de matéria tributaria” Nao obstante, a nosso ver, o “tratamento diferenciado”, aludido no texto acrescentado, nao precisa ser obrigatoriamente tributario. Pensamos que a parte incluida é inespecifica, aplicavel a qualquer tipo de tratamento econémico ou juridico relativo a produtos ou servicos que, de alguma forma, positiva ou negativa, afetem o meio ambiente. Esse acréscimo ao inciso VI do art. 170 da Constituigao parece haver pretendido indicar expressamente 0 clemento “impacto ambiental dos produ- tos € servigos e de seus processos de elaboragao e prestagdo” como critério legitimador de tratamento juridico e econdmico diferenciado, vale dizer, como critério de desigualamento a ser observado na aplicagdo e na interpretagao do principio da isonomia. Em nossa opiniao, 0 constituinte derivado pretendeu deixar claro que é legitimo adotar, por exemplo, tratamento tributario diferenciado para empre- sas que lidem com produtos ou servigos de maior potencial lesivo ao meio ambiente, seja tributando-as mais pesadamente, seja concedendo beneficios fiscais a atividades ou providéncias que visem a reduzir o impacto ambien- tal ou a diminuir os riscos de dano ao meio ambiente relacionados a esses produtos ou servicos. Assim, por exemplo, poderia ser instituido algo como uma “contribui- g%0 de intervencio no dominio econémico”, cobrada das empresas mais poluidoras, cuja arrecadagio fosse destinada a fundos ou projetos especificos voltados & recuperagdio de areas de degradagdo ambiental. Acreditamos, todavia, que medida dessa ordem seria possivel, em tese, mesmo sem o acréscimo desse “inclusive” ao inciso VI do art. 170, operado pela EC n 42/2003. Na mesma linha, seria legitima a concessdo de isengdes, redugdes de aliquotas, outros beneficios fiscais, ou subsidios de qualquer natureza, mes- mo nao tributdria, visando, por exemplo, a estimular o uso ou a fabricag’o de produtos reciclados, biodegradaveis ou outros quaisquer que representem menor lesdo ou menores riscos ao meio ambiente. Também nessas hipdte- ses, a nosso ver, as medidas certamente seriam consideradas constitucionais, mesmo antes do acréscimo trazido pela EC n.° 42/2003. >A propaganda govemamental refere-se a EC 42/2003 como “reforma tributaria’, embora seja ululante para qualquer pessoa que nao tenha a profissao de “marqueteiro” que as Pouquissimas e superficialissimas disposigbes por ela trazidas nao chegam a configurar, sequer, um ténue arremedo de “mini-reforma’, Cap. 16 * ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 931 3.1.2.6. Reducao das desigualdades regionais e sociais e busca do pleno emprego Os incisos VII e VIII do art. 170 estatuem como principios da ordem econdémica a redugio das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego. Nao sao exatamente principios, mas sim objetivos. Basta lembrar que € objetivo fundamental da Republica Federativa do Brasil “erradicar a pobreza e a marginalizacao ¢ reduzir as desigualdades sociais e regionais” (CF, art. 3.°, II). A busca do pleno emprego tem conex4io ébvia com a valorizaga0 do trabalho humano, fundamento da ordem econémica (art. 170, caput). Assim € porque nada adiantaria impor a exigéncia de valorizagao do trabalho se parcela significativa da mao-de-obra disponivel nao tiver trabalho! José Afonso da Silva consigna que “a busca do pleno emprego é um principio diretivo da economia que se opée as politicas recessivas” (como seria exemplo, acrescentamos, a fixagdo da taxa basica de juros em patamares elevados, no alegado intuito de “manter sob controle a inflagio”). A redugio das desigualdades regionais ¢ objetivo reiteradamente mani- festado pelo constituinte, como ilustra a parte final do inciso I do art. 151 da Constituigao, o qual veda a Unido “instituir tributo que nao seja uniforme em todo 0 territério nacional ou que implique distingao ou preferéncia em relagao a Estado, ao Distrito Federal ou a Municipio, em detrimento de outro, admitida a concessao de incentivos fiscais destinados a promover o equilibrio do desenvolvimento sécio-econémico entre as diferentes regides do Pais”. Esses incentivos fiscais, em tese, tendem a atrair a instalago de indis- trias e outras empresas para as regides mais pobres do Pais, propiciando a redugao das desigualdades como decorréncia do incremento da produgao local de riquezas, do aumento do nimero de empregos oferecidos etc. Outra linha de atuacao possivel, embora nao especificamente destinada a reduzir as desigualdades regionais, é o estimulo ao turismo, tendo em conta © imenso potencial, nessa area, das regides Nordeste, Norte e Centro-Oeste (sem olvidar a necessidade de que essa atividade se desenvolva em harmonia com a exigéncia de conservagao do meio ambiente). Atender-se-ia, simulta- neamente, 0 disposto no art. 180 da Carta Politica, que determina a Unido, aos estados, ao Distrito Federal e aos municipios a promogao e o incentivo ao turismo “como fator de desenvolvimento social e econédmico”, JA a reducao das desigualdades sociais é objetivo mais amplo do que a mera erradicagio da pobreza. Assim, as atividades econdmicas, como um todo, devem propiciar nao sé a climinagdo da pobreza, mas também uma distribuigdo eqiiitativa da riqueza produzida. 932 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina O setor privado deve colaborar nessa tarefa, mediante a contratacdo sempre formal de trabalhadores (empregos “com carteira assinada”), na qual sao plenamente assegurados os direitos trabalhistas. Note-se que, se 0 saldrio minimo tivesse seu valor fixado em conformidade com os parametros constitucionalmente impostos (CF, art. 7.°, 1V), a simples contratagao formal de trabalhadores j4 contribuiria sobremaneira para reduzir as desigualdades sociais (ec mais ainda para erradicar a pobreza). Esbarra-se mais uma vez, entretanto, na clausula ou no principio implicito da “reserva do possivel”! E mister observar, ainda, que o constituinte inseriu no titulo “Da Ordem Econémica” a disciplina geral dos servigos ptblicos. Conforme antes expli- cado, esse fato faz com que os servigos publicos de contetido econdmico sejam considerados atividade econémica, em sentido amplo. E de todo evi- dente que a adequada prestagao de servigos piblicos pelo Estado, sobretudo aos mais necessitados, constitui relevantissimo instrumento de reducgdo das desigualdades sociais, dando acesso a todos as utilidades matérias basicas que constituem objeto desses servi¢os (saneamento basico, energia elétrica, servigo de telefonia ete.). 3.1.3. Liberdade de exercicio de atividades econémicas Reforcgando a asserg4o, constante de seu caput, de que a livre iniciativa é fundamento da ordem econémica, o art. 170, em seu paragrafo unico, afirma que “é assegurado a todos o livre exercicio de qualquer atividade econémica, independentemente de autorizagao de érgdos publicos, salvo nos casos previstos em lei” Deve-se entender adequadamente esse dispositivo. O Estado brasileiro é obrigatoriamente capitalista. Assim, embora ele intervenha na economia, direta ou indiretamente, néo podera planificar a economia, de modo a decidir quais atividades, e em qual quantidade, os agentes privados podem desempenhar (fixacdo de quotas de produgao ou de comercializagao). Se os agentes de governo entenderem que seria estrategicamente inte- ressante aumentar 0 numero de empresas atuantes em determinado setor, podera o Estado, desde que atendidos os requisitos constitucionais, atuar, ele mesmo, naquele setor, como regra instituindo uma empresa publica ou uma sociedade de economia mista, ou podera tentar induzir o setor privado, criando subsidios, beneficios fiscais etc. Da mesma forma, se o planejamento econdmico estatal estipular que seria interessante reduzir as empresas atuantes em