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A PALAVRA MAGICA DZI: UMA RESPOSTA DIF{CIL DE SE PERGUNTAR - a vida cotidiana de um grupo teatral - Rosemary Lobert Dissertagdo de Mestrado em Antropotogia Social apre- sentada no Departamento de Ciéncias Sociais do Insti- tuto de Filosofia e Cién- cias Humanas da Universida de Estadual de Campinas. - 1979 - a Gilles Em primeiro lugar gostaria de agradecer ao meu orientador pro fessor Peter Fry e aos professores Antonio Augusto Arantes Ne to e Verena Stolcke, do Conjunto de Antropologia, que me per- mitiram desenvolver este trabalho dentro de meu proprio ritmo e enriqueceram a compreensao do material dedicando varios mo- mentos de seu tempo as discussdes frutfferas. Meus professores e colegas do mestrado de Antropologia da UNICAMP, também contribuiram em varias oportunidades para o desenvolvimento deste trabalho com seus comentarios. Marisa Corréa, Liicia Sabéia, Anne Chapman, Plinio Dentzien, José Carlos Sabéia e Haquira Osakabe, sabem o quanto foi im- portante seu apoio, intraduzivel em palavras. Os Dzi Croquettes nado foram apenas tema desta pesquisa mas companheiros constantes neste longo perfodo de trabalho. Sua forga e alegria foram muito importante como experiéncia de vi da. Entre seus amigos mais proéximos Lycia, Wagner M., Miche- line, Fernando, Verona, Vera M., Monica, Vera F., ReginaJor ginho, Francine e aqueles que foram mais tarde Dzi Croquettes, todos contribuiram, cada um 4 sua maneira, para o andamento da pesquisa de campo. Como se vera no texto a lista é muito longa. Dona Selma Niemeyer e Claudine Ducos me proporeionaram um lu gar aconchegante para trabalhar em varias etapas da pesquisa. Muitas fotos sdo de Aloisio que infelizmente nado estd mais aqui para receber pessoalmente o agradecimento A sua contri- buigdo. Gilles Barué fotografou incansavelmente nas horas mais extravagantes. Claude Gelber me ofereceu seus negativos sem nenhum egoismo profissional e com a maior boa vontade. Er- melindo Tadeu Giglio e Gilles Serrigny gastaram algumas ho- ras comigo oferecendo seus conselhos profissionais. Maria Luiza Fioretti desde o comego da pesquisa ajudou a trans formar manuscritos ininteligiveis em textos legiveis. Lour- dinha Serra fez o mesmo com a versdo final, com a ajuda de So~ lange. Finalmente, agradego & FundacSo Ford que financiou parte des~ ta pesquisa. fi impossfvel lembrar aqui pelo nome todas as pessoas que de uma maneira ou de outra foram extremamente importantes nesta longa trajetéria que € a produgdo de uma tese. Elas certamente saberado reconhecer-se em varios trechos deste trabalho. Introdugao I. 0 Espetaculo 1. Um ponto de partida 2. A ambiguidade em trés plano II. Vida e Teatro (Wida) 3, Inrupgo de Possibilidades: 0 projeto do grupo: (Teatro) 4. 0 Fixo que muda: o texto 5. 0 m@vel com as aparéncias do fixo: a danga 6. Infiltragdo do moével no fixo: roupas e personagens TIT. Os Tietes 7. O que @ um tiete 8. 0 tiete mesmo 9. A familia e os tietes 10. 0 lado apoteético do espetaculo ou a nova cabega sem pé no chao (Conclusdo) Dzi Croquettes versus Piblico (Guerra. as classifica- gdes: o andrégino?) (As notas estado no final de cada capitulo) ol 27 50 69 78 8B 89 109 126 ay ins 158 169 187 209 INTRODUGCAO "Muitas gente tem perguntado o que vém a ser Dzi Croquettes, E vocés saberdo dentro de pouco a tradugdo Ator 1: flo artigo definido. B aquilo que define Ator 2: f tudo. 0 que esta para frente inclusive, Qs fardis do carro. 0s seios feminos. Eu disse feminino. Cie) Ator Ator Ator Eteee Pega D&I CROQUETTES (Boate Monsieur Pujol, R.J., 1972). Profusio e simultaneidade de respostas alternativas ofereci- das por alguns atores em cena, que em suma, nao explicitariam nada seniio confundiriam mais ainda a platéia ansiosa de com- preender o discurso ético e estético da peca que assistem. A necessidade da explicagao do nome Dzi Croquettes durante a exibigao da obra - a ecaréncia de resposta precisa - aponta somente para a proliferagSo de perguntas colocadas sobre um grupo de quatorze atores ao longo de sua carreira artfstica, por seu piiblico e por mim que convivi intensamente com eles. 0s atoves por derivacZo levavam o mesmo nome da pega. ‘Apre- sentaram-na a partir de 1972 nos palcos de Rio de Janeiro , S30 Paulo, logo na Europa em Lisboa, Paris, Turim, Mildo e finalmente de volta ao Brasil até Margo de 1976. Em 1972 est&vamos no auge da repressZo polftica: a censura, o medo, a violéncia, a desconfianga eram nossos companheiros cotidianos, ainda que nunca aflorassem diretamente quer nas conversas informais, quer na imprensa, No teatro, o clima de inseguranga era constante; até o Giltimo momento nfo se sabia se uma pega seria permitida ou proibida na sua Integra, 0 teatro era visto mais como um lugar subversivo, em termos po iiticos, do que como um espago de produgdo de cultura. # nes se momento que surgem os Dzi com uma proposta contestadora das categorias sociais vigentes fantasiada de purpurina, flo res e paetés. Este trabalho pretende analisar o universo das propostas deste grupo na suposig&o de que apenas um conjunto de andlises deste tipo poderd nos ajudar a entender o que foi este perfodo que ainda nem acabamos de viver. 0 espetdculo apresentado pelos Dzi era a expresso pilblica de um projeto de vida e teatro dindmico que se formulava, desfigurava, e reouperava sem fim, no curso do tempo e como vesposta pratica a uma série de fatores internos e externos, A formula adotada exigiu de seus préprios autores-atores a continua manipulagao dos princfpios que estruturavam a pe- ga, fundamentalmente ambfgua; da organizagao da sua vida co- munitaria e das estreitas relagdes mantidas com parte de seu ptblico. Apreender analiticamente esta complexa dimensdo @ a tarefa desta dissertagZo,pela aparente singularidade do tema convem abordar primeiro o histGrico dos atores e da pega que representam para logo apontar os critérios de estudo. A histOria Dzi Croquettes se inspira numa brincadeira en ca, sa de'Wagner (Santa Tereza, R.J.). Nascido em Bebedouro ($. P.), artesdo de couro ¢ dono de uma butique , com 38 anos de idade na época do surgimento da peca, Wagner jase ti- nha matriculade na faculdade de Filosofia e Medicina para op tar finalmente pela Escola de Belas Artes e o Conservatério Nacional. A amizade @ 0 eixo fundamental de vecrutamento do grupo que formariam. Consolidada no meio estudantil, cone 1 ta com Roberto de 28 anos, criado no Ric de Janeiro,ex- no de colégio militar e empregado bancdrio, estudante de Be las Artes e Claudio G6. de 28 anos, carioca bolsista do Con- servatério Nacional. Conélufdos os ‘estudos, mais do que in- filtrar-se na classe artistiea ou achar safda nela, a expe- riéneia frutifica privadamente. Acompanhados de imensa fan tasia ensaiam personagens ficticios, se disfargam ede fa- zé-lo descobrem as riquezas e sutilezas da vepresentagao ca nica. Wagner escreve textos teatrais que os outros comen- tam e transcrevem. Foram dez anos assim. A 8 de agosto de 1972, Wagner desiludide com suas aventu- ras comerciais (a butique) e em procura de uma solugdo exis- tencial encontra apoio em Reginaldo e Bayard. 0 encontro casual, mas rotineiro, num bar de Copacabana (R.J.) que cos timan, frequentar, registra-se nas memérias como data de ba tismo de um projeto de vida e teatro que se chamaria Dai Croquettes. Com uma resposta mais coerente com a circunstan cia, entre as miltiplas versdes da escolha do nome da pega a explicagdo seria: "Eu sempre curti muito a pronome inglés the, também poderia sep o 28 portuguds. E como a gente no bar comia croquettes, porque n&o batizar o grupo Dzii Cro- quettes™. Reginaldo, de 23 anos, devotado ainda a ternos e gravatas, trabaiha no escritério de uma companhia de aviegao. Estava vineulado ao meio artistico por seu irmao Rogério de 20 anos que, tendo sido cantor de auditério na radio e tendo feito pontas em filmes e pegas de teatro se juntaria também ao grupo. Ambos de Miracema (R.J.) levaram até entio vidas totalmente diversasto cagula fugiu varias ve zes de casa e foi um displicente aluno do secundério, ° mais velho, desde sua infancia, costumava intrometer-se nos negécios de seu pai e seu tio, Quanto a Bayard, de 24 anos, gaiicho, encerrou no terceiro ano sua carreira de arquiteto para ser modelo fotografico e ator de ocasido ao transladar se para S80 Paulo e Rio de Janeiro. Wagner: "Era nossa necessidade de trabalhar em alguma coi~ =. vaon4 $a que enchesse nossas préprias medidas". Podeviam formar um grupo, fazer teatro, misica e tambem montar uma butique, um pouco de tudo e muita imaginagao u- nindo “o Gtil ao agraddvel", alugando uma boate na Lapa (R. gee Claidio G.: "Fomos ensaiar 14, mas tinha mil grilos porque a gente nfo tinha dinheivo. A gente falava com a dona da boate, ela transando, badalando a gen te, mas sempre arrumava grilo porque a gente ia gastar luz, agua. Ai a gente resolveu comprar a boate por (.-). Ja éramos oito, nfo doze. De- pois a gente ficou oito. Tinhamos que dar si- nal, ninguém tinha. Foi uma virada dura e mui- tos se arriscaram". Para Paulo, de 18 anos, a oportunidade apresentou-se na e- poca que frequentava Santa Tereza, Carioca, desde ha tempo vodava nas estagSes de televisio. Entre suas atividades de “pelagdes piblicas", uma delas era vender as roupas de coun vo de Wagner aos artistas de televisdo."Paulete sempre foi muito engragado e dai a gente chamou le" conta ainda cidudio. Ciro, de 19 anos, gaticho,teria a seu favor suas au las de danga. Sem completar seu ginasial, fugiu de casa quan do 0 espet&culo "Hair" visitava Porto Alegre. Em Sao Paulo se via recolhido por um artista conhecido e futuro componente do grupo, que o levaria ao Rio de Janeiro como “namorado" .A~ 1f, no mundo do teatro e amizades, de preferéncia masculinas, conhece Rogério e Bayard que o introduzem em Santa Tereza. Proposta teatral, ou melhor, ainda naquele tempo com preten sdes de ser um "conjunto musical", exploram-se e desdobram se as "antigas brincadeinas de casa". 0 teste das capacida- des artisticas de cada participante vai no humor e na di versio. Para combater a "timidez, depressdo e os problemas psico-sociais" improvisa-se um (auto) "grupo de analise". I- déias e ideais sobre a concepgao de vida e probabilidades de mercado de trabalho, fixam a trama: "oitoe caras,dengarinos, pintores, misicos, nés, de repente auto-marginalizados do trabalho tradicional de teatre, procurando um meio de coma nicagdo. A partir de um determinado momento, passamos a cur tir uma vida ‘underground’ no sentido mais profundo"’ 0 bom e surpreendente produto caseiro de alguns nimeros e muita roupa, maquilagem e purpurina - estilo totalmente ing vador naquela época sendo que mesmo a utilizagdo de adere- gos teatrais estava hd tempo fora de moda - sdo o suficien- te para um primeiro contato com o piblico em duas espécies de pré-estréias num clube de Niterdi e num programa de te~ levisiio de Flavio Cavalcanti (R.J., outubro de 1972). Mas nem por isso ag expectativas levam~se a cabo: no mfnimo fal tava-lhes a independéneia econdmica: Claudio G.: "Nao sei se a dona da boate pensou que a gente era pica, af quis o dobro. Largamos a boate ¢ continuamos ensaiando, procurando um pouco aqui © um pouco alf. Até que a gente comegou a fazer “aulas com Lennie. 0 Ciro trouxe @le, transava com éle e fazia danga". Entretanto voupas e maquilagens, animagZo e dinanismo fervo roso foram o meio eficaz para atrair o futuro coreégrafo do grupo e interessar o empresaric da boate onde este trabalha ya. 0 encontro deve-se a uma situagdo que se repetiria por muitas vezes em outros contextos: “@les nem viram o que a gente sabia fazer, a gente estava se arrumando (com as fantasias) e desbundaram".- A histéria Dzi Croquettes torna-se pilblica e garantira seu futuro com a adesdo do Lennie. De fato o grupo inicial ti- nha a fungSo de preencher o tempo supérfluo do programa da boate, 3 espera da 'estrela’ principay. Mas esta, Lennie , anexaria seu nimero artistico com o outro e adotaria o esti lo de vestudrio escolhido pelos primeiros. Lennie, de 38 anos era figura conhecida do piblico brasileiro como 2 vem mais ou menos comportado qe danga na televisdo e nas boates quase sempre vestido de branco. Nasceu no Brooklyn (Nova York), filho de imigrantes italianos e¢ comegou a dan- gar acs cinco anos de idade. Tendo completado seus 18 anos e participado da pega teatral "West Side Story", segundo & le, quis: "Viajar pelo mundo todo. Brasil pra mim foi uma parada dura (referSneia ao comego da d&cada dos anos 68) . Logo me apaixonei por tudo. Acho que foi o destino conhecer o Brasii"® ou ainda "Voed sabe, que apesar de tantas coisas que aconteceram na minha vida, como todo mundo sabe(...) es te espetdculo @ uma das coisas mais maravilhosas de minha vida"? A razdo segundo outro Dzi Croquettes, @ que: é1e estava no Fant&stico (programa da rede Globo de televisdo } que fa acabar e porque nao tinha nada a perder, ninguém ti- nha nada a perder. Ble sd podia estar com a gente porque é muito louco. X e Y (eantores jovens de renome) nao fariam isso de juntar-se a um bando de gente desconhecida" .Digamos que pelo menos viu como renovar um estilo e resolver o des. tino de bailarino, enquanto os outros aproveitavam a brecha para afirmar-se no meio teatral- 0 estilo estético adotado cria certos receios. Lennie com sua grande experiéneia de confrontag&o com o piblico confes sat "No comego eu estranhava terrivelmente. Faltava-me a es pontaneidade déles. Para por um espartilho e fazer uma rum~ peira eu precisava de cuca desses meninos". Os atores cria vam vestudrios transgredinde todos os padrées socialmente co nhecidos até entdo sejam tradicionais ou de fantasia. Mas a vessonancia simbdlica apontava sobretudo para o confronto de corpos maseulinos em roupas supostamente femininas. 0 flagrante constrangimento de apresentar-se assim- postura compreensivel numa scciedade que tradicionalmente preservou co 'machisme' - ia por@m de encontro a um complexo de expec~ tativas piblicas, préprias ao tempo que viviam, Sen diivida j& sensibilizados, informados com os movimentos das chama ~ das 'minorias' especialmente nos EVA e na Europa Black-Power, Women's Lib, Gay-Power, ete.), a adesdo pilblica 4 peca Dai Croquettes foi quase unanime. Dito de passagem e voltando a escolha do nome, os Dzi, se adiantam 4 critica, posto que nalgum momento poderiam acusd-los de ter plagiado a idéia do espetdculo do mesmo género de um grupo norteamericano The Cockets (Califdrnia, 1970)” Na verdade, 86 tinham um — vago conhecimento daquele grupo. A aceitacao pilblica local jun- ta-se o fenémeno de, 4 faita de outro termo, conversdo 4s idéias e valores veiculados pelos atores por parte da juventude paulista e carioca. 0s Dai apelidariam seus segui doves de tietes. Claudio T, no comego era deles: "o espetaculo era tudo o que eu queria na vida, ia todos os dias". De 23 anos, do Espiri- to Santo, pds-graduado em arquitetura, bolsista na It&lia, com alguma experiéneia de cenarista e desenhista de pegas de teatro e novelas de televisdo, teve o destino feliz de 9 en- tran no grupo: "fiquei mais amigo deles e un dia me convida- vam a entrar no espetaculo", Foram também deseréditos. Alguns componentes (nao citados a qui) desistem: "eles nfo aguentaram a barra da gente",E ou~ 7 tros apés ter-se afastado voltaram, como Bené. Claudio G.: "Ben8 era uma louca, fazia porra nenhuma, ficava ai de bobeira na rua, na praia dando bandeira, a quela coisa. Daf entrou para transar com a gente numa boa, Lo go resolveu ir embora, n3o queria mais ficar.Quan do chegou na Bahia (onde moram seus pais) depois de um tempo escreveu que queria voltar, estava & vependide, A gente disse que podia voltar s6 que no entraria no show, j& tinhamos estreado, ele ficou de camareino. Af avs poucos entrou”. Como curriculum, Bené caricea, de 24 anos, trazia na sua ba gagem trés anos de Escola de Administragdo, alguns cursos de economia politica, experiéncia de empregado bancdrio e u ma série de trabalhos avulsos para sobreviver um ano na Eun ropa. Na boate Mr.Pujol os atores comegaram trabalhando como assa lariados. Com as ralas poupangas, seus figurinos e uns em- préstimos individuais compartilharam a produgdo do espetacu lo junto aos dones da boate. Mas no contexto do sucesso,sua paixa renda individual comparada aos altos lucros da boate devido-ao prego do “couvert-artistico" que, salvo o Lennie nenhum deles recebia, estimula-os a procurar novos destincs apés quatro meses de trabalho (R.J, Dez, 1972/73 - Margo) . Tendo em mios apenas com que pagar sua passagem de * trem, transferiram-se para $30 Paulo. Sem muita vaniagdo no setor econémico foram mais trés semanas de trabalho na boate pau- lista Ton-Ton (Margo 1973). Novos atores integram-se a0 grupo, desta vez selecionades com alguma experiéncia tea- tral mais assentada, até chegar ao nimero de quatorze compo nentes, sendo que se apresentavam publicamente como treze.0 Wltimo a entrar seria o novo 'camareiro' se bem que nos in- tervalos desta tarefa conquistaria espago na representagdo teatral. Entre os novos componentes conta-se com Carlinhos. De 29 anos, carioca, velho amigo de Lennie por terem dan= gado juntos dez anos atrds, tinha feito carreira prépria peteorrendo a Europa com o grupo "Folklérico Brasiliana"com posto segundo ele, "sd de crioulos", Jarbas, de 40 anos, paulista, também adere: "no verdo, na praia eles me chama- vam de vovd, tinha muita afinidade como trabalho deles e entrei em 30 Paulo". Advogade diplomado sera publicamente conhecido como barftono em desempenhos de misi, ca de camara ¢ tinha sido premiado na Europa, A composigao do grupo se fixara definitivamente, pouco tempo apds, com a incorperagdo de Eloi. De 22 anos, chegava de Bauru (SP) com uma experiéncia de "teatro de famflia" por ter trabalhado dois anos com o geupo "Transa Nossa", Insfpidos como temas, num clima que ferve do arejo do novo estilo de vida, da agitagao frenética e do sucesso imediato, os histGricos de vida pessoais se dispen- gam nas conversas entre eles ou com seu piblico. Quando exigides para satisfazer a curiosidade da imprensa ou a minha, por exemplo, insistem na troca de carreiras estudan~ tis, das profissdes anteriores ou a antiga posigdo artisti- ca. A indiferenga com que se deixam especializagdes de grau tercigrio ou carreiras artisticas de prest{gio ndo indica necassariamente uma dissonfncia com o passado, A valoriza~ go da experiéneia atual além de alimentar-se na "curtigdo", no "deebunde" ~ por apoiar-se num modelo sdcio - existencial mais adequado a necessidades sentidas pelos atores - incide diretamente no contefido sScio-simbdlico profundo de sua pro- posta, 0 diseurso de auto - apresentagao enfatiza voluntaria mente que se trata de um grupo que primeiramente evitou os enquadramentos classificatérios usuals ou conhecidos. Assim como o grupo atraiu experiéneias e graus variados de estudo ou profissional, ndo criou barreiras, fossem elas de idade; de cor nos padrées tradicionais brasileiros, de nacionalida- de ou, sutilmente, de lugar de procedéncia estadual; ou, ainda, de camadas sociais - se fdsse definido pelo status profissional ou poder aquisitive dos pais - porque se uns eram filho de barbeiro, pai de santo, professores primarios, bicheiro, gerente de cinema numa cidade do interior, outros evam filhos de militares de carreiva, investidor na bolsa de valores, sem faltar o filho de uma. das chamadas “famf- lias tradicionais paulistas". Como coroagZo desta negagio & afinidades dteis para a classificagio social, proporiam ima gens, sfmbolos sociais e estéticos questiojando também os géneros sdciossexuais conhecidos'e utilizados naquela época no Brasil. Por tratar-se somente de atores masculinos, uma pergunta ou paradoxc jd se coloca sobre esta dltima proposi, g80. N3o a abordaremos imediatamente mas € necessdrio indi- car - j2 que & fora do aleance da dissertagio esgotar esta 10 parte da realidade ~ que o limiar do grupo sempre foi rodea do de mulhetes. Algumas deias pertenceram ao grupo princi- piante mas por razées pessoais (ou casuais) nunca estrearam. Ea presenca das outras serd mencionada na continuagdo do historico dos Dzi. Da boate Ton-Ton (S.P.) a supressao de uma pega em cartaz con cede-Ihes lugar no teatro Treze de Maio, no mes de Maio de 1873, 0 evento imprevisto traz consigo resultados diversos de import@neia fundamental, Pela primeira vez, localmente, un grupo de homens suspeitamente "travestidos", isto @, utilizan do em seu vestudrio pegas convencionalmente destinadas ao gé- nero feminino iprompem num teatro (economicamente) reservada a classes burguesas com preccupagdes intelectuais em vez de alojar-se nos teatros de segunda categoria ou nas boates,lu- gar destinado Squele tipo de espet&culo. Para orientar o es- pectador, os Dzi Croquettes sempre anunciaram nos classifica- dos da imprensa (chamados tijolos) seu espetdculo como sendo um “show de travestis", NZo obstante, naquela época respon- dem também ao apelo do piiblico que os tinha classificado de “andréginos", variante mais florida (e aceitdvel) para o es- tilo est@tico que apresentavam. Da fase Underground ou tam- bém chamada Dat Croquettes 1’ Internationale” (nome inicial completo) coprespondente as boates Mr. Pujol e Ton-Ton (dez. 1972 - Abril 1973) passam a fase Andrdginos:gente computada igual a voeé, 0 espetaculo continuamente agitado por mudan- gas internas faz honra ao novo sub-titulo ad pega reservando a uma sequéncia o lugar central para discutir o tema. © Teatro Treze de Maio (S.P. Maio ~ Novembro de 1973) garan te-lhes também a independéncia.Econdmica Os atores for- mam comerciaimente sua prSpria Firma Teatral (Grupo Treze) . a entram na Firma como sécios num mesmo pé de igualdade, sal- vo Eloi que ainda nZio se integrou ao grupo. Dos lucros se fazem generosos saldrios, do excedente guardado em fundo co mum se empresaria a pega protegendo-a com ampla cobertura pu blicitaria. A euforia do sucesso confirmada dia apds dia pela ades&o de’ um numeroso piblico os leva primeiro a promo ver, logo a produzir uma nova obra teatral de autoria conjun tunta: "As Fadas do Apocalipse"™. 0 objetive @ alargar o gru po (ou como também se apresentam: a familia) e langar a ver sio feminina da pega Dai Croquettes, Mas por ser as "Fadas do Apocalipse "um grande fracasso comercial e na manutengdo por alguns meses de uma casa para alojar as vinte mulheres (Dai Croquettes) do novo elenco, og atores acabam trabalhan do todo o ano seguinte (1974), Salvo esta curta temporada & prosperidade econdmica, o resumo histérico dos Dzi, nesta matéria, assemelha~se doravante ds aventuras de Candide ins piradas por um Pangloss imagindvio: "0 dinheiro vird algum dia". Fara atravessar o pouco promissério horizonte pecunidrio e poder estrear no Rio de Janeiro, envolvem-se num empréstimo financeiro privado, mas de altos juros. Nem acabam de es~ trear no Teatro da Praia (Fevereiro-Julho de 1974) e no meio de seus compromissos véem sua pega, por um mes, censu- pada pelos G6rgdos oficiais. Na mesma @poca, apds um ano de trabalho, Jarbas desprende-se definitivamente do grupo agravando a situagao. Como se o tivessem adivinhado a compo siglo do grupo se apredonda para o niimero de treze atores . Cada um dees assume parte do papel teatral do dissidente e cultivam com fervor sua obra teatral enriquecendo-a das dtlimas experiéncias. Neste perfodo, a fase Andrdgino: gen~ te eomputada igual a voed vagavosamente cede o lugar a fase 12 Dat Familia Croquettes (Teatro da Praia, R.J. fevereiro-Ju- Iho de 19743. Entre outras coisas, incorporaram algunas idéias e motivos estéticos das "Fadas do Apoecalipse". © En- tretanto, como se previnindo de uma nova submissdo 4 censu- ra oficial, preparam uma viagem para Europa que se realizaq v& apés terem pago suas dividas. 0 més de Agosto de 1974,de volta a $30 Paulo e instalados no Teatro Maria Della Costa, marca o fim deste esforgo, A renda de uma sesso do espet@culo vendido avulso a um clu be de Santos financia-Ihes a passagem para a Europa. 0 lei~ 180 de seus pertences, seu cendrio e o aparelho de som, as- segura-lhes uma curta moradia em Lisboa na auséneia de um contrato artistice ¢ de planos definidos. Num Portugal car- regado de preocupagdes polfticas internas, os Dzi albergam, coma podem e pela terceira vez seu espetdculo numa boate Frou-Frou que lhes garante apenas a sobrevivGncia (Set,-No- vembro de 1974), Os problemas que enfrentariam na Europa por serem um grupo teatral 'independente' e sem contatos importantes sdo tanto um mercado preso por empresdrios poderosos, quanto um siste ma de teatre programado com um ano de antecedéncia, signifi cando a caréneia de paleos vazios. Mais mal que bem em maté via de dinheiro, transladam-se para Paris no fim de novem - bro de 1974, Seu padrinho, como empresdvic de ocasido, se bem que total- nente fora do assunto, serd wn americano de boas vendas.Ing talam-se no Teatro de Rochefort de reputacdo decaida, Re- constrosm seu cendrio, equiparam-se de um novo aparelho de some vrecomegam os ensaios. Estréiam em dezembro de 1974 com 13 um contrato de seis meses de trabalho o que nos leva ao més de Abril de 1975. Com grande esforco e inicialmente lu- tando contra uma imprensa que lhes condedia menos do que pouee espago nas colunas de jornais conquistam seu piiblico com ovagao geral. Aqui, como em Sdo Paulo outrora, na al- tima representagdo teatral o pliblico apinha-se na rua que- rendo entrar no teatro lotado. Mas, a falta de um local de trabalho os encaminha para outro rumo geografico, implican- do nuna variagdo moment&nea de sua proposta. 0 desconhecimen to do mercado de trabalho europeu somado 4 opinifo de alguns componentes do grupo de que empresdrios alemies que se ofe- recem 6 a methor safda, os leva para a Italia, Trabalham um peuco no Teatro Odeon de Mildo (Abril de 1875), outro pouco no Teatro Erba de Turim (Maio de 1975).Quando menos atinam véem-se abandonados pelos empresdrios, com dfvidas novas de cendrio, sobrecargas de hotel e outras despesas ndo previs= tas, Sem diminuir seu Anime assumem suas dfvidas traduzindo este rigor econémico em forga criadora onde se esboga cada vez mais a nova fase que trai as vafzes brasileiras. Expres sada no sub-tftulo atual da pega, Troupe Brésilienne , a fase tera seu auge de volta a Paris. Por causa da morte inesperada de Josephine Backer sdo convi dados de urgéncia no Teatro Bobino que ela ocupava. Apesar do bom encaminhamento da pega mas sem conseguir um reajuste das normas do contrato de trabalho, abandonam a sala (Paris, Junho e Julho de 1975), Confinados a recompor tudo de novo, ou seja, cendrio, ensaios e proeurar um teatro, os atores se dispersam para férias européias. Durante esses meses alguns contratos para outres confins do mundo (Jap3o, Bélgica, Ca- nada) nfo se levam a cabo. Sera a pedidos da radiowtelevisao 14 alema alugando-lhes o Teatro Hebertot, de Paris que o grupo se recupera (Outubro de 1975). Sendo tema de um filme de longa-metragem apresentam por filtima vez a pega nessa cida- de, Saudosos do Brasil, sem todo o dinheiro no bolso, mas em mos de um advogado que perderdo de vista, voltam 4 terra natal (novembro de 1975). A diffeil estrék da pega no Teatro Castro Alves de Salvador na Bahia - por trés vezes consecutivas censurada na pré-es~ tréa- se encerra com uma violenta crise do grupo (Janeiro de 1976), Ela desencadeia a separagao de Lennie, Ciro, Car- linhos e logo em seguida a de Ben@ (Janeiro de 1976), 0s no ve atores restantes se transferem para o Teatro das Nagdes, de SSo Paulo (Fevereiro de 1975), Nesta altura o nome D2i Croquettes ja esta suficientemente ancorado no contexto,sig nificando um estilo teatral e grupo especffico, que nao exi- ge mais as antigas explicagdes para sev piiblico e que reifi ca o enigma de seu sucesso inicial: "A palavra migica Dai (texto da pega). No entanto a magia desta palavra nio basta, Por um lado a desintegracao do grupo que se reflete na sobrecarga dos pa- péis teatrais a serem preenchidos, a falta de novos ensaios, a experiéncia a exigéncia de uma estrdéa imediata devida a falta de recursos econémicos (razio mais forte da destruigdo da unidade dos atores) foi uma base precdria para essa no- va estréa, Por outro lado, a pouca afluéneia do piiblico ao teatro em geral nos meses de vero paulista e a — surpresa deste mesmo pequeno pilblico deseoncertado com a transforma~ cao, levam ao fracasso comercial, Os Dzi comagam = a de~ sacreditar de sua fSrmula e encaram seu destino em ter- mos de uma nova pega: Romance?! Durante a encenagio no 1s ‘Teatro dag Nagdes, a auséncia acidental de dois atores os leva a convidar trés mulheres (ex-Dzi Crequettas) como subs titutas. Nas trés semanas restantes da Ultima apresentagao publica da pega Dai Croquettes, seus ralos lucros servem ainda para pagar as novas dfvidas do grupo: - ") Gltimo fica com tudo! diz um - "0 que, com as dividas? Pergunta outro - "passamos anos pagando elas, falo do resto" = "oO que? Um monte de roupas, perucas, panos e ainda por cj, ma sujos!" e, vindo acrescenta: "Mas acho que era isso o barato da gente!” 16 0 candor de um Dai Croquette para pensar que talvez a expen rigneia vivida, vica ¢ eolorida, vibrante de energia, calga~ da numa fantasia permeada de realidades e também de tensdes, sofrimentos e decepgSes se deva a um par de andrajos fora do moda, j% indica como os atores se envoiveram nos acontecimen tos. Eles responderam mais de maneira pratica, e menos pela veflexdo, a uma série de fenémenos sociais, sejam eles seu sucesso imediato, a adesdo constante de parcelas de seu pil~ blico que se transformavam em seguidores, ou a varias — con~ junturas e mesmo um determinado momento histérico no Brasil (ainda que nado analise o tema). Poucas vezes, uma expresso comum mas colocada pelos prépries atores - "Eu tenho a impressdo de saber de tudo e ao mesmo tempo nfo sei de nada do que se passa” - define t3o pertinen temente o universo de estudo, bombardeado diariamente pelas mais variadas e miltiplas respostas praticas. Em suma, estas respostas nio derivam de uma postura anteriormente definida @ programada pelos atores, mas de uma dinamica de acfo estim: lada a partir das circunstaneias, Se a histGria de um dia se~ ria diffcil de ser resumida pelos préprios agentes sociais , nfo o seria menos para um observador. E, @ aqui que comega o problema da andlise. Em primeiro lugar, como retranscrever o contexto pesquisado pretendendo certa fidelidade aos princfpios da mais elassi- ca etnografia da qual Malinowski nos dava o exemplo? (1922), Como passay para o leitor asse universo floride e compiexo~ questSo que levou o antropdlogo polon&s a escrever varias o- bras sobre um mesmo grupo social na tentativa de nao crista- lizay a dinamica da vida trobriandesa. Em segundo lugar, se impde o dilema analftico, ou seja, en- quanto pesquisadora, como dar-me a tarefa de descobrir a per 17 gunta central que estava por detras da irrupg3o de respostas due organizavam as propostas dos atores. © objetivo princi - pal, como o de qualquer antropSlogo, era descobrir o sistema conceitual que ordenava a vida desse grupo. De fato, desema~ vanhar cédigos sociais, desenhar grelhas analfticas para cir cunscrevar os elementos chaves que organizavam a vida cotidi ana dos atores, os significados sécio-simbélicos relevantes de sua apresentagdo teatral. Se posicionar frente ao mundo. A observagao participante de pelo menos cinco anos resulta - via porém numa frustragdo permanente frente a fluidez em to~ dos os niveis de atuagdo dos Dzi Yalvez eonvenha ip mais a fundo desta questZo analitica dan- do um exemplo conereto, Diz respeito as hipSteses iniciais do trabalho. Vi pela primeira vez o espet&culo Dzi Croquettes em Maio de 1973, Naquela época parte de seu piblico, a imprensa, j2 ti nham selecionado alguns significados simbélicos da represen- tacdo teatral posto que ela estava com quase oite meses de vi da. A opiniio piblica privilegiava e centrava sua atengdo sq bre uma determinada categoria simbélica encenada na pega: o “andrdgino". Em suma, era uma proposta de transgressio as ca tegorias e géneros sexuais (prescritos ou nZo) usualmente co nhecidos e definidos no Brasil}7adiantemos que a ousadia dos atores masculinos em incorporarem na sua indumentdria teatral, roupas tradicionalmente reconhecidas como pertencentes ao gé- nero feminino pedia trazer de reboque o pantedo de significa do contextualmente negativas atwibuldas a tal empreendimento. Neste Angulo a intengGo de escolher, por exemplo, como tema central de estudo a construgio social das categorias sexuais parecia sugestiva. De fato tal abordagem nfo seria inteira - mente descabida pois, numa Epoca em que a repressSo polftica e cultural chegava a seu auge, chamava a atengZo uma pega ~ teatral que parecia colocar em questdo os preconceitos funda mentais da ordem reinante no pafs e que aparentemente girava torno da "androginia", A expectativas analfticas subjacen tes eram no mfnimo duplas, Por um lado, © suposto era que os atores por meio de sua representagSo teatral e pela introdu- gdo da categoriavandrégino"procuravam ou pretendiam estabele cer para si mesmos uma nova identidade social. Por cutro,que os atures nao poderiam manter a mesma proposta de transgres~ sho as categorias socicsexuais na vida cotidiana como 0 fa ziam no teatro devido a press e confinamento que provocam os valores sociais dominantes. Contrariamente As minhas expectativas estas suposigdes prema turas foram desafiadas e desmentidas de diversas raneiras na pratica social dos atores. No mfnimo digamos agora que resis 18 tiam de maneira tenaz As pol€micas e partidarismos criados em torno deles. Tentei aproximar-me destas questdes - entre outras ~ mas acredito que a pergunta principal sé ficou cla- va apds ter percorrido varios caminhos abertos pela pratica sq eial dos Dai. A rigueza do conceito de pritica € enfatizado por J. Kriste~ va que em parte reedita idéias hegelianas. Falando do discur so literdrio e teferindo-se especialmente a Mallarmé, Joyce, Kafka e Artaud, a autora nos aproxima de sua nogdo tedrica de prdtica. Diz ela: "Seus escritos subvertem o cddigo ideoldgi co (mitemas familiares, religiosos, estatais) ao mesmo tempo que o eédigo da lingua (garantia Gltima da unidade do sujei- to). Uma subversSo que € uma prdtica e nao uma derivagdo,por que ela formula néo uma nova linguagem (no sentido simbélico, tético), mas uma rede simbdlica que @ 9 suporte imediatoe de 8 um pitmo semiético no qual se decifram por um lado o corpo in finitesimal (subjeto e objeto ao mesmo tempo), por outro lan do e ao mesmo tempo os codigos naturais, ideolégicos, politi cos miltiplos" (1977:16)19 Em outros termos e simplifieando esta nogo num exemplo con- creto da pr&tica dos Dzi, digamos que uma sessao qualquer da obra teatral di uma visdo do conjunto como obra comunal de seus autores/atores, cimplice da dinamica interna do grupo @ do contexte onde se realiza, destacando os significados que aglutina em determinada época; no entanto,sem acompanhar va~ rias sessdes, se perde o conteiido que iluminava os acréscimos cotidiancs da substGncia teatral, ou seja, a recomposigdéo da matévia vivida e pensada na agio e, consequentemente a expec tativa que tal prética eriava no seu piblico. Acsho hoje que a quest@o mais importante para os Dzi era como decidir-se por um objeto de vida e teatro que evitasse enqua dramentos, classificagées,definigdes fechadas; ou inversamen te preservar wma proposta que se alargasse, abrisse vio" ao infinito. Sem transformar seu projeto num novo enquadranento, ou melhor, como conseguir transgred{-lo continuamente. Meus conceitos e estratégias analfticas vao emergindo no pro cesso da dissertagao. A bibliografia basiea utilizada € fran camente variada. Escolhi diversos métodos e conceitos, acade micamente consagrados como instrumentos organizados iniciais de algumas partes de meus argumentos. Isto nfo sub-entende , que incorpore ou nao distinga os fundamentos tedricos dos autores que inovaram aquelas estvatégias anaifticas. A con- tinuidade e esséncia dos temas escolhidos na minha descrigdo e andlise € o que di consisténcia Gs conclusdes as quais fui levada pela intensa pesquisa de campo entre os Dzi. Dado os objetivos que me propus ~ contruir uma boa etnografia desse grupo - foge aos limites deste trabalho uma tarefa que percebo interessante : repensar a literatura antropolé- gica do ponto de vista das classificagdes e transgressGes.Ve ja-se por exemplo que esse foi o dilema de Durkheim (1828), quando questionava o "normal" e 0 patolégico" ou o de Mali- nowski com suas preocupagoes pelas leis da organizagao so- cial e sua quebra, Perguntar-se como reprodusir e falar da verdadeira praxis sim bélica e social que um determinado grupo de pessoas instaura, sem cair em sinteses fechadas ou precipitadas, acha também apoio numa preocupagdo recente da antropologia que E. Leach relembra: "seria muito mais fdcil de compreender os fatos et nograficos se nds os aborddssemos livres de todas essas hipd teses a priori. Nés nos interessamos pelo que sao as 20 categorias sociais, nfo pelo que elas deveriam ser” (1956:53). A seguir darei um breve resumo da dissertagao - Pate IT: 0 Espetdculo 0 ponte de partida @ a desericao, seguida de uma anSlise, de uma verso do espetaculo que responde a um duplo objetivo.Por um lado detectar o “prinefpio organizador” dos diversos ni- veis em que se elabora a pega. Por outro, assume a fungSo de levantay hipdteses gerais para poder ~ em capftulos posterio ves - cercar e desenvolver o significado socioldgico do espe tdculo para os autores-atores e uma parcela de seu pilblico. A descricao corresponde ao espet&culo apresentado a 23 de Maio de 1973 no Teatro Treze de Maio (S.P.)