determinada atividade, podera o Estado desestimular os agentes privados, por exemplo, mediante Cap. 16 + ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 933 tributagdo, desde que atendidos os requisitos constitucionais. Ndo poder, entretanto, proibir 0 ingresso de novas empresas privadas naquela atividade sob a alegaciio de que “j4 ha muitas, e é mais interessante para a economia que as novas empresas atuem em uma outra area da economia”. Em resumo, 0 Estado nao pode decidir quais e quantos agentes privados atuarfio em cada setor da economia, ou quanto produziraio ou venderao; isso eria planificacao, tipica dos regimes socialistas, incompativel com a livre iniciativa e seu corolario, a liberdade de empresa. Nao se confunda 0 exposto acima com o exercicio do poder de policia administrativa. Diversas atividades desenvolvidas pelos particulares podem exigir um controle, preventivo ou repressivo, pelo Poder Publico, a fim de conforma-las ao bem-estar geral. Assim, 0 Poder Publico, desde que haja previsio legal, pode exigir de todos os agentes econémicos atuantes em uma drea, 0 cumprimento de determinadas exigéncias, a fim de obterem autorizago para funcionar. FE 0 que ocorre, por exemplo, com as exigéncias de obtengao de licen- ga ambiental para certas atividades, ou com a exigéncia de que o tipo de atividade de uma empresa se coadune com as admitidas pelo plano diretor para aquela zona do municipio, ou de que uma casa de espetaculos atenda aos padrées de seguranca contra ineéndios etc. O importante é perceber que se trata de exigéncias gerais, isto é, im- postas a todos quantos se enquadrem na mesma situagao. Relevante frisar, também, que, uma vez cumpridas as exigéncias legais, nao cabe ao Poder Publico recusar-se a autorizar o exercicio da atividade sob a alegagao de que ela nao seria economicamente interessante para o Pais. Por essa razao, alids, 0 caput do art. 174, que analisaremos adiante, explicita que o planejamento econémico estatal é determinante para o setor ptblico, mas apenas indicativo para o setor privado (esse carter “indicativo” pode ser reforgado com medidas de indugdo, como incentivos fiscais, mas niio admite que se imponha ao setor privado a atuagdo em conformidade com as diretrizes estabelecidas no planejamento estatal, ou que se imponham cotas maximas de produgdo para cada setor da economia). 3.2. Atuacao do Estado como agente econémico em sentido estrito © art. 173 da Constituigdo, em seu caput, estabelece a regra geral se- gundo a qual 0 exercicio de atividade econémica stricto sensu cabe ao setor privado, devendo o Estado, apenas nos casos previstos em lei ou na propria Constituigao, atuar de forma direta na economia, como agente produtivo. E esta a redagdo do dispositivo: 934 DIREITO CONSTITUGIONAL DESCOMPLICADO - Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituigao, a exploragdo dircta de atividade econdmica pelo Estado s6 serd per- mitida quando necessaria aos imperativos da seguranga nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei Diz-se que a atuagao direta do Estado na economia sujeita-se ao principio da subsidiariedade, isto é, como regra, somente quando o setor privado nao tiver capacidade de atuar suficientemente em determinado setor econdmico (ou nao tiver interesse em tal setor), deve o Estado colmatar essa lacuna. Também legitimam a atuagdo do Estado como agente econédmico os “imperativos da seguranga nacional”, ou “relevante interesse coletivo” (haja ou nao deficiéncia na atuagdo dos agentes privados), exigindo-se, entretanto, que a lei defina tais hipdteses. Ainda, é evidente que a atuagdo direta do Estado na economia é devida ou autorizada em todos os casos que a prépria Constituigao preveja, como acontece com as atividades exploradas sob regime de monopélio (art. 177), e mesmo com a prestacio de servicos piiblicos, que pode ser direta ou indi- reta (lembrando que servigos puiblicos somente so atividade econdmica em sentido amplo, e nao so regrados pelo art. 173 da Carta Politica, mas sim pelo seu art. 175, adiante estudado). A atuagao direta do Estado na economia, como regra, ¢ feita por intermédio de pessoas por ele constituidas com essa finalidade, especialmente as empresas publicas ¢ as sociedades de economia mista. Assim é porque a atuag%o no dominio econémico é dificil de compatibilizar com a personalidade juridica de direito publico, em face do regime juridico aplicavel, extremamente restritivo. Adequada a exploracao de atividade econdmica é a personalidade juridica de direito privado, e as empresas publicas e as sociedades de economia mista, seja qual for © seu objeto, sempre tém personalidade juridica de direito privado. As empresas ptblicas e as sociedades de economia mista podem ser divididas em duas categorias: as que prestam servigos piblicos e as que exploram atividades econémicas em sentido estrito. Ambas as categorias sio integrantes da Administrag¢do Publica, porque no Brasil é adotada a acepgio formal de Administragao Publica. Ambas as categorias tém personalidade juridica de direito privado. O regime juridico a que esto sujeitas as atividades por elas desenvol- vidas, entretanto, é bastante diverso. As empresas publicas e as sociedades de economia mista que prestam servigos piiblicos atuam predominantemente sob regime de direito piblico, ao passo que as que exploram atividades econ6émicas em sentido estrito esto regidas predominantemente pelo direito privado. Mesmo essas tiltimas, entretanto, pelo fato de integrarem formalmente a Administragao Publica, sujeitam-se a determinadas regras de direito publico, previstas na propria Constituiga0, conforme exporemos adiante. Cap. 16 » ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 935 O § 1° do art. 173 da Constituigdo trata especificamente das empre- sas publicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividades econémicas em sentido estrito, nao das prestadoras de servicos piblicos. Ele prevé a edigdo de um estatuto (uma lei ordindria) especifico para essas entidades, disciplinando 0 seu regime juridico. O texto constitucional, desde logo, delineia 0 contetdo minimo desse diploma (até hoje nado editado). E a seguinte a sua redacdo: § L.° A lei estabelecera 0 estatuto juridico da empresa publica, da sociedade de economia mista e de suas subsididrias que explorem atividade econdmica de produgdo ou comercializagio de bens ou de prestacao de servicos, dispondo sobre: I — sua fungdo social e formas de fiscalizagdo pelo Estado e pela sociedade; II —a sujeigdo ao regime juridico proprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigagées civis, comerciais, trabalhistas ¢ tributdrios; Ill — licitago e contrataco de obras, servicos, compras e alie- nagdes, observados os principios da administragaio publica; IV — a constituigado e o funcionamento dos conselhos de admi- nistragao ¢ fiscal, com a participagao de acionistas minoritarios; V — 0s mandatos, a avaliagio de desempenho e a responsabili- dade dos administradores. Alguns pontos merecem nota. A afirmagiio de que as empresas piiblicas ¢ sociedades de economia mista exploradoras de atividades econdmicas em sentido estrito sujeitam-se ao regi- me juridico proprio das empresas privadas deve ser lida a partir de uma inter- pretagdo sistematica da Constituigao. Como essas entidades integram formal- mente a Administragdo Publica, todas as regras constitucionais que se apliquem indistintamente A Administragao Publica alcangam, em principio, também essas entidades. Arrolamos, abaixo, algumas normas constitucionais que derrogam 0. regime privado a que se sujeitam as empresas publicas e sociedades de econo- mia mista exploradoras de atividades econdémicas em sentido estrito: a) sua criagiio depende de autorizago em lei