(Cap. 1). & im portante datar a versio, posto que a obra teatral sofreu mo- dificagSes ao longo do tempo - processo retomado na Parte II. Porém, simultaneamente, como o aconselha a analise estrutural ~ cujos estratégias serio utilizados aqui - pode-se considerar a versio como nao privilegiada: qualquer uma delas se estruty ra da mesma maneira (Lévi-Strauss: 1955). A diferenca entre elas estd na escolha do enredo das sequéncias pelos atores.No tempo, esta variagZo dard como resultado um deslocamento na énfase das categorias sdcio-simbélices numa determinada ver- s&o. A minha escolha responde ao objetivo de situar melhor os 21 atores na sua dimens3o histérica por seu cunho social e tea~ tral no contexte brasileiro ~ ponto que sera tratado na con- clusdo. Para poder orientar o leitor enunciarei antes da deserigio da pega as minhas categorias de andlise se bem que elas foram o resultado da pesquisa empirica, 0 espet&culo se organiza tan to na forma quanto no seu conteiido em térno da ambiguidade.. Defino este conceito a partir de uma refiexdo de M. Douglas (1966) sobre as artes plasticas em geral e, versdo elaborada por W. Nogueira Galvdo em seu trabalho sobre a obra litera - via Grande Sert@o:Veredas de Guimardes Rosa (1972). Em se- gunda inst@ncia (Cap. 2),como estratégia analftica sem sujeitar-me a uma fidelidade analftica ou tedrica rigorosa - parte de nogSes gerais préprias aos estudos antropolégicos e¢ semiolégicos de linha estruturalista (Lévi-Strausss 195531998/ 19895 Barthes 1953/1970), Deteeto assim, como primeiro passo, elementos recorrentes em diversos canais de expressdo (ilumi- nagio, decoragdo (...) papéis taatrais ete.). Como segundo passe, analiso brevemente um contetido simbdlico expresso tan to natordem cronolégica" quanto de maneira superposta e si- multanea na pega (Lévi-Strauss: 1958/1958). Finalmente para avaliar prioridades na interpretag3o do significado sociolS- gico da pega analiso a posig3o e relagHo de varios conteidos simbélicos e formais que parecem estar "resumidos" numa se- quancia especffica (neste ponto ha uma semelhanga com a and- lise de W., Nogueira GalvZo na obra mencionada), Parte II_- Vida e Teatro Na velagdo de elementos simbélicos entre si, que versam dire tamente sobre a dimensdo sociolégica da pega, detectamos (Ce destacamos) a estreita ligagdo entre as nogSes de 'vida' e ‘teatro’, Por serem estas as categorias mais abrangentes, se ro os elementos nucleadores da deseriggo e andlise que se gue, sendo que as cutras relagdes simbSlicas levantadas (in- dividue/grupo, sugest4o de lideranga/anulagdo de desigualda- des, etc) se infiltrardo nas brechas da dissertagdo. Partin« do da auto-concepgao dos Dzi Croquettes sobre as nogdes de 'yida! e'teatro! passo a expor dades da vida real dos atores Trata-se de um breve levantamento etnografico referente a or ganizag3o interna do grupo, onde me guio pelos eritépios que os atores privilegiam. Abordo temas gerais que versam sobre a organizagao econémica e habitacional, a distribuigado de pa péis seciais e tarefas e as relagdes que os ateres mantem en tre si (11,3). Bm segunda inst@ncia e a partir do mesmo referente ‘vidat ¢ ‘teatro! volto A dimensSo teatral para testar ¢ relagdo na sua idealizagio e pr&tiea social, numa dimensdo temporal.Con figurou-se que certos aspectos da composigdo teatral (o tex~ toe sua recitagio (Cap. 4), a aprendizagem da danga e a composigdo das corecgrafias (cap. 5) e a confeegao de rou- pas e a dindmica de grupo subjacente (ca. 5) pexmitem de- monstvay como as duas dimensdes (vida e teatro) se entrelagam, se alinentame se recriam mutuamente, dando lugar a eterna transformagio da pega como reflexo e dramatizagao verdadeira de um estilo de vida. 4 uma certa recorréncia analitica na composigho destes tras capftulos: uma visdo mais elaborada 99 bre os significados e as possibilidades que oferece a estru- tura ambigua e aberta do espetdculo ~quando & possfvel apon~ to o lado genérico da pega com outras manifestagdes artisti- cas: a utilizacdo prdtica destas propricdades em termos de 23 manipulagdo e reeriagao pelos agentes sociais em questdo; os componentes e fatores de re~elaboragdo efetiva no curso do tempo. A intengdo € explorar a dindmica do universo dos ato~ res poste que & disso que trata a sua representagio teatral. Parte IIT - 0s Tietes No estudo dos Dai Croquettes revelou~se como dimensio impor- tante o enfoque pelo lado das relagdes sooiais com o contex- to mais imediato. A conjungao de 'vida' e 'teatro’ provocou a adesSo de grande parte de seu piblico masculine e feminino (chamados de tietes pelos atores) de maneira constante atra vés do tempo e do aspago. Estando fora do alcance da disser— tagio abarcar as adesdes européias, me restringirei ao espa~ go brasileiro. A adesZo @ integral, consistindo em trocas continuas de am bas as partes e em todas as manifestagSes sociais dos atores: trabalho, lazer, negdcios, relagdes amorosas e vida cotidia- na, Esta parte de piblico é a que di a dimensdo real dos atores pesquisados na articulag4o de suas trocas simbdlicas, sociais e comerciais. Por meio de nova descrigao etnogrdfica = que complementa a das partes anteriores - analiso: os cri~ tErios e definic&o do piblico pelos atores, levantando o pa- vadoxo da postura social assumida por estes Gltimos (cap. 73 as caracterfsticas sociais do pilblico costumeiro, a quantida~ de relativa de seguidores e as formas de aproximagio aos ato- res (cap. 8); as relagdes que este pilblico mantem com o grupo pesquisado e suas fronteiras reais (cap.9); &, finalmente, os erit@rios de ades%o do piiblico (cap, 11). Estrategicamente a focalizagdo adotada permite ser mais exaus tiva em termog da din’mica de grupo dos Dai, encarando suas 24 varias facetas possiveis., Mas permite, por meio delas, suge~ vir também como as relagdes que os atores mantém entre si e com os tietes, longe de ser um tema especffico - como o suge rem as Partes I e II se encaminha como fendmeno generico, a- tualizado, recorrendo a varias experiéncias sociais (sejame las relagdes informais de pessoas com um objetivo em comum , "comunidades" como as estudadas por exemplo por Whyte, W.F. - (1943), Momans (1950) Abramas e Mc Mulloch (1976), organiza~ gées de outros grupos teatrais, etc. Por tras do diferente, do préprio ao histdrico dos Dzi Cro- quettes e seu universo social mais préximo, o leitor interes sado nesta area de pesquisa descobrirad o ar familiar que ema na do contexto desta dissertaglo. Além disso, a orientag3o ge ral desta parte do estudo visa avaliar concretamente as ine consisténcias das propostas ideais dos Dzi Croquettes ( como por exemplo sua suposta “independéncia" econdmica, social etd e as explicagées praticas do funcionamento do seu projeto de vida e teatro, Ressaltam as dificuldades que os atores em questGo enfrentaram e o lado utépico da experiéneia social quando aplicado a grande niimero de pessoas. Conclusdo: D2i Croguettes VS Piblico A descrig&o e andlise da interagio dos Dai Croquettes com uma parceila do pilblico me permitiu alargar o universo de es- tudo demonstrando que a problemitica dos atores era um assun to mais gerieralizado. Ao mesmo tempo, tera sido levantada rel teradanente a importante questdo da pressdo que o pilblico e- xerce sobre as propostas iniciais des atores. Procurarei mog trar como estas propostas que foram fundamentalmente de ‘transgressao a uma série de normas e valores estabelecidos , foram percebidas por parte de seus seguidores incluindo des- ta vez um piblico mais geral, como proposta de agdo auma de~ terminada linha que certamente ndo o foi no sentido sempre exato estipulado pelos atores. FE exatamente este processo ¢ a sua qualidade histOvica que detalharei nas minhas conelu - sSes, tocando como ponto de partida na problematica criada em torno das propostas em relagZo aos papéis sexuais. No entanto, o leitor que tiver apenas esta expectativa floard frustrado porque géneros e papSis sexuais sfo aqui tratados como um dos elementos conceituais da temitica Dzi Croquettes, 28 faa NOTAS Assisti pela primeira vez o espetaculo Ozi Croquettes em princfpios do mes de maio de 1973 e comecei a fer- mentar a idé@ie de escolher sua temdtica como abjeto de estude antropolégico. Nesta intengao, mantive contatos esporidicos com co grupo de atores em questac até de- zembro da mesmo ana (época do Teatro Treze de Maio, 5. Pade Em janeiro de 1974, a seu exemplo, me teensferd para o Ric de Janeiro iniciando uma intensa pesquisa de cam po que culminow com um convite para acompanhar a traje tdria teatral do elenco numa viagem evropéia. Permane- ci junto a eles um mes @ meio em Lisboa (1974) encer- rendo logo apds momantaneamente a minha pesquisa de campc. Cartas @ comantarios de amigos comuns que viaja vam de um continente 2 outro enriqueciam o meu acompe- mhamento do histérico-em processa- do grupo teatral. 8 velacicnamento intensivo com os componentes da grupo seria retomado na sua volte eo Srasil (Janeiro 1376). A partir desta gpoca a minha participagao dissolveria uma dist@nsia ainda marcada até entdo: assumiria deli- beradamente tarsfas de administragao cu indiretamente de financiamentc da pega do mesmo mode que os atores e desempenharia uma atividade remunereds na iluminagdo da pega. Bbosarvando @ minha intromiss4o0 no grupo, um OZi suge- riu que a minha dissertagSo exigiria um capftulo suple mentar explicitanda minha propria experianeia perto deles, 0 que nes suas palavras consistia na "transfor~ mag&a da antropéloga em gente”. Esta sugestdo val de encontra a um dos métedos consagradas pela Antropolo gia Social, isto &, a observagdo-participante e ulti- mamante os antropdloges tem dado grasftig importancia na revelag’s deste processo.0e fate a sobretudo,sm pesm quisas de compo demorades se estabelece uma relagko mate complexa que hd da ohservagSo - participante como se entendia antigamente, ov saja.a do asompanhamento das atividades des agentes cociais porém sem uma intarfe - rGncia por parte do pesauisadar, Atualmente os antrapg logos tem dado maior @nfease aa relacionamento dos duas partes paste qua a sua presunga irremediavelmente (2 3 (4 1 i incide de maneira objetiva no universe da sua atenglo, quer queira ou n30: por suas perguntes que levantem ou tras perguntas nos agantes seciais pesquisados, pela - legitimacaa das pessoas que provoca a sua presenga nagueale meio etc. Parém tendo em mente a pertinancia destes dados cient£ ficos esta tarefa viu-se desnecesséria neste trabalho. Como se vera adiante 2 an&lise mais profunda da repre- sentagao teatral e da arganizagao social doa Ozi Cro~ quettes exigia a ahordagem da rede primeira de relacig namento do nfcleo principal. Trate-se de uma categoria social denominade de t¢etes polos atores a que se api ca a qualquer pessoa gue se interesse ou se aproxime deles. Desta maneira, sstave cutematicamente classifi- cada ao escolhe-1lo como objets de estudo. As eatuder esta categoria social, na dissertacao as vezes me colo- co ohjetivamente como pessoa, noutras estou impifettano conteddo. Oe fate nada ma distinguia de outros tentos tietes. Uso letras itSlicas quando me refiro 3s categorias so- efais classificatérias escolhidas pelos prépries agan- tes, Tecricamente me apoio na classice definigho ofere cida por Homans (1950: El Grupo Humane in Eudeba, Bus= nos Aires, 1972): "Entondemes par grupo certo admero de pessoas que se comunican entre si, durante certo tex po, @ que s&o suficientemante poucas para que ceda uma delas possa comunicarsse com todas as outras, nao de forma indireta, etravés de outras pessoas, mes face a face" (1972:29). Quanto 8 amizade e interasse comum: "A vssposta @ que nenhum dois aparece primeira plano » mas minguam juntos (idem:35), Deixo propesitalmente vagas os conceitos do grupo (fa- milla, gente, grupo etc.) porque como seré percebido na leitura%parte de sua estratégia social nfo definir claramente nenhum desses termos. Entra todos os termos grupo & a auto~denaminagSe mas frequeante Usado pelos Dzt Croquettes. vaja - SBo Paulo, l-7-73 Senna, 0. Correio da Manh4, Rio de Jenaira, 4-12-1972, {s J iy ay i) (10 ci) (12) Oleima Hora, 22/7/73. Senna, Correio da Manh&, 4-12-72. As aspas simples (') sor&o aqui utilizadas sempre que for necessdric destacar um termo na texto ou quando e~ le & utilizado mais como lugar comum, que como tendo uma definighe tedrica precisa; as aspas duplas (") se- rio usadas quando for feita uma trenserigdo literal de um autor, da impransa ou de um informants da pesquisa, Viana, H., Diario de 342 Paula, 11/7/73. Idem = The Cockets era uma das menifestagdes do Gay Power nes USA qua estava em auge nes anos 71, Se bem como vere ~ mos a pega Dzi Croguattes vai mebilizar esta questo nos nossos centros urbancs também pode ser interpretado co- mo uma cantinuagdo dos movimentos artisticos da década anterior (por exemplo o Trapicalismo). Como lembra RR. Schwarz (1876: "Cuidado com as ideglogias Altenigenas (Resposta a Movimenta)* in 0 Pal de Familia ¢ outros. estudos, Paz @ Terra, S30 Paulo}: "E certo que o atra- so @ 2 etualizecio tem causas internas, mas § certo também que es formas e técenicas ~ itterdrias a outras - gue se adatam nos momentos de modernizagao foram sriades a partir de condigdes socieis muito diversas das nossas, @ que @ Sua importagao produz um desajuste que § um trego constante de nossa civilizagho"(1978 115). € preciso insistir que esta dissertecfo se até ao ss~ petSculo chamado Ozi Croquettes (Dez.1972-Nargo 1976). Lamentavelmente esta fora do alcance a possibilidade de incluir por sxeaplo a encenagSo da pega Romance de C.Tovar e W. de Mello que astreiau pouso apés o primei~ ro trabaine teatral. Foi a continuagas do Grupo = Ozd Croquettes (Agosto 1976), Apoto-ma na taxonomia elabarada por S.Wallman (Bifferen ce, differentiation diseriminatian in Jo rnal of Camu nityle (13) Para distinguir 0 uso dos termos género e@ papel sexual. Segundo a autora: Gender behaviour is tha generalized corollary of sex class. Being in or having been slotted into a particu- lar sex class, one behave accordingly, te be mesculine or femine according to the norms of a given culture . Tne level is more problematic: even pre-cultural = or non-cultural species show gender differences - most obviously in courtship behaviour-so it is useful te assume the diferentiation itself to be ‘natural” and only the form it takes te the construct of any particu lar culture. Within each cultura, certain things are done, certain social task give rise to sex role. Legislative and so~ ial changes would ceem to apply to this level — most directly, but quite often aim wide of the marck., It may thet terminology is the least of our difficulties: wa have still to decide whether sex + differences observed and/or reported pertain to sex class gender behaviour or sex rele. A primeira vista as transgrassdes feitas pelos stares sha mais gritantes no nivel do comportamanta sexual ge~ nérico: por exempic cambinam barbas com maquilagens - fo discurso teatral,, veremos porém qua ques tionam também os papgis sexuais: assim num outro exem- plo veremos um parsonagem cbviamente masculine assumir a posture da "mie" do grupo. “Ceurs dorits subvartissent le code iddologique (mythe- mas familiaux, religieux, étatiques} en mms temps que le code de le langue (garantie ultime de ltunitS du sujet). Une subversion qui est une pratique et nen pas ung dérive, parcequ‘elle formute non pas un nouveau langage (au sens symbolique, thétique)’, mais un réseau symbolique qui est inmédistement le support dun rythme sémiotique ob se déchiffre d'une part le corps infinitisé (sujet et objet 4 la fois), d’autra part et en méme temps des codes naturels ida@olegiquas, poli tiques multiples" (1977:16), (14) Tendo concluido @ minha dissertagao Verena Stolcke per mitiu-ms a leitura de seu artigo 1878: “women's Lebours" ser publicado nos cedsrnos do CEGRAP. Embora seus obje tivos sejam diferentes dos meus, nossas constotagées le vam as mesmas conclusées. A partir de nossas discussdes Verena acredita que seja pessf{vel repsnsar teoricamen- te a visdo antropolégica das classificagées sociais, Parte I o ESPETACULO 1, Um ponto de partida "Se queremos estudar as regras éticas de uma sociedade @ a estética que de- vemos estudar" E.R. Leach Poittteal systems of Highland Burna, 1961 - Dar uma imagem do espet&culo € falar de ambiglidade: “os ar- tistias se assumem e se criticam, marginalizam-se no under~ ground e cagoam do género, vestem-se de mulher e nao se depi~ lam ostentando largas barbas"! A trama no se desenrola como uma estéria precisa, mas sob uma trilha sonora a efeitos luming sos que d3o o clima e a medida do tempo, montam-se e desnontan- se quadros que perseguem um mesmo tema estético e simbélico. “Mas, enfrentar o ambfguo ndo € sempre uma experiéneia desagra~ davel. (...) H& todo um continuo para o qual o riso, a repul- a @ o choque contribuem em sentido diverso e com intensidade a ferente. A experiéneia pede ser estimulante. Empson demonstrou que a wiqueza da poesia provém da sua ambigilidade. Uma eseultu- va é tanto mais interessante quando pode ser considerada seja como uma paisagem, seja como um nf de repouso, Ehrensweig che- gava até a afirmar que as obras de arte nos dio prazer porque ros permitem in além das estruturas explfcitas de nossa experiéncia normal.0 prazer estético viria entZo da percepoio de formas nio avticuladas" (%,Douglas, 1970:50) A constatacdo resume a carac- teristica principal da pega Dzi Croquettes,que prendeu a atengao do piblico e da imprensa e fez com que sua fora e conteiido fos sem muito questionades: "talvez, j@ nZo valha mais a pena, se € que um dia valeu, discutir os Dzi Croquettes em termos pura ~ conaig".2 mente racionais". 27 Simultaneanente delineamse as dificuldades subjacentes de retransmitin essa experiéneia, no case, primeiro a descrigao do espetdculo e, em seguida, sua propria andlise. Ao penetrar mais profundamente no tema percehemos imediata - mente que no espago da ambiguidade "tude @ e no 8" segundo as palavras de Riobaldo, personagem de Grande Sertdo :Veredas. Walnice N. Galvdo que consagrou sua obra As Formas do Paleo (1972) ao desenvolvimento dessa frase e portanto ao "princi- pio organizador" do livro de Guimaraes Rosa, aponta critérios fteis para perceber como @ “construida” e onde “radica" a ambiguidade do vemance. Curiosamente alguns deles sao extre~ madamente semelhantes 3 construgdo do espetGcule Dai Cro = quettes® Aqui, "tudo se passa como se ora fdsse, ora no £35 se, as coisas 3s vezes sfo e 3s’ vezes ndo sao. Como, todavia,’ @sses pares ndo chegam a constituir-se em opostos, antes, vi venciando-os o sujeito, alternadanente, sem que a tensSo en- gendre o novo, nado se pode falar de contradigdo mas apenas de ambiguidade” (idem: 13). A ambiguidade perpassa todos os aiveis da elaboragdo da pega; por exemplo, no nivel simbéli- co e social, os atores apresentam-se seja com caracteristi ~ eas pessoais ou propostas da vida real, seja na ficgdo de seus personagens, no momento seguinte; melhor ainda, desco - brimos vestes supostamente de mulher sobre corpos de homens, sea que os atores renuneiem no entanto a sua condigdo de ho- mens. Contrapiamente, em Grande Sertdo: Veredas, Diadorin & ta mulher dentro do homem! La, na estrutura da obra ha"um pa drdo que comperta dois elementos de natureza diversa, sendo uma o continente e a outra o contetido" (idem:13). Como W. N Galvdo encontra no meio do romance um conto que desdobra = ¢ resume todos os niveis de composigao da obra, encontramos, com a mesma fung&o na pega, Dzi Croquettes, uma 'festa pri vada' dos atores, dentro da representagdo teatral, que por definigdo 8 pilblica, Para permitir ao leitor penetrar no u- niverso Dzi Croquettes, comecaremos descrigdo da pega. Teatro Trene de Mato, So Paulo, 23 de taio de 1973.4 Abrem-se as portas do teatro, Entra-se num saguao decorado com 'posters' coloridos com purpurina, varias fantasies,uma imensa fotografia de homens vestides com algumas pegas dem: lher, encimada por um cartaz luminoso ~ Dat Croquettes.Duas arcadas dao entrada 4 sala de espet&culo, que tem forma re- tangular e capacidade para 600 pessoas, "se se apertam" dis sea bilheteria. A sala estd dividida em duas areas, uma pa pa os atores e outra para a audiéncia. 0 teatro @ de ‘arena’ com o cen&rio ocupande o centro. Consiste, perto da entrada, de uma enorme depress&o circular com trés nfiveis de onde sur gem dois estrados, também circulares, de dimensZo um pouco diferente, Estado ligados por um tablado e decorados comros= tos que simbolizam o sol e a lua, Na mesma depress, em um canto esta um equipamento de som, atendido por um operador, £ a finiea fonte de miisica da pepresentagao, Mais ao fundo da sala encontra-se um terceiro estrado, mais alto que os dois primeiros, decorado com os contineates Americano e Afrivano, representando a terra. Nas paredes da sala, sobre um fundo celeste salpicado de estrelas douradas,destacam-se nuvens ¢ normes em forma de personagens estranhos e rechonchudos,pin tados em preto e branco. Em um dos cantos,perto da entrada, descobre-se a sala de operagao de luz. No outro canto, uma tenda de tule transparente enfeitada de flores e estvelas, © resto da decoragdo consiste em algumas cadeiras, cabides de pé sobre os quais s4o pendurados 'bods' de gaze coloridos e uma escada que vai até o teto, coberta de roupas que serao utilizadas na fungdo. 0 teto mostra um efeito geométrico ob- tido pela disposig&o simétrica de sacos de pano que pendem separando os projetores um de outro. Também pendem do teto objetos heterogéneos como uma cadeira Luis XV, um rolo de pa pel higiénico, uma sandalia de salto, uma pasta de tipo exe- cutivo de onde sai um lengo, um ursinho de peliicia, um balde de praia de plastico, ete. -"Life is a cabaret, mentira.. amor, amor e somente amor" Uma luz difusa isola no meio do paleo o personagem que diz estas palavras. Nem as suas vestimentas, nem a sua maquilagem combinam con sua voz grave e seu peito viril coberto de pe - 30 les. Uma touca rendada trespassada de fitinhas de cetim azul enquadram seu rosto estampado de purpurina,onde um cflio de papeldo corta~lheo queixo.Do canto de sua boca bem desenhada pelo batom vermeiho pende um chavuto. Um coca de penas co- bre as suas costas, e suas coxas estdo envoltas numa saia en viesada de brocado marrom, deixando somente intuir suas bo- tas pretas. Acompanhado de um som que estoura nos quatro can tos da sala, prossegue: "Nem senhores, nem senhoras Gente dali, gente daqui . 8m ndo somos mulheres Nés ndo somos homens, tami NOs somos gente (...) gente computada igual a vocé Yooés querem uma flor, nds temos aponta para um outro personagem que vai chegando Vooés querem uma porrada, nas também temos 83 ndo temos duas coisas: N&o tem destino e ndo tem sexo e dinigindo-sea audiéncia Agora voc, como esta a sua cabega? E vocé? Agora venham com tudo fazer uma nova cabega Porque dentro de ja, ja, ja, - vai pintar uma famflia, Muito pirada e muito maravilhosa do limiay da mancha de luz vio surgindo outras figuras Agora nfo se assustem ndo e lembrem que foi uma palavra magica DAZZITIT...# Numa explosao de miisica, gritos,+luzes que piscam, corridas de cima para baixe, o paleo é invadidode “odaliscas, vedetes, viiivas, pierrés, prostitutas clowns e rumbeiras": a famflia Dai Croquettes se apresenta. Maquilayem roupas e gestos os distinguem uns dos outros. Mas a indiferenciagdo de protéti- pos masaulinos e femininos € comum a todos. Grandes cilios , bocas exageradas e a purpurina cintilante e colorida, fornan do desenhos psicedélicos, mancham seus rostes e corpos que exibem barbas, bigodes, suigas e pelos viris. 0s vestuarios delivantes englobam vestidos de lamé, maiés de franjas e lantejoulas, malhas de balé desfiadas, combinagdes desajeita das, chapéus extravagantes, perucas enfeitadas de hobies,flo ves @ fitinhas combinados com fraques, colarinho de camisa SEste trecho do espetdculo intitula-se Mondlego da Abertura, segundo os atores. aL e gravata, meias de futebol presas a. ligas de mulher e pés calgadds com sapatos de salto ou botas pesadas e polainas . As cores gritantes, as roupas de tamanho maior ou menor, as fazendas rasgadas e a purpurina resumem o deboche. 0 empenho em cappicha-los até o minimo detalhe resume a sutileza, 0 requinte. De sua gaiola de tule florido, com seus bragos magros e com- prides, uma "bruxinha" enfeitiga o palco inundado de luz . Dois dentre eles entoam no microfone,uma cangdo mareial en- quanto uns dez dangam: "Dzi Crequettes as internacionais".0s movimentos coreograficos so rapidos e precisos, e o que eles parecem dizer se dilue na complexidade do conjunto: un gesto ~ comegade - genericamente masculino, se especifica ~ na ag@o - num feminino: a 'continéneia militar’ se decompde e se transforma num 'virar a bolsa'. Alternativamente um "ba lanceio de quadris' se desdobra na expressao 'virilizante de forga’. A regularidade coreografica se pulveriza a intervalos suces- sives. 0s dangarinos espalham-se em desordem para serem recu perados, como se fosse na arena de um circo, pelo mestre de cerimSnias, que cantando uma cang&o estrangeira da qual sé se entende "The Clowns", os exibe um por un 3 platéia.#* VoL tam a se ordenar para dangar "The world is a state, the state is a world that's entertaiment" e voltam a se dispersar ani. mando 0 estrado com suas horbulhantes presengas + Danga Dat Croquettes &% The elouns 32 "presenga maravilhosa dos Dzi Croquettes cidad4os... made in Brasil ja avisei... gente computada igual a vocés" A luz vai morrendo sobre as poucas figuras que permaneceram em cena. Formam com seus corpos, que se inclinam para tras, uma flor, © mesmo foeo de luz se acende numa outra platafor mas Yestido com a jaqueta de un fraque estampada de flores, ba - langando sobre seu peito, nu se nao fosse por uma cruz gama- da de veludo, um personagem parodia uma melodia associada a pessoa de Marlene Dietrich. Assistem alguns 'nazistas'. A Seu canto, com sotaque alemZo, mas composte de vocdbulos sem sentido: "Das ist mun vi Das ister parrana..." responde, da sacadinha, num canto da sala, por cima da audién cia, 0 estribilho, De inspiragSo surrealista, com cabega de boneca ensanguentada de puvpuvina vermelha, wna vela e um te lefone na m4o, deis atores e outro cuja cabega surge de uma caixa que lembra um televisor, descem em procissdo para o ee n&pio ao encontro dos primeiros. Todes em coro cantam:"oh my Lili Marlene". ##* Na pista vazia agora, tendo trocado as suas roupas mas refle tindo os mesos prineipios de composigde, dois dangarinos de senham com grande estilo os passos de um tango varonil. Nao * A Plor #8 DE1d Her lene 33 \ dangam 'face a face’, um deles oferece as costas a seu compa nheiros* Em algum canto do paleo, umas vozes afinadas gri - tam escandalizadas "nao, ndo...nao". As "cantoras do radio " que, segundo a cangao, “embalam o sono (...) e vivem para cantar" aprontam-se pava dangar um rebolado samba a empur ~ rées. Por sua conta, "Barbara a rumbeira", descalca e de pei to nu, "ha venide quedar", arrastando sua saia de babados nas trés plataformas que formam o palco. Este & novamente iluminado e invadide por tedas as figuras. Sem marcag&o precisa, cada ator inventa uma série de postu - ras, falas, mimicas cuja relag&o de conjunto ndo tem explica. go légica. Absorvido no jorro da miisica e tons de voz gra - ves de "barbara" respondides por ecos de "barbara" em — tons de vozes agudos, ouve-se vagamente: "Alé senhor Aparecido pa pa Bebedouvo. ALS senhor Lennie Dale, para Campinas". 0 re- quisitado, num simulacro de chamada telefénica, entre a can- gdo "Diz que deu/diz que da/diz que Deus dara" e entre conse lhos perguntados a sua avé (um ator em cena) sugere que "na * Ao sinal de vida a gente tem que se entregar totalmente" um “one, two, three" quatro pessoas se embalam na danca do "Shaft" que dura instante de um raio. A coordenaglo, rapi - dez e exigéncia técnica de seus moyvimentos confunden-se e si multaneamente destacam-seda espaihafatosa presenga de seus companheiros, em cena.#** Procurandc, nas margens dos es~ trades, seus boas coloridos, todos juntos agora cantam: “Eu n@o tenho culpa de ser chic assim/ Eu nasci assim e vou mop~ ver assim". * 0 Tango Barbara Shaft a4 Ordenando-se, desordenando-se e reordenando-se compSem, dan- gendo ,uma nova versio de "Dai Croquettes as Internacionais"* Nos efeitos da luz que se acende e apaga a cada segundo, os corpos se contraem e descontraem como se fossenum filme de camara lenta. Das caixas de som sai um rock inebriante.** Ao muday de tom (mas nio de ritme) emergem na luz trés bailari- nos, de botas e vestidos de pailleté ou seda, que reativam a técnica numa esmerada danga.*** Ao estrondo do fundo sonoro, acs gritos ¢ 4 cacofonia de tan ta movimentagdo e colorido cénico, se ope agora 9 siléncio. 0 vanio do espage e o foco de luz distante apuram este momen to que tergiversa a oferta de abundancia por uma composigdo do Intimo cotidiano. Carregando um velho e gasto boa na mdo, e arrastando suas sand@lias, de tiras quebradas, purpurina vosa desmaiado, cono se fossem chinelos, apresenta~se um per sonagen cantando com voz afinadat "Mata, mate-me depressa que meu sonho ja acabou Tento caminhar por esta estrada tao vazia e sem cor (...) Mata-mata-me depressa Que meu sonho de amor acabou" Aum tivo de espoleta, sem brincar de morto, anuncia que 6 o canto que “acabou". Dois ou trés atores, envoltos em toa- ina de banho e toucas de plastico, acodem prontamente com #0 mondlogo de Abertura, "The Clowns, "a Flor", "o Tango", Hy Lili Maptene" “As Cantoras de Radio", “Bdvbara", o Shaft © 0 "Dzi do Red" sdo genericamente chamados pelos atores de “Aber tura do Show". “Phere tt ie” fat “James Broun" 35 guarand, taleo, desodoranta, para fazer a sua ‘toilette! com sareasno, Qs labios pintados, a base e o blush bem composto no seu ros. to, os longos cilios delineando a beirada de seus olhos alu- dem & expressdo bem reconhecida de 'mulher' envelta numa pe- ruea desarpumada. Seu corpo de homem @ modelado por uma ve- lha combinagdo de cetim azul cuja alea de pérolas escorrega de quando em quando sobre seu brago. Lembrando uma velha atriz, o ator entra na simplicidade do seu discurse. Cumprimenta em varias linguas o ptblico brasi leiro, inglés, francés, alemZo, japon@s, inc2uindo os, “hippies que sao um amor apesar de tudo" e a “turma da pesa da", arrastando humor em fartos comentavios pontilhados rit, micamente, por um fanhoso "gente". Ao pessoal muito espe - cial de “underground” deixa a sua “humilde colaboragdo em termes de pesquisa". Esta apresentagdo faz o jfibilo da pla- tia. Bo personagem pergunta: "de que que vooés viem?" e com ar de resignada lassitude prossegue: "Pesquisa essa que fazemos com o maior sacriffeio das nossas vidas. Vocés pen- sam que @ mole, que @ facil fazer underground no of da ma - drugada? £ diffeil pra cacete, sd para falar com essa voz fina com a qual eu vos falo-lhes, eu tive de fazer um curso especializadissimo na Tehecoslovaquia. Um amigo meu, gente, um amigo neu, desembestou a falar fino e nunca mais ele fa~ lou grosso". Insuflando pontas de verossimilhanga a seu texto ivoniza a aprendizagem teatval, Para ter cvédito da audiéncia recorre a técnica de ilustrag&o retrospectiva a semelhanga da indistria cinematografica ow das histérias de quadrinnos: manda chamar as suas alunas de balé para faze- vem passos desencontrados de balé clissico.* # As Batlarinas 36 Eis a oportunidade para cada ator, um por vez, de fazer um concurso de suas aptiddes e achados teatrais, achados nem sempre presos ao roteiro inventado para substituir ou com - pletar a cena em questdo. Apés, um demorado didlogo incompre. ensivel com sotaque alemao, no quai a ‘aluna' sempre 'vomita’ as suas palavrdas, batendo bota contra bota e levantando ° brago direito onde destaca a cruz gamada, a 'professora! a veprime: "Ndo, Maria Onde voc comprou o seu ursinho?; “Ah: Foi na José Paulino, mein professor" vesponde envergonhada a aluna. Mas se a cena pertence a cada personagem por turno, ndo dei- xa de ser o regozijo dos outros que se ocupam em brincar com 0 piblico, expressar-se com gestos liidides ou uma situagdo inventada como uma 'briga de duas alunas', continuando até sua salda e nos bastideres. 0 vesultado @ que as diversas pantomimas acabam devorando o tempo teatral dos protagonis - tas momantaneos; no entanto, impregnando o espetaculo de uma inusitada animagdo. Novamente a sés, 0 personagem principal prossegue represen ~ tando, sob os pedidos de um imagindrio diretor de teatro,uma "baronesa" que "quase ndo respira, sabe andar, sabe onde ela mete os pés, e tem aquele olhar de torre de castelo, enfim que se comunica muito pouco" e uma "mundana”, "uma mulher de vida fScil, bem facil, ou seja uma puta". A superposigdo da representagdo teatral com a pequena reflexdo sobre formas de submiss&o do sexo feminino a determinados comportamentos so- ciais tera um desfecho inesperado para a audiéncia. De ini- cio nfo se percebe claramente a proposta co ator nos seus olhaves e acenos calorosos a platéia. Finalmente, se detém na frente de um homem, por volta de 25-35 anos, acompanhado 37 de uma milher, eo solicita a fazer uma “pequena demons- tragGo teatral". 0 escolnido sd consente sob a pressdo do piblico, alentado pelo ator. No paleo, este cria um clima de confianga perguntando-lhe o nome, a profissdo, o signo ¢o 20 diaco e se est nervoso. 0 auge da dramatizagdo se realiza quando © espectador em questdo, @ provocado a assumir seu tradicional papel de 'macho' tendo que convidar o ator, com sua masculinidade mal camuflada pelas roupas de mulher, = a “passear por af", isto 6, em termos mais vulgares a ‘cantG= (2a), Apds ‘esta’ insistiz e 0 outro consentir, se desmancha © suspense e o ator declara: "Voo’s perceberam? Obrigado coi sa, voc’ € uma santa" (veja-se a zombaria na invers%o da con jugagdo, acompanhando o coajudante do momento, outra vea para a plat@ia, "Pereeberam? As putas s3o mais comunicativas, as putas nado falam, mas atacam",* Dos camarins vai chegando um personagem esdrfxulo vestide de maneira a contrastar fortemente como que vai recitar, que, sem outra introdug&o, declama com gestos aloucados. "A Pam ‘tria" de Olavo Bilae: “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste Crianga, no ver&s nenhum pats como este (...)" Subtamente incemodado, num "com licenga, obrigado, desculpe™ se retira, 0 ator do mondlogo esclavece que tinha vindo para lenbri-Lo da sua “aula de provérbios" e recita alguns: "A ux nido faz a forga"; "Mais tem Deus para dar dd que a porra do diabo para carregar"; "Mais vale um soutien na mao do que dois peitos voando" e "Passapinho que come pedra sabe o cu que ten! ,0ferecendo, como se fossem receitas de cozinha, sorrisos * A Puta” 38 teatrais, homenagens e um deboche de" apoteose™ termina seu eurpiculum teatral.* Como ondas sucessivas voltam ao palco 0s outros atores, os passos de danga e as falas que se multi plicam e se simplificam. Relembrando Marylin Monroe de peruca loira mas embaragada, a sas, vestido longo de veludo vermeiho, no qual, como uma pro tuberancia maligna, se destaca um peito sd, um individuo,com voz afinada canta scb a melodia conhecida "My heart belongs to daddy" palavras sem sentido entrelagadas num "to be or not to be - to be two ~ sabonete Lux das estrelas". Esta pe- culiar reelaboragdo, em que se fundem, sem escrupulos, pala- veas Shakespeareanas, a letra da miisica em questGo ¢ uma pro paganda, ilustra um bal@ que, por sua conta, apela 4 imagem de marca do filme "Cabaret". Cinco atores fazem evolugdes es tilfsticas em torno de suas cadeiras. Se malhas e botas suge rem a idéia de um vestuadrio de conjunto,asas, penas, coroas, flores, tipos de meias etc., insistem na diferenga de cada um. a A total diferenga das roupas volta a predominar ao surgir a miisica do conjunto americano "Mandril". No fooo de uma = luz indisereta que os apanha trocando de trajes no paleo, cada ator @ apresentado por seu nome verdadeiro e seu signo zodla co.*** Logo se lembra o passado cinsmatografico numa milsica em cujas pausas se discute o presente na base do "underground" na moda no inicio da década dos anos 70. * A cena incluindo "4s Bailavinas" © "a Puta" 8 chamada de “Yondlogo". AEim de evitar equivocos utilizarei a partir da- quia denominegdo "Mondlogo de Madame", 24 As cadetras #22 Signos ou HMandril 39 Tanto os textos sem nexo, como os passos descompassados de danga formando civandas infantis que se desfazem num disper- sar dos bailavinos, parecem enfatizar os direitos 4 criagdo individual, Na sua combinagdo preta, um so brinco, de bri- lhante, um colar de pérolas uma meia branca e outra preta, um cantor com voz apurada de baritone canta: "Vecchia América, do tempo de Rodolfo Valentino Jean Harlow era estrela, Frank Sinatra era bambino Sonhadores, sonhadores nao ten mais Gira a roda, gira a roda, quem d& mais" Na interrupgao do estribilho se aproxima de outro ator para indagar 0 significado de underground", "B que eu sou casado, tenho dois filhos a minha mulher trabalha fora e ela me dd a maior forga para que eu faga teatro, e eu procuro fazélo da melhor maneiva possivel" responde o interpelado, vestido de maneira tZo absurda quanto o primeiro, Sinultaneamente, num outro canto do paleo, golpeando seu pei to na mais sagrada postura de devogdo, outro personagem sus~ surra para quem possa ouvir: "a minha culpa... onde JZ se viu, € um absurdo,.. 2 um escandalo", Mas desmente a sua ima gem de santidade ao virar as costas. Da sua tinica de cet: azul adornada de venda branca na gola da suas asas brancas , do seu véu preto preso a uma grinalda de pequenas flores,nio flea senao o perfil desenhado nos lados de seu corpo, Agora se ostenta em toda a sua nudez se nde fosse pelas hoatas de pelica no seus pés. Renovam~se cirandas, o canto de wn segun do estribithe e recomega a pesquisa e a confusio no paleo: Cantor: "Vec8 seria capaz de explicar o que significa 40 underground Atop : "Fazer teatro @ um barato. 0 teatro ama o pevo. © povo ama o teatro. Enfim, underground... underground..." Cantor: "Esqueceu?" Ator: "Esqueceu? Esqueceu?. Envergonhado se afasta en quanto o cantor procura um outro. Cantor: "Meu amor, vocé acha que assim vestido alguém poderia dizer que se esta expondo ao ridiculo?" Ator: "0 que vem a ser ridfculo? Cantor: "Bem ridfeulo @ ridfculo, ora bolas!” Ator: "Ora bolas eu sei o que vem a ser, mas ridieulo @ uma resposta dificil de se perguntar” Jogos de palavras que tecem o humor na sua falta de sentido. Mas, e isto @ 0 importante ? sa0 falas que cobrem outras fa- las - as dos outros atores - e estas sie cobertas pela misi- ca como se fosse a intengZo do espet&culo de separa-los mais ainda de sous significados. Se os textos sao articulades e recitados até o fim, na realidade o piiblico mesmo que assis- ta uma, talvez duas ou trés vezes a pega, nunca tera a chan- ce de saber como terminam aquelas respostas cujo son foi ab- sorvide no vozerio ou pelo volume da miisica que recomeca. A sequencia chegando a seu término, ouve-se nitidamente Co underground) "8 o metvé"*, Esta proposital balbiirdia, desor- dem cénica e falta de rigor técnico @ ressaltada, pelo conm traste, na figura que se segue. No mesmo desempenho impecdyel, de todas as suas aspiragdes, a mesma pessoa que iniciou o espetdculo, ciltilande pela puy purina e strassdo seu biquini, desenha os passos fortes * Veoehia Anbrtica aL frdgeis da mais estudada danga. As batidas para frente e para tras de sua cabega e as flexdes dos joelhos, que descem bruscamente para apenas aflorar 0 chlo, provocan a admiragéo do piblico*, A agitacgdo volta ao cendyio com outro cantor, de chapéu cd co, vestido branco de franjas, que anima um rock: “Let me sing, let me sing Let me sing my reek and roll Mio vim aqui cuidar dos seus problemas 0 seu Messias n@o chegou Eu vim ever a moga de Ipanema Eu vim dizer que o sonho, o sonho se acabou" c vened Casacos de couro, bermudas, Geulos de motociclista, sainhas 42 curtas, seis atores acowpanham o ritmo desenfireado dos anos da década de 50.%* A este quadro sucede-se outro que con bre a sua atmosfera de alegria, transformando-a em sombras. Em poupas de lute, olhando-se num espelho um personagem mer- gulha e se perde na poesia de Cecilia Meirelles: "Eu canto porque o instante existe E minha vida esta completa Se ndo fosse por essa soiidio e abandono Vooas néo seriam vocés e eu nao seria eu" Entoando ent&o com voz calorosa de baritono, canta em fran - "Ne me quittes pas" de Jacques Brel.*** Das margens do 8 * Cayueo e Seeds of Life #8 Let me sing HOR Ne He quittes pas sofrimento e dor brota o rebuligo de uma festa cinematografi ca privada. "Como todos os anes, eu fago neste mesmo dia, eu comemoro o aniversdrio de um amigo meu, 0 ano passado eu trouxe aqui, no meu apartamento o Holliday On Ice, vocés se lembram? Este ane eu tenho umia surpresa agradabilissima para vocés, Advi- nhem quem vem para jantar? Ou melhor para cantar Com roupas debochadas, que seguem o mesmo tom de todas as anterig “pes, vo chegando os convidados, A 'anfitria’ os anuncia, um por wm ne sua entrada e os estimula a se manifestarem através de um canto ou uma caricatura gestual, mas a diversdo @ mu: 1B to mais para o paleo do que para a platéia, Com voz estudada e de trémulos precisos de barftono consagra do, "Mz, Jarbac" canta uma velha cantiga anénima francesa.De safiando~o na ivenia e fazendo-1he coro desefinado, a sua "trupe As Piradas do Ritmo" acompanham com apitos, matracas @ chocalhos. Cada uma ne seu tempo 'Dalva de Oliveira’ e 'Maysa'! se expressam com seus cantos subitamente truncados . A primeira com voz deformada pelo tem alto de voz, a segunda pelo tom grave e rouco, Paulette tvazendo para o palco -como Javbas ~ seu nome da vida real, completa a sequéneia. A grandes passos com suas pernas peludas nas sanddlias de sal to brancasjMae West'percorre de lado a lado o cendvio segui~ da por um par de 'convidadas' na expressdo apaixonada das "fds! de to querida super~estrela, Reajustando, de vez em quando , seus Seulos getinho contra o aplique que transborda do seu turbante, anuncia tev trazido um "filme de grande sacanagem". 0 espectader atento descobrir& na confusdo de tantas persona- gens e historinhas simultaneas, que uma falsa erianga com ar de 4 vontade, num gesto lento e indecente, desprende da 43 suas axilas um tufo de pelos grudados na costura externa do seu vestido. E, com ar mais vesignado ainda, repete a cena, tirando outra massa de pelos da sua calcinha bufante. Maso mesmo espectador ndo tera a oportunidade de apanhar, no mes- no instante, a conversa de duas 'convidadas' que puxam — em alta, velocidade, de um lugar para outro, um carrinho de bone ca; a solicitacdo, de outro ator. “a audiéneia,de "desenhar um cordeiro porque tem muite gente por al sem fazer nada" ou as gargalhadas provocadas por outra brincadeira qualquer,que animam owtra platéia: a dos atores. A ‘anfitrid' ndo se perde na organizacgo da sua festa e in - dignada pelo 'streap-tease' proclama “eu tenho algo melhor para vocés, eu tenho a minha magica", a qual num gesto apo ~ teStico d&-se a tarefa de fazer desaparecer uma “pulguinha ‘Wivian Leigh’ aparece em cena e em tom patético declara una versdo veelaborada do "Vento Levon". Circulando em torno do paleo e formando com suas mios wm gesto que lembra um al- to-falante, um ator grita: "Atengdo, concentragao @ waa cena dramitica", Ainda outro ator reconstrdi caricaturalmente to- dos og gestos da 'atriz' que deolama. Frquanto isso, como se fosse o retorno do mundo das trevas, na mela escuriddo de ou tra plataforma, surge a figura de ‘Billie Holliday’. A imita gdo dos gestos e de seu semblante sao perfeitos, assim como a dublagem das palavras de uma cangao original que passa em '‘play-back’. Os gritos, os risos, os dialogos sobrepostes se calam e ddo margem ao siléncio. 06 'eonvidades' compenetra - dos sentam~se em torno do estrado-Nessa solenidade tanta con centragdo constréi-se milagrosamente o espelho do teatro dentro do teatro. £ sd por um instante. No apogeu desta com~ penetrada cena em coro eclama~se ‘Cal’. ‘Gal’, que segue, 44a se copia a figura do original, canta, ao contrario, com una voz bem masculina,* Para dar fim a festa relembram o “tempo da roga" formande cirandas infantis ao compasso da musica "Serventeen" “Florestas de conereto canalizam o vento Destréi o trovador o meu herdi computador Do céu corre um lamento, uma paz ausente E volto a paz antiga, fujo do presente E deixo a cidade 24 pra tras***# wo Coe eeeeee Logo depois 4 0 tempo das "empregadas". Ao som de "eu sou assim" do conjunto musical "Q Novos Baianos", tr@s bailar nos vestidos de macacdo de posto de gasolina se embalam num samba engenhoeo ¢ de coreografia estudada. S6 os faz diferen 4s tes uns dos owtros suas toucas, aventais, sapatos de salto ou bota e algum outro detalhe.##* Num clima de sonho, o corpo preso pela malha rasgada onde brilha nas cadeiras o tapa~sexo de strass, totalmente recos~ tados no chZ0 da primeira plataforma - a mais distante dos camarins - a mesma pessoa que tinha levado e "Mondlogo de Ma dame" ¢ aninado a "Festa",deleita~se agora como se fosse num jardim imagindvio. Recita com voz grave enquanto ac lon~ ge se escuta a misica "Assim falou Zaratustra" cRichard Strauss): Mas quando chegaren os atores, cantores, bailarinos e os flautistas, comprem suas ofertas, pois eles * Festa *#Serventeen (sic) # A classificagho do motivo do quadro Foi feita por um dos atores; a denominagao € o nome da misica: Fu sou asain também colhem, incensos, que a pesar de serem fei- tos de sonho sao como bdlsamos para nossas almas. E, mesmo que vocés e nds n&o queiramos o nosso planeta , © nosso casulo passa neste instante por uma grande transformagfo: nés os homens, nés as mulheres, estamo =nos entendendo gragas a Deus. A duas formas Animus e Anima esto se igualando. Todos j4 temos Lido, é claro, Carl Gustav Jung... dear, voar para o ar, voar, soltemos as borboletas, voemos com elas, vamos bus ear o céu, a Felicidade, voai borboletas, voai, voai" Abrindo as suas asas, asas de retaihos, Jistadas, estampadas, floridas, evocando todas as cores, na plataforma do meio,dan gam as 'borboletas': no mesmo compasso, imitando uma a outra com gestos idénticos para se perderem finalmente na escuridio do palco*, Levada pelo texto chega entdo a coreografia possi velmente mais marcante na memSria do espectador, 48 No espago de uma danga a audiéncia parece ter a esperanga de decifrar de golp2 e sentido de tantos cédigos, seja estes su perpondo-se, desafiando-se, completando-se ou contrapondo~se como até agora. Falo dos gestos, da roupa, das palavras. Nes te nomente o ator parece condensar numa frase, a chave das prepostas transmitidas até agora na pegat "; eis que surge o novo renascimento, e com cle um novo ser trazendo toda a forga do macho e toda a graga da fémea, E facil com ele viver e atendé-1o, eu sd nao sei explicd-lo e o fago com um grito Ahhhh, .. ++ & 0 andrégino" 2 As Borboletas 0 limite dessa chave @ apontddo pela voz sarcdstica e estri- dente que contraria o tom dramatico da frase, Surgem trés corpos atléticos cobertos de rendas desfiadas, uma luva de box borrada de purpurina numa mao e na outra uma luva de ce~ tim coberta de anéis e pulseiras brilhantes; as forgas viris se envolvem e se perdem em gestos delicados. Irupgao e des~ fecho de uma luta violenta amortecida na derivagdo dos senti mentes erdticos, Para fugir de um quadro por demais signifi- cativo, emergem plenamente, outra vez, os cOdigos que dispa~ vam e se misturam "A pulga e o carrapato s80 dois bichinhos que grudam no pélo dos animais irracionais sugando at@ sua mor te, Bliminemos esses bichinhos de nds. A formiga um inseto vivo que nos cerca por tedos os lados; por mais que fagamos para elimina=lo, ndo conseguimos.Se gundo informagdes cientificas, a fermiga mantém una sociedade perfeita. 0 papagaio @ uma ave que, per in erivel que parega @ chamada de ivracional, Se nds ensinarmos o papagaio a falar, ele falara: arara , arara...” © lado racional desse mundo 'irracional' estoura de bom sen so frente aos farrapos humanes ¢ acs produtos de sua oultu~ rai numa prociss& sucedem-se os personagens, que na eva distoreZo velembram "Estatua da Liberdade" mancando, um dra cula arrogante, as testemunhas de um funeral, a velhice e a pobreza, um anjo pedentor (ou exterminador?) "oO urubu & outra ave, mas 55 quecome carnica. Se nés morrermes no mato sem cachorro, provavelmente sere mos esta carniga, E sagundo informagdes cientfficas» 56 0 amor constréi". ay Enquanto isso isto @ recitado, em cena, um 'bispo’ bate numa 'freiral*, Entra-se entfo na resolugao da pega (Final do espet&culo).No entanto, todas as proposigdes e formulagées iniciais sao reforgadas novamente. 0 retorno ao cotidiano comega pela a presentagdo dos atores, mas a mesma se envolve de fantasia . Saindo da sua meia escuridio, mudando a sua voz de falsete para uma grave @ despedindo-se lentamente da sua peruca que descobre uma calvice avangada, des eilios que remareavam 0 contSpno de seus olhos e enrolando a parte superior de seu maid até a cintura, o ator prossegue enquante o3 outros che~ gam en cena: "Tedo mundo pensa que contar tem fim. Todo mands pen= 8a que fim tem que contar. Quase todo mundo conta 0 que consta em contar, A gente acha que a gente, exis~ te, do verbo existiv, e diante disso a gente Formou wna famflia onde eu sou o mais machao de todos, sou a mfe. 0 Lennie € 0 pai eo Jarbas também € a mae. 5 como toda mulher eu tive que ter filhos, irmis, so- brinhas e tudo o que a mulher tem, e tive cinco fi- Uhas: o Paulo que chamo de Paulete,.o Carlinhos, de Lotinha, o Claudio, de Claudette, o Rogério, de Leni- trés irm3s: Reginaldo ta eo Ciro, de Silinha, Tenho que comega com RE, é Rainha Elizabeth, o Bayard, BA, Bacia AtlEntica e o Roberto € Rio Oregon. Tenho duas sobrinhas, o Benedictus € 01d City London e Claudio Tovar € simplesmente C16, disefpulo de Picasso". "E eu is aiguém, "Ah! € a magica da companhia” es~ grita m clarece o apresentador*. Desfile sa Appesentagdo da famiita 43 "Dzi Croquettes vai tirar a roupa’. Este grito parece ser u ma disposiglo para marcar a saida do palco e sua reincorpo- vagao na vida cotidiana. No entanto, nus (com tapa-sexo) iden tificando-se como homens mas, munidos do seus bods e ainda maquilados, questionam a veracidade desta dltima proposigio ao pepetir, de umd outra maneira a proposiglo inicial recitando" gente computada igual a vocés", Ao som de "Dzi Croquettes as Internacionais", largando @ re cuperando sucessivamente seus bods, repassam os momentos principais da Abertura do espetdculo: "Lili Marlene", "VG0 peunidos/Num grande abrago/Coragao do meu Brasil" . Desprovi- dimiindo a quantidade de infor dos de suas roupas, isto @, dij magSes expressas de una vez sé, denota~se melhor a marcagio estvita que rege a ordenagSo © desordenagio das coreografias, 4g Como se n3o pudessem dav fim a pega acumulam repetidas ‘apo teoses' finais: "gente computada igual a vocés, o Yé Que joucura, que loucura, que loucuva genial, eu vi Ali-Euba 2 os quatrocentos ¢ quarenta ladrdes que loucura, que leucura, uau nio me ievem a mal, ndo me lavem com sal, eu nido sabia (bis) The world is a state, the state is a world, that entertainment" Uma voz grita: “Amor...Amor,,. "ao som de uma descarga de ba nheivo, enquanto os outros se esfumam, A 'bruxa’ se precipita sobre o ator que iniciow o espetaculo. "Acabou'+* * Pinal (1) (2) ca) (4) c5) ce) NOTAS Magaldi S.,Jornal_da Tarde, $.P, 17-5-73, (Triguerinhe f,, Shopping News City, S.P., 18-8-74,. W. Nogueira GalvSe faz da procura da ambiguidade no livro Grande Sertéo: Veredas, objetive em st do seu trabalhoy No nogsa caso a anélise da estruture do aspetaculo serve somente come base enalftica para organizar os cap{tulos se guintes. Sobre @ necessidade dater o wspetSculo var (Cf: 21) da Sinapse. Para evitar a repetig&o do.‘sic’ advirto aqui que as ci~ tagdes entre aspas sfo literais: ndo observam concordan - cia gramatical ou 'eram’ de acorde como espfrito do espe téoulo. Roviste Veja, S.P. l-d-78. A denominagao das Fantasias pe tos ateres 530 0 objeto, parte TI (4). A ambiguidade em trés planos, Neste espetaculo, em que transbordam informagSes simultaneas, a melhor maneira de iniciar a andlise do princfpio que o es- trutura é "evidenciande as articulagdes principais"” dos dife- rentes niveis de expressio (Lévi-Strauss 1973:157 )1 Todos eles sugerem a ambigllidade, levantam paradoxos ou, pelo menos, questionam a fungdo esperada dos elementos e acessérios tea trais; mas estes niveis s&o hetercgéneos quanto a subst&ncia. Temos assim o cendrio, a técnica do movimento, a ocupagio do espago, 2 vestimenta, o texto, entre outras coisas. A apresen tag&o do enredo, a encenagao, as coreografias ea slaboragao da pega sdo de autoria dos atores; no entanto, para enriquecer © argumento vou comegar pelo elemento mais externo 4 partici-~ pagdo deles: a iluminagio da pega. Ela foi inicialmente monta da por um profissional do meio artistico, mas passou a ser manipwlads por membros do grupo.” A iluminacde A fung&o tradicional da luz, de orientar o espectador — para o significado central de uma determinada cena ou ainda suge- vir um elima, n&o ¢% conta do recado nas partes onde ha exces so de informagdo na pega. Desta maneira, mesmo sendo excessi- va, a iluminagdo ainda @ insuficiente, Enquanto se aplicava em deeifrar o cédigo e aprender a profissdo de iluminadora, uma amiga dos atones reclamava: “Reaimente no podemos eu € 0 X, seguir a pega com dois canhdes. Alias, eles (os atores) am bugam dos canhdes", A iluminagZo do espetSculo # feita por dois canhdes - foces de luz de intensidade maior para iso lap cenas = mas também por waa mesa que comanda no so minimo trinta e seis focos luminosos que véo delimitar as sequéncias e 03 quadros por meio de claro/escuros. A sua vegra de manipulagdo mais simples comega com ralos fo- cos para anunciar a sequéncia, um aumento gradativo de luzes em resisténoia na entrada de cada ator, a luz do canhdo para destacar o tema ou figura central, chegando-se ao climax com © uso & todas as possibilidades da mesa; desintegrando-se a cena, outra vez recorrer-se aos meios tons das luzes em re- sisténcia para terminar em "black-out". Acrescenta-se a esta composigio basica vavios claro/escurcs que marcam dentro das sequéncias os mumerosos quadros e, dentro destes, o desloca~ mento doe atores no palco. Para acabar, toda uma coloragdo que d& peso, intensidade e brilho aos sentimentos que se ex~ pressam. Mas ain@a existem outves recursos: painéis lumino - sos gue piseam quando ha grande animacdo em cena e pouca coreografia; luz estroboscdpia para alguns atores que gesti- culam e rodam numa parte do palco enquanto, simultdneamente, utilizam-se focos para iluminar o outro canto, onde cinco atores dancam com grande precisdo; um apagan ¢ acender inten sivo para varias 'apoteose' da dbertura e do Final, ete. 5 ou ainda de uma vez s6,tedos os efeites luminosos mais dois canhSes que insistem ainda em chamar a atengdo num ponto ou personage preciso. Ova, num espetaculo que transborda em movimentagdo, em rapi- dez na transmissdo de seus pecados, com cenas miltiplas > simuitaneas e mal delimitadas, sem disoriminar focos de atra, gdo como reupas, maquilagens, gestos individuais ete., ou seja, quase sempre um excesso de contetdo simbdiico que as vezes dA a idéia de confusdo, o paradoxo 4 ainda pretender que dois canhGes isclem alguns detalhes. A decoragao © espetaculo comega mesmo antes da entrada dos atores em ce~ na - e ndo termina quando eles saem. Mais do que um cendrio onde se exibem os Dzi Croquettes, temos a decoragao da sala de espetacule como se fosse para uma festa 'exc@ntrica’. Ex- cesciva e chamativa para o espectador que entra no teatro, @ quase inutilizada durante a fungéo. Aconchegante, ela @ o elemento primeiro que provoca a passaq gem do mindo cotidiano do piblico para e universo dos atores. E, sugestivamente, este coloca a énfase simbélica no campo astrondaico: estrelas, muvens, arco-iris, sol, lua e terra . Para completar o quadro, se acham algumas testemunhas heterd, clitas de sua cultura: sapatos, cabides, papel higiénico, brin. quedos ou, como lembranga do passado, uma cadeiva Luiz XY ,ou- tra moderna, uma pasta de executivo, Estes objetos e simbolos que se exibem ostensivamente em to- da a superficie das paredes e do teto, o brindo até o iltimo canto da sala (quadrada, cuja dimensao aproximada @ de 20 ms de lado por 8 ms de altura), sdo retidos somente como clima de transicdo para o piblico. Comegade o espetdculo esta de- coragde fica as costas da audiéneia e, é dispersada para dap margem somente Z presenga dos atores, no centro da sala. Du~ pante a fungdo sao usados unicamente os estrados, a tenda de tule da "bruxinha" e os cabides de pé onde penduram os boas. © abandono volunt&cio de tamanha decoragao coloca-se entdo como um questionanento da definigdo tradicional de cenépio . Istoficou- mais evidente ainda em outros teatros onde os Dzi atuaram, sendo que parte da deccragdo passara para o sagudo. A.utilizac¥o do espaco_cénico A superficie do cenario propriamente dito, ocupa trés plata- formas centrais na Area teatral, um caminho de safda dos ato, res para og camarins e wna sacadinha que se desprende da pa- rede por cima da platéia. Elas sdo, em geral, usadas alter- nativamente, sendo que o espago restante fica na escuriddo . Este sistema tem a vantagem de sugerir constantemente uma oeupagdo total do espago e, ao mesmo tempo, envolver sucessi vamente distintos segmentos da platéia, posto que o cenario 6 de ‘arena’ Mas, a este sistema de utilizagdo do espacgo cénico recorren- te no teatro tradicional, nesta pega os jogos cénicos, a dan ca, e a simples presenga e gesticulacdo constante dos atores, sugeren uma multiplicagdo de centros de atengao ausente nas outras pepresentagdes. E assim que o espectador ndo consegue dominar a todo momento o conjunto e vé-se na obrigagdo de escolher se deseja acompanhar wn detalhe at® seu fim, ou mu- Gay constantemente sua atencdo e ficar com a sensagdo de ter sempre perdido algo. A téc: © mesmo se da na composigdo da coreografia. A danga tende a configuragdes harmdnicas do conjunto de atores onde todos os movimentes estdo coordenados, mas logo em Seguida estas for- mas se desapticulam como se se tratasse de um ensaio somente. A imagem que melhor Lhe corresponderia seria a de um calei - doscépio onde a cada volta as partfculas se espainam para se cristalizarem, no momento seguinte, numa forma geométrica 53 inprevista. Existe uma marcagio rigida nos lugares ocupados por cada pessoa, mas a impressdo de confusdo se dé pela tro- ea constante desses lugares. Se nos detivermos mais ainda, perceberemos que se superpdem varios cédigos: ordem/desordem; o afa de perfetgdo no gesto/o albarde ete. Na anélise do "“music~hall", Barhes diz que a fi- nalidade do espet&culo @ por em evidénela o “ato facil" de um gesto, fruto de um trabalho elaborado e “camuflagem da de+ sordem" (19723117), Nos Dzi, além disso, hd uma intengdo de vevelar, por a nu, essa desordem, "o albarde", A palavra albarde, como tantas outras postas em ciroulagdo pe los atores, pode ser utilizada no seu sentido tradicional prd prio, isto @, de coisa mal feita - em geral roupa costurada sen seguir os padrdes adequades ~ como de desordem, 'bagunga’, Fazer uma coisa atharde tambm fonte de criagdo, justamente porque disrompe os padrdes comuns de faz3-la, Entao, ac mesmo tempo que valorizam um dos lados dessa equagZo - 0 af de perfeicdo ~ dio também énfase e lugar ao "albarde". Amisica A trilna sonora é a que d&o vitme do espetaculo. Bla @ que divide os quadros, marca a entrada e safda dos atores e orien ta a iluminagdo. Salvo uma exeegdo - no Mondlogo- ela ~ con- tinua. Se as melodias foram gravadas, este ndo 20 caso da maioria das letras, Sdo reprodugdes, adptagdes - jungZe de varias letras conhecidas com letras inventadas ~, ou de autoria de membros do grupo (sete sao do ‘autor’ do texto e duas de outro ator), Estas iltimas sdo geralmente cantadas com voz grave mas as suas palayras sdo ininteligiveis, seja porque trata-se de letras inventadas sem sentido ("das ister para- ni") oy porque so mal articuladas ov ainda porque se su- perpdem a outras falas. Quanto as cangées de conhecimento piblico, pelo contraric ‘sdo cantadas com voz aguda e somen- te esbogadas. Mas existem excegoes. As mais evidentes sao a readaptagdo de "My Heart belongs to daddy" (em voz aguda) e "Ne we quittes pas" (em voz grave) que sao cantadas na integra. No entanto, devido 2 prépria dinamica do espetdeulo como ve vemos mais adiante, esta gravagdo de melodias com um tempo determinado, também deve adaptar-se aos alongamentos ou dimi fiveis da noi, nuigdes da apresentagdo de alguns quadros, var te para noite. Esta falta de sincronia era o desespero dos técnicos de som e de luz. A_vestimenta A vestimenta "Dzi" ndo @ propriamente um figurino mas uma acur wlagdo de varias pegas desajustadas(maiores ou mencres); desapsumadas (aiper abevto, bainha descosturada); mal vesti das (algas do vestido por debaixo do brago) ou podem — ser sobrepestas umas fs outras (roupa ‘interior! com roupa 'ex= terior', uma blusa 'kaftam' presa a uma bata de padre que agora cumpre a fungdo de sainha, ete.); roupa de preferén - cia de tipo 'mulher', no entanto, combinada a uma de "honem Todo este conjunto se cobre de pailietés, purpurina, se en feita de flores ou fitinhas acetinadas e usam-se penas , leques e roupas que lembram os "shows de varietés". Ha uma troca constante de roupas do comego ao fim do espeta- cule. Todos os atores vestem-se de maneira diferente. Ha, no entanto, alguns niimeros que procuram semelhangas mas mantém diferengas nos detalhes (toucas, sapatos, enfeites). Se se apresentam-se yestidos, acabam com maquilagem mas sd com tanguinha. Visto no seu conjunto, de todos os "elementos que nunca fa - zem parte de uma série definida" (que é como M. Douglas 1970: $1, vé a ambiguidade), o ponto que chama mais a atengao do espectador € o contraste dos corpos como vestuadrio., Afastan do-se dos denominados "shows de travestis", das formas cari- caturais difundidas pelos meios de comunicagdo de massa (por exemplo, o cinema) em que individuos masculinos imitam ° esteredtipo da mulher coma maior semelhanga, estes atores exibem barbas, corppes viris, nao se depilam, nao usam 'seios' nem procuram os artiffeios da semelhanga. Seja por excesso, ou por omissdo no desempenho de qualquer papel artistico, sdo quatro as pessoas que se destacam do pleco sélido que forma a unio dos atoresmm @ressaltado pela danga, outro pela fala, um terceiro pelo canto e um quarto , que sem ter uma atividade artfstica especial, tampouco atua com os demais atores. ional num 0 'bailarino' lustra seu talento e nica profi quadre iinieo de danga individual. A sugestae do 'afa de pen- Feigdo' @ posta em relevo pelo biquini de strass que veste e, simultdneamente, o afastamento de qualquer outro acessér: teatval na composigdo da cena. Além disso, cabe lhe a parti cipagdo em todas as coreografias de melhor desempenho corpo- val. Ele apresenta e fecha o espetdculo. Na vida piblica @ conhecido como o coredgrafo da Companhia. No espetaculo é apresentado como pat da familia. © texto da pega, @ fundamentalmente levado por outro ator. Sua competéncia profissional desafia a prova de manter um mo nologo de larga duragao sem o apoio de outros atores em cena. Por outro lado, se canta varias miisicas scompanhando as coreg grafias, seus escassos passos de danga sempre destoam do conjunto. Eo autor confesso do espetdculo - palavra gendri- ca que inclui texto, misieas e idéias no conceito do grupo.£ amae da familia, Observe-se de passagem que simbolicamente parece haver uma troca no reconhecimento de esferas de comps téncia entre pate mde se comparado aos valores tradicio ~ nais do contexto. No espetacule o pat @ o dono do corpo, por assim dizer, e & me compete a parte intelectual. A vovd 2 o cantor 'profissional’ do grupo. A profissionalida de mareada deve-se tanto a sua voz de baritone como ao fato de nunca dangar. Acompanha pelo canto as principais coreo- grafias mas, a semelhanga dos anteriores consagra-se num so~ lo, Sua presenga fiea ainda evidenciada no Pinal, por ser o dnico a apresentar-se em maid inteinice, enquanto os outros sO ostentam tangas. Ele, como os dois primeiros, sGo os mais velhos do grupo? . O quarte papel que destoa da sugestdo de unido do grupo @ o da brusinha ou Mégtea da Companhia. Eo Gnieo que ndo tem status ‘familiar’ reconhecido. Nota-se que fica 4 margem dos niimeros de danga, canto, jogos cénicos, se ndo no seu papel 57 de bruza. No entanto, sua presenga se sobressai pela sua am- pla ocupagdo do espago nas fronteiras do palco e da platéia.A excessdo se faz no momento da Festa, onde desempenha seu pa- pel de magiea, Se por um lado, insisti que hd papéis centrais, por outro & dificil avaliar a participagdo respectiva dos dez atores res tantes. Dangar @ o ponto comum a todos estes. Além disso, a competéncia artistica & distribuida aqui, por uma atuagdo. maior no ramo das coreografias, ali, no canto ou ainda na mi- mica. No fim das contas, uma atividade suplementar compensan- ibilidades. do outra, transmite a idéia de igualdade de poss Porém, alguns elementos analfticos como veremos adiante, ques tionam por sua vez, a divergéncia no critério de repartigZo de papéis teatrais no grupo como um todo, privilegiando os quatro primeiros, Ha, na diferenciac#o continua de roupas e maquilagens de ator para ator (ainda que conservando a mesma gramatica ambigua mas, cujo exagero e abundancia canuflam oo individuo que as veste), na troca continua de posigdo de mar= cago dos lugares no paleo ¢ na possibilidade individual de desempenhar varies tipos de papéis teatrais, uma sugest@o de anulagdo de desigualdades. Para esclarecer esta aparente contradigao, basta comparar nosso material com outro tipo de "show de varieté", Assim,num balé terfancs, por exemplo, um casal de 'estrelas' que se dis tingue do conjunto dos outros bailarinos pela roupa e pelos passos de danga mais estudados, Voltando agora acs Dzi, e se- guindo a comparagGo no plane da danga, observamos que nem a- quele que destacamos como o coreédgrafo/bailarino tem privilé- gio de roupas exclusivas ou lugar central quando & um 58 + ‘4 conjunto de atores que dangam £ obvic, para o espectador, que ndo é somente profissionali- zagao ou o talento que regem - a todo momento - a partidpa - gdo de cada um des atores em cena, mas também essa intengdo de anulagdo de desigualdades. © texto Sobreposta & imagem global, o que provavelmente chama a aten ¢do, em primeira instancia, @ 0 texto, como se ele pudesse esclarecer o que tantos cddigos superpostos expressam conjun tamente (falo das roupas, téenicas-do movimento ete.) Mas de fato isto ndo acontece. No seu contetido ou ‘plano discursivo', ae peca comega pela ne gac&o de categorias que dizem respeito tanto aos espectado - res quanto aos atores (Nem Senhores, nem senhoras/Nos ndo so mos homens, nao somos mulheres) para junta-los em seguida numa outra categoria comun a ambos: "gente computada". Os a= tores, além disso so "internacionais" ainda que "made in Brasil 0 teatro entre ambas as partes se estebelece a par- tir de "uma nova cabega" que,por meio de uma formula os ato- res vdeo propor ao piblico (em troca do dinheiro que ele ob - viamente pagou).No que se segue fica duvidoso se trata-se realmente de um apelo 3 compreensdo da platéia em questdo. 0 que @ propesto na linguagem nio se desenvolve nem na conjun- gGo dos cédigos, nem no préprio enredo. Ha uma puptura de conteiidos de sequéncia para sequéncia como se quisesse fu - giv a uma trama espec{fica. © mondlogo central trata de formulas de aprendizagem de tea~ tro. Se esta passagem inclui um convite & participagdo 59 do pilblico, esta resume-se ao simples cumprimento. Nao hd nes te sentido uma proposta de compartilhar valores, Mas quando convida-se um espectador ao paleo, @ para incomodar seu supos to 'machismo', E voltam na linguagem as metdforas paradoxais, No momento em que se anuncia a chegada do"andrSgino} uma voz estridente ca~ goa. Numa outra sequéncia, mudando para um tom grave, a voz anuncia uma familia, que apresenta~se como o espelho deformaq do da vida real ~ a nfo ser pela figura do pai, que segue mas culina ~ onde as formulagdes se fazem em termos de papéis e status sociais. No entanto, por seren vidicularizadas e ao mes mo tempo assumidas, por entrelagar o cotidiano (os romes dos atores) como teatral, tais formulagGes deixam a diivida se tra taese de uma brincadeira. Na sua parte formal, o texto parece expressar tanto uma inten gdo continua de surpreender o espectador provecando uma simul taneidade de afirmagdes contraditérias, quanto de oferecer u- Ma sucessdo de met&foras que se quebram sem ser aprofundadas. A retérica constante @ a da ambiguidade. hoe Al&m destas formas préprias ao espetdculo, existem outras que se constroen em torno de ambigilidades. Fixando-nos, por outro lado, em qualquer contetido simbilico expresso por eie verifi- caremos que, tanto quanto interpretado na "orden cronolégica™ do espetdculo quanto de maneira superposta e simultanea (Lavi “Strauss 1973:193), esses contetides se constituem também de waneira ambigua. . Geralmente, nos mitos (segundo as andlises de Lévi-Strauss) e nos poemas e misicas carnavalescas (Da Matta, 1973) as tramas consistem em resolver uma situaglo inicial invertida ou ambigua. Pelo contrario, no espet&culo a primeira formulagao de categorias e simbolos ndo chega a se "resolver" ou dar uma solugdo, mas & reforgada de sequéncia para sequéncia. Re tornando ao material, procurarei ilustrar esses pontos refe- vindo-me a 'roupas' e 'gestos' tal como utilizados na pega e em sua realizagao cotidiana. Os elementos apresentan-se inicialmente na Abertura por uma indiferenciagdo dos géneros masculino e feminino: voupas: padrdo feminino contrapostoao padrio masculino, mas especialmente barbas, pélos viris, suicas ete. gestos: reproduzem tanto esteredtipos femininos como masculi nos (movimentos de quadris, gestos que significam'vi var a bolsa'/saudagdo militar, demonstragido de forga ete.) Escolherei detalhes das sequéncias da Peata, do Andréginoe do Desfile onde as mensagens simbdlicas quanto a categorias sexuais se traduzem de maneira mais clara’ Festa: 1 ~ reppesentagdo: personagem de Billie Holliday -Traja um vestido comprido, luvas 3/4, a cabega estd en - volta numa touca, a maquiagem bem composta e a voz dublada por uma gravagdo, isto @, os acessévios ca muflam (quase completamente) o sexo real do ator. 2 ~ sociologicamente o conteido remete contextualmente seja ao padrdo de mulher como objeto sexual, ou so de 'travesti'(a imitagdo artistico-comercial do género feninino com intensionada precisdo de seme- Lhanga.) : 62 Andrégino: 1- representagao: danga erdtica de trés atores (corpo de homem) enfatizando a contraposigdode luvas de box com luvas de cetim, gestos de es- tereétipo masculino e feminino. sociologicamente n&o remete (na época da pri - meira encenagdo do espetaculo) a nenhun conted do conhecido ou definido contextualmente. Na eronologia do espetaculo apresenta-se como um climax na discussdo ambigua de categorias se- xuais radicalizando a proposta de transgressao. Desfile: 1- representagao: um bispo batendo numa freira 2~ sociologicamente o contetido simbdlico sugere a deninagdo ¢ peder do hemem sobre a mulher numa sociedade machista, Pinal = nudez dos atoves provando que sao todos de sexo masculino, ainda que se munides outra vez dos seus bo&se maquilados, 2- sociologicamente temos ndo somente a apresenta, g80 dos atores com seus boas maS ainda o con- teiido integral da peca apresentada. Esta aproximagdo sugere o seguinte esquema: Abertura Festa Andvégino Des file Final ao edo Femininc Ambiguo Masculino Nutconteildo Mase ./fem. + do espetaculo Ora, estou me detendo na articulagdo cronoldgica de fundamen talmente dois elementos (roupas e gestos) expressos na pega. Para especular sobre o valor simbSlico real temos que B2 considerar as mensagens a partir dos cddigos de expressdo a- gindo conjuntamente: a vestimenta, a ocupagdo do espago, a técnica do movimento, a misica etc.,se bem que sao cédigos que se articulam da mesma maneira no espetdculo, acham-se no pa- radoxo de se superporem, se contraporem, se completarem ou se desmentirem, dando como resultado a ambiguidade no nivel do conteldo. Fo caso das trés sequéncias principais aponta- das acima: Pesta : contrariamente 3 animagdo das outras representa gdes da Festa (Mr. Jarbas, Mae West ete.) quan do surge Billie Holliday faz-se um siléneio no paleo, os atoves sentam -~se em volta do cend - rio. Apés outro quadro em gue se fala de 'streap -tease', a ‘anfitria! di "Eu tenho algo me~ Lhor para voeés (seus convidades-atores) eu te- nho a minhalmagica", desmistificando assim qualquer intengdo de valorizagdo das cenas ante viores. Andrégino + nesta cena onde gesto, danga, roupa e texto a - nunciem “a aparigdo do novo ser tendo a forgado macho e a graga da fémea",o contetido da propos- ta da nova categoria sociossexual vé-se ridicu- larizado na pronunciagdo da sua classificagdoon de "Andvégino" € dito em tom de voz fina con, tmastando com a voz grave anterior. Desfite : a cena também € conotada com um significado di- verso posto que sobreposta a encenagdo de domi~ nagdo uma voz grita: "Sé o amor constrdi” Na diacronia do espetdculo, a mesma ambiguidade permanece em todos os quadros: o enunciado na Abertura permanece invaria - vel até o Final .Desta maneira, mais que um desvendamento da 63 formulagdo iniecial a trama urde-se numa acumulagdo de propos, tas que por ‘um processo de leves alteragdes ou alternagdes ‘ficam sempre heirando os polos dos géneros masculino e feminino. Feminino Festa Ambiguo. Abertura Andrdg ino Final Maseulino Desfile Nesta dtica, a intensa troca de vesuario, a sucessao de dife rentes quadros que caracteriza a pega, mais do que elaborar um enredo parece conotar cada vez mais a idéia de transgres- sao. Esse tipo de processamente que afirma, nega, anula os sentidos ou permite qualquer interpretagdo & conhecido em Linguistica como o "grau zero“! Quanto 4 constatagdo deste fendmeno na pega,nos remete a un discurso que propde tanto por em xeque as categorias sociossexuais conhecidas contextual - mente ou sugeridas na pega quanto a reafirmagdo simultanea de todas elas, isto €: homem, mulher, travesti, andrégino. Aqui ridieulariza 'o machismo', ali n3o deixa de ser sugestiva a- t€ no seu contrario, quer dizer, a prolongacdo do ‘machismo’. Sendo que o “andrdégino", por exemplo, tem"a forga do macho" que poderiamos entender como o poder social formal, junto 4 “spaga da fémea", quer dizer, os beneficios, subjacentes a esta condigdo. 0 terceiro passo na anadlise sera ver a posigdo e relagdo dos varios conteiidos simbdlicos para poder avaliar priovidades na interpretagdo do significado sccioldgico da pega. 64 0 dilema da separagdo das categorias simbdlicas do espetaculo como um todo da categoria sexual em particular, reside no in- bricamento de esferas de uma mesma realidade social. 0 proble ma surge quando a variedade de proposigées e assuntos tratados no sdo exclusivos da categoria sexual por mim escolhida como tema para reflexo: entremeiam-se propostas de "familia" como organizagdo grupal, ambigdes de profissionalizagao debatendo- se contra padrdes tradicionais, reivindicagSes de direitos de expressSo sem se ficar preso a linhas de pensamento cadu- duco , ecloso da liberdade individual sem estar abafada por um empreendimento grupal, entre outras coisas, Ao mesmo tempos a cuperposigSo destas esferas no corresponde send a uma me- taforizagdo da realidade na sua complexidade: ndo existem com portamentos, valores e s{mbolos sociais isolados mas relagSes_ de elementos de distinta ordem e peso social. Ainda assim, no 5 espet&culo, o entrelagamento constante e simult@neo das dife~ rentes propostas em quase todas as sequéncias faz com que eles sejam t&o significativos umas quantos outros, sem privileziar um determinado tema de discussdo. Fstande fora da envergadura desta andlise poder testar separa danente a posigdo e velagio dos varios conteiidos simbélicos presentes no espetdculo, usarei estrategicamente o contextoda Festa que concentra as proposigdes do grupo recém eitadas acima como as perfiladas na abordagem dos canais de expressao, fuma dag cenas preferidas dos atores, Para o pilblico, sem ad vida artisticamente e estruturalmente a menos consistente. Como num estado embriondrio, esta cena reproduz o espetaculo como wn todo pela sucesso de pequenos quadros que em certa forma se sucedem, se opdem e se repetem indefinidamente. A Feeta comega por um paradoxo: a utilizagdo do ambito tea - tral para representar uma manifestagdo de carater privado . Ndo se trata de uma situagdo criada pelo enredo da pega: es- ta curta cena, caética pela animagdo e conjungdo de agdes e mensagens deixara a plat@ia praticamente 3 margem do que se desenvolve nela. 0 espectador ndo tardara em perceber a coe- xisténcia de duas intengdes do grupo: a pr&tica privada, com sentido para eles mesmos, e a representacdo de finalidade ar, tistico-comercial. A sugestGo ficara realgada mais tarde na aparigdo da Billie Holliday (exemplo apontado anteriormente) onde da resultante de efeitos luminosos conjugados 4 locali- zagdo dos atores se construira magistralmente o espelho do teatro dentro do teatro, de uma representagao da outra, de um Publico para outro publico. ~ soos as 668 No tratamento cénico, destaca-se por exceléncia a alternancia de um centro de atengao a varios Focos ou a confusdo geral devido ao desempenho artistico de cada ator, 4s histérias mil, tiplas e simulta@neas que se criam ou simplesmente as situa - gdes pavticulares aos atores e incompreensiveis para o espe tador (lembrenos 4 Enfase desta constatagSo ao falar da sequéncia Vecchi América na descrigado da pega). Mais ainda eonfunde-se a liminaridade do palco e da platéia pela inten- sa circulagdo dos atores entre as duas dreas, Entretanto, o verdadeiro espectador ficard com a permanente sensagao de es tar ao par do que se passa e ao mesmo tempo nao estar, na tentativa de decifrar mensagens parceladas ou de prestar a- tengdo 4 balbirdiageral dos cantos que cobrem falas, de gri, tes que se superpoem a falas ou do som que cobre o todo, E neste sentido que se pode considerar o espetdeulo elabora- do em dois niveis como no seguinte quadro: Consumidor Pratica Espetaou- lo Panticular Produgao A trama da Festa se tece sobre a participagaio artistica ou gestual de cada um de seus (atores ) feonvidados'’, 0 resultado sera a justaposigao de géneros de programa de ‘auditdrio' (ca 37 louros, radio, televisao), de festa infantil, de cantiga medic val, de uma sessdo de 'streap-tease', de declamagdes dramati- cas @ apoteoses. Allas, flagrante repetigdc de todas as outras apoteoses (Abertura, Cayuco, Mondlogos Signos, Pinal) e temas dispares que oferece a pega inteira. No nivel da pratica sccial o imtuito d4 o direite de expres - sdo a cada ator, casando, por exemplo, o “profivetonat” com 0 “albarde quando numa mesma composigdo a voz de baritone vé - se entrelagada com vozes estridentes e desafinadas acompanha- das de matracas, chocalhes e pandeiros. Mas é 0 beneficio da individualidade através do respeito 4 divergéncia de faculda- des e do incentive 4 participagao de todos os atores que trans forma a proposta individual em verdadeira proposta de grupo. Neste extremo a fungdo artistico-comereial do espetaeulo acha -se fortemente afetada. A ela opée~se a criag&o artistica como manifestagdo livre e nao coercitiva. Em sintese , o significado da pega enquanto pratica particu~ lar dos atores remete as sugestoes: 1-Um af@ de dar oportunidade a cada membro do grupo ao mesmo tempo que uma forte ccesdo entre eles. 2- Uma sugestdo de liderangas que se opde 4 anulacdo de desi gualdades. 