especifica (CF, art. 37, XIX); b) a criagdo de suas subsidiérias ¢ a sua participagao em empresa privada depende de autorizagao legislativa (CF, art. 37, XX);* ® O STF firmou orientagao (ADI 1.649-1, rel. Min. Mauricio Corréa, 24.03.2004) segundo a qual a autorizagdo legislativa para a criagdo de subsididrias, a que se refere o inciso XX do art. 37 da Constituigao, nao obstante a expressao “em cada caso", usada no texto cons- 936 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino c) a contratag’o de pessoal permanente (empregados publicos) sujeita-se a exigéncia de aprovacdo prévia em concurs publico (CF, art. 37, ID); d) seus empregades piblicos sujeitam-se 4 vedacdo constitucional 4 acumulagao remunerada de empregos ¢ cargos publicos, inclusive 4 proibigdo de acumular provento decorrente do regime préprio de previdéncia dos servidores publicos com a remuneraciio do seu emprego piblico (CF, art. 37, XVII, e § 10); ¢) aremunerago de seu pessoal sujeita-se ao limite constitucional de remunera- do, de que trata 0 inciso XI do art. 37, quando elas reeeberem recursos da Unido, dos estados, do Distrito Federal ou dos municipios para pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral (CF, art. 37, § 9."); f) sujeitam-se ao controle interno, finalistico (tutela administrativa), exercido pela Administragdo Direta, e também a supervisdo geral, de competéncia do chefe do Poder Exccutivo, auxiliado, conforme o caso, pelos seus ministros ou secretarios (CF, art. 84, II); 2) sujeitam-se, sem derrogagées, ao controle externo, a cargo do Poder Legis- lativo, inclusive ao controle pelos tribunais de contas (CF, arts. 70 e 71); h) seus agentes, em alguns casos, praticam “atos de autoridade”, sujeitos a controle pela via do mandado de seguranga (Simula STI n.° 333); i) atos lesivos ao seu patriménio podem ser anulados mediante ag&o popular (CF, art. 5°, LXXIID; j) os atos de seus agentes podem ser enquadrados como “atos de improbidade administrativa”, sujeitos A respectiva agdo de responsabilizagdo (CF, art. 37, § 4°, e Lei n® 8429/1992, arts. 1.° e 2.°). E mister mencionar, por outro lado, que as empresas publicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividades econ6micas em sentido estrito nao estao sujeitas 4 responsabilidade civil objetiva, prevista no art. 37, § 6.°, da Carta Politica, a qual somente alcanga “as pessoas juridicas de direito publico e as de direito privado prestadoras de servigos piblicos”, conforme expressamente estabelece esse dispositivo. Outro ponto relevante é que, embora sujeitas (predominantemente) ao regi- me préprio das empresas privadas, as empresas publicas e as sociedades de eco- nomia mista que exploram atividade econémica nao deixam de estar, como regra, obrigadas A licitag&io, observados os principios da Administragao Pablica. titucional, pode ser dada em cardter genérico. Da ementa do aresto prolatado, aprovado por unanimidade, consta que “é dispensavel a autorizagao legislativa para a criagao de ‘empresas subsididrias, desde que haja previsdo para esse fim na propria lei que instituiu a empresa de economia mista matriz, tendo em vista que a lei criadora é a propria medida autorizadora”. Cap. 16 + ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 937 © que 0 § 1, inciso III, do art. 173, acima transcrito, prevé é a possi- bilidade de que o legislador ordindrio estabelega, no estatuto ali referido, um regime especifico de licitagdes para cssas empresas, distinto daquele estabe- lecido pela Lei n° 8.666/1993, atualmente aplicdvel a toda a Administrago Publica, Direta e Indireta. Na realidade, conforme entendimento jurisprudencial, e mesmo confor- me previsao legal expressa (Lei n.° 8.666, art. 17, II, “e”), essas entidades econémicas nao estdo sujeitas licitag%o quando estiverem realizando ope- ragdes de compra e venda de bens por elas produzidos ou comercializados, ou quando estiverem prestando servigos, desde que a venda desses bens ou a prestagao desses servicos seja pertinente as finalidades precipuas, ao objeto proprio dessas entidades. De forma mais simples, os contratos relativos as atividades-fim dessas entidades no se sujeitam a licitagdo prévia, porque isso seria inteiramente incompativel com a atuag4o no setor econémico, em regime de concorréncia com o setor privado. Imagine-se, como exemplo absurdo, 0 Banco do Brasil sendo obrigado a realizar uma licitacio cada vez que dese- jasse celebrar com um cliente um contrato de abertura de conta-corrente! Nao obstante o afirmado no paragrafo precedente, deve-se ter em mente que, nos demais casos, as empresas publicas e as sociedades de economia mista que exploram atividade econémica sujeitam-se, sim, a licitagio, uma vez que sao formalmente integrantes da Administragao Publica. Mas essa sujeigdo aplica-se as atividades-meio dessas entidades (por exemplo, quan- do necessitam adquirir material de expediente, quando necessitam contratar servigos de vigilancia, quando pretendem realizar uma obra de construgao de uma nova filial etc.). Mesmo nessas atividades-meio, entretanto, podera © estatuto especifico estabelecer, para essas entidades, regime especial de licitagdo, mais simples, dinamico e compativel com o desempenho de ati- vidade econémica. Por fim, é relevante enfatizar que o § 2.° do art. 173 estatui ser vedada a concessao de privilégios fiscais as empresas piblicas ¢ as sociedades de economia mista, a menos que se tratem de beneficios extensivos as empresas do setor privado. Duas observagdes devem ser feitas. A primeira é que, embora a redagao do § 2." nao explicite que sua aplicagao restringe-se as empresas publicas e as sociedades de economia mista que exploram atividades econdmicas, é essa a interpretagdo que deve ser dada ao dispositivo. A vedagiio & concessio de beneficios fiscais exclusivos existe para im- pedir que o legislador infrinja o principio da livre concorréncia, ¢ isso sé faz sentido quando se trata de empresas que exercem atividade econdmica em sentido estrito. Além disso, todo o art, 173 refere-se apenas a atuagdio no dominio econémico em sentido estrito, no sendo aplicdvel A prestagdo de 938 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino servicos publicos. Logo, o § 2.° do art. 173 nao pode estar fazendo mengéio a materia estranha ao artigo no qual se insere. Em resumo, nao existe impe- dimento constitucional 4 concessao de beneficios fiscais a empresas publica e sociedades de economia mista prestadoras de servigos publicos.’ A segunda observagado é que nao existe dbice 4 concessio de beneficios fiscais para empresas que atuem em regime de monopélio, mesmo quando se trate de atuagao na area econdémica. Atuacao do Estado como prestador de servicgos publicos Estabelece 0 art. 175 da Constituigo, em seu caput, peremptoriamente que: Art. 175. Incumbe ao Poder Piblico, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessdo ou permisstio, sempre através de licitagao, a prestag&o de servigos piiblicos. Ja vimos que servigos piblicos s6 podem ser tidos por atividade econd- mica em sentido amplo. Todavia, como o constituinte inseriu as disposigdes a eles relativas no titulo “Da Ordem Econémica”, é mister, pelo menos em sentido amplo, considerd-los atividade econémica. A Constituigo nao conceitua servigo publico; tampouco o fazem as leis no Brasil. A respeito, existem, na doutrina administrativista internacional, duas correntes principais: a corrente denominada essencialista e a chamada for- malista. Segundo a corrente essencialista, uma atividade poderia ser considerada servico piblico em razio de sua propria natureza, ou seja, existiriam deter- minadas caracteristicas essenciais que, uma vez presentes em determinado servigo, forgosamente acarretariam sua classificagao como servico piblico, submetendo-o ao regime juridico préprio dos servigos piblicos. Trata-se de um conceito material ou substancial (ou ainda sociolégico) de servigo publico. A corrente formalista entende que nao é possivel identificar-se um nucleo essencial irredutivel. inerente a natureza da atividade, que forgosamente acar- retaria a classificacio de um servigo como piiblico. Para essa corrente, sem (O STF tem decidido que até mesmo a imunidade tributaria prevista para as autarquias (CF, art. 150, § 2.°) 6 aplicavel as empresas publicas e sociedades de economia mista prestadoras de servigos piblicos de prestagao obrigatéria pelo Estado (RE 407.099/RS, rel. Min. Carlos Velloso, 22.06.2004; ACO AgR 765/RJ, rel. orig. Min. Marco Aurélio, rel. p/ 0 acérdéo Min. Joaquim Barbosa, 05.10.2006; AC 1.550-2, rel. Min. Gilmar Mendes, 06.02.2007; RE AgR 363.412/BA, rel. Min. Celso de Mello, 07.08.2007). Cap. 16 * ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA, 939 davida mais pragmatica, é publico todo e qualquer servigo que a Constituigdo ou as leis afirmem ser piblico, independentemente de sua natureza. O que caracteriza um servigo como publico é, simplesmente, a exigéncia, pelo orde- namento juridico, de que ele seja prestado sob regime de direito publico. Em nosso Pais é adotada a concepgao formal de servico publico. Con- sidera-se servigo publico qualquer atividade de oferecimento de utilidade material a coletividade, desde que, por op¢do do ordenamento juridico, essa atividade deva ser desenvolvida sob regime de direito publico. Segundo o conceito da lavra de Celso Anténio Bandeira de Mello, “ser- vigo publico é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruivel diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faga as vezes, sob um regime de direito publico — portanto, consa- grador de prerrogativas de supremacia e de restrigdes especiais — instituido pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como préprios no sistema normativo”. Mais sintético é 0 conceito elaborado por Hely Lopes Meirelles, para quem “servico publico é todo aquele prestado pela Administragao ou por seus delegados, sob normas ¢ controles estatais, para satisfazer necessidades essen- ciais ou secundarias da coletividade ou simples conveniéncias do Estado”. A Administragao Publica pode prestar diretamente servigos piblicos. Eles podem ser prestados centralizadamente, pelos proprios érgios da Administrago Direta, ou descentralizadamente, pelas entidades da Admi- nistragdo Indireta, nesse caso, mediante outorga, 0 que sempre pressupde a edigéo de uma lei. Podem, alternativamente, os servigos publicos ser delegados a particu- lares, por meio de celebragado de contratos de concessaio ou de permissio de servigos publicos (a permissao de servigos publicos implica celebragado de contrato de adesio, nos termos do art. 40 da Lei n.° 8.987/1995). A prestagdo de servigos piiblicos por particulares é, também, modalidade de prestagdio descentralizada. Além disso, classificam-se as formas de prestagado de servigos publicos em prestacdo direta e prestacdo indireta. Infere-se, do caput do art. 175 da Constituig&o, acima transcrito, que a prestagdo direta é aquela realizada pela Administragao Publica, seja ela Administragao Direta ou Administragao Indireta. Diversamente, a prestacao indireta é a realizada pelos particulares, mediante delegagao (a titularidade do servigo permanece, sempre, com 0 Poder Publico), nas modalidades concessao ou permissao de servigos publicos, ambas obrigatoriamente precedidas de licitacao.* ® Embora 0 art. 175 da Constituigao somente se refira a prestagao indireta de servigos pu- blicos mediante concessao ou permissdo, é possivel, também, em alguns casos, utilizar a 940 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrine Em sintese, seja qual for conceito de servico publico que se elabore, o certo é que, no Brasil, em razao da adogao do critério formal, nao importa a natureza da atividade, nem a pessoa que a esteja executando: ser servigo publico todo aquele que a Constituigao ou as leis determinem seja prestado sob regime de direito publico. Se for prestado indiretamente, por particulares, o sera mediante delegagao (contrato de concessdo ou de permissao de servigos puiblicos). Ha umas poucas excegdes, em que o regime juridico da atividade é determinado em fungéo da pessoa que a exerga. Os casos mais relevantes sio os servigos de educagiio e satide. Educagao ¢ satide sao servicos de pres- tacdo obrigatoria pelo Estado, que deve fazé-lo diretamente, nao mediante delegacao. Nessa hipstese, a atividade serd servigo publico, sujeita a regime juridico de direito publico. Entretanto, os particulares também podem prestar servicos de educagao e satide, mas, quando isso ocorrer, o servigo sera uma atividade privada, desempenhada sob regime juridico de direito privado. E verdade que a es- cola ou o hospital particulares estdo sujeitos a uma rigida fiscalizagéo, mas isso no ambito do poder de policia, mais rigoroso, aqui, por se tratar de atividades que tém potencial de afetar muito intensamente o interesse geral da coletividade, o bem-estar social. O que precisa ficar claro, entretanto, é que uma escola ou um hospital particulares nao sao delegatarios de servigos publicos (nao sao regidos por um contrato de concessio ou de permissao), e sim prestadores de servigos privados. O paragrafo tinico do art. 175 prevé a edigao de uma lei de normas gerais que disponha sobre: I — 0 regime das empresas concessionarias e permissiondrias de servigos piblicos, 0 cardter especial de seu contrato e de sua prorrogagao, bem como as condigdes de caducidade, fiscalizagao ¢ rescisdo da concessio ou permissio; II ~ os direitos dos usuarios; Ill — politica tariféria; IV — a obrigacdo de manter servigo adequado. Essa lei de normas gerais nacional, atualmente, é a Lei n.° 8.987/1995 (embora existam normas gerais sobre servigos publicos em outras leis, como a Lei n.° 9.074/1995, merecendo mengio, também, a Lei n.° 11.079/2004, que disciplina uma modalidade especifica de concessdo denominada “parceria- publico-privada”). Ela se aplica a todas as pessoas politicas, Unido, estados, Distrito Federal e municipios. autorizago de servigo piiblico como instrumento de delegagao. Cap. 16 + ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 941 Por fim, uma observagdo deve ser feita. Dissemos, no inicio deste t6pico, que os servigos publicos podem ser considerados atividade econdmica em sentido amplo. Essa afirmagao é valida exclusivamente para os servigos publicos que tenham conteudo econdémico, que consistam no oferecimento de utilidades economicamente mensuraveis. Sao exatamente esses servigos publicos os que podem ter sua prestagao de- legada a particulares, como ocorre com o servic¢o de telefonia, de geragdo, distribuigao e fornecimento de energia elétrica, de fornecimento domiciliar de agua encanada, de transporte de passageiros etc. Sé essa espécie de servicos publicos é alcangada pelo art. 175 da Constituigao. Os outros servigos de que é incumbido o Estado, sem contetido econé- mico, como a prestagdo jurisdicional, a garantia da seguranga nacional e da seguranca publica, a defesa civil, a diplomacia etc., nada tém a ver com o art. 175 da Constituigao, ou melhor, nenhuma relagdéo tém com a “Ordem Econémica e Financeira”. Cabe lembrar, entretanto, que todo e qualquer servigo publico, econémico ou nao, esté sujeito ao § 3.