3- A procura de uma profissionalizagao ao mesmo tempo que uma invasdo do privado na Grea piiblica. \- No se incluir nas categorias reconhecidas contextualmente, inventar novas e ironiza-las (andrégino, familia) S- Quebray padrées e critérios de valores aceitos sociaimente mas comevcializando a proposta num espetZculo teatral. Pondo em cena diversas categorias e classificagdes e debochan do delas publicamente, mas, ao mesmo tempo, dando realidade se aos papéis teatrais e tomando consciéncia do ridicule que pro vocam fazendo aparecer todos os personagens de literatura, te levisdo, cinema, ou falando de coisas simples, do dia a dia , e levando-as ao absurdo, mais do que favorecer a reflexdo so- bre uma categoria simbGlica particular, a pega sugere que os atores pare¢am quebrar como conformismo das classificacdes ciais e a distancia entre a representagde teatral ¢ a vida cotidiana. A partir desta sugestdo, o préximo passo sera a analise daqui lo que parece ser a dimens4o mais importante para a compreen- sao do significado desta pega para os atores: a relagdo entre a vida e o teatro. chy) (23 (3) 4) (8) (67 NOTAS, Algumas estratégias analfticas s&o inspiradas da andlise de mitos de Lévi-Strauss (1955 @ 1958/59). Originaimente a iluminagéo do espet&culo apresentado no T, Treze de Maio foi montada por Emilio de Biasi. £0 Gnico que o abandonou apés um ana (margo 1974] seus PS péis foram preenchidos pelos outros Oz. Por sua propria concepg’o cantral e circular o teatro de *arena® era propfcio para calecar todus os atores num mesmo pé de igualdade quanto a lecalizagao. Na mudange pa rao paleo italiano (Teatro da Prada, ReJ., 1974, etc.) , a astrutura de tablado em varios nfvais de altura tinha a mesma finalidade de ressaltar conjuntamente todos os eto- res. Ainda assim a parsist@ncia’de lugares centreis (na frente ou no maio do palco etc.) sra dissolvide pela prd- pria composicao das carsografia, obrigando continuamante — os atores a ceder seu lugar para outro, Para ilustragaa dos cenarios adaptados aus paicos'italianos'var © fatagraq fias referentes ag T. Bobino(Paris). fas primeiras versdes do espetaculo (noate Pujol (1972) @ Tonton (1973) nfo se isclam o andrdgino coma tema para refloxdo. Mais tarde como que numa rasposta do grupo 4s expectativas do pdblico e da crftica introduz-se a sequéa- eia de andrdgino tal como apresentado na vers3c qus ora analisamos. Porém come foi dite antes(C#2Zl) Ss diferentes @ pocas corresponde uma énfase maior num determinado tema, relsegando eo segundo plane os das épocas anteriores, Ues~ ta maneira o quadro do andrégino cadera seu luger para ou~ tros canteddes, até desaparccer totalmente no tempo como sequéncia (Janeire, 1976). Pordm qualquer dos temas deslo eades do lugar contral na diacronia da obra ou sm parte suprimidos ficam como vestigios entremeados no resta da trama. Apoio-me fundamantalmente nos conceitos teéricas de Barthes, R. (1953) Grau Zero na Eseriture , Cultrix,S.P., 1972; @ (1970) Lt Empire des Signes, Skira, Paris,1970. Parte IT VIDA E TEATRO Estourou uma briga rapida e violenta. Fspar ramou-se murros, voou sangue, e ainda alguém pegou o dinheiro dos salarios ¢ jogou-o como confete. Minutos depois, acalmados, reuniram- se no camarim, Num siléncio traégico,cada. um neditava. A finica frase foi de consenso: "ho- je n&o faremos o espetdculo” Faltava meia hora para a sess3o do dia, o pi- blico inquieto na porta do teatro recebia con fuso o dinheiro dos ingressos de volta. No ca marim ascomou Tuca feito um vule%o e, no meio de seu discurso Fluente e tenaz, ressoava ca- da tanto um conselho: "Ieso néo se faz, voces tém que ser profissio nais, eu falo porque acredito em vocés, s%0 a tiniea coisa no Brasil que vale pelo momento , acredito mesmo, 830 um elenco, sdo dangapines que tem que assumir" - "Yaleu amor, tuas palavras" cortou-lhe 9 coredgrafo. f que nfo somos elenco, somos um grupo, n&o somos dangarinos, somos gente..." Teatro da Praia, Rw. - Maio 1974. Em termos gerais, um espetdculo suzere o contrato artistico e/ou comercial com um pilblico que, om retribuigio, © legitima e propicia o sustento econdmico de seus realizadores, Essas sSo varidveis de peso no nosso caso. Porque furtar-se entao a este trato? Consideremos primeiro as razées que criaram a pega. Ela foi engendrada a partir de uma proposta de vida comunitaria entre um grupo de pessoas e esta postura continua dinamizando a criagZo artistica apds a encenag&o piiblica,Para os autores/atores nfo ha coexisténcia de dois projetos, ur de vida e outro de palco, que se desenrolen paralelamente ou suponham certo grau de autonomia de esferas. De fato, o es- petdculo se extinglle quase contemporaneamente ao desvincu~ lamento de varios componentes do gPUpo s quatro 63 anos e meio apés sua eriagoh Entre outros motivos, mas fundamentalmente, pela fusdo de projetos aparentemente inde- pendentes (representagao cénica e composigao do elenco), e por razdes éticas, os atores que continuam realizando a pega n&o acharam sentido em prolongé-la. Esta postura nao signifi- cava a desvalorizagio da finalidade pilblica da obra, mas sua sujeigzo a fatores mais complexos que transparecem também nu~ ma segunda peculiaridade: A> "Pensar que alguém chamou hoje de Buenos Ai res para comprar o show B- A gente nao quis vender, falamos que sé a gente ia fazer Eu -Que teria acontecido se vendessem o show? fe ant SS como texto nao iam fazer nada. $d poderia ser se eles sacassem o barato fis cando com a gente. A gente improvisa tudo, cada qual faz o que quer. B+ Seria impossivel! De ver, somente, n&o sa- cariam. Mas seria interessante, A pega com o mesmo texto 34 muda o tempo todo" Globalmente, o conteiido da representagao teatral tira sua matéria prima da dramatizag3o tanto de experiéncias passadas quanto de um presente da vida dos atores sempre em transform3 cho. Por outro lado, o prejeto do grupo, além das fronteiras do espago cotidiano, precisa da contre-partida do paleo para vealizar-se plenamente, Esta concepgo de teatro se = afasta totalmente da usual, em que as encenagSes so vealizadas por intérpretes que no possuem vinculo especial com a eria~ gHo do texto, ao mesmo tempo que se distingue dos projetos mais modernos em que eles s40 concebidos em parte com ° : . was 2 apoio de um elenco estavel e participante. Como resume 70 un componente do Grupo Pau Brasil® : “o piblico geralmen te confunde a participag3o de um elenco na montagem da pega com a livre oviatividade dos atores todos os dias Ora, @ precisamente nesta Ultima possibilidade que reside o especffi co do tema que tratamos. A contribuigao estética e de argumen tos cénicos nao somente formalizam inicialmente o esqueleto da pega Dzi Croquettes como, repetindo-se diariamente, insu- flam-the virtudes particulares, se bem que nem sempre capta das diretamente pelo piblico. Neste sentido, o estudo dos con telidos socicldgicos da pega nos remete 3 concepgées essen- ciais para os atores. 0 espetaculo & feito para "todo mundo crescer e cada qual as- sumir", Cresce-se na vida e no palco, este sendo: “duas horas para botar tudo para fora" pela danga, recitagdo do texto,com posigio, pantomima e criagao para, na vida, “dar-se valor como pessoa", Para tanto - na vida e no teatro ~ "ninguém es +4 afim de cortar o barato de ninguém", isto € "todo mundo po de fazer o que quiser". Ainda assim, "somos gente heteréclita que ten uma meta em comum, Heterdclita porque todos somos dir ferentes como pessoas, meta em comum porque queremos — viver juntos, curtir o mesmo barato, perder as travas e tudo o que tinha condicionado a gente, como a educagSo e tudo o que en volvia a gente e nada se resolvia. Agora pelo menos, estamos trabalhando e teatro para tudo isto é um barato”™. — de se esperar que, com tais nogdes de pessoa frente a de grupo e de teatro frente 4 de vida, o corpo geral do espe taculo contenha um minimo de flexibilidade de modo a poder ab sorver as expectativas de crescimento individual. Segundo autor da pega: "Esse & um show onde se fala de amore vida. 71 © texto & t40 livre que deu entrada a varias pessoas e onde todo mundo fala e age. A gente @ livre, a gente esta enten - dendo melhor as coisas. Porque o mundo esta sempre af, fa - lando as mesmas coisas. F a gente descobrindo coisas que tém muita verdade, que ndo foi dita e vivida, entdo se resolveu assunir uma legal, ninguém esté afin de sectarisno’ * Outros componentes do grupo esclarecem o conceito com suas palavras: "Se a gente @ um grupo deve-se ter os mesmos prin~ epios (de comportamento), mas nao pensar a mesma coisa por- que senfo a coisa vira chata" ou "nosso trabalho nao é marca, do por ninguém" e ainda, "neste espetdculo tem transas de to dos nds". Esta viséo fica melhor definida quando os atores emitem opi- nides sobre outras produgées teatrais e julgam os valores des tas segundo seus préprios parametros: "o texto (Mokinpott) é muito bom, mas o que quer dizer o Figurino e o cendrio? Sera que todo o barat e a transa dos atores fica sd nisso?"® 0s atores devem coar e moldar o texto, o entrecho ou a maté- via prima com sua prépria participagdo: “se uma coisa € boa com una pessoa, com muitos sd pode ser muito melhor. A unido fas a forga como & dito no espetdculo". 0 ponto chave do ar~ gumento sobressai em outra critica a uma produgdo artistica de projegdo comercial: " (Pippin) € um espet&culo sé de apo teoses que nem & curticdo deles. Toda a coreografia foi copiada no exterior. Eu jd trabalhei nesse tipo de espet&cu- lo. 0 ator a peca da mAguina que & o sistema. Ele chega 14 para trabalhar e tem até que marcar sua chegada com um carto, que nem numa fabrica. Entao voce imagina o que 3 ator em cena: ele fica preso a marcagdo dada pelo produtor e coredgrafo.Se fizer coisa diferente j4 dao um qual @, se nao @ despedido..” 6 72 Todos estes conceitos vertidos em termos de "pensar a mesma coisa", "barato dos atores" ou "seguir a marcagao" traduzem sistemticamente o temor de ficarem enquadrados ou dependen tes do sistema de teatro tradicional e, na mesma linha de pensamento,dequaisquer tipo de limitagdes sociais que os sujeite. No entanto, cutro valor dos Dzi Croquettes @ a proposta de grupo isto é, "apoiay-se um ao outro", "entregar-se e con - fiar nos outros" ou “compartilhar tudo e desligar-se do res to". £ desprender-se de outras amarras para concentrar- se no destino unissono. Ora, esta idealizagdo confrontada com a intengdo de ndo subjugar ou aniquilar o individuo vai a- companhada da projegcdo competitiva de todos os membros: "No nosso espetaculo, tem muite de quem pula mais alto, mas @ bom porque obriga as pessoas a crescerem para ficar na alta va des outros". Tal era a contenda e queixa do finico ator que se separou do niicleo apés um ano de trabalho (margo de 1973 até marco de 1974): "Amor e briga sdo princ{pios para se formar um grupo? 0 espeta@culo @ de bom nfvel para minha carreira, o grupo néo @, @ muita confusdo. Bu tenho um exce lente niimero de canto, mas um sé. Eu gostaria de saber em que fica o meu papel o resto do espetdculo se ndo cantay perto das coxias e por cima de tudo ter que empurrar os ou- tyros para que entrem na hora certa no palco". Mas seus pro- blemas pessoais ndo eram diversos dos da maioria, e na ver- dade estdo presentes na prépria concepgdo do espetdculo. 0 desejo de furar o esquema de teatro tradicional dos Dai Croquettes se apdia nas raizes diferentes de um projeto de grupo que da o estilo da vepresentagdo teatral. Na intengdo de dar apoio moral aos atores numa de suas crises internas 73 por causa da desorganizagdo no palco, comentei a conferén - cia de-Grotowski que acabava de assistir,” Meu argumen to de consolo era que ele tinha demorado trés anos para for mar seu grupo teatral, a que um componente do grupo repli- cou: "A diferenga @ que ele é uma pessoa de teatro que quer formar um grupo, enquanto a gente & um grupo que guer formar_em teatro” Fm suma, sua caracterfstica fundamental reside nfo somente na concepgdo segundo a qual varias pessoas tecem um projeto teatral sobre sua vida em comum mas, ainda, que o conoreti- zam na agdo sem grande espago de reflexdo e distanciamento. Urdida nestas bases a proposta global (artistica e social) que @ levada diretamente @ pratica, vai atravessar indistin tamente a vida real e a representagao teatral: o privadovai * passar 4 vida piiblica e vice~versa. cla C2) 3) C4) (5) (ed 073 NOTAS Alguns dos antecedentes sociais dos atores figuram na Introdugao. Citemos as experiéncias dos j4 cl4ssicos Grupo Opiniao e@ Teatro de Arena. Ver,por exemplo, Peixoto, F. “Entrevista com Gianfrancesco Guarnieri in (1978) Civilizagao Srasi - letra, Tomo n? 1, Rio de Janeiro, 1978 ou, como axperién cla mais recente, 9 grupo teatral "Asduval levou e Trom= bone" in Folhetin n? 96, Folha de $0 Paule, 19-11-78, Depaimento feito no programa "Teatro Abarte "da rede Cul- tural de TelevisSs, S.P., outubro 1976. Digrio de Baurd, BaurG, 13-5-73. Mokinpott P. Weis encenado pelo grupo "Teatro Opinida de Porto Alegre" em S40 Paulo, feversiro de 1976, Pippin de 0.H. Hirson e S, Swartz = tradugéo e direg3o de Flavio Rangel # Paulo £, Pinheiro, Peca Encenada em Margo ds 1974, Rio de Janeiro. ConferSncia de Grotowski, Rio de Jansiro, Junho de 1974, Iprupgdo de possibilidades: o projeto do grupo . (vida) 0 projeto inicial dos Dai era "assumir o barato na sua tota~ lidade", isto @, tanto na eriagdo, montagem e representagdo teatral como na infra-estrutura desta e dos componentes do grupo, compartilhando trabalho, lazer, dinheiro, organizagdo doméstica ete. f sobre esta proposta de vida comunit4ria que se cultiva a imagem de familia. Longe de renunciar a seus personagens:de avé, pat, mde, etc. pertencentes & representagdo teatral, os prolongam na visio que tém das relagGes no grupo: "@ uma brincadeira, mas é como nas outras famflias, o X 60 pai porque @ autoritario, Y @ a mfe porque 6 conciliadora, as filhas porque sdo as pes seas mais novas, as tias porque s&0 como todas as tias, que- vem organizar tudo e se metem em tudo, as sobrinhas s80 as que chegaram quando o grupo j& estava formado", No plano in- timo alguns componentes aplicam-se com devogdo a estes pa ~ péis e, pelo menos pat e¢ m@e respondem sempre por estes apelidos. © cimento do conceito de familia @ reconhecer-se como per- tencendo @ mesma esséncia. Sem aprofundar ainda a sugestdo “75 de lideranga , se de um lado ha diferenciagdo nos papeis fa miliares, como na familia tradicional , de outro lado tende - se a sublinhar a permissividade de poder assumir = qualquer papel social e teatral, "A gente tem um trabalho maravilhoso, a gente néo s6 aprende a dangar, ser ator, mas tem possibili dade para tudo, néo tem? Somos donos da Pirma, (a Companhia Teatral) temos autor, coredgrafo, cendgrafo, todos sio figu- rinistas e maquiladores, o Ae B j4 est&o aprendendo a fazer iluminago, eu quero que © faga fotografia como falou e dou a maior forga, o 2 disse que queria pintar eu dou meus pin- c@is e tudo se ele quizer. Voeé poderia escrever um texto pa va o Mordlogo. Eu penso que todos teriam que fazer o Mondlo- go, seria a grande prova das pessoas. FE se quiser pode-se fa zer outras coisas, @ sé ver o que quer fazer. 0 B sempre vai _ se encarregar da administracdo. Todos teriam que assumir uma vez esta coisa. Além disso, ganhamos noeso dinheivinho, por- que ser ator também @ ganhar dinheiro, af da para comprar cada um suas coisinhas simples". Em suma, "se formamos uma famflia, nao é para se cair nessa de familia burguesa". Um programa de metas a cumprir como unidade grupal @ a postu va ideoldgica que vai acompanhar e atravessar toda a trajetd via histérica dos Dzi. Contam-se entre elas "ganhar o mesmo dinheiro", "morar todos juntos", "aprender a ser profissio - nais", "assumir responsabilidades", “assumir a transa sexual”, entre outras coisas « A conjungdo destes prinefpios é que vai dar forma ao projeto do grupo. 0 impulso sera sempre "orescer para aprender a ser gente". Porém, uma caracterfsti. ca dupla freia constantemente a realizacdo final, ou comple- ta dos objetivos. Em primeiro lugar, todos os projetos chega ram quase a se realizar em algum momento, mas 0 desenlage 76 nem sempre foi positivo (ou visto caso tal) no processo glo- bal e na pr&tica social. Como veremos adiante, em estado de crise, o desenho do modelo ideal, nao @ levado até as alti - mas consequéncias, mas no compasso de espera perduram como vepresentagdao. Isto é, projetos que foram levados a cabo nu ma determinada época, ao entrar em conflito por alguma razao, fizeram com que, da pratiea voltassem ao plano ideal, para poder realizar-se outra vez num futuro 'mitico’, por assim dizer. Como segunda caracterfstica, hA um ou varios componen tes do grupo que recusam sempre determinados pontos do proje to, qualquer que seja. Atendo-nos 4 esfera da vida veal, ve- jamos alguns exemplos. odo trabalho 77 Quanto 4 repartigdo de tarefas e a responsabilidade comer- cial do espet&culo, a devogdo em "crescer" ndo foi tao efi - ciente como na parte artietica. Aqui a receita e a pratica teatral assimilada com o tempo consagrou varios coreégrafos, autores, cendgrafoss figurinistas ete. No comego quatro men~ bros luziram suas aptiddes de administragao e alguns tinham até semi-diplomas para tal ciéneia. Rapidamente o nilmero de eolaboradores desceu a trés e ao cabo de dois enos um 56 en- tre eles - o administrador ~ assumira o papel de “empresariar © grupo", no sentido de ser o intermediario em qualquer pro- jeto financeiro. Com eterno bum humor para.lidar com esses problemas tao delicados, este dizia: "Pelo menos entre nds somos trés, dois ou wm para assumir a transa comercial e administrativa, sempre alguém toma por sua conta pegar as coisas na mao e nunca falta quem se ocupe do barato da gen- te", Se a constancia e a efetividade neste ramo de‘atividades € 0 mérito deste inico componente, como ele mesmo indica o conceito de papel optativo e companheirismo nunca se perdeu entre eles. Isto especialmente para desarmar um diretor de teatro, administrador ou empresdrio de ocasiao,e batalhar pa va sobreviver is varias crises econdmicas, 4 dificuldade de conseguir dinheiro ou teatros. A sobrecarga burocratica exi- gia esporadicamente ou por temporada,um plantZo de ‘duas pes- soas, contratadas para regularizar a administragao, contabi- lidade e relagdes piblicas ou propaganda do espetdculo. In- clusive com estes intermediarios, seja pelo respeito conquis. tado, ou pela dist@ncia marcada, nenhum estranho a familia conseguiu jamais penetray, por intromissao ou poder,no bloco sélido e estreito em concessdes que formavam os treze atores sobre seu destino, fosse este indiferentemente bom ou ruim.A demonstragao externa da solidariedade no destino coletivo tur va-se internamente numa intrincada dindmica de grupo. Toda a constelagdo de problemas complexos, tanto econdémico - administratives como domésticos, geralmente, se resolve en- tre eles através de didlogos informais. Se a circunstancia o exigir, tomam o aspecto imponente de reunido de familta mas em geval aprenderan a eSquivar-se destas solenidades. De um modo ou de outro, resolugdes de grupo canalizam - em visio ampla - 08 projetos e as possibilidades de trabalho, a mobi~ lidade geografica e a consequente resolugaéo de novos proble- mas habitacionais, a produg&o e consumo de elementos obriga~ térios, a representagdo teatral, os recursos e a distribul - g&o do dinheiro, a cooperagdo, a divergéncia de comportamen- to de certos membros, entre outras coisas. As decisées se dio num processo estritamente democratico, to dos devendo ser consultados para qualquer resolugéo. Mas 78 0 acomodamento, também, se revela na reflexdo: "que decida X, de qualquer forma tem sempre um contra". Isto ndo impli- ca que um deles tomando algumas decisdes, os outros sejan complacentes. Surgem assim as queixas do administrador para um de seus companheiros: "todo mundo fala que @ dono da fir- ma, mas acham que @ s6 falar. Na hora de fazer ninguém tem tempo. Querem uma famflia para qué? Para ser igual a dos ou- ‘tros? Ja que se comportam como empregados vou comegar a des= pedir alguns". A acusagdo visa alternativamente todos os men bros quando acham-se na contradigao de reclamar da desorgani, zagio interna. A ironia reside no fato de quena maioria das vezes costumam todos protestar juntos e com 95 mesmos argu - mentos, sd que parceladamente, uns para os outros. dade na divisdo de tarefas criam-se En termos de responsabi, interesses que frisam o prestigio e o poder. A contrapartida % © descompromisso voluntario por parte de alguns componen ~ tes sem chances de terem seu status reconhecido no mesmo ni- vel daqueles. No entanto, @ preciso indicar que estas postu- ras sdo sempre uma consequéncia das experiéneias que estado vivendo momentaneamente ,assuntos que ilustraremos ao falar da distribuigdo do dinheiro entre eles. Por esta mesma razdo complica~se a analise das facgdes internas. Hierarquia e igualdade Para fazer um breve sumario deste tema, observamos primeiro que se h& evidancia de liderangas, estas mudam segundo se tratam de problemas do paleo, das relagdes internas ou da ad ministragao. Entre os extremos, formados por uma, duas ou mais pessoas, insere-se toda a cadeia de intermedidrios que 73 alinham-se de um lado ou outro segundo as conveniéncias, for mando-se a miiido a terceira facgao. De modo geral os grupos domésticos temporarios ou o compartilhar de camarins definem os sub-grupos, criando, ocasionalmente, uma situagao de maior comunicagao entre estas pessoas. Quanto a lideranca, um deles afirma: “eu ndo acho que entre a gente tenha lideres. Bem, o A seria uma espécie de lider no seu barato, o B também, C e D também poderiam ser lideres. fu diria que ha varios lideres e outros que sempre fogem dos problemas". Outro ja opina que sdo "treze tiranos” o que re~ sulta da mesma forma num outro cédigo de consenso: "somos tre ze estrelas". Por um lado, atribuir-se um papel ou status es pecial no grupo equivale a procurar as erfticas de todos os demais. Por outro lado, se idealmente n3o se entrega defi nitivamente o grau de Ider a nenhum dos membros, na pratica fica evidente a marcagdo de certas diferengas. HA efetivamen te wa par de Uideres que se sobressaem.Isto significa nao so- mente chama-los de pat e mae , reconhecer-lLhes a precedén - cia na proposta teatral e na profissionalizagao, a idade ou a propriedade de retransmitir a experiéncia como aponta ~ los como pegas importantes do tabuleiro no momento da propa ganda da pega teatral. Nas, para finalizar esta curta visio do sistema de relagées internas, nas dticas reais e artificiosas cederel a palavra a um dos atores, de mérito mais modesto no plano do presti - gio interno - 0 comentario corresponde a uma época de erise: “eu faco de conta que escuto mas nao falo nada, Bu sei que sou 0 que sou e que estou aqui. (Lisboa) por meu préprio tra- balho e nado por Ae B. Eles tém nome, mas nemo texto e nem a coreografia seriam grande coisa se ndo fosse pelo trabalho de todos". A representagdo consciente da diferenciagdo so cial interna vai provocar solugdes contingentes que sio as que vdo salvar continuamente a proposta ideal do grupo. oO processo da distribuigdo interna do dinheiro nos serve de exemplo. Economia interna A eqtlidade pecuniaria era um conceito de bom-senso, todos trabalhavam juntes na pega e para o mesmo fim. Jupavam £3 pelo princf{pio mas "s6 algum dia se chegara a Gle". Formada a Companhia Teatrai, na €poca do Teatro Treze de Maio, todos pas saran a ser sdcios, salvo um deles que chegou apds a sua concretizagao. Para comecar, o pat ganhava o dobro de seus semelhantes. Ti- nha um precedente da Gpoca da boate, ganhava seu prdprio sa- lario. Era uma pessoa com prestfigio reconhecido no mercado artistico: surgiam-lhe frequentemente outras possibilidades de trabalho. Outrossim a danga era no seu conceito uma pro - fissdo capitalizada em anos de trabalho e queria usufruir de seus direitos dando aulas e montando coreografias. Como ati- vidade secundaria e fora do grupo ninguémo impedia pelo contrario, estimulavam-no como qualquer um que o imitasse, o que acontecia frequentemente. 0 "respeito" deveria ser com a familia : "Ele tem que assumir uma de pai, e deixar seu . W ae dinheiro para a Finma, Convocava-se a opinido de todos 08 componentes a cada reajuste de salavio, o que geralmente a- contecia na época de iniciar nova temporada teatral. Frente aos argumentos do primeiro, e para nao deteriorar as rela- goes, assentiam os outros: "EntGo é uma questdo de status . a1 Quando a gente tiver dinheiro suficiente na firma para dis - tribuir o mesmo dinheiro dele a todo mundo, ganharems igual.’ Mas nos frequentes altos e baixos da balanga financeira in- terna, mais os iltimos que os primeiros, e na dtica realista de pouca melhoria, voltava-se frequentemente a reivindicagdo. A desigualdade ndo poderia ficar em termos de "cobrar as au- las e as coreografias (da pega). Afinal eu trabalho e muito! Parece que ndo se da conta! Ent&o que Ue X pegam pelo cena- rio e pelo mural, Ye Z pela administragio". Esta foi somen- te uma proposta que complicou as relagdes internas posto que os projetos econdmicos/financeiros ndo ajudavam. Pela forga de contingéncias, mais que pela boa disposigdo, ao in- vés dos outros verem seus saldvios atingirem o daquele que ganhava mais, ou compensar todos os trabalhos supletivs,foi © pat que viu seu salario rebaixado ao nivel do conjunto. Cutro componente, entretanto, passaria por uma experiéncia in versa. Entrou no grupo quando este ja se tinha consolidado como empresa teatral. Era tido como o camaretro da Companhia se bem que lhe concederam alguns papéis teatrais. As razdes espec{ficas para seu cambio de posigao no grupo as -veremos num outro lugar, mas indiquemos que somente comecou a ganhar © mesmo salario dos outros na mesma época que o do pat tan- bém foi equiparado. Finalmente, tinha um terceiro, a mde cuja situacdo "& dife - vente, ele ganha os direitos autorais mas nao @ questao do grupo, € um direito legal! Note-se de passagem, que na fantasia ‘familiar’ dos Dzi, ser& a 'mulher' quem, em d1- tima insténcia e por este meio, vai garantir a melhor vemune. vragao, contradizendo os valéres tradicionais do contexto so. cial mais amplo. A divergéncia neste critério de igualdade a2 foi o finico tema nunca levantado pelo grupo na minha presen~ ga. Porém acredito que a reivindicago de um salério mais al- to pelo pat tivesse esse fundamento. Recentemente (1978) um Dzi chegou a me sugerir que, talvez, a equiparagao interna de sal&rios - entre varios motivos - tenha desencadeado, meses apés sua coneretizagao, a separagio do pai (janeiro 1975), A exigéncia de uma melhor remuneragZo, ja era wa dos argumentos da avd, primeiro desistente da familia, Porém, em termos da dinamica do grupo, para compensar as dife rengas internas, cada um dos privilegiados, se bem que com critérios totalmente arbitrdrios, redistribuia seu dinheiro t presentes luxuosos para seus favoritos na familia,empréstinos de dinheivo para um determinado projeto da Companhia (viagem a Europa), casas e as vezes gastos domésticos ou dinheiro quendo se lhes pedia’ No fim n&o sobrava nada, nem a uns nem aos outros, No fundo, ¢ no conceito deles, era um sistema to~ talmente familiar. Atribuindo=lhes o mesmo valor como projeto do grupo, existem situagdes menos conflitivas: "morar todos juntos" @ um deles. A Moradia A id&ia e a resolucdo partiu do projeto inicial, Tendo — com~ prado, transformado e mobiliado como numa série de quartinhos, uma velha casa,antes da formag&o do grupo, a mde convidou al~ guns componentes a compartilhar seu domicifio. Observe-se que, este dado também contradiz a fungao tradicional da mulher, is to no Rio de Janeiro, em 1972, Ao transladar-se para Sao Pau- lo, ocuparam quase todos eles uma modesta pensdo e, melho- rando sua situagio financeira, alugaram uma casa grande a3 na Aclimagdo. Foi um dos tinices momentos da realizagdo quase conereta desta determinagdo: dois entre eles-ainda moravam por sua conta. Apés a temporada paulista e alguns deles nado considerando a experiéneia comunitaria feliz, de volta aoRio de Janeiro, formaram-se diferentes niicleos domésticos (1974). Contudo, foi uma formalidade: malas, colehées, cobertores e apetrechos nas costas, as pessoas circulavam intensamente de uma casa para outra. A alternancia domiciliar e a rotag&o di, versa de confraternizagdo interna que compdém a caracteristi- ca basica, aumenta esta tendéncia com a viagem para Buropa , no final do mesmo ano. 0 aferrar-se 2 resolucdo de "ter que morar todes juntos, outra vez algum dia" é devido a dnsia de aver "perdido a comunicagao" dos tempos iniciais. Ora,é sé um desejo levado ao pé da letra: nem uns, nem os outros per- dem-se de vista durante o dia todo e, comportamento, ativida de e papel que desempenha cada pessoa em particular no gru~ po ou projetos de conjunto, sdo es temas que dinamizam e esgotam suas rotinas. Tal @ 0 entrosamento entre as pessoas que confidéncias, didlegos que cobrem a atualizacao de even- tos sécio-culturais do contexto geval, interpretagdes de significados e a sua repercussio no piiblico, brincadeiras etc., permeiam todas as suasatividades durante o dia se estive vem juntos, ou pelo menos a noite nos camarins. 0 quadro que da, naturalmente, ampla margem a propria problematica do grupo nem sempre podendc esquivar os assuntos que pertubamas relagdes como a administragao do espet&culo, a sobrevivéncia econdmica e, em casos extremos, o destino emsida unidade social que compéem vai exigir uma parciménia no trato. a4 Teor das Relagbes Sociais Os atores tomam de preferéncia o tom do elegio e do humor pa va esclarecer as diferengas de opinides entre eles. Por um lado, isto visa amenizar a reagdo de um provavel observador hostil das suas proprias agGes. Por outro lado, serve para acentuar a possibilidade do discurso permanente sem provocar tensdes. Adotaram, consolidaram e até inventaram uma lingua- gem doméstica sempre acompanhada de um forte tempero de "meu amor", "maravilheso" com um calor humano na entonagdo até o exagero. De maneira geral, ha uma abreviagdo do discurse que apela a formulas feitas préprias aos Dzi com possibilidades de cono- tagdo afirmativa ou negativa segundo a ocasido. Um bom exem— plo @a palavra "zé" prépria ao grupo - inventada por uma amiga préxima a eles ~ que muda de sentido coma modulagdo de voz adequada: ora @ uma exclamagdo de admiragdo, ora de rejeiggo "Zé na sua cuca", Usa-se “chamar 26" como por exem- plo, "Chamar um zé na minha beta" (concertar minha bota) = 3 "ghamar um zé no espetaculo" (dar-lhe uma certa ordem); "Cha. mar um 7@ na minha vida" ou em outra expressao "dar um jeito na minha vida", Existem varias formulas introdutérias de fra ses que sdo uma espécie de auto-resguardo que manifestam a consoiéneia de uma transgress&o aos principios do grupo ou da representagdo teatral: "0 quééém", "Assim né", “aquele que. > como por exemplo: "diz que voc@ nio tem tempo para ensaiay assim né, aquele que sopra a resposta". Estas mesmas expressdes, em boca de um observador indicah,a constatagdo de um fato que foge do comum: “Assim né, agora todo mundo (pessoas externas ao grupo ) pode descer aos camarins". Nao vou alongarrme na explicagao de frases como "comer no centro", "bater bunda", “dar bandeira" giria de alcance ao circulo dos Dai, nem outros exemplos que exigiram um tratado especial 85 pela densidade do vocabulario. ® Existe, também toda uma gama de habitos para aguearar ou amenizar, aqui os constrangimentos ou auddcias pessoais, ali © que soa a conselho, reprimenda ou provocagdo para com os ou tros:afine-se o tom de voz para falar; emprega-se o feminino para referir-se ou dirigir-se a um sujeito masculing. Veja-se, no entanto, como adaptam recursos do teatro para situagdes de vida cotidiana. Este @ mais ou menos o panorama do tratamento das pessoas entre si, ainda que este dependesse da maré dos &nimos. As gargalhadas, a euforia ou pelo contrario, os gritos e a contida simulagao de indiferenga é o clima habitual. So- mente nao existe a atmosfera morna. Mas a constatagao desta Linguagem e do trate particular sdo o que acentua @ da o teor das relagdes existentes entre os Dai. ® Na recapitulagio geral dos temas abordados neste estudo so- bre duas dindmicas dos Dzi, o que se sobressai @ que as dife~ vencas internas sdo geralmente enfrentadas como dependentes de um fator econdmico ou de "tempo". Como veremos em outra parte (Os tietes), gem dilyida pesa sobre os atores, de diversas ma~ neiras, a carga de fatores préprios ao contexto no qual estao inseridos; mas a resposta no se resume a estas razdes, Afi~ nal, nenhuma das propostas de vida ecomunitaria dos Dai é@ mui- to pretenciosa, inviavel, de grandes impasses ou conpletamen~ te alheia 4 simples boa vontade de seus componentes. £ mais su gestivo pensar que, no fundo, para os atores em conjunto, @ pouco interessante entrar em contato direto com a realizagao efetiva de seu projeto; resguardando, por meio da possibilica de de cumpri-lo "algum dia", a "liberdade" de opgao ou con- testagao pessoal, 86 Este 'curioso' adiamento de um projeto de bases simples faz sentido.quando confrontado com as outras experiéncias sociais e valores dos Dzi. A postura de contestagdo (ainda que de um membro so, mas respeitada como tal pelos demais ) as sugestées ou prescrigées internas de fato repete e des - dobra as propostas de transgressdo colocadas no palco. Algu mas categorias simbdlicas e concepgdes pertencentes 4 repre. sentagao teatral sdo transferidas diretamente para o plano de vida real como, por exemplo, a nogdo de familia. Conser- vando, na sua definigado particular, a classificagdo hierar- quica da familia tradicional e trazendo de reboque vantagens para quem dispde do melhor status, simultaneamente, & uma orden social intemamente questionada. 0 quadro das relagdes sociais oferecido, até agora, € bas - tante estdtico posto que composto mais de ideais que de rea lizagGes,estas correndo o risco de terem - in extremis - um desenlace negativo (as desisténeias). No entanto, a modula~ gdo ou alteracdo de novos objetivos simbdlicos e sociais de pende exclusivamente da disposigao do, grupo , as propostas de transgressao tao pouco foram abandonadas no fio do tempo. Cercamos levemente o problema através da temitica da “lide~ vanga". Nos capitulos seguintes, veremos como as formula - gdes simbélicas ambiguas so manipuladas de maneira positi- va, na pritica social, para no se transformarem em contra- digdes. 0 pressuposto @ que se fossem percebidas dessa ma- neira pelos agentes, isto desencadearia um‘processo, no tem po, seja de rejeigio, ou de opgao por uma ou outra alter~ nativa simbélica. Num projeto social que entrelaga vida e teatro, este.iiltimo espago é o Angulo de observagao por exceléncia. Prolonga o cotidiano dos atores, tendo a vanta- gem de ser o nivel mais flexivel para absorver a dinamica social. 87 NOTAS (1) Os bordereaux teatrais eram divididos porcentualmente en- tre os diferentes componentes do "grupo". Correspondia , 10% ao "pai", 2% no "camareiro* e 5% aos membros restan- tes, inclusive a "m%e” que ganhava os direitos autoriais. Qs 20% que sobravam eram patriménioe da Companhia. Em épo- ca de crises econ§micas ou de grandes dfividas rebalxava-se os salérios, se bem qug-se conservave o principio porcen- tual. Os direitos autorais das pagas teatrais sao recolhidas a vada representag&o. Correspondem respactivamente a 108 e 5% de cada berdereaux segundos se trata de texte ou de misica. (2) 38 6 cldssica a observagéo analftica de Mauss, M. "Ensaio sobre a Dadiva" in Sociologia e Antrepologia Editora da Universidade de S40 Paulo (1974) sobre a cadeia sem fim que ceria a "dédiva e obrigagSo de retribuf-la” nas son ciedades chamadas 'primitivas'. 9 autar que parte de observagdes comerciais faz uma correlagéo com cutras si- tuagdes de trocas qua ele chama de "moral". Pordm adverte ele "a dSdiva nfo retribuida ainda inferiorizagquele quea aceitou sabretudo quando & recebida sem espfrito de = ren tribuigSo (1974:83) ele sugere que a dadiva pode criar si tuagées de desigualdede entre credor e devedor. Schwarz, R. Ne sua obre (1977; Ao vencedor as batatas”: Quas Cidades, Rio de Janeiro) a partir de anflise da rela g40 entre si dag persanagens machadianas circunscreva as varias facetas do "favor". Um das seus conceitus € que "Ora, se o prépric do paternalismo 6 0 falta de frontsira clara, no pélo forte da relagéo, entre @ auturidade e a ventade pessoal, @ se esta Gltima § um conjunto mais ou menos contraditério de desejos inadmissfveis, de cegueira e de justificagSes infundadas, 4 situagao do inferior ga- nha outre dimens&o. A integragSo social deste 35 fez pela subordinagdo dirsta Bs serviddes e confuséas afetivas™1977:103) No universe dos Dzi, se 6 diffcil questionar a fundamento do "favor" do pat e da mae, no sentido da explicagao da Schwarz, pelo contrério as demais companantes dos grupo so pouco respsitosos e mais conscientes des diferengas de saldrio como para observar « "subordinagao direta", ic) 1 chamar a ateng3o por ultra "Comer_no centro" ou “fechar* passar a espectativa. "bater bunda" sair andando sem objetivo definido "dar bandeira”literalmente & mostrar "quem se 6”, Aplica- s@ a pessoa que nfo sabe comportar-sa socialmente, isto &, chamando » atengdo de pessoas estranhas ao univserso ao qual se pertence. A rede globo de televisdo de certa maneira contribuiu pa- ra a difusao de gfrias Dzi Croquattes , Na novela “Dancing Days", (1978) @ no seriado "Ciranda Ci randinha”, expressGes como "numas”, "tipo -", "28", *cha- mar um Zé" etc. foram utilizadas. Em artigo recente sobre a polémica em terna de atitudes pouco convenctonais do jornalista Fernando Gabeira, en Revista - Ista €& utiliza as expressdes "tietes" @ "tieta- gem", (Teatro) "Se o teatro nao @ apenas um jogo, se € uma realidade genufna,por que meios poderemos dar-lhe aquele "status" de vealidade, fazer de cada espet&culo uma espécie de evento? Eis © problema que nos cabe solucionar” Antonin Artaud, Obpas Completae I, 1956. 0 espetdculo Dzi Croquettes se renova - em parte - noite apds noite: texto, danga, roupas/personagens, etc.. Da coneepgado de um teatro visto como um elemento ¢inamico do profeto do grupo surge sua riqueza, no entanto, manipulamse. principalmente as- pectos formais. A pega @, porém, mais do que um espago de "temas para reflexZo", isto @, 0 reflexo do sistema de pensa~ mento desseus autores/atores: simultaneamente absorve a pratica, No curso do tempo (1972-1976 - dimensdo temporal que abordare: mos daqui em diante), algumas das implicagdes sociolégicas to- mam corpo de vesolugSes para os atores, mesmo quando obstinada- mente persistem na pega em sua formulagao inicial e ambfgua: fa zer conviver a tentativa de comereializag%o da proposta com a postura de transgress3o continua aos padrées tradicionais do tea, tro (ou qualquer outro tipo de padrdo social); esforgar-se para a profisetonaliaagao permitindo a invasSo do privado na area ptbliea ou contrapendo-a ao altbarde; favorecer a criagdo in dividual sem provocar a competigiio interna abafadora; re- conhecer liderangas procurando anular desigualdades, etc., co mo vimos anteriormente, Sendo a forma do espetdculo que vai mudando e nao 0 contelido sociolégico, levanta-se a questdo: trata-se simplesmente de uma estratégia comercial e de promogio frente ao universe externo, o piblico e a imprensa? us 9 £ixo que muda: o texto "O nosso espetGculo muda tanto que tem gente que diz que mudamos o texto" Um Dzi. Croquette Segundo a mae, autor confesso da pega Dzi Croquettes,"sobre um texto & parte pode-se oriar com liberdade", Em princfpio, a Censura oficial - no Brasil - atua como entrave para qualquer modificagZo posterior de um texto teatral., Ora, procurando re- construir uma versao completa do espetaculo, um ator respondeu me: "Inelusive o que falo de curtigao? FE diffeil, porque cada dia € uma coisa diferente, eu me esparro, falo muita besteira, depende da platéia, a gente curte mais ou menos. Ndo da para se lembrar porque nao @ do texto, é inventado na hora, isso @ que € diffcil". Trata-se de falas que se tecem em torno de um texto central,no entanto, @ a estrutura deste que permite as primeiras. Na par- te formal deparavemos agora com 4 manipulagao de frases que se infiltram na articulagio ambigua da pega, No plano do contei- do, as variagSes didpias revelam a distancia minima que sepa~ va o teatro dos Dzi,de seu cotidiano, As entrelinhas da votina corporificam os elementos que nutrem a matéria cénica maleavel, No fic do tempo, a pra&tica cumulativa se desvenda numa dinami- ca de grupo, de consequencias tanto superficiais quanto pro- fundas. A primeira verso do texto, (na distingado que os atores fazem) € 0 esbogo definitivo da concepgao de um enredo teatral para ag os Dzi*, Em outras épocas, alonga-se o trecho, reutilizam-se partes em outras sequéncias e inventam-se argumentos similares para compor novos quadros: a Abertura, as Borboletas, o Andrd- gino, 0 Desfile, a Apresentagdo da Pamilia ete. Esse primeiro texto escrito contém o germe que permite a renovagao da maté~ ria nos seus enunciades de pormenores caseiros,da utilizagSo do patrimGnio sScio-cultural e o grande excesso de fantasia. £ a plataforma do que se desenvolve com a pratica. Na €poca da boate Monsieur Pujol (R.J. 1972) 0 Mondlogo de Ma~ dame (essencialmente centrado no que sera posteriormente a en- trevista do Vecchia Améviea) ja continha sua introdugio de sau- dagSes em varias linguas, mas timidamente feite ainda em tom de voz grave. Desvendando a qualificag&o do género do seu tra- balho, os sentimentos que dele se apossavam e as possibilida~ des do seu trabalho,o ator prosseguia: "Eu vim agui falar sobre underground e ainda n3o con- segui falar nada, estou muito confusc, e muito nervoso, porque € a primeira vez que trabalhamos aqui na terra, € sé mesmo um Miele e wm Bésecli conseguem descobrir talentos internacionais. A singela composicao narrativa revela o que @ mais do que um simpdtico e engenhoso recurso de teatro informal. 0 discurso carrega algumas verdades contingentes & apresentagdo piiblica dos Dzi, Para o espectador informado, o "underground" & um estilo emmeda e, Miele e Béscoli, donos da boate, sdo empresa rio e ator conhecidos no contexte local. Pelo* contrario, as * Versdo anterior a que foi descrita e correspondente 4 primei, ra apresentagdo oficial dos Dzi Croquettes - Boate Mm Pujol- RJ. - 1972, a0 frases "estou muito confuso", "e muito nervoso" pareceriam a- Iheias aos sentimentos a se expressarem tanto no ambiente de uma boate quanto pela boca da figura masculina, suspeitamente revestida de mulher,que as pronuncia, 0 entrelagamento dos ar- gumentos dao como resultado wa texto que deixa o piblico num estado de semi-compreensdo e informagao sobre sua veracidade, Criada a expectativa, a composigdo cémica é explorada num segundo momento visando uma situagio plausivel na sala: "Ser& que o senhor que estd sentado af na peniiltima me- sa.. poderia acordar esta senhora (de verde) que af es tA, porque ela esta dormindo.. @ preciso que todos fi~ quem atentos, afinal de contas vocés est&o pagando para serem informades, e eu fico furioso quando as pessoas nao dao valor ao dinheiro..." (texto da boate Pujol , 1972) A apticulagio narrativa,permitinde a combinagio do veroasimel com o fantastico, do improvisado num texto que se pressupde en saiado e a inclus&o da platéia em comentarios do paico,é co- mum a varios tipes de producSe cultural. Qualquer programa de ‘calouro', 'cémico', circo ete, utiliza estes recursos, Mas os Dzi sao pouco convencionais na adaptagao prdtica deste fildo de comunicagdo. Na segunda versio do texto (Teatro Treze de Maio, S.P. 1973)es tes trechos desaparecem mas voltam a brotar na hora de inter- vir sobre um ptblico morno e apatico, Espetacular, inibidora e stérica sera a retirada em massa da platéia francesa, atGni- ta e pouco acostumada a esses tratos, no meio de um espetaculo (dezembro 1974), Mal acolhides, isolados e fundamentalmente boi cotados por alguns empresdrios locais e pela imprensa na che- gada a Paris, o bardmetro das tensdes do grupo subia, Para piorar a situagdo, o escasso piiblico costumeiro do teatro Chan les de Rochefort era pouco condizente com a passagem do género si "vaudeville" para um género "realmente & ser posto frente a : 2 : : i i: olhos muito bem avisados"! 0 jornalista queria com isto dei- xar 0 piblico de sobreaviso quanto ao tipo de pega que ivia encontrar, Afim de reativar as brasas, a Madame, personagem em cena, in- sistia em agredir o piiblico jogando-lhes verdades na cara, com a intengdo de fazé-lo reagir. A pouca colaboragSo do piiblico (4 enfurecia gradativamente, fazendo-a levantar o tom da voz a- té reforgar sua preeminéncia,arrancando parte do cendrio e man dando embora a platéia alegando que: "baixaram uns esp ritos que estariam ameagando a carreira do grupo"? Esta € a verten- te prussiana e extrema para a qual deriva o contetido do texto, mas n@o fica forgosamente na agressividade gratuita por parte dos atores. A situac&o também pode ‘se inverter. Propicio para a manifestagdo descontrafda do ptiplico - a titu- lo do exemplo opeste - foi o ambiente de um Clube em Santos (agosto de 1973 e 1874), Os Dai Croquettes apresentavam um es- petdculo avulso, dando margem nesse clima ao confronto de os "machdes do clube" e as "bichas do paleo", duas 'patotas © bando local desabonava insistentemente o ritmo da obra tea~ tral,insultando e vaiando com diversos nomes os atores. Impa~ vido, um ator dava a réplica no seu tempo: "f para seguir o eg petdculo? Olha que eu estou achande que vocés do clube pagaram um prego muito alto para ver o show" ou "@ muito facil falar no escuro eu tenho a coragem de me exibir", E, no devido lugar do espetaculo - a Hora da Prostituta - : "todos est&o convidados a subir no paleo e falarem o que quizerem, reservamos este mo- mento para o piiblico". A cena passou~se em branco por falta de voluntarios. 92 0 importante € a brecha que se abre num discurso narrative com posto aparentemente de improvisagSes. Os espagos sAo utilizados segundo as circunstancias.Nesta peculiaridade est@ a chave da reelaboragado do texto, até aqui colocada como um mecanismo pa- va reforgar a comunicagdo com o piiblico e agora, como veremos, para a participacio sempre ativa dos atores. A infiltracdo de un linguajar atualizado no roteiro da pega € uma meta cotidia- na, Todos os componentes do grupo se aperfeicgoam nesta tarefa. © resultado @ uma dimensGo social incontroldvel para os ato- res que,também sera vista como tal pelo piblico. Sem entrar ainda nos detalhes desta repercussGo, vejamos primeiro o es- pectro de comentarios que deslizam regularmente na linguagem oval como se fosse, para os espectadores, um discurso programa do de antemZo (ou talvez ndo), Parte das alteragdes didrias visam uma utilizaglo imediata: referem-se tanto 4 dramatizagao de uma experiéncia pessoal dos atores, como 4 participagao en- tre eles de assuntos do grupo, a comunicagae com um piblico que Ihe € familiar, reivindicagdes de ordem geral,etc, Na maioria dos casos, no entanto, o ouvinte deve estar muito bem informa~ do para decodificar o que apresenta-se em forma parcelada e em momentos diferentes ao longo da pega, geralmente de mancira ve lada. Como experiéneia de vida real de um determinado ator,pode sur- gir a reflexdo: "depois do Snibus, indo pela calcada, caretice vim assistir a famflia Dzi Croquettes, AI gente, entendi tudo, precisava ver essa familia linda. Ah! me deutanta forga e to- das as minhas doves j4 foram. Eu assumo, uma vez mais, que 6 0 papai que tem que pagar por essa familia magica, Eu continuo a dizer life te a cabaret” (Teatro da Praia, RJ,, Abril 1974) , Brevemente o publico @ posto ao par da reaparigao no paleo do ator apés um acidente de transito quase mortal. 0 comentario @ 93 uma auto~justificativa, perante a platéia, pelo contréle do esforgo criativo. 0 complemento da citagdo, € um recado senti- mental para os outros componentes do grupo. © suposto € que essas referéncias naocaim em ouvidos de sur- dos, porém, o sentido prépric quase que desaparece para os espectadores quando os motivos reais da intervengSo sdo de ca- <. . . 5 rater privativo ao grupo. Por exemplo, um personagem banalxen te entra em cena com as breves palavras:"o papai quer falar. com a senhora, alias com todas" (Teatro da Praia, RW., maio 1974). 0 comentario se encaixa adequadamente na boca de uma aluna de balé, porém, o referente particular, para os atores, € a sugestdo de uma reuntdo de familia. Notaveis e frequentes sao os esforgos de legitimar diretamente frente a audiéncia iniciativas prdprias que tomam certos atores sem que seus parceiros estejam ao par: "com licenga, eu vim dar uma ajuda- zinha na avla (de balé), assim vou praticando para Paris" (Tea tro Mapia Della Costa, $.P., agosto 1974), As razdes da intro- missao inesperada do personagem como fenSmeno da dinamica do grupo, as discutiremes em outra parte. 0 interesse, pelo momen to, esta na informagio simultGnea aos demais atores ¢ ao pi- blico. Para este, o sentido repousa sobre o fato que toda a propaganda do espetaculo nessa épcca era feita sobre a despedi da dog atores. Nesta linha de alteragdes do discurso acumulam-se certas se- quéncias com novidades didrias como se os atores no soubes- sem armazenar suas intimidades para si prdprioteAlgumas partici, pagdes oficiais de detalhes intimos tomam relevancia quando dizem respeito a grandes acontecimentos no histérico dos Dzi Croquettes. Como prego do sucesso, antecipande a curiosidade pil blica, os atores se encarregam em difundir em primeira mio a a4 resposta pelo canal de seu espetdculo. Assim, a perda de al- guns componentes do grupo foi religiosamente Lembrada em cena. Aconteceu duas vezes: "mamfe ternura virou cantora pop" (Tea~ tro da Praia, R.J. fevereiro 1974). A referéncia @ cémica pos- to que tratava-se de um cantor lfirico profissional. Na mais dolorosa cis&o, a segunda, levando quatro membros, a explicag& na hora da sequéncia da ApresentagGo da Familia era: “duas fi- Ihas est&o de férias", entre as quais "a Cilinha esta dando au ‘las de danga", A sobrinha "Old City London é guia turfstica", © quarto componente faltante, promovedor da cis3o @ significa- tivamente passado em siléncio, mas revelam-se os motivos que segundo @le sepviram de gota para fazer transbordar o cAalice: "ali, as que se separaram estSo falando muito mal do pessoal a qui,dizem que X tinha falta de respeito (a ruptura deu-se vaiz de um malentendido sobre o cendrio, sendo X o idealiza- dor), eles nZo pensam em voltar,é isso al,famflia ja era"(Tea- tro das Nagdes, S.P. fevereiro 1976). As ressalvas ao entendimento pelo piblico das interferéncias fracionadas em toda a pega se d&o em niveis diferentes. Para no deixar diividas que se teatam de improvisagdes, a platéia en tra também na composigio, reforgando o cddigo anterior na no~ va dimensdo, 0 toque intimo, para a parte da platéia que as~ siste ao espet&culo e a vida privada do grupo diariamente como se fosse uma novela (os téetes), aparece primeiro transmitido Vilma, Leiloca (amigas pelo microfone junto a misica: "Dai. dos atores)..Croquettes..Roge, Mario... as internacionais ... £4 boa santa (teatro da Praia, R.J. Julho 1974). Loge se for 0 Caso da-se o recado de atengdo: "Eu ganhei uma roupinha nova, € da Paula, a irmi da Eloina (apelido {ntimo de um D2i) gostas?" diz um personagem a outro (Teatro das Nagdes, S.P., margo 1976), Ainda podem surgir reclamagdes nado atendidas que afetem a gs platéia em geral: "Nos querfamos deixar aqui no Teatro das Na- gdes que est& caindo aos pedagos, nossa humilde colaboragdo " (idem). 0 piblico maior, tampouco fica asalvo das 'fofocas'.A experiéncia, agora cumulativa, sendo retransmitida para outra audiéncia um tanto constrangida: "Na Europa, gente, ninguén ria quando falava nos pafses Batzos do Oriente Médio, af gente comecei a pensar que eles pensavam que eu falava sério" (Teatro das Nagdes, S.P., margo 1976), botando o peso da nota tanto na sugestao de um'chauvinismo' dos europeus quanto no sempre pen- dente convencimento da ‘falta de cultura' dos brasileiros. Com estes acréscimos vai se tecendo a segunda trama da pega, que se forma e deforma & vontade sobre a primeira, qual fosse um esqueleto que une as partes para os atores nao se perderem. 0 pablico mais longinguo, que descorhecesse a concepgSo do espeta~ culo, talvez ficasse desapontado se soubesse que muitos tre~ ches fazem parte, mesmo assim, da versGo concebida inicialmen- te pelos atores. Como j4 apontamos, a estrutura deste @ elaho- vada como se fosse um texto improvisado na hora, com as coe- r&ncias lineares de um mesmo discurso narrativo mas recortado de impasses e imprevistos. Por outro lado na segunda trama efetivamente improvisada, usa~se a desenvoltura e a familiari- dade do papel bem ensaiado, a precisio da réplica: os persona- gens comunicando-se sem frustrantes interferéncias. Para quem conhece o roteiro, ~ os atores- € pelo fato do texto original estar composto com as aparéncias de improvisagSes que as alte~- ragdes se encaixam como se fossem parte dele. Mas, o resultado do desdobramento do mesmo cédigo em varios planos e ao longo da peca far& com que o piblico apanhe num movimento sé a pro- posta central, ou seja, o profisetonal eo improviaado. Dito de passagem, improvisagSes, climas intimos entre os atores, a8 a influéneia da platéia para a animacHo do palco, a extragio de significados secundarios,ete., sao a entretela de varios ge- neros artisticos tais como o teatro em geral, balés, circo,ete. No entanto, geralmente, os espectadores dificilmente acedem ao universo dos atores por serem convidados a reter somente o ato perfeito. Ora esta margem de reelaboragdo, percebida e explora da unilateralmente Eo que dd densidade ao mundo do ator e, entre outras coisas, o que o impulsiona a refazer e trabalhar atos, cenas, gestos e expressdes, sessGo apés sessao, Os Dzi Croquettes oferecem esta segunda dimensdo em toda sua extensdo e sem mesquinharias, ou melhor, destas minticias cons- troem a forma e conteiido da pega. ff nesta focalizacgdo exagera~ . da e ‘absurda' que criaram o estile préprio, como novidade de mercado teatral. A forte descida aos subterraneos cénicos e as histérias fntimas prendem a atengZo do espectader. fo mesmo ” tempo atrai sua simpatia ao aproximd~lo da eterna tentacZo de descobrir 0 ambiente dos ensaios e das coxias, do desvendamen- to do fantastico e da ilusdo de penetrar na intimidade dos artistas. “Eu pogso falar? Eu sou a secretaria de Madame, qualquer coisa que no entendem, podem me perguntar porque tem coisas que a gente nado entende, basta me chamar por meu nome Miss Mirtz (..) @ sé me perguntar porque estou ali para depois ndo ter reclanagdes" (Teatro Robino 1975, Paris.) Um tratamento mais cauteloso merecem as perguntas sobre o con- tetido absorvido pela platéia ou, propriamente, o seu entendimen to real da linguagem falada na pega. 0 que faz dos Dzi os arti- fices da variag%o, ou seja, a manipulagao do conteiido do texto, Giminuird, em muites casos, a compreensio do piblico. De fato, a maioria das vezes, este é tratado como se estivesse ao par do assunto o que resultara que muitas vezes tera o sentimento do contraério. Sem divida, em consequéncia dos comentarios dos espectadores aos atores, chegou a &poca em que se auto-desci- fraram por meio do sugestivo personagem que se inseriu na se- quéncia do Mondlego de Madame, na temporada de Paris. 0 cu- rioso é que foi uma resposta por parte dos atores aos pedidos do piblico, mas inconsequente para a compreensao real da pro- posta do espetaculo, Como o personagem confessa nemos pré- prios Dzi captam a todo momento a matéria criativa veiculada no espetaculo, Esta constatagZo nos faze, descompor, uma vez mais, em outro sentido a articulaggo dos aparentes conteiides. A matéria do texto ndo 4 composta de grandes temas de reflexdo, mas contém suas peculiaridades: o discurso desdobra-se em lugares comune © a surpresa fica na variedade cerzida em colcha de retalho . Uma e outra caracterfetica combinam-se com perfeigio, oferecendo por sua conta ¢ em conjunto boas vantagens. Enquanto aos lugares comuns, por serem temas corriqueiras e sem profundidade (saudagdo do piiblico, histéria de um curricu- lum teatral etc) disfargam a improvisagdo e podem ter sentidos miltiplos. 0 mesmo se aplica ao uso de enredos conhecidos pe~ la audiéncia em outros géneros (circo, programa de calouro etc), 0 cegredo reside na possibilidade de oferecer um contefdo se~ gundo a distancia entre o emissor e o receptor. Retomando 0 e~ xemplo: “o papai quer falar com a Senhora apés a aula.." en escala gradativa de um piiblico novato, passando por um piiblico familiar - os tietes ~ até og componentes do grupo, a mesma, frase adquire um referente de 1) situacSo plausfvel de uma alu na de balé; 2) variago de texto de uma sessGo a outra Cos. ae tietee seguem com assiduidade as modificagdes da pega), o sig- nificante pai com significade de membro do grupo e, portanto , um duplo sentido na frase; 3) 0 contefido préprio de uma reu- nifo de familia mais os restantes significados apontados ou qualquer outro poss{vel. Em suma, segundo o lado que se focali- za a leitura toma um, dois ou mais sentidos, aumentando 4 pro- porg%o que se avanga do lado dos detentores dos elementos de de decifragio do cdédigo. Mas o encaminhamento do conteiido, para o pilblico e para os atores, contrariamente ao que pode sugerir a explicagao, nao & feito em base ao hermetismo ou com parcialidades pelo menos no tem de ser visto como tal. A imagem prépria seria a lente de aumento que desloca conteiido @ forma segundo o grau de apro- ximagSo onde, excessos e caréncias, se absorvem na economia da percepgio e informagiio dados pelo contexto da pessoa em agio. A vis&o de um piiblico principiante nao é semelhante 4 de um ator, cada qual estando ligado em sintonia diferente de experiéneias, reelaborando os contefidos da sua informago particular. Eviden- temente, o emprego do lugar-comum no texto em quest&o, facilita e desenvolve esta propriedade posto que por definigao esta ac alcance de um piblico muito amplo. Além disso, 0 espetaculo ndo € feito apenas das singelas amostras do meu texto mas pelo volume da matéria vertida em desabrochado ritmo. E aqui que influi sua construgo em forma de colcha de retalho. Estrate- gicamente, ela serve para preencher o vazio que deixa 9 desco- nhecimento do mundo dos atores, enquanto que, para estes ela ai margem a qualquer intromissdo, - "Eu vim aqui, meu amor com esse Contrato de Risco até ganhei uma casinha. - E ja achou alguma coisa? pergunta outro -Ndo, mais sigo cavando, (..) quem procura gg chifres em cabeca de cavalo encontra (personagem Marie Brasil: Teatro das Nagdes, S.P.,mar go.1876). Estendamos agora o alcance da derivag3o de texto na sua dimen- sGo social incontrolavel. A apresentagdo dos argumentos desa~ pontara alguns observadores mas ao mesmo tempo cpiard o inte~ resse por esse tipo de teatro em outros espectadores, Entre os anexos verbais cotidianos além de se escoiher como sujeito-te- ma estérias pertencentes As categorias de pessoas presentes na sala, as dissertagdes preenchem indistintamente atualizagoes de ordem econdmica, politica, social ou cultural deixando, pa~ va a platéia, o ponto de interrogagio sobre a profundidade da reflexio. 0 sentido ambiguo do engajamento @ recuperado pela vedundaneia, na similaridade da apresentagio do texto e dos canais de express&o como a vestimenta, os jogos cénicos,etc.Mas 109 a ambigiiidade, os argumentos ambiguos tém a propriedade de transpor com garra e colorido emagSes provocadas em jogo num contexto mais amplo. Seus miltiples sentides insinuam o que parece ser um apelo a compreens3o ou uma provocagao. Mais ain- da, se eles contém alguma referéncia de peso real e social ao tempo em que se vive. Os Dzi Croquettes chegaram varias vezes e de diversas maneiras a fazer estremecer de medo ou emogZo simpatizante sua platéia, com o que tinha de ser uma "brincadeira de teatro". Na inei- piente “Abertura Nacional" (oficial) do comego do ano de 1976, os atores preconizavam (novamente) as brincadeiras politicas publicamente, Os personagens, sucedendo-se uns acs outros na sua chegada em cena, sem guardar o fio da trama do argumento de quem vinha antes,faziam seus préprios comentarios. Por traz de cada assunto apareciam temas piiblicos atualizados no dia UNICAMP BIR; iQTECA CENTOAL dessa sesso. (Marco 76) ® Miss Mintz avisava Madame que "Coca Cola hoje n3o tem, nio po- de tomar! Tem dois homens hoiando 14 dentro". Reforgando ° tempero da conversa de Marie Brasil (comentario citado acima), a pianista Mme Toscanaia informava que “estou adorando o Bra- sil, 34 comprei uma casinha ao lado do dono da Felicidade > Pe ferinéo-se a Silvio Santos que tinha recentemente ganho um ca~ nal emissor de televisdo. Em algum momento, tendo como tema o “teatro, ainda um personagem observava que: "sorte que a gente trabalha, tem umas por af que andam paradas" aludindese a pega Mokinpott encenada pelo Teatro Oficina de Porto Alegre que aca bava de ser censurada, © chamariz do desrespeito era reforgado pelas figuras burlescas que pronunciavam as frases como se fos se uma banal conversa de alunas de balé infantil, As posturas profundamente ambiguas pecam em vulnerabilidade fren te a qualquer aprofundamento intelectual; no entanto, sua re- percuss%0 emocional sobre os receptores tém impacto positive ou negativo. Na poca do surgimento dos Dai Croquettes nos paleos brasileiros (1972/1973) os atores ganharam rapidamente a reputago de “inreverentes", "agressivos" e 0 sem fim de rd- tulos do mesmo calibre pela imprensa e alguns cfreulos sociais. Por um lado o estilo ainda desconhecido localmente de trans- gressdo de imagens de géneros referentes A papéis sexuais - en tre outras coisas mas fundamentalmente - por outro lado, = a construgdo de um espetdculo que deixa brechas de manipulaglo que se abreme fecham em qualquer sentido, mas sempre em momen to oportuno,fazem figura de bomba latente, especialmente num perfodo de produgSo artfstica nacional acalmada 3 forga. ° conjunto de razSes expostas € suficiente para presumir parte da dimensao social e expectativas que se criam,alias vistas como ton um tanto ircontrolaveis por alguns observadores dos anos 72-74: imprensa, Censura, os setores de mercado onde provocam concor- réncia especialmente economica ou de piblico tais como parte da classe teatral, empresdrios e diretores de teatro etc., ¢ Srgaos culturais governamentais de quem poderiam depender. 0 apressado comentario de um repérter em 1973 era que o espeta culo "nao pede desculpas nem faz apologias em nome de seus mem bros" e "mantém-se o tempo todo dentro de prudentes limites que nfo chegaram a despertar as iras da Censura"® De fato, sé por pouco tempo, Ainda assim somente sobre certos temas o espe tAculo @ incontrolavel, A Censura Federal e a auto-censura (que sempre existiu) marcam trilhas precisas. Os atores nao trans- gridem de maneira intelectual sdlida os "prudentes limites" ¢ tampouco essa @ a intengdo deles. Mas o espetdculo de clima angelical e demonfaco, onde nfo se acham as pontas do parado- xo ,foi (por isso mesmo) censurado por utilizar no seu contex- to "A Patria" de Olavo Bilac, enunciar o “ci da madrugada” e © provérbio "mais tem Deus para dar, que a porra do diabo para carregar" (além de obrigar os atores a aumentar dois centime~ tros no tamanho das tangas), Ironicamente, © desfecho negativo de sua velag&o com a Censura produz outra frase enigmatica na boca de uma aluna do Dzi Royal Ballet: "isso n’o pode,ela no deixa", reprimenda para um inofensivo versinho inventado por outra aluna, Atualizando e adequando as circunstancias sobre sua estrutura flexivel, o texto basico sugere um processo de mudanga no fio do tempo maior do que lhe corresponde realmente. As aparéncias de perspectivas diferentes sdo dadas pelos anexos verbais, mas estes s&o abandonados tao vapidamente quanto se os adota. 102 £ tempo de indicar na minha dissertagao em que sequéncias do espeticulo se-situam as variagdes verbais e algumas inclusédes efetivas no histérico do espetdculo. No caminho das boates ao teatro se efetiva a grande ampliago do texto. Seguem-lhe, no tempo, algumas outras alteragées e ilustragSes de quadros — no- vos que sfo anexados do comego ao fim da apresentagao piblica do espet3culo, Como veremos no processo histérico analftico de outros canais de expressdo, 9 conjunto da representagao tea- tral sobressai por seu grande dinamismo na recomposigZo da matéria. No entanto, comparativamente o texto permanece, do. Teatro Treze de Maio (SP, 1973) até a versao respectiva do Teatro das Nagdes (SP. 1976). A Pergunta @ porque o texto -mor resiste ao tempo? As “dificuldades da tramitagio para a Censura" ,argumentadas pe los atores, ndo sao vazGes suficientes: as necessidades buro- craticas repetem-se a cada estréia (e foram varias) e, alias a Censura oficial nfo existe nos pafses europeus onde trabalha van (Portugal, Franga). Num nivel mais objetivo, os interesses de direito autoral poderiam ser uma resposta, no entanto o au~ tor confesso ndo somente era incitado os novos trechos anexados posteriormente ao espetdculo, como dispunna de outros textos nunca encenados, E outros componentes também se mostraram capa citados para tal tarefa. A pergunta fica aberta se nfo resol vermos o processo do espetdoulo na Stica das relacgdes do gru- po , na dinamica teatral. Notemos primeiro que ficam ilesos de variagdes cotidianas os textos levados por uma pessoa, e que cobrem sequéncias em que a naioria dos outros atores dangam ou somente representam tea~ tralmente, como nas Borboletas, no Andrégino, no Desfile e na Apvesentagdo da Fanilia? 103 Em segundo lugar, o processo basicamente fixo destes quadros va ria sintomaticamente com aqueles de coreografia e marcagdes de= liberadamente precdrias e flexfiveis, mas tendo ainda um tempo e ritmo controlades pela fita sonoplastica. Assim com solugZo intermediaria, entre o que manipula-se e deixa-se intacto si- tuam-se o mondlogo da Abertura, os Signos do Zodtaco, Veechta América e em parte o Mondlogo de Madame além de outras ser quéneias que serdo introduzidas posteriormente: Carmem Miranda (f,Ch, Rochefort, 1975) ,que transformou-se em Cinema Nactonal- (I, Bobino Paris 1975) etc, Mais do que serem realmente altera dos no processo do tempo, estes textos terdo anexos verbais que sero verdadeiras demonstragdes de disposigao e vibrag3o atores, chegando a ter desnfveis em qualidade, quantidade,dura- go e luminosidade uma sessGo apds outra. Em suma, os Dai dis- pordo de todo um repertéric com o qual se alongara ou encurta- ra 4 vontade a sua oferta segundo a vocagio do dia, a circuns~ tancia vivida, a manifestagGo de uma celebrag%o particular ou fungdo teatral especial, a reciprocidade do pilblico, seja em ca sa mais ou menos cheia, seja de primeira ou segunda sessio e/ou, tudo o que comove ou desordena seu universo. Como exemplo, o que @ “gente computada igual a vocé" sera "igual zinho mesmo, registrada, vigiada, com carteiva de identidade, C. PEF « tudo igual a vocé", ou, o que @ para ser dito uma vez, evocado em varias linguas e redobrado de palhagadas, etc., sem que eu possa retransmitir no meu texto toda a frascologia fluen= te mas incoerente do alegre borborinho de treze pessoas na maior animagao. Estes textos,com mola para absorver e destilar todos os eventos benéficos ou adversos da vida real, reforgados pelas voupas, maquilagem e jogos cénicos, so o que fara os Dzi Croquet tes na Stica da participag3o dos atores na representagdo teatral, uns bons discfpulos da escola de Artaud e demais,pela densidade 104 dos acréscimos na improvisag&o, fluidez e invengao. Por iiltime, merecem atengao especial na reelaboragdo histdri- ca as sequéncias da Festa e do Mondlogo de Madame especialmen te (nos quadros das Bailartnas e a Hora da Prostituta), Neles as particularidades analisadas, ou seja, a manipulagdo e en- frentamento do piblico, o uso dos lugares-comuns com montagem em colcha de retalho, as intromissGes pessoais, a inclusao de recados varios e ocasionais e a rotag&o cotidiana, se concen tram de maneira objetiva por um processo de consenso entre os atores. Na passagem do tempo, devido 4 manipulagio, apesar de manter os textos fundamentais, os personagens principais, as montagem e as caracteristicas do profisstonal e do improvisa~ do, os Dzi Croquettes lograr3o magistralmente fazer com que do mesmo quadvo tenha um efeito visual e de contefido diferen- te. Além das aparfneias teatrais o que interessa € 0 significado préprio que adquirem estas partes do espetacule nas propostas do grupo, No corver do tempo a Feota perde sya desordem volun tdria, seu buligo de conjunto -e sua atmosfera privada, onde a tropelavam-se as representagGes individuais. A mesma proposta vai ordenar-se gradativamente num desfile de pequenos nimeros sucessivos cada vez mais demarcados entre si (T. Maria Della Costa, Boite Frou-Frou, T. Charles Rochefort), até chegar a época (TI. Bobino e seguintes) em que se intromete definitiva- mente entre cada uma das partes uma cortina do teatro separan do-as nitidamente, Obviamente entrarac na composigZo outros recursos teatrais prescindiveis pelo momento enquanto que, no nivel das relagSes do grupo, observa-se que as atua - gdes emconjunto com caréter Intimo e bastante ermitico da 10s Festa para a platéia transformaram-se em plataforma de desem- penhos individuais, com confrontamentos em momento inico de cada ator frente ao piblico: no em vio a Festa passou a ser chamada Varietés. O Yondlogo de Madame sofrera, por seu lado, um processo in- verso ao da Festa, deslocando e atraindo para sua composigao as histérias particulares e assuntos semi-herméticos, retoman do, pelo acréscimo de novos personagens, a constituigdo de ce nas varias e imbricadas umas nas outras. Os géneros de falas e os tipos de personagens que os pronunciam sao as que foram perfiladas nas paginas anteriores deste texto, mas o que nos interessa aqui sto as derivagéee sociais que trabatham no mes, mo sentido que no Varietés, mas com aspectos diversos para com os Dai, O Honélogo de Madame temo mérito de ilustragdo como foco irradiader e provocador do que sera reutilizado com mais fir- meza pelos atores além das fronteiras desta sequéncia. Porém, antes que nada, esta afirmagie nos leva a intrometer-nos na intimidade dos Dai: na passagem do tempo, um por um, te dos os seus componentes tenderao a participar do Monopdlio, menos um, o Pat, Ora este ausente, menbro influente e de re conhecidas qualidades € o guardiao teimoso da técnica e da profissionalizacdo, razio necessaria e suficiente para que os outros aproveitem o terreno livre de controle pa ra fertilizar suas experiéneias individuaig nao € propria mente de um trabalhe feito nas costas do companheiro . Ele sera sempre respeitosamente prevenido de qual - quer modificacao, mas € no que transborda do projeto que os 208 outros ganhardo, Alias, tendo em vista o ideal democra@tico en- tre eles, o que se teme por aqui é estimulado por 14: outro ifder - a mae - encarrega-se de promover e convidar os mem- bros restantes para trabalhar em sua cena. "Eu como autor sempre deixei que tude acontecesse ‘no texto, Isso € um espetdculo que tém de tudo, vm monte se coreografias e uma histérinha que € 0 texto, sobre ela a gente cuvte em cima tudo o que quiser".,,(margo/76) 0 resultado desta participagdo € .que a recitagdo do Mondtogo, dominio de uma pessoa identifica&vel nas primeiras temporadas do aspetaGculo, sera alternativamente feita por outros atores (ainda que de preferéncia por um outro). Mas, dispensando-se estes de ensaios prévios, no lance do confronto direto com o piblico escorregarZo na marcagdo e no argumanto de texto real 14? ac ponto de impregnar a cena de matizes pessoais e de acrésci nos resultantes das improvisagdes. Em primeiro lugar, com o tempo, as experiéneias multiplas envolverdo o personagem mode- lando-lhe, num continuo, a vida na cristalizagéo vagarosa e cu mulativa das fantasias de cada apresentador. Em segundo lugar, © Mendlogo pacsara em etapa subseguinte a ser um didtogo, ou melhor, um mondlego assistido pela colaborago de uma seoretda- via (as vezes de varias), Historicamente, personagem surge para suprir a deficiéncia do dominio da lingua francesa de quem faz a Madame, na estréia de Paris (T,Charles de Rochefort; Dezembro 197%), Na realidade, a seeretavia nBo tinha texto prd prio, mas para realgar a sua presenga se intromete no discurso com algumas impertinénelas: o que ndo existia acabou construin dowse na prdtica e invenglc dos promotores do papel. Sugere-se a afirmagdo de que o texto, original de um ator, engrossa-se pela cooperagao ativa de cada Dzi, Em terceiro lugar, © con= teido do texto que conta o percurso teatral do personagem se rd cada vez mais substancialmente encenado: surgem varias “prostitutas", a "baronesa" aparece em carne e osso, interca lam-se coros e intrometem-se pequenas coreografias. A seme Ihanga das histérias em quadrinhos teremos uma verdadeira i- lustragao do Monélogo. Como fica claro, a maleabilidade da proposta inicial do tex- to & usada em toda sua dimensdo por tratar-se de um verdadei ro pano de fundo que tinge-se das cores oportunas dando res posta is necessidades dos Dai. Mais do que seu conteddo real, é estrutura do éspet4culo que trabalha como um instrumento de expressdo, possibilitando numa certa medida superar os lini~ 108 tes impostes pela Censura, canalizando as expectativas do publico, aproximando-o dos atores, refletindo as experiéncias individuais destes e funcionando como campo de agko para a pratica teatral, fazendo da representagio piblica uma espécie de ensaio continuo. a) (2) (a (4) (s) (a3 (7) NOTAS Maciel, E.A. Diario de Bauru, Baurd, 13-4-73, Lemaire, N, L'aurore Politique, Paris, 4-12-74, Revista Veja, 1-1-75, Na Franga os teatros nfo somente se distinguem pelo estilo de pagas que apresentam (ver Copfermen, Teatro e Politica, od, de la Flor 1969, Buenos Aires, ps. 14), como costumam vender ingressos de conjuntos de pegas que serao exibidas durante uma temporada, Os Bzi Cro- quettes instalaram-se no Teatro Charles Rochefort no meio de uma temporada, O diretor do teatro visava me- ihorar suas finangas para a renovagao do estila das pegas a serem exibidas, assim como uma mudanga de pd- blico, Apesar dos episSdios narrados no texto, a ex- perifacia acahou sando muito bem sucedida, come no Tea tro Treze de Maio. As citagées seguintes, ainda qua recalhidas em datas diferentes, pertencem geralmente 3s Batlarinas, quadro ilustrativo do Mondlago de Madame. Neste sentido, os Ozi Croquettes eram pionotros, no perfodo dos anos 70, no uso de um tipo de comentario , que voitou a difundir-se (ver Goldfeder, M. Manipula= gho 6 P. tteipagio - A Radio Nacional em Debato, Univer sidade Estadual de Campinas, mimeo, 1977). € pertinente colocar que a pega Romance tanbSm sofre- ria formas hastis de reagSo oficial, anes apés, Nuran- te a Feira de Poesia e Arte realizada em Novembro de 1975, 08 Ozi Croquettes foram convidados a so apresen- tarem durante quatro dias ne Teatro Municipal de S30 Paulo. Us organizadores da Feira visavam reincorporar este teatro coma centro 6 referencial da cultura art{s- tica da cidade, permitindo @ aflugneie do piblico me- diante ingressos razodveis, € significative que atagues contra "os Exmos.Srs. Tity lares da Secrstaria Municipal de Cultura 9 do Deperta- mento ds Teatros da Prefeitura” tenham usado como pre- taxto a presenga dos Dzi Croquettes no Teetro Municipal, (8 ca ) 1 ainda que eles fossem totalmente alheios acs incidentes acorridos. (Ver por exemplo Estado de $.Paulo,25-11-76. Revista Veja, S&o Paulo, 1.7.1973, - Encaixa-se ainda neste género os textos de quadros dan gados anexados num futuro: "I'm coming” (texto introdu tdrio sobre um quadro Black Power) 2 as "Barras" (1ei- turas da frases de autores colebres sobre o “Nu” an- quanto os atores fezem uma coreografia sobre barras tu bulares verticais) no Teatro da Praia (R.J. 1974); 9 Temelé (prefadcio para uma danga de estilo religioso a- fro-brasileiro (Teatro Charles Rochefort Paris 1975) . Nesta série, o quadro de"Marytin Monroe. enexada no Teatro da Praia e retirada em Portugal, 6 a Gnica in- clus0 de um quadro levado por trés etores que permang ceu com texto imutdvel (o enredo gira em torno da re presentegag de trés Merylin: a pessoa reai, o sfmbolo pdblico e a imitagao). 0 mével com as aparéncias do fixo: a danga "A gente j@ mudou tantas vezes a co~ reografia da Abertura (danga Dat Cro quettes) que no paleo a gente se per de. Pode uma coisa dessas!" Um Dzi, apés dois anos de espetaculo. Porque o tratamento da danga se opde em principio 4 manipula gGo do texto? Em primeiro lugar aqui teremos um controle in- terno mais estrito: ensaios e marcagSes precisas ligadas ao ritmo de uma fita sonoplastica. Ea segundo lugar, enquanto o texto cobre peguena parte do espetdculo e & levado com escag. sa participacdo do conjunto de atores, a danga esta presente em quase toda a pega e envolve a participagdo de muitos. A pergunta entdo @ quais so os motivos que criaram essa dife venga entre ambos os canais de expressdo? Uma hora e meia de espetdculo @ trabalho efetivade, é evia - gdo e interpretagfo, & exaltacao e controle de emogdes, é interrelagdo de atores e desexpenho individual mas, sobretu~ do, 3a maximizagdo de outro longo e dedicado processo; "es~ quentamentos" ou série de exercicios para aquecer a muscula~ tura do corpo, "ensaios" ¢ “limpeza do espetaculo", ow seja, corregdo da marcagdo e coordenagdo dos movimentos. Entre 0s Dzi, o regente de tel disciplina @ o pat, coredgrafo, ideali zador dos balés e da montagem do roteiro da pega, além de. professor prezado e inico dos demais componentes. Nas pala- vras dele, indivfduo aplicado ¢ incansavel em matéria de oul tivar as possibilidades de expressdo corporal: "quando faze~ mos a0 vivo (um balé) num teatro ndo mudamos nada daquilo Log que realizamos nos ensaios" +, Esta reflexio nio impede que, num grupo onde o movel e a meta é também transgredir va, rias regras costumeiras do teatro tradicional, queixas fre- quentes de seus companheiros, a acompanhem: “a gente passa a vida ensaiando, temos muito mais horas de ensaio que de espe tAculo". Mas, € absolutamente correto, o trabalho de prepara gdo do espetdculo nao se refere exclusivamente aos "esquenta mentos" ou 2s gradativas, dyas, quatro, oito e até doze horas de ensaio em véspera de estréia, mas aos meses e anos de apre sentagdo piblica. Cabe indicar que esta pratica, no seu tra- tamento particular, sobrepassou o costume rotineiro a qual - quer companhia de bald, ou seja, fazer exercicios didrios e controlar regularmente os movimentos cenograficos para corri gir as falhas e disparidades dos bailarinos. Fora deste ri- gor, basico aos quadros dangados, a diferenga no aprimoramen to das coreografias do espet&culo Dzi Croquettes é o resulta do da dindmica do grupo e a sua insergao no contexto mais am plo, entre 1972 e 1976- Se os ensaios sao a contra~partida da representacao ptlblica foram, assim mesmo, ligando-se a proposta teatral encenada que se definia na agdo do cotidiano. A intengdo inicial dos Dai Croquettes no se assemelhava totalmente consequén - cias: contingentes & primeira estréia do espetdculo, os ensaics passaram a ser um trabalho obrigatério no decurso do tempo. Do ante-projeto da pega até sua coneretizagao nos pal cos surgem j4 alguns sinais analiticos para abordar o assun- to e percorrer as variaveis que influenciaram o processo. Na apresentagao de si mesmos, os atores darao grande peso ao fato de que a "maioria nunca tinha pisado num paleo" e afir- marao categoricamente que nao sabiam dangar: "na época do 110 Pujol a gente estava afim de fazer um trabalho todos juntos, mas era muito diferente de agora, a gente ndo fazia aulas. Is so sé pintou 14 em Sfo Paulo. No inicio era mito mais fantas tico (ou em outra versio "a mistura da fantasia com o imagina vio") e a gente teve éxito por causa desse fantastico, mas dai a gente comegou a fazer aula e dangar, agora a gente & uma coisa diferente", A oviginalidade da concepgZo da pega foi suficiente para a~ trair um coredgrafo/bailarino conhecido ~ o futuropai"- que soube como reaproveitar as idéias da parte iniciante do grupo: a delirante conjungao de andrajos, a incessante animagao no ardor da criatividade das maquilagens e personagens jd eram a metade do pao garho, Durante a primeira temporada, o espetéculo consistia em escas sos quadros prensados nos eldsticos vinte minutes concedidos aa no segundo hordrio de 'show! de uma boate carioca (Boate Mr. Pujol, Dez.1972). 