° do art. 37 da Constituigéo, que assim dispde: § 3° A lei disciplinard as formas de participagdo do usuario na administragdo publica direta e indireta, regulando especial- mente: I~ as reclamagGes relativas @ prestagdo dos servigos piblicos em geral, asseguradas a manutengdo de servigos de atendimento ao usuario ¢ a avaliagdo periédica, externa e interna, da qua- lidade dos servigos; II — 0 acesso dos usuarios a registros administrativos e a infor- magées sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5. *, Xe XXXII; Ill — a disciplina da representago contra o exercicio negligen- te ou abusivo de cargo, emptego ou fungdo na administracio piblica. 3.4. Atuacao do Estado como agente econémico, em regime de monopolio A Constituigao vigente apresenta uma lista exaustiva (numerus clausus) de atividades que podem ou devem ser exploradas em regime de mono- polio, em scu art. 177. Todas as hipdteses de monopdlio admitidas sio monopolios publicos e foram atribuidas exclusivamente 4 Unido. Abran- gem, basicamente, as atividades com petrdleo, gas natural e minérios ou minerais nucleares. 942 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina Portanto, hoje, no Brasil, ndo se admite 0 monopélio privado, no ha hipdtese de monopdlio de atividades econémicas pelos estados, Distrito Federal ¢ municipios, e, diferentemente do que ocorria na Constituigao pre- térita, nem mesmo a Unido tem possibilidade de criar novas hipsteses de monopolio mediante lei. As seguintes atividades constituem monopolio da Unido (incisos I a V do art. 177): I~ a pesquisa e a lavra das jazidas de petroleo e gas natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II ~ a refinacdo do petréleo nacional ou estrangeiro; III —a importagao e exportagdio dos produtos e derivados basicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV ~ 0 transporte maritimo do petréleo bruto de origem nacional ou de derivados basicos de petréleo produzidos no Pais, bem assim 0 transporte, por meio de conduto, de petrdleo bruto, seus derivados e gas natural de qualquer origem; V ~ a pesquisa, a lavra, 0 enriquecimento, o reprocessamen- to, a industrializag’o e 0 coméreio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com excegdo dos radioisdtopos cuja produgio, comercializagao e utilizag%o poderio ser au- torizadas sob regime de permissio, conforme as alineas ‘b’ e ‘ec’ do inciso XXIII do ‘caput’ do art. 21 desta Consti- tuigdo Federal. As atividades descritas nos incisos | a IV podem ter seu exercicio contratado, pela Unido, com empresas estatais ou privadas, observadas as condigées estabelecidas em lei (art. 177, § 1.°). Essa situagao, usualmente referida como “flexibilizagao” do monopédlio, foi trazida pela EC n.° 9/1995. Como se vé, as atividades constantes desses incisos nao esto exatamente sob regime de monopélio, ou, pelo menos, tio sob monopélio facultativo. Vale dizer, se julgar mais adequado ao interesse piiblico, a Unido tem a possibilidade de explord-las sob 0 regime de monopdlio. Diferentemente, caso a Unido considere mais condizente com 0 interesse publico © seu exercicio por empresas estatais ou privadas, pode contratar esse exercicio com elas. Note-se, ainda, que a decisao sobre con- tratar ou ndo € exclusiva da Unido. Relevante observar, também, que a contratagao, pela Unido, de empresas para exercerem as atividades descritas nos incisos I a IV do art. 177, acima reproduzidos, nao é livre, porquanto deverd observar as condigées estabele- cidas em lei, a qual deve dispor sobre (art. 177, § 2.°): Cap. 16 + ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 943 I — a garantia do fornecimento dos derivados de petréleo em todo o territrio nacional; Il — as condigdes de contratag’o; III — a estrutura e atribuigdes do Srgdo regulador do monopélio da Unido. As atividades descritas no inciso V do art. 177 — concernentes a minérios e minerais nucleares e seus derivados — estao efetivamente sob monopélio da Uniao, com exce¢’o, unicamente, dos radioisétopos para a pesquisa e usos médicos, agricolas e industriais e dos radioisétopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas, cuja produgdo, comercializagao e utilizagao poderao ser autorizadas sob regime de permissao (CF, art. 21, XXIII, “b” e “c”). Em qualquer caso, cabe lei dispor sobre o transporte e a utilizagao de materiais radioativos no territério nacional (art. 177, § 3.°). Cabe lembrar que “a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existéncia de culpa” (CF, art. 21, XXIII, “d”). 3.5. Atuagao do Estado como agente regulador No seu art. 174, a Constituigado dispde acerca da atuacao indireta do Estado na economia, nestes termos, sobremodo elucidativos (grifou-se): Art. 174, Como agente normativo ¢ regulador da atividade econémica, o Estado exercera, na forma da lei, as fungdes de fiscalizacao, incentive e planejamento, sendo este determinante para o setor publico e¢ indicativo para o setor privado. Portanto, no 4mbito de sua atuagao indireta na economia, o Estado é descrito como agente normative e regulador. Essa atuagao traduz-se nas fungdes de fiscalizagao, incentivo e planejamento. Nao é pacifica a distingao entre agente normativo e agente regulador. Entendemos que atuagao normativa diz respeito a todo e qualquer ato geral que possa ser considerado interveng&o no setor econémico, ou seja, qualquer ato que de algum modo interfira no curso natural da economia, que seria aquele determinado pelas “forgas naturais” do mercado, pela “mao invisivel” de Adam Smith. Assim, é atuagéo do Estado no dominio econémico como agente nor- mativo a edigdo de uma lei que institua uma contribuigdo de intervengao no dominio econémico (CF, art. 149), ou de uma lei que preveja uma isengdo de IPI para as indistrias que se instalarem na regiio do semi-drido do Nor- 944 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina deste, ou de um decreto que regulamente 0 exercicio do poder de policia sobre determinadas atividades etc. Como exemplo, registramos que a EC n.° 33/2001 acrescentou o § 4.° ao art. 177, dispondo acerca de uma especifica contribuigio de intervengaio no dominio econdmico (CIDE), incidente em operagdes com petréleo, gas natural e alcool combustivel, determinando a destinagdo dos recursos com ela arrecadados: a) ao pagamento de subsidios a pregos ou transporte de alcool combustivel, gis natural e seus derivados ¢ derivados de petréleo; b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indiistria do petrdleo e do gas c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes. Ja a fungdo de agente regulador, a nosso ver, abrange as normas que disponham especificamente sobre a atuagdo dos agentes econdmicos, condi- cionando, coordenando e¢ disciplinando a atividade econémica privada (deli- neando os assim chamados “marcos regulatérios” de cada setor econdmico), mas também inclui medidas concretas de intervengo na economia, como tabelamento de pregos, formagao de estoques reguladores para controle de abastecimento, garantia de pregos minimos para produtos agricolas etc. En- globa, ainda, as atividades administrativas de fiscalizacao, solugao de litigios, repressio as infragdes administrativas etc. Merece especial mengao, aqui, a atuagéio das agéncias reguladoras (que recebem essa denominagiio exatamente em fungdo de sua finalidade especifica). O texto do art. 174, acima transcrito, afirma que na sua atuacao indi- reta na economia o Estado exerce as fungdes de fiscalizagaio, incentivo e planejamento. A fisealizago é exercida no ambito do poder de policia, exercido pe- los mais diversos orgdos e entidades de todas as esferas da Federagdo. Sao exemplos a fiscalizagdo ambiental, a fiscalizagao sanitaria, a fiscalizago dos mercados de capitais etc. Abrange nao sé a policia administrativa repressiva, como também a preventiva (exigéncia de obteng’o prévia de licengas e auto- rizagdes para funcionamento, edificagao, exercicio de determinadas atividades, exploragao de determinados recursos etc.). O incentivo, ou fomento, traduz-se nos mais variados beneficios fiscais, subvenges, subsidios ¢ outras medidas de indugdo positiva, inclusive 0 inves- timento piblico em infra-estrutura, visando a orientar os agentes privados para atuarem em setores que o Estado considere de interesse geral ou estratégicos. A lei de diretrizes orgamentarias deve estabelecer a politica de aplicagao das agéncias financeiras oficiais de fomento (CF, art. 165, § 2.°). Cap. 16 * ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA, 945 O planejamento é “determinante para o setor publico e indicativo para o setor privado”. Significa que. embora nossa economia nao seja planificada, como ocorre nos regimes socialistas, em que ndo ha liberdade de empresa, © Estado deve elaborar planos econémicos, de observancia obrigatéria pelo setor publico, mas n&o impositivo para o setor privado. Assim, as empresas piiblicas, as sociedades de economia mista e quaisquer outras empresas sob controle estatal deverao atuar conforme o planejamento econémico elaborado pelo Estado. Para o setor privado, esse planejamento apenas indica os setores de atuacao, as atividades, a orientacao geral que o Estado considera ser estrategicamente a mais adequada para a obtencao do desenvolvimento econémico, cuja busca © ordenamento juridico The impée. Essa orientagdo geral ndo obriga os agen- tes privados, mas é claro que o Estado pode utilizar medidas de indugao (por exemplo, beneficios fiscais), a fim de obter a adesdo daqueles a seu plano. So instrumentos do planejamento estatal, dentre outros, o plano plu- rianual, a lei de diretrizes orgamentérias ¢ as leis orcamentarias anuais dos diversos entes federados. O § 1° do art. 174, em comento, estatui que “a lei estabeleceré as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibra- do, o qual incorporara e compatibilizaré os planos nacionais e regionais de desenvolvimento”. Nos termos do ja citado § 2.° desse mesmo artigo, “a lei apoiard e es- timularé 0 cooperativismo e outras formas de associativismo”. Assevera 0 art. 180 que “a Unido, os Estados, o Distrito Federal e os Municipios promoverdo e incentivarao 0 turismo como fator de desenvolvi- mento social e econémico”. Cabe mencionar, por fim, que o art. 178 da Constituigao estabelece regras especificas acerca da ordenacdo dos transportes. A EC n° 7/1995 alterou profundamente o contetido original desse artigo, que previa privilégios para brasileiros e embarcagées brasileiras, passando a possibilitar a propriedade de embarcagdes nacionais por estrangeiros (antes vedada), ¢ abolindo a exclu- sividade das embarcagdes nacionais na navegagio de cabotagem (navegagao entre portos brasileiros). E a seguinte a redagao atual do dispositivo: Art. 178. A lei dispora sobre a ordenagao dos transportes aéreo, aquatico ¢ terrestre, devendo, quanto 4 ordenagao do transporte internacional, observar os acordos firmados pela Uniao, atendido © principio da reciprocidade. Pardgrafo tinico. Na ordenagao do transporte aquatico, a lei estabelecera as condigdes em que o transporte de mercadorias na cabotagem ¢ a navegacdo interior poderao ser feitos por embarcagées estrangeiras. 946 DIREITO CONSTITUGIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino Exploragao de recursos minerais e potenciais de energia hidraulica Por forga do art. 21, incisos VIII e 1X, da Constituigéo, sio bens da Unido os potenciais de energia hidrdulica e os recursos minerais, inclusive os do subsolo. O art. 176 da Carta Politica esclarece que esses bens sao propriedade distinta da do solo? Embora sejam de sua propriedade, a Unido nao precisa explorar direta- mente os potenciais de energia hidraulica e os recursos minerais. Eles podem ser explorados por brasileiros ou empresa constituida sob as leis brasileiras ¢ que tenha sua sede e administraco no Pais, mediante autorizagAo ou conces- sao, sendo garantida a quem realize a exploracado a propriedade do produto da lavra. Além disso, o proprietério do solo tem direito a participagdo nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei. Ha uma excegao especifica para os potencias de energia renovavel de capacidade reduzida, porquanto 0 seu aproveitamento nao dependera de autorizag4o ou concessdo. Todas essas regras encontram-se no art. 176 da Constituigao, abaixo reproduzido: Art. 176. As jazidas, em lavra ou nao, e demais recursos mine- rais e os potenciais de energia hidrdulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploracgao ou aproveitamento, € pertencem a Unido, garantida ao concessionario a propriedade do produto da lavra. § 1° A pesquisa e a lavra de recursos minerais e 0 aprovei- tamento dos potenciais a que se refere o ‘caput’ deste artigo somente poderdo ser efetuados mediante autorizago ou con- cessio da Uniao, no interesse nacional, por brasileiros ou em- presa constituida sob as leis brasileiras e que tenha sua sede ¢ administragdo no Pais, na forma da lei, que estabelecerd as condigées especificas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indigenas. § 2° E assegurada participagio ao proprietario do solo nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei. § 3.° A autorizagéio de pesquisa sera sempre por prazo deter- minado, e as autorizagdes e concessdes previstas neste artigo nao poderao ser cedidas ou transferidas, total ou parcialmente, sem prévia anuéncia do poder concedente. ® © Cédigo Civil vigente, nessa esteira, estatui que @ propriedade do solo abrange a do subsolo correspondente (art. 1229), mas “a propriedade do solo n&o abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidraulica, 0s monumentos arqueolégicos e outros bens referidos por leis especiais" (art. 1230). Cap. 16 ORDEM ECONOMICAE FINANCEIRA 947 § 4° Nao dependeré de autorizag’o ou concessdo 0 apro- veitamento do potencial de energia renovavel de capacidade reduzida. Por fim, cabe registrar que, consoante prevéem os §§ 3.° e 4.° do art. 174, a atividade garimpeira, quando exercida em cooperativas, deverd receber tratamento favorecido, conferindo-se a essas cooperativas prioridade na autorizagao ou concesséo para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpaveis, nas areas onde estejam atuando, e na areas que a Unido estabeleca (CF, art. 21, XXV), na forma da lei. 3.7. Politica urbana A Constituigao de 1988 trata da politica urbana em seus arts. 182 e 183. Antes disso, no seu art. 24, inciso I, enuncia que o direito urbanistico é matéria submetida 4 competéncia legislativa concorrente da Unido, dos estados e do Distrito Federal. Portanto, nos termos do § 1.° desse artigo, 4 Unido compete estabelecer as normas gerais de direito urbanistico. Além disso, nos termos do inciso I do art. 30, compete aos municipios legislar sobre assuntos de interesse local, e, no inciso VIII do mesmo artigo, 0 texto constitucional da aos municipios competéncia para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupagao do solo urbano”. E interessante observar que a “Politica Urbana” é tratada em um ca- pitulo especifico integrante do titulo “Da Ordem Social”, Por essa razio, desde logo resta claro que deve a leitura e interpretacio dos dispositivos pertinentes ser feita 4 luz dos principios gerais norteadores da ordem eco- némica, sobretudo, nessa caso especifico, a fun¢gao social da propriedade ea defesa do meio ambiente. O art. 182 da Constituigéo di ao Poder Publico municipal a compe- téncia para executar a politica de desenvolvimento urbano. Essa politica de desenvolvimento urbano é estabelecida pela Unido, no uso de sua com- peténcia para editar normas gerais sobre a matéria, Assim, as “diretrizes gerais fixadas em lei”, a que se refere 0 caput do art. 182, so fixadas em lei federal, obrigatéria para todos os municipios. O diploma que o faz é o denominado “Estatuto da Cidade”, Lei n.