0 ponto de partida j4 era a fSrmila de apre sentagdo do grupo em conjunto, onde a requintada roupa de "Blo co de Sujos' pela variedade e excesso de signos, simbolos e alegorias locais disfargavam os inciplentes e mal aprendidos passos de danga. A montagem cenografica titubeante era absor- vida na turbuléncia e literal invas3o do minlisculo paleo,idea lizado para duas ou trés pessoas, ¢ da galeria do segundo an- dav da boate,onde mal cabiam os oito componentes.Tudo o que fazia cada ator individualmente era Enico,mas pelo uso por to dos da mesma gramitica ambfgua de vestimenta,davam a id@ia de conjunto e superavam o que era disparidade téenica,De fato i+ nicialmente as roupas,maquilagens e a agitag3o frenética atua vam papa enganar a visdo do espectadon.Na verso de um deles "ndo me lembro ben como era o show",mas era muito albarde ainda, as roupas eram hildrias, o X tinha um biquini elétrico que acendia e apagava, agora vocé imaginou o perigo com os fios elétricos, também era muita mfmica" ou de outro "eu tinha ga+ nho duas saias de rumbeira de uma escola de samba, usava a mais comprida porque nio sabia dangar". A consequéncia real @ que deficiéncia técnica mais artimanha, por um lado, e prdtica profissional em busca de uma, tema tea- tral, por outro, desencadeariam um processo que perseguiria a si mesmo através do tempo, montando e renovando um espetacu lo de estrutura forte, Melhor do que ninguém, os iniciantes do grupo sabiam que deveriam ter fantasia para construir seus ine xistentes personagens ¢ mobiliar seu tempo teatral sobre o ei xo coordenader de um texto, o que determinaria sua permanén~ cia no palco; em outra postura o iniciado, o pai, procurava manter parceiros e aliados na profissao per meio de uma gran- de visdo dos recursos que poderia sibtrair deles, £ da conflu Sneia de imaginagdes livres de expectativas prévias, da varie dade de contribuigdes e de curiosidade de um enredo to rico quanto pouco amarrado que se delineariam os temas das futuras sequéncias, Lembrando sua aproximagGo ao grupo, pat conta: "Su sabia deles. Um dia fui v@-los, Eu me lembro bem, os vi descendo a escada de Santa. Tereza (casa onde se reunian) e de repente tudo passcu na minha cabega (os demais estavam se ma~ quilande ¢ ensaiando suas roupas), Eu voltei ao hotel e vi o show. 0 A no Tango o B nas Cantoras, C falou que tinha uma miisica, Lili Marlene, eu achei muito bom, D’um texto, eu fa~ lei tudo bem, foi tudo assim, vi um espet&culo com coisas for tes ¢ relax", Segundo a matéria bisica montam-se os diferentes quadros. 0 requintado e profissional estilo de danga aparece no duo do 112 do Pango, onde de fato participavam o pat e um ator, j4 seu aluno de danga em época anterior a formagdo do grupo, Con- trastando com a linha profissional, mas com a mesma inteng3o de recuperagdo das contribuigdes e qualidades das pessoas ms seus esforgos de atuagao, seguia-se as Cantoras do Radto, um simples porém engragado rebolado de trés atores, no estilo de Carmem Miranda. Forma e conteiido das sequéneias tomam coy pO no que sugere as peculiaridades dos distintos atores, tan to do niicleo iniciai como dos que se incorporam até a estvéia no Teatro Treae de Maio (maio , 1973). Assim, na segunda ver sGo piblica do espetaculo (Beate Tonton, S.P., marco 1973) , agregam-se: a coreografia das Cadetras para ilustrar e aco Panhar o excelente desempenho do canto em voz de faisete de um ator; a Barbara como papel suplementar para um ex-membro do conjunte folclérico "A Brasiliana" que junta-se a elesjas Borboletas com intengdo e inspiragao fornecidas pelo autor de uma peca infantil de nome “0 Jardim das Borboletas". 0 engate dos aerscimos e de novas experiéncias realizava~ se em novos ensaios. Se a aprendizagem da danga, internamente, vai passar a ser vista como compasso de espera de uma melhoria, encenada pu- blicamente a pega provocar4 imediata repercurssdo nos espec~ tadores e na imprensa, que pelo excelente acolhimento tende- ra a reforgar, pava os atores, o que se define como “estilo Dzi, Croguettes"? , Configura-se o mecanismo que se solidi ficard no fio do tempo. A aceitagdo da pega pelo piiblico oferecera acs Dzi uma pron- ta passagem das boates para o teatro, 0 que se resolvia na es treiteza dos primeiros paleos - as boates - toma consisténcia 113 para enfrentar a visdo denotada e com menos recursos de sub- terfiigios de uma drea maior e mais destacada, de um tempo tea tral exciusivo para os ateres, sem as inconveniéncias das ou- tras atividades comerciais particulares aos primeiros locais. Um tempo e espago préprios, com maior relévo das suas figuras. Esse beneficio tangfvel nas pretensdes dos Dzi que, pela m-~ danga de localizagdo modificara seriamente o volume e varieda de de espectadores aos quais teriam acesso, assim como o pres” tigio que lhes outorgard pertencer 4 instituigdo teatral, ndo ocorre sem esforgos. Enguanto vdo ensaiando para o teatro, algumas modificagdes in. corporam-se pouco a pouco no ritmo das necessidades diarias . Como se trabalha sobre as aptidces particulares de cada ator, por causa das dificuldades de um s6 deles se @ capaz de depu- rar toda a coreografia, envolvendo nisso os esforgos de todos os outros participantes da sequéncia, Grandes alteragdes sao dificultogas pela implicagdo da mixagem do som que exigem , ainda que no limite elas tenham ocorrido em temporadas em cur, so. Boates, teatros novos, enfim um espago diferente com suas peculiaridades, possibilidades ou restrigdes sempre acavreta- 2 alguns previsfveis com a ilumina rdo compromissos de ensaio gdo e a sonoplastia, o lugar dos camarins e o acesso ao palco ou a posigaéo das roupas; outros marcantes na topogrefia do es petaculo, como a necessidade de construir um cenario ou marcar novos lugares para os atores, decorrentes de palcos totalmente diferentes como o de uma boate, um teatro de ‘arena’ ou 'ita- liano!. Neste trabalho de ensaios ndo se vacila em introduziv a montagem de novas sequéncias. Entretanto a dinamiea do trabalho que aproveita as 114 circunstancias nao desaproveita as experiéncias acumuladas . Tudo o que se sujeitava As exigéneias menores ou diferentes da boate sera conservado, transpondo no minimo o estilo des- contraide, o clima calido e a proximidade com os espectadores. Pa mesma maneira, na técnica, ao invés de abandonar os artist, clos precedentes, combinam-se estes com o progresso na danga dos alunos/Dzi, para se desdobrarem as qualidades e os mesmos cSdigos em tantos e mais quadros. Assim roupas e maquiagens diferentes, miudezas e evidéncias de diferengas pessoais, ce- nas miltiplas que compunham a primeira versdo da pega, agudi - zam-se por serem dissociadas em sequéncias mais lengas ou por se oporem a outras que falam em sentido inverso, com mais teor nos movimentos coreograficos, menos variagdo no vestuario e cmeliminagao de trejeitos supérfluos. Em regra geral, seja pe 2o trabalho dispendide,seja pela informalidade calculada, as coreografias vao enfatizar as aparancias duplas do prefissig nal edoalbarde. Como em relagao ao texto, trata-se de uma proposta. Os trechos "relax" ou albarde das coreografias, isto &, tudo 0 que parece movimentacdo, balbirdia ou desordem, na esfera das sequéncias dangadas, tem marcag&o precisa. Porém, com eri tério. totalmente diverso, hi outras sequéncias reforgando es~ te lado informal. S&o quadres que negligenciam os ensaios. A eriagdo, por exemplo, do Desfile denota bem a intengdo: "nao quer dizer nada, a gente chamou~o de Desfile porque aparecea assim, cada um entrava como queria, com wma roupa, com um es~ tralo". Nesta série entram os niimeros de canto, de pantomina como a Festa, as Bailarinas ete., dos quais ja falamos. Sao o tipo de sequéncia que se assenta efetivamente no paleo,fren te ao piblico, porque: “a_palhagada ndo di para ensaiar, tem 115 de ser na hora, segundo 0 clima" Compensando esta falta de rigor, hd outras sequéncias coreg, grdficas para polir o lado oposto, isto 3, o profissional. "Limpando 0 espetaculo", ordenando marcagdes, reestudando novimentos, ajustando os passos as possibilidades dos ato - res e exercicios fisicos prévios para aleangar tal meta, cviaram-se discfpulos corretos do mestre. Coube 3 danga mo- bilizar a maioria dos niimeros novos porque “era a coisa mais preparada", ou seja, por conveniéncia dos atores restantes que usufruiam ¢ desfrutavam o insistente trabalho de prepa- ragéo fisica pelo pat. Desta maneira no Shaft, que “inicdal mente ninguém sabia dangar e épamos .somente tres", em pouco tempo eram cinco. Esta tendéncia vai ser cada vez mais enfa. tizada, levando-os a compor quadros como o I'm Coming ow Black Power (T, da Praia, R.J. fevereiro de 1974): "Depois do James Brown, entra um nilmero novo chamado Black Power, Yo. cés vio ter tempo de mudar as roupas porque eu quero todo mundo de perucas Black Power de cores diferentes, de vesti~ do igual, todos iguaiainhos mas cada um com sua cdr. Muito pouca expressdo, tudo tem que ser danga. Ela & muito r&pida, n&o_tém_expressd: nem quero". A motivacdo do pat € lustrar a capacidade técnica de todos os componentes. 0 efémero do complemento da cenografia fica comprovado por no se ter nun ea levado a cabo: “enquante todos vac dangando, eu queria uma camara, como se fosse televisdo, filmando o X de Diana Ross recebende um Oscar, tudo isso junto..". 0 exemplo suficientemente rico parva derivar uma chservagao das conse- quéneias do esforgo dispensado ne setor das dangas sobre a dindmica do grupo. No curso do tempo, 95 processes criativos, o aprimoraniento da t&nica, além de garantir um espetdculo de boa qualidade , vao servir para que os Dzi possam reafirmar-se pela via indi, reta de um piblico que os legitima - efetizacio da proposta inicial: "assumir", "crescer", como por exemplo, na aprendiza gem da danga. "Crescer" @ levar a cabo de mangira positiva as propostas que fazem parte do sistema de representagao ideal. 0 prejeto do gyupo constava inicialmente de uma série alternativa de ati- vidades a se aprenderem. Para a reedigao valorativa do modelo ideal deve~se investi-lo de vez em quando de resultados empi- ricos. Que todos os atores aprendessem aficazmente a dangar (ainda veremos que hd excegSes) e pudessem equiparar suas aptiddes ao detentor da ténica, no curso de uma coreografia , seria aconfirmagéo das expectativas. As aspiragSes de aprendi zagem de outras expressdes artisticas faciam também parte do programa: tinha-se convidado um cantor Mfrico profissional.In tegrou-se no espetdculo como os demais mas, na drea da dinami ea social dos Dzi, a intengdo de igWlar as capacidades de to- dos 08 componentes no canto teve menos eficiéncia. A danga vai ser glorificada como a parte profisstenal da encenagao garan= tida por todos os atores, sem desmerecer a qualidade requinta dae talentosa, mas individual, da recitagdo do texto, do canto ou da musica por alguns Dzi. Pressdes de outra ordem i- rian forjar e reforgar a idéia de profissionalizagao, A postu ra cria raizes a partir da recepgdo da pega pelo pGblico e a repercussic desta imagem sobre o grupo. A conjung&o dos géneros profisstonat e albarde parece ter desnorteado as classificagdes convencionais da imprensa sor bre a pega, Numa Lektura do conjunto, e, nas linhas e entre linhas de anos de artigos sobre os Dzi Croquettes e em ree contextos diferentes o que é intrigante @ a pequena mas, franca discussdo sobre a terminologia que lhes corresponde - ria: 6 "teatro", "show", "danga", “musical",ete.? Em geral aimprense resolve a questGo dando muita explica - ¢do ou superlativando o espetdculo, como por exemplo: "show de categoria internacional"? "show de sdtiva, musicalidade , ironia e vanguardismo"? “um pouco de teatro de revista e es~ petaculo de cireco, com happening caseiro, muito unissex no- vaiorquino e um pouco de carnaval brasileiro"? “espetdculo felliniano, chapliniano e kafkiano"® ou ainda sugerindo “nam owtro local (Boate Ton-ton) o espetaculo poderia ser julgado como exigente obra -dramitica"? contudo, muitas o- pinides parecem encobrir certo incGmode por estarem os ato- ves suspeitamente vestidos de mulher porque, além de ter” que qualifiear um novo estilo de teatro na praga, recorrem a passagen dos Dzi da beate ao teatro, mesmo muito tempo apés isto ter acontecido. Isto 8, os reporteres procuram sempre conotar as raizes das boates. Poderiamos supor que hd um problema de conteiido que a impren sa néo consegue cindir da forma. A polaridade dos julgamen- tos emitides, que cobrem por wn lado. argumentes em termos tae : aan + 6 de: "critica social colocando em xeque contradigées reais ", "pega de teor social cuja abordagen traz uma carga e- mocional(...) negécio sémio feito por gente séria",® ow seja, proposta social valida, contraposta por outro lado a "querendo fugir do rétulo de shows de travestis através das caractertsticas de androginia"? (entre aspas no texto) — ou “eolocagao falsamente filesdfieca (...) com imperatives co- merciais",*) por tanto proposta artificiosa ¢ banal, traduz duas ordens de problemas confundidas pela imprensa 116 porque ambas usadas no espetaculo. Em primeiro lugar, diz vespeito 2 34 velha discussao sobre a definigZo e fungdo ar- tistica, isto é, as fronteiras entre a arte mercadoria de consumo e a arte criativa como ato livre com forga revelucio, naria nos padrées culturais?? am segundo lugar, sendo ° reverso da moeda por aprofundar a brecha do assunto acima mencionado, 0 conteiido que se assemelha a "show de travestis", enfim, algo que atinge os valores morais e preconceitos aq tentes do contexto na Spoca da aparigao dos Dai por realizar -sea pega num teatro e nao no Gmbito costumeiro da hoate ou teatro de segunda categoria. Estes detalhes scbre a manifestagdo da imprensa, que pode- viam nos levar a outro nivel de analise, interessam pela vepercussdo sob formula combinada de dividas que surge na dindmica dos Dzi. Ainda que se queira aparecer no paleo com voupas de mIher, ndo se deixa de sofrer pela ousadia,ou melhor, de interpretG-la come razdo explicativa quando ha uma diminuigdo do piblico, quando posto em questao por un dono de teatro na hora de achar um lugar de trabalho, quando ha o perigo de virar escAndalo piblico ou sofrer . pressdes. 19 Todas estas situagdes, se nado resolvidas rapidamente, com © tempo, ressonavam ciclicamente numa divisZo interna dos Dzi. Sugestivamente as facgoes denominaram-se "as profissio- nais"e as "emocionais" (Teatro da Praia, 1974) e, em outra temporada e lugar geografico:"o Partido Trabalhista" eo "partido do Guarda-Roupa" (Boate Frou-Frou, outubro, 1974) . O motivo da fricgdo, segundo a primeira ala era a "falta de profissionalizagao" confrontada com a excessiva preocupagao em "exibicdo de roupas” de alguns atores. 119 © melhor exemplo desta eterna preoecupagao @ dado pela "briga do vestidinho" (R.J., maio de 1974), Pouco antes dela, os Dai tinham sido oficialmente censurados, situag%o que se pro- Jongou com um recesso do pilblico. Desanimados, com dividas e conémicas que aumentavam proporcionalmente ao tempo que passa va, sucediam-se os conflitos internos. Resolvendo-se a erise, todos os membros concordapam que as acusagdes de uns aos ou- tros de "pensar sO no vestidinho" para vestir no espetaculo e de “chamar um 26 (isto @ a atengio) para a profissionalizagdo" vefletiam problemas de {ndole diversa, Mas por consenso ace- lheu-se, internamente, como bode expiatdrio desta estéria oo ator que nao tinha aprendido a dangar, Isto lhe valia nado ser integrado como membro da familia, receber salavio menor, ser posto em questdo no momento de partir para a Europa e outras’ tantas segregagdes. Que fosse ele quem "botasse o vestidinho", procurande figurar a imagem de miYher, ndo era evidente se in ue tenpretado pelo Angulo do espectador, Entretanto, um de seus companheiros lhe sugeria fazer os exercicios de danga parame lhorar a aparénoia do corpo” (isto @, desenvolver a musculatu va). Ora, quem fazia esta reflexfo dispensava também os ansai ost como m@e, autor do texto que por sua ativa e talentosa par ticipagdo de ator, sua situagdo nZo era questionada. Foi o t~ nico componente que janais dangou junto com os outros. Lembre mos de passagem que, com a pretensdo de equiparar as possibi- Lidades téonicas entre os atores, n3o se apagam os privilégios das Liderangas e que, na esfera de competéncia do pat, nao interfere a mde, A compreensGo dessa segregagdo complicava~se pelo fato de que © ator diseriminade comegara a dangar h& pouco, numa seqtl@ncia, © Sambdo, se bem que a coveografia nfo eva das nais complicadas e por definigdo era um tanto albarde. 0 sujeito era bom ator, até se na versGo dos outros fazia “muita cara". Eo espectador se lembraria dele por ter um papel diferente do conjunto, que por isso mesmo o destacava. Embaralhavan meu entendimento por completo as frases langadas @ toa "ele ainda nao entendeu nada do barato da gente" ou "ndo sei como ele es tA ainda com a gente, ele realmente nao faz nada para = ores- cer", Fle era o camareiro da Companhia e portanto seu tempo de palco e da rotina via~se reduzide pelas fungdes de peque - nos servigos diadrios e na arrumagdo das roupas de outro ator. As respostas para a segregagado sem dilvida sdo varias: antece- dendo-o, outro componente jd tinha sido camaretro da Companhia mas tinha-se integrado-de maneira positiva na familia; — so- bressafa a seu mode no paleo; levava uma vida diaria afastada dos seus companheiros; ndo se solidarizava de maneira precisa com alguma facgao do grupo em &pocas de erise,ete. Mas, por sev pertinente aqui, advirto que ele mesmo reconheceu que se ineorporou definitivamente 4 famtiia (ganhando por decorrén ~ cia disso ow vice-versa, o mesmo salapio) no dia em que come- gou a "fazer os exercicios de danga" e ganhar lugar em outras coneogratias ;(Lisbos - 197%) "Fazen" (algo que se reconhega) na concepgSo dos Dzi & sinéni_ mo de “trabalho", isto &, especificamente os "ensaios", os, "esquentamentos" e demais preparativos para dangar no espeta- culo. Numa certa @poca, inventaram-se até “multas" - as dni - cas que existiram - para quem chegasse tarde ou faltasse aos ensaios, no valor vespectivamente de dois e quatro ingressos, ‘inteivos' que o pablico pagava para assisti~los. E, ainda para provar a importancia deste parametro de atividades na vepresentagaéo ideal dos atores, a administragdo ou as 421 relagdes piblicas, geralmente, desemperhadas, pelos préprios atores, néo eram uma justificativa para "faltar ao ensaio” por mais necessarias que fossem para o encaminhamento do es- pet&culo. Trata-se de uma concepgdo ideal, que contradiz,por sua vez a outros propésitos ideais dos Dzi. Nem sempre podia vse dispensar a4 administragdo ~ como em véspera de estréia, nem todos os individuos queriam desempenhar somente a fungao de ator/bailapino, Alinhando as idéias da and@lise: nos ensaios que repercutiam no paleo como um bom nivel artistico e nos "vestidinhos" que os faziam vulnerdveis no contexto, os atores redobravam sua atengéo com os primeiros para serem aceitos com sua indumen- t8ria: "antigamente era muita roupa bem albarde agora somos mais profissionais e botamos o que queremos" (Teatro das Na- qdes, S.P. 1976). Como acontece com os outres ecanais de expressdo, as partes que compdem a matéria das coreografias sdo a resultado de varios fatores: a conjungdo da eferveseéncia de idéias e talentos; a adesao de um coreégrafo; as mudangas geosraficas e de locais de apresentagdo; a aceitagdo imediata do estilo da pega pelo piblico; a postura da imprensa, ete. As montagens das coreografias testemunham pela manipulagao de quadros ¢ sequéncias o carater dindmico do projeto do grupo. A pretensdo dos Dzi nado & somente montar um espetdculo para o piblico, mas imprimi-le do processo que est&o vivendo. A medi da que vao se apresentando as diversas versdes do mesmo espe- tdculo, fica cada vez mais evidente que, em termos gerais , os voteiros escolhidos sdo a verdadeira histéria encenada dos Dzi Croquettes e da sua pega teatral. Mais ainda, o enredo 122 de alguns quadros serdo a fiel reconstituicgdo da evolugao d se mesmo quadre no fio do tempo. 0 trabalho dispensado em "ensaios", "esquentamentos" e a mon tagem das coreografias, junto 4 recepgdo piblica da pega irdo forjar uma ética dos Dzi baseada numa nogdo de "traba - lho". Para o leitor talvez tenha se infiltrado nesta parte da andlise a sugestdo de que o reforgo dessa dtica pudesse, no tempo, absorver o lado albarde do espetaculo. Acontecendo is, to, significaria a reavaliagdo do critério inicial favore - cendo um lado da equagdo: a profissionaliszagado. Em outras palavras, seria a perda da dimensdo da transgressdo em favor do desempenho das. fungées de maneira como a sociedade as prescreve. Porém, desde a época da criagdo do seu profeto,os atores admitiam alguns critérios sociais estabelecidos sampre que eles fossem permeados pela “ourticZo", isto 6, o divert) mento. De fato, as atividades escolhidas por eles no podem ser consideradas das mais convencionais. Agrega-se que, se um dos objetives da aprendizagem da danga &“ser profissional isse ndo supde, no entanto, o abandono gradativo das roupas que camuflavam a imperfeigdo técnica. Se for o caso, a aqui- sigdo pratica da técnica servira, por exemplo, para usar me- lhor roupas francamente de mulher (se bem que conservando ou tras caracteristicas ambiguas) come o foi para vestir um dos personagens na criagdo posterior da sequéncia do Bolero (Tea tro Bobino, Paris, 1975). Enfim, atuando em sentido contrario A profieatonalizagdo, existe no universo Dzi Crequettes uma série de mecanismos para contrabalangar e impedir a canaliza cao de suas propostas numa sé diregao. Eles afetardo a esta- bilizacdo das coreografias na sua forma _perfe: inclusive no exemplo Unico, como & o I'm Coming ou seu equivalente 123 segundo a versio do espet&culo em curso. Apés terem feito, num perfodo curto, a demonstragdio piblica, da competéneia técnica do conjunto, os préprios atores de- formapam o I'm Coming. Vagarosamente alteraram o vesturario passando a usay padrées diferentes, sairam alguns componen- tes e modificaram a marcagdo da coreografia. Mais radical como postura & suprir francamente certas sequéncias como por exemplo as Barras; "oc visual @ muito bonito mas ndo &@ essencial ao espetaculo". Diga-se de passagem que para su- prir a anulagdo de ecertos quadros ou a composigdo perfeita, inventan-se outras sequéncias com intengdes semelhantes co- moa Gafietra (teatro Bobino, Paris, 1975). A propasta do grupo, que tende a conservar suas formulagées de maneiva am bigua, esta sempre por tras de qualquer variagdo da pega. Gono precisam provar a si mesmos que aleangam certas me~ tas, estas ndo podem fixar-se numa imagem estatica: as bre- chas servem-lhes para renoyar-se continuamente. 0s pices das alternativas que formam, por um lado, a habilidade téc- nica e por outro a viqueza da imaginagdo (que se corporifi- ca geralmente no aloarde), instauram wn complexo de combina torias que sdo exploradas no processo da pega, sem nunca a- tolar-se mum dos polos. A perfeigdo béenica por exemplo : teansformaria no seu contrario a negagdo da dindmica criado val 0 processo que faz com que o albarde nio se tenha subordinado 4 profisstenalisagde, tanto nas relagdes manti- das entre os Dzi quanto na pega, sera analisado no capitulo seguinte, Por enquanto, por serem as coreografias dangadas 0 setor em que o conjunte dos atores alcangou : primeiro a sua meta ~ muito mais do que "assunin" por exemplo, alterna tivamente a recitagao do texto - elas estarao sujeitas a 124 uma verdadeiva remanipulagdo continua inclusive em detalhes imperceptfveis para o piblico. Anos apés sua eriagdo, uma das primeiras coreografias de conjunto, a danga Dat Croqueé tea, ainda era modificada. 125 (ad (2) (3) (4) (63 (74 (a) (9) (10) tay (42) Hilton Viana, Digria de S40 Paulo, S.P., 1-7-73 @ 11-7-73 Mauricio Olas, Revista Veja, S.P., 14-273 Carlos Imperial, Jornal do Srasii, ReJ., 16-12-72 J.N., folha de $30 Paulo, S.P., 17-8-73 Revista Pop, S.P., Junho 1973 @ C.B., J Py, 30-5-73, Hilton Viane, Oigrio da Noite, S.P., 23-5-73, S4bado Magaldi, Jornal da Tarde, S«P., 17-5-73, idem Fernando Coelho entrevistando Ivandre Kotait, O Dis, S.P., 28-7-73, Flavio Marinho, Tribuna da Imprensa, ReJe, 5-2-74. Feusto Fuser, Folho de S30 Paula, S.P., 25-5-73. de fato,as preocupagées classificatérias de produto cul- tural nfo sSo suscitadas somente palo tipo de pega ofere~ cide pelos Ozi. A primeira colocag&o subjscente as expectativas da eriti~ ca jarnal{stica provem pele prdpria definigao do que é arte. Marcel Maves, em 1935-36, j4 assinalava o imbrica - mento das fenBmenos de técnice e arte: "La distinction en tre les techniques et tes arts, surtout jorsqu’il s'agit Gtarts créateurs infest done qu'une distinction de nsycho logie collective” (fi.Mauss, Manuel d'ftnographie, in Pett te Sibliathéque Payot, Paris, 1967:85], Portanto » em pri. meiro lugar hd de se ter em conta a intencho dos autores assim coma a apinio e aceitegao pelo piiblico. A segunda colocagao subjacente a classificagSo das obras culturaia é mais partinente sos pradutes das sociedades modernas,cam- plexas @ industrializadas. Brecht @ Suhrkamp, somo indica T. Adorno, sa prescuparam em chemar a ateng&o sobre o que se orienta “segundo o princfpio d2 sue comercializagao e nko segundo seu préprio contetide @ sua figurag3e adequada” (1, Adorno, A indfistria Cultural in G, Cohn, Comunicagdo aa) (1a) e_Indéstria Cultural, Companhia Ed. Nacional, S.P.,1987 : 268). A inteng3o confessa, por parte dos Uzi, da finslidade co- mercial da pega - entre outras metivagoes, ~- ou o que transparece desta postura na prépris obra, no antanto,nio pode ser julgado nos termos erfticos e severos de T.Ador- no a “indGstria cultural”, promovida por drgaos de execu- gio ou patos detentores do poder. &. Copfermann, qusstio- nando os possiveis fatores imsdiates e comerciais conti- dos na elabeoragSo do produto cultural,e, especificamante do teatro observa: "Li faudrait certes at aussi se = de- mander pourquoi le théStre devrait se distinguer des au- tres activités humaines {..); en quot peut-il échapper aux rapports marchands imposés par la société capitaliste et ol se situe se sphare partiouliére” (E. Copfermann, vars up ThéStre Différent Maspera, Paris, 1978). Como foi vis to anteriormenta (of: 76} esta & a postura dos Ozi neste assunto, A posture de “corrigir diretamante o que & considsrado o fundamental objativa de sua deficiéncia “por parte dos a- gentes sociats que se definem ou s&0 definidos camo "estig. matizades” foi um tema observado por &, Goffmann (1863 - Estigma, Amorratu, 1970:19) ou J.P.Sartre (2954 (1954 = La Question Juive, Gallimard/Idées, 1973). Desta maneira razGes histéricas, séciovecandmicas etc. , so dsixadas de lado por aqueles agentés soctais e sua tendéneia de superar as caracterfsticas negativas que ines so atribufdas resulta num reforgo dos valores dominantes da estrutura social. CondigSes contextuats nefastas levavam certos componentes dos Ozi a reagir da mesma maneira, Porém, a observagfo de campo, demonstra que = forga do grupo como um todo ream gia de preferfncia com outras respostas de transgrasséo aus padrées socials esperadas. & scbretuca no trabalho de N,Qougles (1966) Purity and Danger, Penguin Book, Landen, 1970 que achae-se o conceita da desordem Ligado a potencialidade da criagdo. Segundo e& lar “Granted that disorder apoils pattern; it also pro- vides the materials of pattern, Order implies restrictions from all possible materials, a limited selection has ween made and from atl possible relations a limited set has been used. So disorder by impiication is unlimited, no pattern has been realized in it, but 4s petencial for petterning is indefinite", (1970:114). 6 A infiltrago do mével no fixo: roupas e persenagens "OQ show & coisa da gente, @ tudo o que: a gente quer, Todo mundo tem possibilida de de fazer 0 que quiser: a gente ja muda de roupas todos os dias" Um Dai- A importancia das roupas pode ser percebida se soubermos que numa sessio do espetaculo os atores trocam aproximadamente quinze vezes de vestudrio, Isto @ reforgado pelo fato que de um dia para © outro muitas delas sdo diferentes, Os Dzi mantiveram esta disposig30 criativa durante os quatro anos e meio de representago piblica da pega. Pele contrario, mas si mult@neamente, a mesma gramatiea das roupas recorta todas as sequéncias do espetaculo. Lembremos o leitor que o alvo é de sajustar qualquer série convencional: o velho com o novo, o grande com o pequeno, a fantasia com o cotidiano, o padrdode thowem! com o de 'mulher' ete. 0 resultado da variagio 4 pri- meiva vista para o espectador, é mais uma demonstragio de pos sibilidades combinat6rias na criaga&o de Fantasias que una ilustragao explicita ou até significativa da cena que se es~ td vepresentando. Neste sentido, proeurar a fungio impifeita das roupas para o grupo & relevante. Analiticamente, por de~ dugio da classificagdo dada pelos atores, & poss{vel detec tar no bindmio roupa/personagem (género de vestuaério ligado ao personagem que os atores cultivam para uma cena) um ini- co elemento de significagao, Em segunda instancia veremos que a roupa (vestudrio) em si mesma, forma otra unidade com im plicacSo diversa e mais camuflada que a primeira na dindmica dos Dai e do espet&culo. 126 A priori, as roupas/personagens (conjunto indiferenciado) , como os outros canais de expresso, sao instrumentos e vefcu, los disponiveis da representagdo teatral, que servem de pla- taforma, por meio de seu uso e pratica, para os atores “crescerem", Mas se recitagdo do texto, danga etc., sao su- postamente campos de experimentacde que dependem de fatores mais complexos para sua alteracgdo - tempo, consenso do grupo, ensaios, permissdo da Censura entre outras coisas - as res trigdes neste dominio sd0 quase inexistentes. Na questo das roupas a Companhia fornecia o minimo: tapa-sexo, boa, mate - pial de maquilagens e purpurina e algunas peqas obrigatorias do vestuario de certas sequéncias (camisa de futebol para o Fingl, tinicas do I'm Coming etc). 0 resto ficava a cargo dos préprios componentes. 0 impulso para a eriagdo @ sempre dado pela dinaémica de grupo mas para a concretizagdo muda a concepgdo: o arremate @ um trabalho individual. "Cada um tem de sacar seu préprio barato” ou "assumir" sao valores estimulados entre os Dzi. Especificamente, isto @ mais ou menos ir eseulpindo sua prépria personalidade. Os instrumentos por exceléncia que conduzem a esta meta, entre outras coisas, sdo a composicdo dos figurinos,a invengdo dos personagens e modulagao dos gestos que lhes sao apropriados, a aprendizagem vocal e, em suma, tudo o que possibilita cum- peir diferentes papéis para a representagdo teatral. F uma va de introspecodes profundas e observagdo de equagdo gradat resultados, de ajustes e desajustes, de consideragdes de acu mulagao de experiéncia e descobertas pessoais. £ uma busca , uma verdadeina agdo. 127 Em termos gerais, os acertos ¢ achados desta alquimia pes. soal levam - no minimo - a dramatizacao, no palco, dos pro- cessos subjacentes ao cotidiano dos atores: a reelaboragado constante da informagdo cultural e social. Wo inicio, ao conhecer os atores, pedi ~lhes para fazer a lista de seus personagens, visando a reconstrugdo global de uma representagdo teatral por demais carregada de detalhes pa ra que pudesse ir tomando notas durante uma fungdo. Fu pensa va somente naqueles enunciados da pega ao alcance do uspecta dor comum. Pela minha ingenuidade a questao nao deixava de surpreender alguns atores: "Deixa ver... eu fago..., bom, geralmente o género putinha, estrelas de cinema, mas sao to- das umas putinhas. Depois, sei 14, nas Cadeiras nio parece una Liza Minelli assim... e no Final eu fago eu mesmo". Enfim, detalhes para me conforsar, posto que eu sabia ndo serem estes personagers esclarecidos verhalmente ou ilustrados fielmente no espet& ~ culo. Outres atores aproveitavam da minha pergunta para sol~ tar as védeas da informagao e lembranga cultural: “normalmen. te eu fago Tufo da Familia Caricata, as vezes estrélas de ci nema: Jane Russell, Joan Crawford, Rita Hayworth (..3, 0 a Louca de Chaillot, 0 Corcundo de Notre-Daie em Vecchi Améri~ ea, um Exi de Macumba, uma Pomba Giva, depois Joel, Jararaca ou Jackson do Pandeiro (...)7 Um de seus companheiros gozava da desorigdo dizendc-me: "E tudo mentiva, nao acredite nele, esta inventando". Na pratica da observagao nos camarins, a minha pergunta ini- cial era menos insélita do que parecia. 0 problema era menos a falta de costume de nomear os personagens que a definigdoa posteriori das criagdes. Nenhum destes personagens imitava No Yeechi America, uma Miss Simpatia algo * 328 com precisdo a fonte de inspizagdo. S83 traziam alguma alego- pia caracteristica,ou talvez nem isto, perdida no padr&o am- bigue da gramatica. Entre risos e exclamagSes apés terem in- ventado ¢ montado seus personagens, ainda nas coxias, anun - ciavam mutuamente o nome das suas fantasias: "Eu vou de vio- linista do Telhado", testemunhando o nome escolhido com um pedago de papelao pintado com a palavra "telhado" que carre- gava na mao. A outra razdo possivel na hesitagdo em revelar os nomes dos personagens eva, talvez, nfo confessar explicitamente para um agente externo ao grupo - minha posigdo na Spoca - 0 con- ceito de criagao. Principalmente, se traduz pela “ourticdo en cima de...", 9 que significa fundamentaimente: “se a gente ita os grandes" (as pessoas de mérito ndo sabe, pelo menos . . 128 piblico). No entanto, sem caiv na réplica perfeita: "imitar vai ficar cépia pobre, tem de curtir em cima". Irénico e 1i- cide, um ator da uma explicagdo mais completa desta remissdo e fundicéo de elementos para adequd-los 4s necessidades pes~ “Poi com este espetaculo maravilhoso que a gente co soais mais fantdsticas do teatro e do music-hall. nheceu as pessoas Jeanne Moreau, Liza Minelii, Mich@le Morgan, Simone Signoret. E, como nfo sou morto nem nada, eu Ficava de olho nelas. Se piscavam © olho de jeito diferente, eu registrava, onfim re- gistrei tanto que compus (personagens) de tudo um pouco, uma "(an miseelanea de astros e estrelas famosos assim como Duze' niga dos atores). 0 objetivo dos Figurinos ma época da forma cdo do grupo era fazer como nos “Blecos de Sujos de infan - cia", isto &, as fantasias informais do Carnaval. No curso do tempo, contribuiram as leituras, a assisténcia a televi ~ sdo, as pegas de teatro, fundanentalmente,as caracteristicas de todas as pessoas com quem cruzavam na rua, no teatro ou em suas casas, sejam clas desconhecidas on das suas rela g6es, para aumentar a coletanea. “Também se o trabalho da gente @ aquela coisa de ficar $$ em trocar as roupas entdo para mim 34 vira aquela coisa igual ao que faz meu pai que & médico” A solugdo que sedimenta a identificagdo e as experiéncias pes soais, ndo importa somente no nivel existencial des indivi - duos ou por sua relagdo com o contexto imediato. Flas refor gam a outra vertente do projeto do grupo, vista de maneira enviesada na elaboragdo do texto e na danga. Comparativamen~ te, estes canais de expresso ancoran as liderangas, 2 ética vertida no trabalho, o polimento de profisetonal e s40 de ow ta forma a véplica de padrSes tradicionais. As roupas/perso- nagem ou simplesmente as roupas, sao a contrapartida destas posturas. Como entra em jogo a eriagdo individual, também dao fundamento ao resguardo do atbarde, a anulagdo de desigualda des, a invasdo do privado na area piblica na faceta de reivin dicagdo pelos componentes do grupo. 0 assunto ~ analiticamen te mas, como consequéncia da dindmica interna - @ mito mais sutil e portanto mais complexe. Sao atitudes que vao em con- tra-covrente aos valores dominantes no contexte. Nesta forma, ainda estes valores se infiltram (ou voltam a incrustrar~ se) na din&mica dos Dai, seja como 'vicio’ residual das expe piéneias dos individuos, anteriores a sua disposigdo de per- tencer ao grupo - para abreviar chamemo-los habitos sociais de convivEncia no contexto mais amplo, ou pela soliy ou expectativa constante da imprensa, do piblico, dos 130 diretores de teatro, etc., estes agentes interferem efeti vamente na composigio do espetdculo ou nas relagdes do Dzi, apesar do permanente resguardo do seu universo, Portanto o esforgo contido na criagdo das roupas/personagens esta mais na insist@ncia sempre renovada, por parte de todos cs compo nentes, em preservar e salvar a postura de transgressdo, a igualdade, etc., que na realizagao efetiva ou absoluta des ‘tas mesmas expectativas. Os mecanismos de mediag#o se dao de diversas maneiras. Na necessidade ou obrigagdo de ter que suprimir sequancias do espet@culo ~ por razdes eontextnais ou conjunturais como a passagem de hoate para teatro ou a falta de piblico- @ 1 significativo que os argumentos dos Dzi protejam fundamen ; talmente o parfmetro roupa/personagem. 0 princtpio gerat &@ 19? vigiar a "ligagdo dos quadros entre si", isto @, modular as partes "fortes e relax", Mas na escolha da subtragZo procu- ra-se ndo lesar a peca de: 1) os "quadros mais da gente", o que em eseala comparativa poderia ser a Festa mais do que o Vecchi América e por sua vez mais do que Serventeon: 2) 0 papel de um ator: as Borbotetas, por exemplo, sequéncia dan cada por varios componentes conserva-se somente pelo apresen tador da cena ~ diga-se que 6 uma pessoa de status modesto no grupo ~ a menos que sé possa incluir seu pequeno papel nun outro lugar do espetaculo; 3) “o tempo de mudar as roupas" de sequéncia para sequéncia. Os dois Gliimds pontos se re~ ferem 4 protegdo do diveito de eriag4o do individuo. 0 pri- meiro ponte se sobrepde aos dois outros: "os quadres mais da gente" so aqueles de estrutura coreografica frouxa, por- tanto sao os que fundamrse no zelo posto nas vestimentas . e participagao eriativa dos personagens. A diferenciagao de roupa, maquiagem e personagem ~ cujo con junto forma o binémio roupa/personagem - de ator para ator, delimita a dimens&o e composigdo do grupo. fa alegoria da impregnagdo e colaboragao de todos os componentes nesta om bra comunal que representa o espetdculo. f um des valores depositado pelos Dai em conjunto, Por outro lado, servem pa va nivelar o peso da presenga da mie e do pat, respectiva mente autor o coredgrafo, como principais responsaveis na eviagao artistica: "no espetaculo tem coisas de todos nds”. A varidvel voupa personagem @ um espectro de reaproveitamen to muito grande, Lembremos que sdo os diferentes atores na representagao de seus personagens que agregam matéria ao tex to basico (passagens da Abertura, Festa, Bailarinas, Veoeht América, ete,), Falas ditas ao acaso que surtem efeito sen rio pouco a pouce destacadas em primeiro plano, Citemos o caso do ator que imitava com talento a propaganda das'Casas da Banha’, No futuro ele vai ganhar um tempo teatral exclu sivo numa pausa do Mondlogo de Madame como, em outros con ~ textos, seus companheiros adotan o estilo e multiplicam-no, 0 mesmo acontece nas coreografias. Um género de personagem veiteradanente cultivade por um ator, perdido por estar sub mergido na profusio de elementos simultaneos de expressao de uma sequéneia como Abertura, pode conquistar, numa outra ocasiao, o status de tema central de um guadro novo. Nas de rivagdes desta Indole constaram as sequéncias dos Carlitos (bal@ de quatro partes), da Carmen wirandasta Marylin,ete. O matiz novo ~ na observag&o analftica e no conceito criati, vo dos atores ~ estA na inverso de objetivos especulados que vai da cena "curtida" por diversos personagens para a cena do personagem "curtida" pelos outros atores, 132 A concretizagZo de certas propostas do grupo, como a nivela ¢Ro das possibilidades individuais, nfo sdo exatamente ca~ suais ou excepeicnais e avivam a ideologia. Incluiramse se quéncias novas na pega como solugZo ao projeto iniciai: deg ta maneira "nZo se corta o barato dos outros", ou seja, con serva-se o papel teatral dos que tem precedéncia, favorecen do 05 demais componentes con um espago suplementar no espe tdculo para se realizarem como atores. Dos quarenta e cinco minutos de duragao no T. Treze de Maio, a pega chegou a ter duas horas e meia (ou mais) de duragao. Nem por isso todos os componentes de responsabilidade menor na produgSo teatral viram nivelades suas capacidades pes~ soais de maneira equivalente. 0s aspectos crlatives engen- drados na dinSmica teatral nfo podian ser — reaproveitados indefinidamente. Outrossim, na ocasifio de coneretiz&-los, a grelha de selegSo nfo se finda sé © diretamente em dar chance aos desfavorecidos, mas est& permeada de toda espé~ cle de interesses. Certos atores, prevenindo as futuras al- teragSes do espetdculo ~ por exemplo.o planejamento de uma estréia em teatro diferente - se esforgavam e1saiande en ca sa e por conta propria, certas coreografias ou parte do t to, vieando ganhar o papel. Afortunadamente os — interesses pessoais eram diversos, simplificande a quest&o, Un freio maig vielento ao impulso eriativo pessoal @ a supressZo = por um lado dos lideres - de uma encenagdo pelo motive que “ndo funciona", isto é, nfo proveca risos ‘ma platéia, Como na danga, sugere a idéia do possivel constrangimento dos atores pelo piblico. Entretanto o leeado o interpreta como uma traig3o interna: "na howa que eu mais curto meu persona gem o outro vem @ corta meu barato. E em vez de falar que é para eu nfo fazer, inventa outra desculpa". 133 No entanto, na brecha outorgada pelo parametro roupa/persona gem, os Dai infiltram seus conceitos de "liberdade", “respei to individual", "igualdade", "participagdo de todo o mundo": "se temos um espetaculo & para todo mundo poder dispor das coisas e no ter alguém que comande por cima dos outros" Sao palavras e nem sempre fatos como foi visto. Isto ecoa a um nivel de representagdo ideal, entrecortado de exemplos particulares que mais do que concretizar globalmen- te a proposta do grupo reafirmam a ideologia interna dupli~ cando a do contexto mais amplo. Um tiete levanta este argu - mento numa conversa dos atores sobre sua igualdade: - "Porque entéo o X fica aparecendo mais que o5 demais no paleo? = porque ele j4 estava na frente dos demais, quem éramos nos ‘ 134 d? Ele ji era pessoa conhecida no teatro e depois sempre vai seguir na frente "vespondeu um dos Lideres enquanto os ou~ tres assentiam. 0 conformismo se apdia no que parece inerente 4 realidade con textual. No fundo, se ha consciéneia da diferenca entre eles, nao procuram enfrenti-la objetivamente. S20 condigoes acei- tas como fator necessario a essa mesma vealidade contextual: a dependéncia de certo sustento profissional artietico para a finalidade publica da obra (propaganda do espetdculo, énfase e expectativa do piilblico no destaque de certos atores, ¢ co~ mo um subterfigic para evitar conflitos internos inconfessa~ dos.) Contrariamente @ também o reconhecimento afirmativo das qualidades de seus companheires. Alias, que-a resposta ao ¢iete provenha de um lider insinua sua auto-conseiéneia do papel ambiguo que desempenha num goupo que se quer dence nit ino. 0s atores racionalizam constantemente as disparidades entre os critérios internos que flutuam na base de interesses din versos e os apontam, se ndo sempre para o conjunte, parcelada mente entre as facgdes circunstanciais provocando uma consci-~ entizagao progressiva. A representag’o ideal eo projeto do grupo nio .correm para lelamente ou em contradicZo permanente, sendo, ambas se entne cruzam continuamente na dinamica da ag&o ¢ do tempo, Mas tom dos os esforgos para alcangar melhor a meta programada - 0 que de fato se deu na contingéncia da aus@neia de atores, por pazdes de doenga ou separagao do grupo - e os reajustes com segilentes, s&e processos desenvolvidos a largo prazo. "Ey estou de ténis nas Cadetras como ago de protesto" Confidneia de um Dai. Ancorados monentaneamente - em condigSes concretas como, por exemplo, no curso de uma temporada, restringindo mudangas co= reograficas ou a inciusdo de novos papéis - os Dzi em conjun- to, reduzem yerbalmente sua representag3o de "liberdade”, gualdade" no espetdculo, ao cSdigo unico, porém homogeneiza ~ dor em termos de direitos, que sao as roupas, Isto supde cin dir em dois a variavel voupa/personayem analisada at@ agora como uma sG, Em varios exenplos de conversas aparentemente cu piosas entre os atores, escolho um no qual o pergonagem é visto come prolongago da roupa: = "no final do MonSloge vocé e eu poderfamos trocar de roupa © entrar no Bolero diretamente, mostrando ao publico a transformagie em cena dos personagens 135 ~ "Mas o tempo vai ser comprido, vai dar na mesma que no Ave Mania Cou‘seja "no funcionavé), Eu tenho um terninho e de mora muito. = Mas entSo bota outra que tire rapido = Nao da, € a roupa que o povo curte no personagem. - Ora essa, agora 6 roupa_e nfo personagem! " © assunto das roupas vai desvendar pelo menos duas coisas .Por um lado, a consciénola dos atores da dificuldade de conciliar seu projeto ideal confrontade com os problemas reais, sem es- tratégias para superar estas barreiras. Por outro lado, a consciéncia de manipulagdo contida nas roupas devido a sua ont: propria estruturagdo. Flas sdo um instrumen e _de_expres~ sao artistica e ativam a din&mica dos Dzi. Lembremos 0 peso das roupas na criagdo das coreografias, assim como seu impacto sobre o futuro pat cu seu piiblico em geval. Além disso, clas flexivel, to mad. contém a qualidade mais positiva: sao o elemen Ba termes de comparagie, vejamos que se os personagens (bind ~ mio roupa/personagem) ndc tém seus nomes verbalizades na pega 2 porque sua oficializagdo exige seja um ensaio prévio ou um espage teatral onde inclui-los, ov‘ a permissdo do pat e da mae, caso os motivos anteriores j4 estejam previstos. Mas, se as roupas se furtam a estas condigées, elas contém também suas vegras prescritas. Como foi assinalado no primeire capitulo, ha sequéncias que e- xigem vestuario semelhante .( as Cadeirasy as Borboletas,o An drégino etc.) ainda que os detalhes sejam diferentes. Agregue~ se os personagens que precisam de algum simbolo que os denote (ili Marlene com seu short, cartola e cvz gamada; Barbara com sua saia de babados; as Batlarinas com as caracteristicas de suas nacionalidades,etc.) e finalmente, para ndo me deters 136 a rapidez com a qual se sucedem as sequéncias, reduzindo 0 tempo de troca e invengao de indumentaéria. Estou, proposital mente, desmanchando um pouco rapidamente esta suposta “liber dade". Com certa preparagdo antecipada, os atores sempre dis puseram da alteragdo do vestudrio, alguns componentes esfor- gando-se mais do que outros em inovar os modelos. Alias 0 processo nunca se estagnou no curso do tempo. Ao que eu que vo chegar & que o critério de utilizagao desta "liberdade", por todos eles, confinava-se na rotina do espetaculo, quase unicamente na sequéneia da Abertura. No entanto, mas por is so mesmo, 0 apego dos Dzi As roupas e sua supervalorizagdoes condem as artimanhas da dindmica interna. 0 peverso da moeda @ no dap-se por vencido pelo resguardo de certa ordem no espetdculo, traduzindo simultaneamente O° instrumento artificioso que sho as roupas. A linguagem esta- pelecida por estas & fundamental para preencher qualquer la- euna, vista como tal. Através da variedade do vestudrio e da reativagdo desta privacidade,os Dzi vdo conseguir superar os dois lados do problema: amenizar as tensSes internas endo abandonar a pretensfo de equilibrar as possibilidades indivi duais. Apés um espetaoulo, fazendo notar a um ator que tinha contado as mangas de sua tiniea de uso obrigatério para de - terminadasequéncia, me respondeu: "Bu vou comegar a fazer de audo no I’m Coming até que me tirem do nimero. Para mim corgo geafia @ tudo igual e 86 isso, Fu ndo tenho interesse. Se pe lo menos fosse para ficar na frente, mas ndo sempre os mes ~ mos que est&o ali. Se & para ficar 14 no palgquinho, todo en- colhidinho porque ndo tem espago, prefiro ndo fazer". A conseqiéneia de tal postura pode acarretara suspensao efeti- ya do ator no quadro, na @poca de uma remontagem co espetaculo. 137 Muito mais frequente, @ a imitagdo gradativa de seu gestopor seus companheiros até desparelhar completamente o estilo pa drdo de indumentdria da sequéncia. Pode acarretar ainda anio participagdo de outros atores noutra cena como replica a sua atitude: "a gente fez isso para eles chamarem_um zé, eles tém de perceber que o espetaculo & de todo o mundo". A forga das roupas est4 na possibilidade de deteriorar ou a- molecer as propostas do grupo que se enrijecem, isto é, ser profisstonais, para chamar a atengao em outros niveis de re- presentag&o, coma ter as mesmas possibilidades, ndo desempe- nhar uma atividade que ndo se preza, ou qualquer veivindica- edo semeihante; forga de,por seu intermédic. tomar o piblico como testemunha - nos ttetes veremos que sao arbitros - dos conflitos internos (note-se o peso de uma tal estratégia pa va a canatizagao do poder nas relagdes de um grupo); forga de vealimentar, no mesmo movimento, 0 processo eriativo. Afi nal, as “agées de protesto", como um ator denominava as in~ fragdes, enternecem o guardiao da ordem do espetaculo, fa - zendo-o até baldear-se para o mesmo trem, Isto faz as coreo- grafias ndo se fixarem indefinidamente na perfeigdo e insti ga a renovagdo de quadros, para cumprir a mesma fungdo de de monstragdo de capacidades profissionais. No tecido espesso cujo resultado visual € o albarde, desenha-se o valor que lhe @ concedido como bastido, ndo somente de renovagdo artis tiea, mas de insubordinagao, protesto, reivindicagao. £ desnecessdrio insistir muito sobre o fato das youpas enco brirem qualquer outro tipo de modificagdo ilfeita na pega.Os atores naéo vao se fixar na dependéncia do consenso do grupo para fazer alteragdes no espeteulo por sua conta prépria . Entretanto, a representagao vai ficar presa & indumentaria - 138 e dai a "Liberdade" - para resguardar-se de ter que discutir cu ensaiar papéis teatrais que devorarian os interesses indi viduais ao terem de ser submetidcs a opinido do conjunto. 0s mecanismos para as intromissSes na pega foram enunciados na andlise do texto e na montagem e elaboragdo das coreografias e cenas em geral. 0 que @ proprio ao texto principal, isto é, uma estrutura que absorve improvisagdes, 4 reutilizado por qualquer ator. A divergéncia no z@lo dos ensaios de uns qua- dros confrontados com outros e o refinamento coreografico de certas partes dangadas seguidas por um relaxamento na marca- gio, so as outras brechas para a manipulagdo. Além disso, os atores sabem das regras de ordem na pega e de vez on quan do as ventilam em grupo: "Tem o pessoal af (o piblico) que para_cada_um faz esteve falando que eisa, isto desmerece o espetSculo e o trabalho dequem cesta fazendo, eu falo isto para ninguém se sentir ofendido". 0 limite da manipulagdo vai ser o grau de desorganizagdo que o espetdculo, na sua estrutura, nao consegue reabsorver. A situagdo levou, as vezes, e sem convicgao, alguns Dei a pen- sarem na soluc& de um diretor teatral: "Sera que falta um diretor, uma pessoa que todo mundo vespeite?" on "seré que & o que 4 (pessoas de sucesso piiblico) por causa de toda essa loucura?", Elec vao ter que restabelecer continuamente 0 equilibrio do espetaculc, reunindo-se para discutir seus pro blemas. SerSo formulagdes momentaneas nfo seguidas ao pé da letra e nunca se transformardo em proposicdes rfgidas. Uma sessSo qualquer do espet&oulo entrosa toda classe de even tos que falam da complexidade da dindmica interna e da concep cdo artistica., Falam dos aspectos de eriagdio individual e das vesolugdes visando o conjunto, dos assuntos téenicos e 138 artisticos e da consolidagao de seus projetos e¢ propostas ideais’ em fatos reais, As roupas em tudo isto, por serem o elemento variado em quage todas as cenas ~portanto um elemen to forte - e, o mais manipulavel - portanto flexivel - no passam de um gonvénio vantajoso ligando as pontas de um pro jeto de grupo formulado de maneira ambigua, Fela mesma ra- ako vao ser a encruzilhada de todos os seus problemas, apli cando-se a situagdes diversas. "Antigamente as roupas eram mais escrachadas, a gente passava o dia curtindo sapatos, colan do purpurina, botGes, flores bem cafonas e tudo o que se tinha 4 mio, costurdvamos os panes, elas eram nilarias. Agora voce ja viu @ puro vestidinho" Um Dai Em sub-tf{tulo anterior vimos os atores prenderem-se A va ~ vilvel das roupas para explicar seus infortiinios - Censura, falta de piblico, ete, Deslocar a questdo para outro foco de atengao vale a pena. Por falta de rigor na preserigdo da vestimenta, senZo as vulneraveis vegras apontadas anterior- mente e a ambigilidade, as roupas vao ser o primeiro elemen- to a denotar claramente a interferéncia do contexto na com~ posigée da pega, Como veremos, se a montagem do vestuario @ peépria a cada ator e conserva a gramdtica escolhida pelo grupo, a participagao do pilblico vai alterar em parte a apa réncia inicial, correspondente 4 @poca da Boate Pujol. © balange financeire da Compenhta Teatral formada pelos Dai sofria de um dGficit quase permanente, Nesta perspectiva,re duzia-se ao minimo as despesas ao panto de dispensar certos projetos teatrais por falta de possibilidades materiais, No 140 principio os figurinos eram confeceionades com os panos ve- lhos de casa e com a colaboragdo de amigos. No processo e no histérico dos Dzi, a administragao nunca chegou a tomar a seu cargo o fornecimento do vestudrio. Nesta conjuntura, na Gpoca das estréias, os atores constatavam que "elas (os ato~ ves) comegam sempre assim, com modelitos pobres e albardes,e sd pouco a pouco que elas vao se enxertando". Efetivamente , havia um enriquecimento visivel do guarda-roupa no decurso da temporada. Ndo que os individuos investissem seus ralos saldvios em tais projetos. No maximo gastapiam poucos cruzei yos na compra de uma prenda em alguma instituigdo de benefi~ ciéncia que vendesse doagdes. Pelo contrario, @ parte de seu piblico os tietes,que vai encarregar-se de aprimorar esta fa eeta do espetdculo. Advinhando o 'ponto fraco' dos atores querendo aproximar-se deles, os espectadores vio submergi - los em presentes para o palco: vestidos, plumas, flores, bro ches e tudo o que possa servir. A rigor até é concebivel de un btete emprestar alguma prenda de afeto cu valor por al- guns dias ou por uma noite: os atores tiram disso farto pro- veito. Se os Dzi aceitavam os presentes, passavam~nos no entanto pelo crivo da gramitica de composigdo prépria as vestimen ~ tas do espetdcule e, lego, pelo padrdo individual de cada mem bro. Umas ligas extravagantes podiam vir a ser uma espécie de manga bufante, um vestido desmanchar~se para fazer umas eapas, ou uma meia o sustente de uma touca. 0 processo de veelaboragdéo de material caracterfstico do universo de pes - quisa surge também aqui. A parte do piblico que se aproxima do grupo interfere diaria mente com contribuigdes para a representagdo teatral. No fio 141 do tempo ela vai ajudar de maneiva, imperceptivel 4 primeira vista, ‘a modificar detalhes do vestuario. As roupas $a0 um excelente exemplo para ilustrar de diversas maneiras a influéneia do piiblico - provavelmente ndo percebida por muitos expectaderes ~ sobre o espet&culo. No comego nem os préprios atores atinam com as consequéncias: condofdos em ter de transformar um mavavilhoso vestido antigo que ganhavam, envergam a frente para as costas, combinam-no com galochas ou no minimo nfo lhe fecham o 2iper. Mas num processo progressi vo de interferéncia, todos os Dzi ganham, por exemplo, um par de sapatos para fins de propaganda de quem os fabrica. Os a- tores queriam botas, mas se lhes oferece sand@lias de plata~ forma. Conformando-se, as destinam a uma coreografia espect- fica, Mas a aquisigSe vai pouco’ a pouce vazando em cutras se radoras, e junta-se cada vez 142 quéncias. Herdam perucas das adm mais vestidos. Quando menos esperam surpreendem-se que o es- tile das roupas se est& modificando. Como acervo cada vex mais pico e luxuose acaba-se caindo na armadilha: perden -se as bapbas, a quantidade de meias de futebol, o trabalho arte Sanal © incorporam~se perucas inexistentes na primeira apre~ sentagdo do twabalho (Boate Mr. Pujol, R.J. 1972), vestides na sua forma original, fantasias ja feitas cu compée~se me - lhor, pela prdatica, as maquilagens. A agdo do contexto so- bre o espet&culo e a reutilizagao e adogdo das aquisigdes no vas pelos atores ao mesmo tempo enriquecem e envenenam a ma- teed primordial num processo inecansavel, isto @, a transfor mam, deslocando as variaveis de compesigdo para outros polos que os previstos. © que nfo se pendeu no histdrico dos = Dsi foi o gosto pelo vestudrio aldarde: uma mescla de pequenas coisas rudes, 'eafonas', grosseiras, luxuosas que, sobretudo no alinhamento, di um resultado cOmico e imprevisto.Tampouco ndo se abandona o sabor pelo excesso de pegas e pela qualidade gavrida, Ambas as particularidades, junto ao fato de nao escon= dep que so homens foram, no entanto, o suficiente para que as vestimentas nunca viessem a ser exatamente um figurino tea- tral do ponto de vista tradicional, nem perdessem sem estilo pré pric, Pelo que destoam do modelo original em seu contexte céni co, conservar3e assim sua indefinigao e ambigtidade. Para concluir esta parte digamos que, enquanto exerefcio de ‘liberdade! oriativa, as roupas/personagens permeiam a possibi- lidade para o conjunto dos atores, ou para cada wm de seus com- ponentes, de ter um controle para que o projeto de vida e tea- tro ndo se transforne numa proposta rigida, No nivel particular da representagio teatral, lograrZo contrabalangar o peso de cer to nigor que impSe um texte de base fixa e a formaclo de cevta ética versada na necessidade de aperfeigoar a danga, Enquanto ma téria.a ser manipulada, este elemento nos informa sobre a prati ca de dpamatizago de cotidiano, aqui carregundo a estreita re~ lagZo existente com a audiéneia que lhes assiste ou lhes dedica uma atengo particular. Mas esta din&mica produa também alteragSes na consciéncia so- cial dos atores sobre o que eles estdo fazendo. JA temos visto outros aspectos do aliciamento do espet&culo ¢ da proposta do grupo pelo contexto mais prdximo na adaptagfo do texto, na influéncia para acelerar uma progressiva profissionaliza~ gdo e na contribuigdo evidente para modificar o vestudrio, Des~ lecande a questao para as relagdes sociais estabelecidas na vida real dos atores com parte de seu piiblico, reabriremos © problema. 143 Parte III os TIETES "Le Th@tre est tellement 1a chose publique, la chose du public, qu'une piece Schappe l'auteur ds que le public est dans la salle" Sartre J.P. L'Auteur, L'oeuvre et te Publie-1959 0 teatro para os Dzi Croquettes & uma decorréncia de uma filo- sofia de vida, A estrutura da pega foi concebida para dar margem a uma série de modificagdes diarias que se ajustassem so bre valores e significados novos extrafdos da manipulagao sim- béliea contfnua pelos autores e das relagdes que mantém com o contexto onde est&o inseridos. Mas, a abertura outorgada cons- ecietttemente ao espetaculo para preencher necessidadesde seus ina préprios membros confronta-se com wm segundo processo comum a qualquer processo artfstico: a interfergncia do consumidor (pi blico, imprenca, ete.) A oituagio peculiar dos Dzi Croquettes provem de que, ao formular uma pega "livre" para eles mesmos, ela @ tanto mais acessfvel para a participagao ativa e quase que direta do seu piblico. Ao prever um veajuste no seu espetaculo, abripam una brecha tan givel onde se infiltvardo os anseios de toda ordem (psiquicos ~ sécio ~culturais e polfticos) de um piblico que se identifi- cou, de certa maneira, com o universo simbdlico apresentado na pega. 0 resultado mais imediato disto & que ¢sta "coisa piblica”™ @ apropriada de fato pela assist@ncia ¢ transforma a produgao da pega quase numa eriagZo coletiva. 0 que nos leva a reformular © quadro inicial sobre a elaboragae continua do espetaculo, en~ fatizando agora o retorno da proposta do grupo ao piblicoe a influéncia dele para uma nova fornulagZo dessa proposta(cf:76), Consumidor Practica Espetacula Grupo Particular ad Brodugao 0 que Sartre expressa sobre o destino de uma pega teatral, ou seja, a reinterpretagdo e manipulago do seu contetido pelo pi- blico, ne caso dos Dzi Croquettes sobrepassou, de certa manei~ va, og limites que des tinham previsto. A participagao concre= ta do piiblico no seu espetdculo @ exposta elaramente na cria~ g&0 pelos atores-autores de uma categoria social especffica pa _ va todos os agentes externos que interferem na sua obra ou vi- da privada: os tietes. Todo fo) piiblico € potencialmente (um) tiete brange todo _consumidor. N3o obstante, eu me deterei na andli- se das pessoas que foram tidas como tais pelos Dai, por mante~ vem velagdes dinamicas com eles. Acha~se nas cxpressdes "Fa", "fG-clube" e "macaco de auditdrio" ou "rato de teatro” uma es- pécie de equivalente social préprio a outras manifestagGes ar~ tisticas @ uma restrigdo primeira ao uso da palavra: & um piblico costumeiro e atuante? 03 ttetes aderem ao grupo no tea tro, na boate, se for o caso: o trabalho dos Dai Croquettes & © fermento das paixtes vindouras. Seja de forma imediata, seja um processo crescente, o ponto de partida é o impacto da coisa "forte e adoravelmente chocantet® © espetaculo. 0 espectro de vaades varia mas o critério de adesdo é decisivo e vai explicar as permanéncias: o grupo sem trabalho perde muitos tiezea. Com mo so classificados os tietes pelos Dzi, quem s40 eles e que 145 tipo de relagdes se estabelecem entre as duas partes € 0 ob~ jeto de estude desta parte do trabalho. Mas, para entender cor- retamente o paradoxo que vai criar a existéncia desta catego- via de pessoas para os atores, @ necessario introduzir outra peculiaridade ao uso do termo ttete, Na palavra existe um contedido ambfguo ("uma coisa dentro da outra") tiete originariamente, € antés de tudo uma atitude, wa comportamento social ou uma maneira de se cbservar as pes- soas e as coisas, e por derivagdo os Dzi incluiram a categoria de pessoas que se opdem a eles como atores (no como pessoas ). Se com o tempo fiete (£3) passou a ser o veferente primeiro , os Dai Croquettes podiam ainda "ser tietes" quando ropetiam 0 comportamento dos que ja os imitavam (os fas). Ndo se trata aqui de um mero desajuste entre a definigdo ¢ o critépio clas - sificatGrio, ou seja, uma discrepincia situacionalmente determi, nada entre a ci egoria & seus atributos, fendmenos observade par ae 4 : 2 : varios autores, Neste contexto isto também como veremos adiante. A questo subjacente - como a andlise vai tender a demonstrar ~ € que estamos frente de uma categoria, por assim dizer, revers? vel, posto que no limite pode~se aplicar a aubos o: grupos. © fato de que os Dzi Croquettes e os tietes possam caber ne mesma categoria social, junto ao fate da interferénecia ativa no espetaculo pelo piblico e especialmente pelos tietes, Levanta uma temAtica prépria &.pesquisa: fora de uma distingZo inicial atoves~autores/plblico - tiete, os limites o grupo vao ser, em certas situagdes, quase que precarios. A andlise dos tietes visa glebalmente estender o universo dos Dei Crequettes, situd-los melhor na sua Epoca e contexto como membros ativos numa sociedade complexa mas, ao mesmo tempo, dar conta da visdo que o grupo tem de seu pablico. 146 Ao falar de seu piblico, os Dzi Croquettes referiam-se sistema- ticamenté a ele de suas maneiras: “o piblico quer se divertir " e o"piblico nio deve entender nada", Entre as duas frases existe uma inconsisténcia. A primeira frase expressa claramen- te como os Dai assumem as necessidades do piblico. Para ser aceite pelo piiblico o espetaculo precisa sujeitar-se e aten- der a certos valores e simbolos sécio-culturais que atinjam um espectro bastante amplo de camadas sociais. Os Dzi precisa “do dinheiro e da legitimagie do piblico, A segunda frase, ne entanto, sugere, pelo contrdrio, uma intengSo de distanciamento voluntanio entre eles e a platéia. Apds o estudo entende-se que ela se refere, fundamentalmente, A necessidade do grupo sentir-se - pelo menos em termos de representagao - "inde~ pendente" nas relagdes mantidas com as outras esferas sociais ou seja, de qualquer situagao que poderia eriar uma dependén- cia (seja ela econdmica, social, cultural, ete.). A disjungao entre as duas representagdes do grupo como respei- to ao piblico nfo implica que se tenha que excluir uma ou ou- tra analiticamente como falta de coerSncia légica que parte de quem as emite. Pelo contrdrio podem ser consideradas come duas formulagdes situacionalmente convenlente para os Dzi. Por~ tanto resolvendo esta quest@o, também entenderemos melhor como & aceita pelos atores a analogia apontada acima, isto é, entre eles @ os tietes e, consequentemente, as contradigSes que aflo- vam por tras deste papel payticular de“fa? 147 (a (2 (3 4 3 ) ) tura Popular: Leitura de Operérias NOTAS Sobre a produgao cultural 2 a sua manipulegdo pelo pdbli- co consumidor ver Bosi, E (2972} "Cultura de Massa @ Cul~ ain Vozes, E.J., 1977; Ribeiro Durhan, E. (1977): "A Ginamica cultural na Sacie- dade Moderna” e Cardoso, R.G.k. (1977): "Favela: conformis, nido ed. Indbia Ltda.,Vvol. mo © invengio" in Ensaios de_Oz 4, Rady (197704 Pera uma an@lise da participagao dos "fas" ou "auditdrio” ver Goldfeder, %, (1977): "Manipulagao @ Participagao a R4dio Nacional em Debate”, cap. "Participag&o Papular"” Tg se de Mastrado em Ciéneie Poiftica - UNICAMP - 1977 (tex- to mimeografado). Revista Mancheta, N® 1349 em 25/2/1970. A distingSo 2 distancia entra “definigzo" @ "critéric us classificagao” srovém de Carneiro da Cunha, M, (1875):"So0 bre definicgées "sexuais” @ Glassificagdes: a retdrica do untverao homossexuel” (texto mimeografada). Em termos ge- rais as leituras para classificago social se bascaram em in figrriage, Clags and Colour in Nineteenth Century Cuba, Cambridge University Press, Camaridge, 1974. In Goffman, Ee. (1983) 1970; Goffman, E. (1867) " face-to-face behaviors Pinguin University books, n 1967; Sartre, J.P. (1954): "Réflexions sur la guest Egtigma” cap. 1 ed. Amorrotu editores, Bs; As. nteroction Ritual, Juive” Gallimard, Col. Idées, Saint - Ariand 1973. LdvieStrauss (1958: Anthr ed. Pilon. Paris, 1958); sxplica as divarySnoias como veridveis glogie Struburgle” cape XV, Possfveis de um Masmo modelo Conseiante. 7. 0 que é um tiete? = "Voeé sabe que eu sou muito tiete" Um Dai Voltemos 4 origem da palavra tiete. 0 termo foi inventado e introduzide por uma amiga da época do Conservatério, musa ins, Pirada cujas idéias de teatro influenciaram em parte a propos. ta inicial dos Dzi, e deve ter sido usado pelo niicleo princi- piante antes de se apresentar na boate (Mr. Pujol, R.J. 1972). Na versGo deles: "Zo nome de uma colega de trabalho de D E uma dessas pessoas que estdo sempre ali para ajudar, para dar o jeitinho, mas no 148 fundo nao fazem nada e sé atrapalham a gente" Derivando assim da identificagao do nome de uma pessoa real com oS elementos de caréter psico-social que lhe eram particu lapes, a palavea tomou o rumo geral de classificar certo tipo de comportamentos e agoes. 0 primeiro sintoma do tiete @ a Dermanéncia em lugares prescindiveis mas, quando se peraebe ele ji esta instalado. A definigdo do termo por si sd mostra Sua nebulosidade: @ uma intromissdo ao mesmo tempo que um ato de simpatia. A nebulosidade reside no gesto que balanceia a dosagem do incentivo com o inoportuno. Mais nebuloso ainda por que @ sempre carregado de bea intengdo. No veu discutin ainda o que gera esta relagdo com pessoas fo va do grupo. Yejamos primeiro exemplos em que os proéprios Dzi foram em algum momento tietes no sentido de 'fA'. Um deles co megou Freqlientando 0 meio artistico deste modo, ‘eriando-se nas saias' de uma cantora da Jovem Guarda. Outro afirmou -se no grupo ao ponto de ser integrado como ator. Numa declara - eGo 4 imprensa diz: "Eu fui ver o espetdculo no Pujol e achei inerfvel.Enlouqueci. Voltei todos os dias. Dal eles vie vam com isso de botar o vestidinho. E al cad@ coragem? Sei 14,de repente vocé botar roupa de mulher ndo é mole. E de- pois, o que ia fazer? No principio eu botei o vestidinho,mas puxei meio sem graga. 0 pessoal veio dizer que eu estava meio ; soaeman h careta e fui fazer a Dalva de Oliveira". Os Dzi provocam os tietes que assimilam e se convertem 4 fi- losofia de vida adotada por eles. Mas a frequéncia assidua do individuo junto ao grupo o leva também a ser um polo de atragdo: o tiete em questao enriqueceria o espetaculo com suas qualidades inerentes; faltava-lhe sd 0 polimento que o faria un semelhante aos Dzi ou seja, "atrever-se a botar 0 vestidinho" ¢ descontrair-se para o paleo. 0 que se sobressai agora, transpassa a simples permanéncia do tiete perto dos atores ao insinuar que a relagdo das partes implica uma tro- ca vascular de interesses. Mas nem todos os tietes terdo o destino de serem Dzi Croquet tes e nem todos os componentes entravam desta maneira. Para ampliar o significado da palavra tiete vou passar a outros niveis de seu conteiido ainda referidos aos atores, De todos os sinais de pertinéncia ao grupo sem dilvida é@0 mais rico em aplicacées. Da palavra se faz um abuso: @ usade como adje tivo, substantivo on advarbio. 0 termo faz parte do vocabulad, rio para significar ou aousar empenhos pessoais. A expressdo "ser ticte" se emprega por exemplo quando algum Dai se instala no camarim dos outros, quando se intromete 148 numa conversagao na qual nao estd convidado, quando fuga ob, jetos que nao lhe pertencem,etc. 0 individuo pode se auto - classificar ou classificar os outros com este adjetivo? En- tre os Dzi, "ser tiete", & uma retérica da organizagao so- cial baseada em companherismo, no compartilhar de bens mate- viais, na informalidade em se obter as coisas e suas decor- réncias, ou seja, curiosidade, interesse, participagdo na dindmica das relagdes sociais. Mais ainda, resume a transgres sdo no nivel da elaboragdo da pega na postura de "curtir em cima de...", e no nivel da pratica social, na ousadia de nao vespeitar limites ou regras internas. Outra expressdo @ "ir de tiete”. £ uma tradugdo para o cédi- go restrito aos Dzi de comportamentos j4 qualificados de ma- neira particular por certes setores da populagdo mais ampla. "In de tiete" € “ir de penetra". & infiltrar-se nos lugares onde ndo se @ esperado, ir cumprimentar um artista em voga, etc., enfim invadir a privacidade de alguém. A diferenga en- tre "ser tiete" e "ir de tiete” tem cono referente a distan- cia social que separa tegotda pessoa a ser invadida: no pri - meiro caso s&0 os préprios componentes do grupo (um semelhan te), no segundo caso sao pessoas estranhas a ele. Conseqtlen- temente, por mais que seja um padr&o aceito em determinadas circunstancias sociais pesa certo incdmodo na pratica de “ir de tiete", E, sutilmente, delineiar-se os primeiros limites da ousadia que serao reforgados na "tietagen". Esta Gltima expressdo, geralmente, carrega a conotagdo de de saforo talvez por marear. a agdo vista como negativamente de liberada e repreensivel. Sinteticamente, vista pelos olhos dos outros é uma conspiragdo para consigo mesmo ou para como ise grupo, isto €, uma falta de auto-estima. Relacionar~se com os gargons de uma boate onde se trabalha, os marinheiros do navio quando se viaja (que pela organizagao maritima interna permanecem numa segao separada e vedada aos passageiros), o pessoal de um hotel onde se @ héspede,é "tietagem". Ela 6 delituosa, acarretando brigas entre os Dzi se inclui a inter vengao do dono da boate, gerente de hotel etc. Na “tietagen" temos o confronto da representagdo ideal da imagem do grupo em situagdes onde entram também padrdes e normas convencio - nais de comportamento social independentes de'ego! ou do gru po. O limite da transgressao mistura-se a problemas de eti - queta, valores, ordem, obediéncia a.regulamento externos, e reputagao e exposigdo deles como atores. A vepressdo pelo grupo cu certos membros deles 4 “tietagem" rst se manifesta também em conjeturas que colocam em perigo a sua integridade. Vejamos dois exemplos diferentes mas nao incompativeis: a demora dos atores no saguao do teatro com parte de seu piiblico que os espera apés cada espetaculo; 0 circulo de amizades que algum Dzi mant8m fora do grupo. £ pe lo lado das acusagGes que se pode abordar o problema. 0 que perpassa as duas situagées € a "perda de tempo" que se opdeao consagrado aos de dentro. Este tempo ndo frutifero geralmen- te se desvanece em divertimento e possiveis relagdes amoro - sas. No entanto, existe também uma contradigdo nestas acusa~ gdes, Ambas as agGes recém apontadas so, geralmente, estimu ladas pelos Dzi e ainda mais, a banca acusadora mantém, por sua vez, boas amizades com outras pessoas. No limite, o ori- tério da razio passa a ser a dos réus. Obviamente, alguns atores s3o considerados bem mais recatados que og outros e€ e néo falta o consenso sobre algum eterno criador de problemas. A contrapartida da "perda do tempo" @ o "trabalho". Aproveitando o intervalo de dez minutos de um ensaio, um de- les correu a casa de uns amigos onde permaneceu uma hora. Na sua volta me confessou: “Para os amigos a gente tem tempo,pa ra os ensaios ndo, assim néi". Na "tietagem" sobressai-+se outro ponte :de propagar por este canal intimidades dos Dzi. Na andlise do espetaculo —_vimos que sua faceta informal dava margem a expressdes que dizem respeito 4s relagées cotidianas dos atores. Esta linguagem (como se vera ainda) @ acessivel aos tietes (f%s)ainde que am versio precdria. Segundo a gravidade dos acontecimentos se exige um sigilo nem sempre respeitado. Se a 'fofoca' & com ~ preensivel entre amigos, no entanto, interfere na preserva - go do patriménio dos Dzi. Afinal difundir suas idéias, suas ° preocupagédes, seus projetos antes de serem confirmados @ se entregar aos de fora, @ confundir o nés com o outrem. Mas as regras que o grupo mantém sao t&o pouco estritas se- gundo sua proépria ideologia que mesmo o que ameaga criar de~ sajustes internos @ estimulade. Um dos promotores da idéia de se vincular com seu piblico & a mae. Com seu dom da pala vra atrai ao longo dos dias novos adeptos para a 'seita' ex pondo seus principios, explicando situagées, encorajando em- preendimentos alheios que acabam se vendo pouco a pouco como aliados. Este canminho que nos leva a falar dos Dzi para introduzir seus 'seguidores' se justifica por varias razdes. 0 germe do tiete ja se encontra entre os préprios atores. Ao defini-lo como ago acham-se enfeitigados pelo prépric contelide da pa~ lavra tendo em vista o modo de organizagao do grupo. 0 152 problema ndo € o sentido miiltiplo que toma o termo tiete mas os aspectos e formas de pap@is sociais criados pelos Dai aos quais outras pessoas vao se prender. E também se perder. As situagdes paradoxais onde os tietes (fas) vao se achar,no limite, ser&o controladas pelos Dzi que as provecam. A maior dificuldade dos tietes (fas) portanto vai ser a distingdoen tre o papel de um Dzi e seu papel complementar como rede pri. meira de relacionamento. Os prinefpios fundamentais que caracterizam o tiete ea “tietagem" ficam esbogados nas suas formas oportunas e ino ~ portunas. Um lado é a permanéneia, a troca de interesses, a conversdo que leva “a prolongago do universo Dzi adquirindo novos adeptos. 0 inverso esbarra na manutengdo da reputagdo, o controle do patrimonio, a perda de tempo, que sao - pelo momento - as possiveis brechas para o afrouxamento maior da organizagdo do grupo. Mas, se o que vale para os de dentro se repete aosde fora, no entantco, se insinua uma variagdo na aplicagdo dos conceites ligados 4 conduta dos tietes(fas). 193 tr) (2) NOTAS Aparece em "Revista", Rad. em 12/2/1974 @ em Diério de No- tictas, P.A. em 10/7/74, Durante todo o trabalho de pesquisa de campo sé ator nun- ca se auto~classificou de tiete, Ha razdes para se supor que nunca 0 faria tendo-se em consideragao 0 conteddo na~ gativo que depositave na palavra tiete, No entanta, em al gum momento, todos os Dzi acusaram-se uns aes cutros de tietes, dando-lhe um matiz de simpatia ou no, segundo as circunst4ncias. a © Tiete Mesmo "Voo’ nfo € tiete porque nado se mete nas nossas coisas" Un D2i a um édete. Da confluéncia dos miltiplos significados resultou o con ceito para classificar a categoria de pessoas que se distin guem do grupo ao mesmo tempo que o completam, £ uma aplicagao restrita, concreta ¢ usual da palavra mas,na realidade, todos os de fora sio vistos como ttetes. Pelo con trario o piblico, seja longfauo, esporddico ou familiar,quan do conhece a exist@ncia da palavra n@o se reconhece nela.Res tringirei a andlise ao sub-conjunto de individuos desprendi- dos da platéia que criaram lagos mais estreitos com os Dai. ws Trata-se dos agentes mais proximos aos Dzi nas suas relagdes cotidianas, fora os empregados da Compankta Teatral ~ mesmo que estes pelo comportamento ainda possam ser ttetes. Sao os seus seguidores na filosofia de vida. Aglutinam os aspectos fundamentais do comportamento, mas carecem do nome Dzi Cro quettes. & compreensivel que o nome dos atores esteja asso ~ eiado exclusivamente aos que representam o espetaculo mas,aos tletes falta-lhes ainda a possibilidade de aplicar o mesmo meio de sobrevivéncia, Insistiy neste fato & necessdrio porque 6 o critério primor- : ; =. aid dial que preenche o conceito na sua versio @nicd, Retomemos a definigde recolhida: "Os tietes sfo aqueles que ficam perto da gente e nao fazem nada", Interessa agora o "nie fazem na~ da" por que fazer @ o "trabalho da gente".Como vimos sao "os esquentamentos, os ensaios e o show". A precisdo da defini. gdo do trabalho se constréi aqui nas diferengas que eles mar cam para si mesmos.E, sutilezas nos conceitos fazem grandes diferengas quando so aplicados, especialmente se as pessoas nao podem reivindicar ser parte do grupo. A "tietagem" dos Dai @ menos conflitiva que a dos ttetes. Por enquanto, veja~ mos 9 valor concedido aos tietes. Eu, como antropdloga era uma "tiete preferencial". Tinha a- eesso aos camarins, as reunides do grupo,etc., e ainda se- gundo eles "também @ diferente porque vocé faz um trabalho sobre a gente" . No limite para justificar as preferéncias , constréi-se toda uma classificagdo, que passa da "“rainha dos tietes" pelos "tietes da vida que levam a gente a dar um pas seio por ai" até “os tietes mesmo que sd est&o para pedir convites e j4 viram mil vezes o show". Mas o desajuste no uso da palavva pode residir, também, no eritério classificatério situacionaimente determinado: “voeé ndo @ tiete porque nao se mete nas nossas coisas". 