° 10.257/2001. E esta a redagdo do art. 182 da Carta Politica: Art, 182. A politica de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Publico municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das fungdes sociais da cidade ¢ garantir o bem-estar de seus habitantes. 948 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina © instrumento basico da politica de desenvolvimento e de expansio urbana é 0 plano diretor, obrigatério para cidades com mais de vinte mil habitantes (art. 182, § 1.°). Trata-se de uma lei municipal, portanto, aprova- da pela Camara Municipal, na qual devem ser definidos 0 zoneamento, as condigdes e requisitos para a autorizagao de edificagées, o sistema vidrio, as atividades passiveis de serem desenvolvidas em cada zona etc. A propriedade urbana cumpre sua fungao social quando atende as exi- géncias fundamentais de ordenagdo da cidade expressas no plano diretor (art. 182, § 2°). As desapropriagdes necessdrias para dar execugao ao plano diretor de- vem ser feitas com prévia e justa indenizagao em dinheiro (art, 182, § 3.°). Trata-se, entretanto, de uma regra geral, ademais, desnecessdria, uma vez que 0 art. 5.°, XXIV, ja estabelece essa exigéncia de indenizacio prévia em dinheiro como um direito fundamental Dissemos, entretanto, que se trata de regra geral porque 0 mesmo art. 182 traz uma das hipéteses constitucionais em que a indenizaco pode ser feita em titulos da divida publica, nfo em dinheiro. Trata-se do disposto no § 4° do art. 182, que versa especificamente sobre as medidas que podem ser adotadas para coibir a manutengao de solo urbano nao edificado, subutilizado ou nao utilizado. Nos termos desse § 4.° do art. 182, 0 Poder Publico municipal pode, mediante lei especifica para rea inclufda no plano diretor, exigir, nos ter- mos da lei federal (0 “Estatuto da Cidade”), do proprietario do solo urbano nao edificado, subutilizado ou nao utilizado, que promova seu adequado aproveitamento. Perceba-se que o dispositivo exige trés leis diferentes: a Ici federal geral (0 “Estatuto da Cidade”), 0 plano diretor, e a lei especifica municipal que exija do proprietério 0 adequado aproveitamento do solo urbano. Nos incisos do § 4." do art. 182 sao previstas as medidas de cardter sancionatério que podem ser adotadas no caso de o proprietario nao atender a exigéncia de aproveitamento do solo. Sao elas: 1 — parcelamento ou edificagao compulsérios; Il — imposto sobre a propriedade predial ¢ territorial urbana progressivo no tempo; Ill — desapropriagao com pagamento mediante titulos da divida publica de emissio previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais ¢ sucessivas, assegurados o valor real da indenizagao e os juros legais. Cap. 16 » ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 949 Como se vé, o inciso III traz uma hipétese de desapropriagio que nao sera indenizada em dinheiro, mas sim em titulos da divida publica. Porém, frise-se, a indenizacdo deve ser justa, ou seja, corresponder ao valor real do bem desapropriado. Por fim, 0 art, 183 estabelece uma hipétese especial de aquisicao de propriedade urbana mediante usucapiao, comumente denominada “usucapiao urbana constitucional” ou “usucapiéo pré-moradia”. Afirma o caput desse artigo que “aquele que possuir como sua Area urbana de até duzentos ¢ cin- qlenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposigao, utilizando-a para sua moradia ou de sua familia, adquirir-Ihe-4 0 dominio, desde que no seja proprietdrio de outro imével urbano ou rural”. A usuca- pido nao sera reconhecida ao mesmo possuidor mais de uma vez (art. 182, § 2.°) e nao se aplica a iméveis publicos (art. 182, § 3.°). 3.8. Politica agricola e fundiaria, e reforma agraria A Constituigao inicia o capitulo acerca “Da Politica Agricola e Fundiaria e da Reforma Agraria” tratando da desapropria¢ao, por interesse social, para fins de reforma agraria. Reza o seu art. 184: Art. 184. Compete 4 Unido desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrdria, o imével rural que nao esteja cumprindo sua fund social, mediante prévia e justa indenizagaio em titulos da divida agréria, com cléusula de preservacao do valor real, resgataveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissio, e cuja utilizagao sera definida em lei. Deve-se observar que a competéncia para legislar sobre qualquer moda- lidade de desapropriacdo é privativa da Unido, nos termos do art. 22, inciso Il, da Lei Maior. Na hipdtese de desapropriagao por interesse social para o fim especifico de promover a reforma agraria, a competéncia para declarar de interesse social 0 imével rural é também exclusiva da Unido. A desapropriagdo por interesse social para fins de reforma agraria esta tratada nos arts. 184 a 186 da Constituigao Federal. Es dispositivos cons- titucionais foram regulamentados pela Lei n.° 8.629/1993; Lei Complementar n.° 76/1993; ¢ Lei Complementar n.° 88/1996. A desapropriagdo para fins de reforma agraria é cabivel quando a pro- priedade rural nao esteja cumprindo sua fungdo social. Nos exatos termos constitucionais, a fungdo social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigéncia estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos (CF, art. 186): 950 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO * Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina | — aproveitamento racional ¢ adequado; Il — utilizago adequada dos recursos naturais disponiveis e preservagao do meio ambiente: III ~ observancia das disposigées que regulam as relagées de trabalho; IV — exploragao que favorega o bem-estar dos proprietirios ¢ dos trabalhadores. Por outro lado, a Constituigéo considera insuscetiveis de desapropriagao para fins de reforma agrdria (art. 185): I — a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietario nao possua outra; Il — a propriedade produtiva E relevante enfatizar que, sejam quais forem as suas dimensdes, a pro- priedade produtiva nio esta sujeita 4 desapropriacao para fins de reforma agraria (pode ser objeto de outra espécie de desapropriagdo, mas, nesse caso, integralmente paga em dinheiro, que é a regra para as desapropriacées ordi- narias). Além da vedagdo 4 sua desapropriagao para fins de reforma agraria, diz o paragrafo unico do art. 185 que “a lei garantird tratamento especial 4 propriedade produtiva ¢ fixard normas para 0 cumprimento dos requisitos relativos a sua fungao social”. No caso da desapropriacao para fins de reforma agraria, a indenizagao devera ser prévia e justa, mas néo em dinheiro, ¢ sim em titulos da divida agraria, com clausula de preservagao do valor real, resgataveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissao, e cuja utilizacao sera definida em lei (art. 184, caput). Porém, as benfeitorias titeis e necessdrias serao indenizadas em dinheiro (art. 184, § 1.°). Em relagao a essas benfeitorias, portanto, 0 procedimento obedecera a regra geral de desapropriacao: oferecimento inicial do preco, depésito em juizo, se houver interesse de imissao proviséria na posse, ¢ ob- tengdo da transferéncia das benfeitorias somente ao final, com o pagamento integral da indenizagao. A Constituigéo determina que uma lei complementar discipline o proce- dimento contraditorio especial, de rito sumario, para 0 processo judicial de desapropriagdo (CF, art. 184, § 3.°). Ao amparo desse dispositivo constitucional, foi editada a Lei Com- plementar n.° 76/1993 (posteriormente modificada pela Lei Complementar n° 88/1996), que regulou o referido proceso. Na ac&o de indenizagao, 0 expropriado podera apresentar contestagéio no prazo de quinze dias, mas Cap. 16 + ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 951 nao podera fazer qualquer apreciagdéo sobre a declaracdo de interesse so- cial (s6 poderd discutir questées preliminares e 0 valor ofertado para a indenizag’o). O orcamento fixara anualmente o volume total de titulos da divida agraria, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agraria no exercicio (art. 184, § 4.°). O § 5 do art. 184 estabelece uma hipdtese de imunidade tributaria, afas- tando a incidéncia de “impostos federais, estaduais ¢ municipais as operacées de transferéncia de iméveis desapropriados para fins de reforma agraria”. Desapropriado o imével para fins de reforma agraria, sera entregue pelo Poder Publico ao beneficidrio o titulo de dominio ou de concessaio de uso — que pode ser conferido ao homem ou a mulher, ou a ambos, independente- mente do estado civil, nos termos e condigées previstos em lei. Esses titulos so inegocidveis pelo prazo de dez anos (art. 189). Sobre a politica agricola, que deve ser compatibilizada com as agdes de reforma agraria, estabelece 0 texto constitucional, que, na forma da lei, sera ela planejada e executada com a participagao efetiva do setor de produgao, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de co- mercializagdo, de armazenamento e de transportes (art. 187). Incluem-se no planejamento agricola as atividades agro-industriais, agropecuarias, pesqueiras e florestais (art. 187, § 1.°). A politica agricola devera Jevar em conta, especialmente (art. 187): I — os instrumentos crediticios ¢ fis Il — os pregos compativeis com os custos de produgdo e a garantia de comercializagao; Ill - 0 incentivo a pesquisa ¢ a tecnologia; IV — a assisténcia técnica e extensio rural; V — o seguro agricola; VI — 0 cooperativismo; VII — a eletrificagao rural e irrigacao; VIII — a habitacao para o trabalhador rural. A alienagao ou a concessao, a qualquer titulo, de terras publicas, in- clusive as devolutas, com area superior a dois mil e quinhentos hectares a pessoa fisica ou juridica, ainda que por interposta pessoa, dependera de prévia aprovacdio do Congresso Nacional, salvo se efetuada para fins de reforma agraria (art. 188, §§ 1.° e 2.°). Em qualquer caso, a destinagio de terras publicas e devolutas deve ser compatibilizada com a politica agricola e com 0 plano nacional de reforma agraria (art. 188, caput). 952 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO = Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino Cabe 4 lei regular e limitar a aquisigdo ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa fisica ou juridica estrangeira e estabelecer os casos que dependerao de autorizagéo do Congresso Nacional (art. 190). Por fim, 0 art. 191 da Carta Magna estabelece uma hipotese especial de usucapido, conhecida como “usucapiao pro-labore”. O possuidor de area de terra, em zona rural, nfo superior a cingiienta hectares, adquire sua propriedade, desde que: a) a possua como se sua fosse, por cinco anos ininterruptos, sem oposiga0; b) a tenha tornado produtiva por seu trabalho ou de sua familia; c) tenha nela sua moradia; d) nao seja proprietério de outro imével, rural ou urbano; €) no se trate de imével piiblico. tema Financeiro Nacional Ensina José Afonso da Silva que ha dois sistemas financeiros regulados na Constituigao: a) © pliblico, que diz respeito as finangas piblicas e aos orcamentos (art. 163 a 169); € b) 0 “parapiblico”, denominado pela Carta “sistema financeiro nacional”, que se aplica as instituigdes financeiras crediticias pablicas ou privadas, de seguro, previdéncia privada e capitalizacao. Estudaremos, neste topico, apenas a regulagao do “sistema financeiro nacional”. O sistema financciro nacional é regulado em um tnico artigo da Cons- tituigdo, que foi profundamente alterado pela EC n.° 40/2003. E a seguinte a redagao atual do dispositivo: Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do Pais ¢ a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que 0 compdem, abrangendo as cooperativas de crédito, seré regulado por leis complementares que disporiio, inclusive, sobre a participagao do capital estrangeiro nas instituigdes que o integram. A EC n2 40/2003 suprimiu do texto constitucional a previsdo de que as taxas de juros reais fossem de, no maximo, doze por cento ao ano, conside- rando crime de usura a cobranga acima deste limite. Cap. 16 + ORDEM ECONOMICA E FINANCEIRA 953 O STF havia decidido que esse dispositivo somente poderia ser aplicado efetivamente quando a lei complementar que tratasse do sistema financeiro nacional 0 regulamentasse. O texto original do art. 192 referia-se a uma lei complementar (no sin- gular), para disciplinar 0 sistema financeiro nacional. Como havia discussao sobre a possibilidade de uma lei complementar regulamentar somente parte do art. 192 (original), a regulamentagao acabou nao ocorrendo, porque se temia que, editada a lei complementar, pudesse ser considerada imediata- mente aplicavel a disposigao constitucional acerca dos juros, mesmo que a lei complementar nada dispusesse a respeito. Atualmente, além de ter sido explicitado que o sistema financeiro nacional pode ser regulamentado em mais de uma lei complementar, foi simplesmente revogada a disposigao acerca de limite dos juros, descabendo cogitar de base constitucional para tal imposigao. A lei que regula o sistema financeiro nacional, hoje, 6, basicamente, a Lei n.° 4.595/1964, recepcionada (antes e depois da EC n.° 40/2003) com o status de lei complementar. Cabe lembrar que a competéncia da Unido para emitir mocda sera exer- cida exclusivamente pelo banco central (CF, art. 164), autarquia federal em regime especial, que tem entre suas competéncias a formulagdo, a execugdo, © acompanhamento e o controle das politicas monetaria, cambial, de crédito e de relagées financeiras com o exterior, bem como a organizagao, disciplina, e fiscalizagao do sistema financeiro nacional. O art. 192 determina que o sistema financeiro nacional seja estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do Pais e a servir aos inte- resses da coletividade. Essa regra vale para as instituigdes publicas ¢ também para as privadas, coadunando-se com os principios gerais da ordem econdmica, estudados anteriormente. As cooperativas de crédito, conforme expressamen- te estatuido no art. 192, integram o sistema financeiro nacional. O Supremo Tribunal Federal ja decidiu que 0 Cédigo de Defesa do Consumidor (CDC) & aplicavel as relagdes entre as instituigdes financeiras e seus usuarios. Entendeu a Corte nao haver conflito entre o regramento do sistema financeiro ¢ a disciplina do consumo e¢ da defesa do consumidor, haja vista que, nos termos do disposto no art. 192 da Constituigao, a exigéncia de lei complementar refere-se apenas 4 regulamentagio da estrutura do sistema financeiro, no abrangendo os encargos e obrigacdes impostos pelo CDC as instituigdes financeiras, relativos 4 exploragao das atividades dos agentes econémicos que a integram — operagdes bancarias e servigos bancarios —, que podem ser definidos por lei ordinaria.'° "ADI 2.594/DF, rel. orig. Min. Carlos Velloso, rel. p/ 0 acérd&o Min. Eros Grau, 07.06.2006. 954 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino A participagdo do capital estrangeiro nas instituigdes que integram o sistema financeiro nacional deve ser regulada mediante lei complementar, com vistas 4 determinagao de que este atenda aos interesses da coletividade € promova o desenvolvimento nacional equilibrado (poder ser uma, ou mais de uma, das leis complementares que devem regulamentar o art. 192). Todas essas regras permitem afirmar que, pelo menos em tese, o Estado brasileiro possui respaldo juridico para intervir fortemente no sistema finan- ceiro nacional com o fim de assegurar que ele cumpra a sua fungao social, constitucionalmente estabelecida.

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