0 atribu- to se refere a agdo. Dita hoje, inaplic&vel amanha, esta re- feréncia dizia respeite a mim. A pratica do meu trabalho era inconeilidvel com a exigéncia de nao ser téete, tanto pela minha posigdo junto aos Dai, quanto pelas minhas atividades. Paradoxalmente era uma das pessoas que mais controlava seu universo. FricgGes sdo comuns mas so superadas e superaveis. A condigdo de acesso ao yrupo uma vez aceita pelo conjunto , era dificil de se quebrar, sobretudo se justificada poruma tavefa destinada a legitima-los. Alias a mesma que de qual - quer tiete - ou do piblico em geral - sé que nalguns casos, como o meu, melhor fundamentada. ss 0 equivoco que provoca entre os Dzi ndo denunciar a classifi cagdo de tiete leva ao uso de outras variantes: "espido ex- terno", “fada" "bruxa", “espido interno", e um deles até fa~ lava "voeé j4 @ da famflia", mas esta variante nao era com- partilhada. Enfim, uma série de qualificativos que denotam un certe poder real reconhecide nos ¢ietes, mas que no se ajustam 4 dependéncia criada pelo papel. Estes qualificati - vos ganhos a0 longo da minha permanéncia junto a eles, nao me eram exclusivos .Houveram outros ttetes em situag&o seme- Lhante. Nem todos os tietes sabem que sdo ttetes mas, os mais chega~ dos reclamam da sia condigdo. © nome genérico absorve as re- lagdes passageiras. 0 resultado de cortesia, geralmente uti- lizado pelos atores, @ enfeitar o lado pejorative da palavra com um atributo positivo: "nice tiete” "primeiro tiete" @ até titulos de nobreza "rainha dos tietes". Nestes casos sem pre pesa a nog&o de trabalho cumprida em fungZe do espetdou- io cu sua legitimagdo acentuada, como quando sou chamada de “tiete preferencial”. As mesmas designagées podem ser atri ~ buildas a pessoas diferentes e em momentos diferentes. As ra~ zées da variagdo e aparente diferenciagdo encobrem- como ve~ remos - a renovagao dos tietes perto dos Dzi. Pelo momento, inferiu-se da andlise a conotacdo negativa na construgdo da categoria ttete (£4) pelos Dzi. Porém, os ato- res sempre tiveram téetes. Procuram-nos e até podian ser tte tes de seus tietes, colecando em dilvida se esta realidade nio esconde outra. Para entender as relagdes entre os Dui e os tietes, comegaremos pela definigdo mais geral deste universo, dando énfase, primeivo, sobre a maneira como um observador cs 1s6 localiza e logo, como eles se auto-classificam socialmente. - "0 que @ que vocé faz na vida? Qual @ teu signo?” Texto do espetacule. Cada noite de espetaculo e especialmente em certos dias fi- xos (pela variag&o do prego do ingresso) umas dez a vinte pessoas sAo uma espécie de prolongagdo do paleo. Ocupandoas primeiras fileiras das cadeiras do teatro estado ali o que se poderia chamar de "tiete mesmo" ~ sem a conotagdo negati- va mencionada do ingresso avulso. Um Dai, um observador prevenido ou curioso, se ndo os conhe~ ce individualmente, os reconhece por cua animagSo ¢ familia~- ridade com 0 que acontece ou vai acontecer em cena. Cantam conjuntamente com os atores, rien mais que o resto da pla~ téia, sentem-se em 'casa' saindo e entrando na sala. Outros~ sim se os reconhece por suas roupas que sao uma copia das do paleo. Em versdo mais discreta, usa-se o brilho sobre o gas to, meias multicores, rendas com calgas Lee, fitas e flores gobre roupas tidas historicamente como ‘interiores’. E perti. nente mencionar aqui que na época do estoure da pega Dzi. Croquettes no teatro, os tietes popularizaram a proposta do palco levando-a imediatamente 4 rua por meio da réplica do vestuario (1973/74). Contrastando com a filtima moda entao em voga, cujos contornos jovens eram ainda a ressaca do 'hippis mo', apareceram casacos antigos, peles,gazes, sapatos de sal to enfeitades de purpurina, olhos pretos, bocas vermelhas e brincos cintilantes. Neste sentido,introduziram no Brasil ur bano um estilo de vestir que comegava a surgir na Europa e 157 nos Estados Unidos. A estas presengas chamativas na platéia, juntam-se ainda outras, que em forma alternativa ou esperam os atores na saida apds a pega ou invadem as casas dos Dai. Se ha invariavelmente uma equivaléneia enquanto sexo, a pro- veniéneia social dos tietee € dificilmente controldvel. Com- poem-se de um conjunto de individuos suficientemente hetero- géneo que atravessa varias camiadas sociais, idades e ocupa - gSes. Numa visio abrangente para situa-los brevemente pode- se afirmar que muitas pessoas cruzam e recruzam o meio ar- tistico brasileiro: como artistas ou especialmente os que o Ereqtentam, Ha qualquer manifestagdo na moda (estréias teatrais, musi- cais, etc.) muitos deles estdo presentes. £ um piiblico predo minantemente jovem, certo tipo de estudantes ou recém-forma- do de escolas secundarias, Nao faltam os que atingiram a fai xa etGria dos trinta anos e, tampouco pessoas maduras como o "tio que acompanha as sobrinhas", a mae eo pai as suas fi~ Lhas, ou aquele/a sem aconpanhantes. Jovens e adultos sao tietes pela sua simpatia pelos Dai, Naturalmente, os atores fazem, 3s vezes, a distingo do tiete (filho/a) de seu pai ou mie, por cortesia. A no distingdo e segregagao de classe, idade e cdr sempre foi motivo de orgulho do grupo. Reciprocamente, referindo-se As origens dos tietes, um Dzi explica a um deles: "Como vocé, ve A é filha de militar, B @ da elite caricva, C @ arquiteto, D filho de um garcom de hotel e alf voc® tem uma menina que trabalhava na cozinha de uma lanchonete" e, transformando seu tom grave de voz para wm agudo “tem gente de todas as naciona lidades" aludindo a una expressdo do espet&culo, De fato, om rigem, profissGo ou ccupagdo sao temas esquivados nestes 156 relacionamentos. Estes dados que sao premissa para uma com- preensdo do universo ttete sio, no entanto, deficientes qua. litativamente para uma definigdo mais completa dele. Questdes que interessam aos antropGlogos ndo so forcgosamen- te concebidas como necessdrias pelos informantes. Mas, entre a utilidade da informagdo e a negagao da utilidade ha uma di ferenga. Entre os Dzi é wna postura social n3o abordar seu status anterior. £ conseqtlente com a concepgdo da pega e€ 0 estilo de vida adotado (veremos ainda alguns destes — pontos mais adiante). Componente erftico das suas vepresentagdes i- deais, @ também uma posture clara para alguns ttetes. Outros se deixam levar pelo fluxo da maré: ndo 8 de bom tom pergun- tar sobre origem e fungdes sociais dos seus novos parceiros. Questionades por mim, existia um certo desprezo entre os tietes pela falta de apreensdo imediata das suas posturas . "f coisa de careta" ou "6 a preceupagdo dos nossos pais", ap, gunentavam alguns, demonstrando assim que se tratava da um modismo geracional superado. Com orgulho uma tiete respondeu: "AhS eu ndo faco nada, curto a vida" delatando seu desprezo pelas atividades convencionais. A redugdo dos cédigos classi ficatdrios aqui, nao impede a coexisténcia de outro sistema diverso visto como positive por outros tietes. Por vias indiretas, hé os que se definem voluntariamente,pe- la conveniéncia,as suas relagdes com os Dai. Por exemplo, fa. zem questao de mostrar suas afinidades profissionais com as desempenhadas pelos atores, se ndo é que ja eram figuras pi- blieas conhecidas como artistas, cantores, fotdgrafos, mane~ quins, costureiros, etc. Junta-se a esta roda os mais afortu nados sccio-economicamente. Oferecem logo aos atores suas casas, carros, presentes luxuosos como penas, chapéus sa desenterrados do patrimonie familiar ou possibilidades de prestigio e poder em situagdes de crise, como quando caiu a Censura sobre a peca. Ndo faltaram alguns pais de tietes en- trando no jogo com atitudes paternalistas. E certo ainda , que © nove, o exdtico, a vanguarda, atrai no inicio um pi - blico seleto conhecido comumente como o 'Jet-Set Internacio- nal'. Cair nas suas gragas 6 um tipo de sucesso. S40 convida dos pelas altas camadas sociais para exibi-los. Sabendo ~se tirar partido, isso lhes traria comentarios na imprensa, o que por sua vez os faria mais conhecidos. Sao Paulo, Rio de Janeiro, Paris, Turim, onde foram os Dzi, a histdria se repe te. "Belas figuras", "talento genial" o Jet-Set se diverte. 0 efeito fulgurante tamban se desvanece. Alguns nomes ilus - tres permanecem: criou-se a paixdo e aderiram 3 escola. No parecer dos Dzi, todos estes seguidoves, admiradores, namora dos sao ttetes iguaisaos outros. Por pertencerem a polos so- ciais que estruturam a sociedade mais ampla denuncia-se fa -~ cilmente a origem, status ou prestigio que possuem. Mas vol- temos acs ttetes que fogem 4s classificagdes convencionais. Corrente de pessoas de extensdo continua, pode chegar a ela quem se guiar pela prépria intuig&o ou experiéneia. Basta ir ao teatro onde se exibe a pega Dai Croquettes, a certas boa- tes, restaurantes, praias e assim por diante, freqtientadas pelos atores. Um critério econdmico para situar estes ttetes nio seria suficiente: o dinheiro que circula @ minimo. As an timanhas sempre sao efetivas para atingir certos locais: en~ tra-se na boate acompanhado por outra pessoa de prestigio , frealenta-se um restaurante numa visita curta e senta-se na mesa de um conhecido por pouco tempo, etc. As informagSes que me preocupavam como antropdloga sem diivida sao conseguidas 1680 entre eles de outra maneira. 0 processo de socializagdo dos individuos d& margem a outros cédigos ja assimilados eomo roupa, linguagem, comportamentos gociais que sao altamente classificatérios por mais que sejam nao verbais ou enfatica- mente percebides pelos agentes. E assim a rede se consolida pelo "diz-me com quem andas e direi quem és" (a referéncia é@ minha). Alias, como em qualquer agrupamento social informal, existem os sistemas de controle. Em caso de prevengdo contra uma pessoa considerada indesejavei na roda, a fofoca se en - carrega de quem deu "bandeira". Literalmente quer dizer "mos, trap quem é", aplicando-se aos individuos que ndo sabem com- portar-se dentro dos padrées sociais adequados 4s circunstan, cias, chamando atengdo em demasia de pessoas estranhas ao universo, ou em casos limites quen os rouba,etc. A localiza- cdo imediata entre eles - Dzi ou tietes - é o lugar de ori - gem ou proveniéneia geografica anterior e a residénoia? Nes te mundo falsamente aberto que entrelaga voluntariamente va- rias camadas sociais brasileiras das grandes cidades ( cujos extremos foram esbogados mas que incipi fundamentalmente uma burguesia bem assentada e a pequena burguesia) a grelha clas, sificatéria @ 0 signo do zodiaco. Uma énfase inigualavel @ dada a esta ontogenia vista ecmo “sobrenatural". Ela prevé a disposigdo das pessoas, seus do- tes, suas qualidades, seus gostos, sua maneira de se apresen tar, seus atos e enfrentamentos dos problemas corriqueiros e explica principalmente o relacionamento entre elas. Justifica também os desentendimentos, afastamentos e incompreensses quando for o caso. Esta classificago é prépria para definir o carater do nati- vo do signo zodiacal.Mas, ivonicamente, ou nao,quase ninguém 161 entende muito do conteiido de cada signo zodiacal. Vagas i~ déias sobrevoavam: "Cancer, Virgem e Escorpido se dao bem" , “Toure nao é de se confiar, muda de idéias constantemente" , “Gemeos esta sempre dividido". 0 conteiido das categorias é@ muito amplo. 0 consenso, em todo caso, ndo existe e quase ninguém aprofunda esta ciéneia,pelo menos de maneira erudita. Talvez um folhetim comprado ao acaso numa banca resolva uma curiosidade momentanea. Se casualmente alguém @ mestre no assunto recorre-se a ele se a ocasiao se apresenta. 0 espiri to critico se alia 4 jovialidade em caso de contradigao: "os cancerianos ndo tém ritmo, o X tem que aprender tudo de novo" diz um individuo falando dos Dzi Croquettes, ciente de que hd cinco com este signo e aludindo também ao pat tao aplaudi, do. A manipulag&o deste sistema’ é puramente uma formalidade. Inicia, no entanto, qualquer relagado de simpatia: pergunta - 182 se por ele como se pergunta pelo nome. Porém como todo siste ma formal, se enche e se esvazia dos seus conteiidos conforme os critérios e segundo as conveniéncias do momento. Cientes ou ndo, talvez seja mais facil se justificar por este meio en certas ocasides, como nessa situagdo: "Me ajuda a tirar esta pessoa de perto de mim, @ Escorpigo e me da medo". Nos casos de ruptura evidentemente néo é esta a Unica razao que impera. Deixando este tema para mais tarde, apontemos a fato de que por parte dos ttetes ha uma adesGo aos sistemas clas- o da nfo classificacdo pe- los_critérios conyencionais e o emprego do sistema do signo sificat6rios propostos pelos Dzi do zodfaco. Obviamente nao sdo posturas absolutas, mas con- siderando sua propria relatividade, conseguem ser as que predomi nam entre os jovens pesquisados. Em si mesmo 0 sistema do signo do azodfaco enfatiza o informal ao invés do tradicional. Sua frouxiddo reproduz e se enquadra perfeita- mente nos objetivos de transgresso apresentados por espeta- culo. 0 signe do zodfaco condensa: diz tudo e ndo diz nada. Embora o assunto va além das possibilidades desta pesquisa, é importante situar a dimensdo dessa apresentagdo de si mesmo ou qualificagdo dos outros no seu tempo pol{tico local. No mo- mento em que o discurso oficial era ‘0 da intolerancia Cuma frase que poderia resumf-lo € o "Brasil, ame~o ou deixe-o") estas posturas frouxas, vagas e ao mesmo tempo extremamente to lerantes e receptivas permitiam, pelo contrario, a incorporagao de indivIdues portadores de quaisquer qualitativos pessoais e sociais. Neste sentido, este aspecto a primeira vista ineonsis tente na sua linguagem classificatévia, se transforma num ele- mento positivo, ou melhor, de contestacZe informal frente ao sistema intransigente do momento, dominante na sociedade brasi- leira. 0 espetdculo tem aparéneia ingénua somente porque no existem parametros cldssicos de decodificagSo. 0 alarme scara somente quando o estilo estiver no seu auge, popularizado pelo pilblico de maneira gritante nas reas, quando Pproliferam as produgées a tisticas semelhantes: comegando por Caetano Veloso, de certa for ma pai desse cédigo de express%o, a Censura se manifesta contra os Dzi, os Sécos ¢ Molhados, sem poupar outra linha de expres- siio como a de Chico Buarque (fev.margo de 1974). Todas estas expressées serfo Censuradas simultaneamente. Para ndéo nos afastarmos de nossa dissertagdc, voltemos ac tema central: as brechas para a extensdo da rede de relacionamento dos Dsi serao o préximo tema de andlise. 153 “Ah! ndo sei quantos sdo, nfo di para saber.. Bem de tudo. Tem aqueles que eserevem para a gente, os que falam e a gente no conhece ‘tem os outros que a gente conhece. Eu ndo sei,eles piram e ficam atras da gente" Un Dai, Quantos foram tietes, quantos sdo ainda? Muitos. Os. Dzi véem as adesdes como fendmeno duradouro: "onde vamos aparecem tig tes. Em Sao Paulo,no Rio, Lisboa, Paris, Mildo, sempre tive- mos tietes. Primeiro, fieam com medo da gente, que nem os em pregados dos teatros, depois nos amam". Invariavelmente so pessoas que se desprendem lentamente da platéia para aproxi- mar~se de uma maneira ou outra, confessadamente ou néo, s propostas dos atores. Os Dzi nado sabem dizer quantos sao, um observador avisado tampouco. Uma longa econstancia earacte piza alguns, personificando-os frente aos primeiros. Outros, uma grande rotatividade e talvez clandestinidade dentro do p&blico mais amplo por acaso aquela pessoa que por opgao. prépria indica ter assistido onze vezes o espetacule no T. a) reze de Maio?: Como consequéncia imediata, basta dizer que em duas tempora- das, no Rio e $40 Paulo, entre varias pegas em cartaz, os Dzi bateram o recorde de ingressos dados como convites. Fins de propaganda, a imprensa, a chamada classe teatral, as cadei - ras reservadas a érgios institucionais do teatro ou a censu- ra oficial, sdo razio de alguns ingressos sem — reuuneragdo mas, de longe, ndo justificam o conjunto investido* A rect - proca tampouco @ verdadeira. Que dizer das "duas tietes acom panhadas pela mae" que, em seis meses, viram perto de cento e cingtienta vezes o espetaculo - participando das duas 164 sessdes do mesmo dia, se for possivel ~ e quase sempre pagan do as suas entradas? Se o exemplo @ original, no entanto,ndo @ exclusivo: a maior parte das pessoas que assistiam com fre qUéncia a pega compravam seus ingressos. Os que procuraram conhecer os Dzi pessoalmente foram ttetes; sem excecdo por mais que ndo o soubessem. VariacSes inevit&veis de um individuo ao outro ndo indicam 0 momento em que se aproximardo dos Dzi: alguns guiam-se pela experiéneia - os familiares do @bito teatral - outros,sdo levados por lages anteriores - amigos e familiares dos ato ves ~, um interesse ou uma curiosidade impulsiva guia os mais desinibidos mas, ainda faltam os mederados que se devotavam ao acaso. Para muitos tietes 6 uma experiéncia insélita. Quantos nio contam ter esperado a temporada inteira, procuran . . 5 do desculpas para si mesmos e para voltar cada semana, Assim como se espalha a corrente, ela estoura: quando alguém percebe a falta de algum dos tietes talvez ha tempo ele te- nha sumido do campo de visdo. As nuangas na perseveranga dos tietes se agrega a consisténcia dos lages. Alguns sd en- tram em contato com un ou dois membros dos Dzi, outros, com todos. Os tietes podem, por sua vez, ser focos de irradia- gHo de sub-vedes de relacionamento. Do lado dos Dzi, cada membro @ um polo de atragdo. Muitos tietes confessam estarem apaixonados por tal ou qual. Fala - se entGo do “tiete de fulane", o que diminui'a responsabili- dade do grupo, como veremos. Mas, de mios dadas, bragos da~ dos, conhecer um & um meio seguro para se chegar a todos, f& a solidariedade dos atores que o permite. Se o acesso @ £4 - * 2 148 : cil, o nexo sélido 6 menos garantido. Outros tantos ¢tetes 185 apresentam-se como amigos de todos. No sentido inverso a aprovagdo @ relativa. Na afirmagao dos lagos existem formas diversas que podem alternar-se até entre as facgdes do grupo, caso seja necessdrio: a quebra com alguns nfo implica que seja com todos. Esta redunddncia na insinuagdo de afastamen- tos - sendo o lado negativo - @ para poder insinuar ao lei- tor que até os tietes que se caracterizam por uma longa per- manéneia ou que conseguem ser favoritos de muitos, perigam cair numa certa desgraga. Os tietes permanentes so, em cer- ta forma, temporarios, Una das lembrangas mais pitorescas de "tietagem" e sua conse qiéncia, situa-se'na época do embarque dos Dzi para a Europa. © navio estava de saida. Meia hora antes, os visitantes ti- nham sido convidados a descerem 4 terra, Os passageiros esta ise vam reunidos na sala de jantar onde Ihes seria servida a pri meira refeigao, Entre as mesas surgiram duas tietes decididas a viajar como passageiras clandestinas. Entusiasmo de @itima hora, estavam desprovidas até de documentos. A execucdo de tal faganha alegrava parte do grupo. Outros simulavam ndo sentir-se envolvides. A imprudéncia de tal aventura foi assu mida por um Dzi que, alegando a reputagdo e responsabilidade do grupo as convenceu a desistirem na Gltima hora. 0 evento estava esquecido apés onze dias de viagem mas, a chegada a Lisboa nao esquivava a surpresa: 12 em baixo, no cais,quatro bragos agitavam-se com frenesi. Adiantando a hora, usando um meio de locomogdo mais rapido - o avido - as duas tietes esperavam os Dzi Croquettes desembarcarem. Elas permaneceram vinte dias junto a eles em Lisboa e sentiram que tinham que partir para outro runo. 7 Tietea agitahdo-se em tornc dos Dzi @ um fendmeno constante., mas seu vai e vem nos permite estabelecer um modelo préprio ao material pesquisado. Os Dzie os tietes s3o - por falta de outre termo - dois tipos de Linstituigdes® Uma envolvendoa outra e se apresentando valores e objetivos de vida. A insti~ tuigdo tiete sendo uma espécie de penumbra da que formam os Dzi. Uma das diferengas fundamentais - pelo momento ~ & que o niicleo central se caracteriza por certa estabilidade dos ato ves, emuanto que na penumbra, o corpo de indivfduos se alte- ra cono uma espécie de troca molecular com a esfera do publi- co mais amplo, Se a instituicao ttete perdura através do tem~ g po e do espago nfo @ devido 4s pessoas que as compéem. Como assisténeia no teatro ou na saida do espetdculo se poderia via caleular que a média de némero de tiet¢s girava em torno de quinze a vinte pessoas, diariamente. Interferem nos cdleu- los as estréias, os fins de temporadas e dias festivos - na- cionais, que dao disponibilidade de tempo, e as datas marcadas pelos atores, Os Dzi multiplicavam as celebragées teatrais 187 como "A Festa do Vinho e Queijo", "Aniversdrio da formagdo do grupo", o "Ano Teatral" (as quatrocentas representagdes pilblicas) a reintegragdo de um de seus componentes apds um afastamento hospitalar, e os aniversdrios individuais. Seja para atrair a imprensa ou alimentar a propaganda da pe- ga, atrafa especialmente o piiblico que os reverenciava .Como uma corte, deslocavam-se do Rio para Sao Paulo e vice -versa, chegando a ocupar meia sala de teatro se nao fosse os quatro centos ou mais lugares disponiveis. Outrossim os tietes re- servavam as quartas-feiras, sdbados em segunda sessdo e do~ mingos para rever a fung3o. 0 prego do ingresso 'inteiro! nas sextas-feiras e sAbados em primeira sessdo afastava o pabli- co jovem e estudantil. A persisténcia dos ttetes comprovada através do tempo e além das diferengas contextuais - Brasil e Europa por exemplo - levanta perguntas sobre seu significado sociolégico. Global~ mente trata-se de uma rede intermedidria entre o piblico mais: amplo e os atores. Mas como o insinua a imagem da penumbra~ ou seja, a pertinéncia a categoria espectador porém com pe- culiaridades a mais, e a variagao continua na composicdo dos individuos que a compdem, podemos presumir alguma ambiguida- de contida neste papel social. E o que analizaremos a seguir. 158 i) (23 (3) (4) NOTAS. Na termilogia de Harris, M. (1968) The Rise of Antropol gical Theory in Thomas and Crowell N.Y, 1988 ="8mico é um indicativo das categorias usadas pelas 'nativos’,sende que "Stico” indica os conceitos @ categorias do pesquisa- dor. A materia doa informantes moran na Zona Sul da Rio de Ja nairo e no Centro e Sudaeste de S30 Paulo. 0 interesse em saber lugar de origem e de moradia pode explicar-se no contexto da pesquisa, de um lado, por uma curiosidade em detectar talvez amizades anteriores que ligariam pessoas recém conhecidas, De outro lado, @ maioria dos informan- tes ji néo mora "em casa de famflia”, ou seja com seus pais, o que significa que sfo em certa forma independentes 2 costumam frequentar cs lugares da moda (Rio de Janeiro, Sao Paulo, Bahia) segundo suas conveniéacias. A necessida de de saber onde moram seus colegas au com quem eles imo- ram pode provir de um interesse imediato de alojamento , Necessidade frequente dos indivfdues deste univarso ambu- Jante, De qualquer manoira origem estadual o lugar de mg radia s80 varidveis para a classificagSa social das pes- soas entre st. Foram duas vezes eplicades questionarios na safda do Tea- tro (Oez. 1973 e 1976) - Estes servirem de controle e questionamonte Paralslos a esta DissertacSo. Azds um estudo de um levantamento feito pala SBAT (Secie- dade Brasileira de Autores Teatrais) sebro pegas em cer- taz no Rio de Janeiro de 1974, observa-sa que a pege que Ozi Croquettess consta com alta porcentagem de espectado - res convidados.s A titulo de axempla, dared uma relagao de cinco pegas em cartaz na mesma Spoca e cidade. 0 cAl- culo toma somente om conte @ proporgdoventra pidbiico pa- gante e pGblico convidado. Peon @ autor Percentagem p. pagante/convidado "Qzi Croguettes” Wagner Ribeiro s cutros 20,56% "A Gaiole das loucas” de Jean Poiret 13,65% "0 casamente do pequeno burguéa” de Bertold Brecht 11,59% Peca e autor Percentagem p. pazante/convidados "A teoria na prética @ outra” de Ana Maria Deasdato 6.81% "Um Grito parado no ar" de Gienfrancesco Suarntert 3,54% Fazendo-se 9 mesma tipo de relagéo com show musicais observa- mos: “Cantar” de Gal Costa - criagas coletiva 857% "A Cena Muda” de Maria Bethania ~ eriag&o coletiva 5,74% (5) A assistGncia repetitiva do pdblico a uma pega ou fs) 7) (a) shou teatral 6 um fenédmeno prdprio ac Ambito artfstico Sagundo a verso de atores outros que os pesquisades , No entantc, a maioria dos informantes da pesquisa res- saltou sar uma experiéneia nove na sua vida. As relagées que estabelecem os ttetes sia did&ticas com cada membro do grupo, enquante que os Dzi Croquettes ~ frequentemente agem como *bloco’ servindo de apoio um ac outre. No comego da pesquise de campo, quando for malizave uma entrevista, os membros do geupo procuravam estar acompenhados ou de um outro Ozi Croquette au até de um téete, Conclue-se aqui que em muitos casos as re- ages entre ambas as partes n§o sSo simétricas. Apesar das duas tietes terem qua se separar do grupo Soma veremos mais adiante, tris outros téetes, convida des pelos préprics membros, embarcaram com eles. £ somente para fins ilustretives que use agui a pala - vra ~ ‘instituigdo’ sendo que estou ciente que pode pa recer heresia num trabalho de antropologia, ou como nas Palavras do Buckley, W. (19672. A sociologia 6 a moder- Pe = i97., na teorie dos sistemas in Cultrix § "grande parte da teeria soctolégica df um salte meio abrupte dos processos digdticas ¢ de pequenos grupos pa ra “instituigdes", a par com a suposigho da manutengaoe estabilidade estruturais n3o problem&ticas esceradas na Sonsenso normative, na autoridade legitima, nos valo- (a) qa) res comuns, na intericrizag3o sos papdis através da (p. 185), da socializagio etc." 0 tipe de ralacionamento que criem os éietes para com o grupo se aproxima em certa maneira da “ago em cemum" proposta por Mayer, A.O, (1986) "Quase-group in study of complex societies "in Santon, M. (ed) The Soctel Antropology of Complex Socisties, Tavistock London 1966. Mayer eplica o conceito para os "quase-group", ou seja, uma rede de relagées que se forma pelo recrutamenta de uma pepulagao cuje "egdo em comum” & estimulada por ‘ego’ (no nasso caso seria o grupo ). Seu aspacto ex~ terno & "permanente", mas a ago depende do impulso de ‘ego': Mayer n&o fez distingSo entre as diferentes ca- tegorias de recrutemento. Na anélise dos tietes hé va- riagGes, como veramos, einda que o espetacule seja sem pre a razio primeira pela quai as pessoas aderem, A diferenga como conceita proposto por Mayer (que traba iha sobre a formagSa de um grupo politice) & que exis te uma alta rotatividade nes membros que formam a rade de realagdes dos Dzi Croquettes. &m termes gerais ma deterat somente na andlise de tietes brasileiros. € necessaric, no entanta, indicar que existe uma grande analogia entre as relagdes que se estabelecem entre os Ozi e quaisquer ttetes sejam estes brasilefros ou europaeus. Mele ainda, ac pergun- tar-lhes quais eram as suas motivagées para aseistir ao espatgeulo es respostas das tigtes franceses que co- nhecd retomavam argumentos similares aos das ttetes lecais por mais que existem diferengas contextuais que nBo podem ser dascartadas. Embora escape ao — aleanca de pesquisa, os dados levam a uma raflexio mais prox funda do significado da espetaculo para os tietes, A titulo de exemplo direi somente que assim come alguns tietes brasileiros foram levadus a se desvincular de seu niiclea de apoio e das suss atividedes para seguir os ateres na sua viagem pare Europa, o mesmo pracesso repetiu-se com varios téetea francesos na Spoca da vol ta dos Bzi Crequettes para o Brasil. A Familia e os tietes Ali tem um grupo de pessoas do dia a dia n&@o @ um grupo contratado. Vivem juntos. © teatro € decorrente de uma atitude didria comunitaria, nao & sd palco, tem uma Filosofia de vida" Um tiete Nestes términos um tiete traduz mais um ponto a favor dos Dzi Croquettes e mais um mecanismo de recrutamento do seu piiblico, agora na sua vida privada. Quebrada a distGncia obrigatéria im posta pelo paleo, o estilo convida a dividir o que sobra: umas quantas horas da vida cotidiana. A visdo de um continuo - pal- co e vida - justifieca a permanéneia dos tietes: & um “grupo de pessoas do dia a dia". A vis%o do espectador interessade apon- ta para uma igualdade entre os atores e ele mesmo. N3o @ uma suposic&o do(s) ttete(s), @ uma sugestao dos Dzi Croquettes por melo da sua pega e no seu envolvimento nas relagdes so- ciais. A import@ncia dos tietes se denota, 4s vezes, suprindo uma acu mulagdo de responsabilidades que ultrapassa as possibilidades assumidas pelo grupos S80 fundamentalmente de duas ordens:aqui superar crises - econdmicas, polfticas com a Censura, existen- ciais ete., ali cumprir fungies e papéis complementares - na preparagdo da pega, na administragio e assim,por diante, Cien- te disso um tiete faz notar: "os Dzi nunca souberam viver sem seus bons tietes", Mas nem por isso todos sao bons samaritanos. Dinheiro e favores sio varidveis de peso social no contexto mais geral e sev significado nemuns,nem os outros, o desconhecem . Como veremog as retribuigSes amifide n3e sio consideradas como 189 equivalentes, mas sao posturas de ambas partes que se cons~ trangem uma 4 outra, Estas situagdes criam parte des motives das rupturas. Nas entrelinhas se esclarece que o sistema Dai nfo sobreviveria a um actimulo de dependentes. Visando situar exatamente a categoria tiete frente a dos Dai, por razdes ana- lfticas esmiugarei as situagSes limites carregadas de dramas e@ tensSes. N3o obstante, as relagdes estabelecidas entre am~ bas as partes foram sempre densas em trocas psico-sociais,crian do permanentemente um clima sincero de festa e grande animagdo. Ao desafio de nZo ser "um grupo teatral contratado" se contra~ pde um sistema social complexo onde se esta situado, que volta e meia se empenha em chamar a atengo. A maquinaria econémica do teatro iccal @ fragil demais para se sustentar por ela mes- ma. Aos altos gastos de manuteng%o diaria - perfodo de ensaios, aluguel do teatro e artefatos de trabalho, sem implicar nas ne us cessidades pessoais dos componentes da familia + junta-se o im previsto: falta de local para se exibiv, volume de piiblico in- certo, Censura oficial deengas e acidentes etc., onfim um ema~ ranhado sem nimero de problemas reais, que nfo contrabalanceiam os bordereaux dos ingressos. Em termos gerais é a condigao da classe teatral brasileira, Agrega~se no particular, a resistén cia dos Grgdos oficiais de teatro em estimular,por meio de prémios e financiamentos, temas que supostamente ferem os va~ lores morais vigentes na sociedade.Neste sentido, espetdoulos «ee . 2 classificados de "travesti" vem-se totalmente desamparados. 4 proposta da "liberdade” se confina num estado econdmico pre- c&rio que no consegue se auto-representar em todas as cireuns taneias® Nas grandes ocasides, acodem os téetes econdmico ov socialmente bem situados. De onde vém eles? Das suas velagdes com o 'Jet-Set', do meio artistico, de encontros casuais: sao financistas, empresdrios teatrais, pessoas de dinheiro ou status consagrado, Porém, tendo em vista as varias crises dos Dai as relagSes econdmicas n&o foram freqlentes. Provavelmente o nimero dos atores @ grande demais e por demais inquieto para um suposto protetor. £ bom lembrar que a falta de consenso no grupo € posta a nu em qualquer ocasiao. Um sd exemplo de un contrato trabalhista explica por si mesmo porque fogem dos Dai aqueles que poderiam oferecer dinheiro ou emprestar seu nome nas crises vindouras. 0 empresario de um Canal da televi- s&o alemi que os contratou para fazer ua filme de longa metra- gem se expressou assim: "Eles sio geniais, mas loucos demais", Tanto um atributo come outro, assustam ou incomodam porque ,pros, segue ele: "0 trabalho da filmagem foi inimaginavel, NRo se sabe quem coordena tanta loucura, todos opinam. E depois, para filmar a mesma cena, por mais que os avis&ssemos, cismavam em trocar de roupa, de pessoa e de texto". E ainda o que se obser va no palco, para surpresa dos t¢etes repete-se nas relagdes co tidianas. Se este contrato teve desfecho feliz, nem todos se coneretizan se que no s&o abandonades no meio do caminho, Em suma, ha um desentendimento em dois niveis, Por um lado as esferas da administragao e do palco vistas claramente como diferentes pelos empresdrios do meio artfstico, resvalam na superposigao oferecida pelos Dai. 0s ttétes vem com justeza sob a mesmo Gngulo a pega, a organizagSo do grupo e a administrag3o, mas néoas entendem. Por sua parte, os D2i, longe de separar os pa péis, pressupondo, imaginando e se prevenindo da “exploragiio do trabalho da gente", quando se Ines sugere um administrador, esquivam-se reforgando-se mutuamente, Ao administrador, reconhe cide na famfita, juntam-se dois ou mais componentes para 4a. aperfeigoar a tarefa, A esta linguagem de surdo-mudos sobrepde se ainda‘outra: para os tietes/empresdrios quaisquer alteragdes no sistema de protegao ou pradugZo monet&ria sao consideradas como "fantasiosas" e "pouco prudentes". Segundo estes nao e=- xiste a garantia de relagdes de troca que imperam geralimente nos contratos comerciais convencionais. Estes sGo: a manipula~ go do espet&culo (sugestdes de preferancias, alternativas pre visdo de gosto do piblico,etc,) o peder de decisao sobre o des “tino do grupo (venda temporaria do espet&culo em outro local, mudanga de uma cidade para outra, etc.) e usufruto de beneff- cios monetdrios, Se o dinheiro investido no espetGculo @ o ris. co do nagécio - ¢ geraimente tem sua garantia com um contrato legalizado - @ a falta do poder sobre os Dzi que @ considerado nao equivalente na determinada troca. Na realidade ambas as. partes se véem usurpadas uma pela outra. A incoeréncia € que os atores ao se deixarem guiar por um agente externo ot, ao aceitar a manipulag&o do seu espetdoulo, entram em contradigdo com sua proposta, Isto € responsavel por parte das quebras de velagdes com este tipo de ttetes. Mas n3o so estas as tnicas relagSes onde circula o dinheiro, e os "nice tietes" sabem que os Dzi nao tém que abrir mao do seu trabalho. Ndo havendo contrate legal, ou dificuldade de de volucio, a troca repousa entretanto sobre beneficios, diffceis de se medir, mas freqiientes , se ha permanéncia do ttete perto dos atores: um certo status perante todos os membros, ingressos para o teatro ou convites nas ocasides especiais, fruigdo das vantagens dos atores (entradas para outras pegas teatrais,via- gens com os Dzi, etc.) comida, teto em caso de alojamento neces. sdrio,ete,, enfim, a série mifida de coisas correntes entre amigos. £ bom notar que os Dai faziam sua prépria justica, de- volvendo o dinheiro aos mais carentes no seu critério e 172 postergando os menos necessitados, por terem mais recursos so- ciais. Se isto forma a base sobre a qual o grupo persiste atra vés de crises econdmicas, poucos tietes entraram, no entanto, em relagdes de produgdo e financiamento da peca. Do grupo na sua integridade aos indiv{duos que o compdem ha u~ ma divergéncia nos valores que tratam do princ{pio do dinheiro. Alguns se sentindo mais necessitados'na demanda de suas ativi- dades didrias, recorriam freqlientemente a seus tietes particu- lares em épecas de crise, Mas, trata~se aqui de um terreno movedigo para a pesquisa: sem diivida alguns destes se sentiram injustigados, embora eu carega de provas, Os fundos econdmicos dos Dzi através de longo perfodo de tempo, eram por demais ra- los para que isse nfo acontecesse. 0 que se conclui pareialmen te Z que @ valor que se ihe concede no contexto social mais am 73 plo nado se perde por aqui, por haver outra filosofia de vida: , 9 dinheiro prendse mantém sua hierarguia no modo de articula- cdo das trocas sociais, e por causa dele muitos ttetes se afas tam, Mas a dependSncia econdmica eriada num sentido,funciona também &s avessas, sd que aqui ela € deslocada, SSo outros tietes que vivem 3s custas dos Dai Croquettes. 0 sucesso teatral asso cia-se com o perfume da boa renda monetfria. Critépio fundado aqui em époeas precisas, mas curtas dos Dzi, o éxito econdmico reforgado por algumas figuras mfticas do meio artfstico, & uma Nogdo que tende a se generalizar facilmente. A ironia se desven da quando se percebe que ela camufia o que persiste de precon ceites contra a profissio de ator, Para ado eriar uma discus- sHo que nao se preza,alguns Dzi passavam em siléncio sua carén cla de dinheiro frente a alguns parentes ou amigos antigos re- ceosos, motivo que reforcarS, sem sab3-lo, sua condigzo de tietes pelo critério de dependncia pecuniaria, Mas a eases precisos e singulares juntava-se um setor de tietes isolados que apareciam por todos os cantos, e astuta~ mente viam na “comunidade" a grande salvagSo da sua situag%o ve getativa e ociosa na sociedade mais ampla. Por ser uma comunida de de certa forma pibiiea, ou, para ser precisa, publicada como tal, 9 acesso era relativamente Facil; bastava rondar dois ou .trés dias nas portas do teatro para se ter aspecto de conheci- do e chegar as casas dos atores, Uma cama por aqui, uma comida por 14, um telefonema interurbano, uma roupa jogada sem cara de dono, enfin qualquer coisa 'quebrava o galho' e facilmente passava despercebida entre o niimero dos Dai e os tietes familia res. A quem jogar a culpa? Seria dificil de se julgar, se a is to soma-se que até os donos da casa cansados de se verem cobra dos por tanta ousadia inesperada entravam no mesmo jogo e a- 174 tragoavan-se mutuamente, Resumindo, € 0 desfecho infeliz da grande casa compartilhada em SGo Paulo, pouco apés © estouro dos Dai no palco. Para alguns atores bastou a experiéncia e se isolaram daf am diante. Dix minuindo o volume de habitantes em cada casa, o controle era mais Sbvio e, para este tipo de ttetes, a situagdo era mais in quietante. Mas, pelo visto nem a experiéncia & sempre Gtil: as perambulagdes continuas dos Dzi e a instabilidade pecunidria os obrigava constantemente a se juntarem nos mesmos lugares ha- bitacionais, - embora sendo optativa a quest3o, com mais de quatro ou cinco atores juntos, a histGria se repetia. A solu- go extrema era escolher a moradia longe do centro da cidade, Uma hora de viagem era um esforgo que incomodava os visitan= tes, pois muitos se abstinham. HerSicos, outros Dzi dispensavan © miximo de objetos tentadores do seu patrim3nio, como por exemplo, uma geladeira para conservar alimentos t3o ao aleance de quaiquer m&o, e abasteciam-se na rua diariamente, resolugio ainda dispendiosa. Mas, no conjunto, sempre permaneceu una casa mais aberta aos ttetes como o mal necessario. Desajustes,estes de orgamento, pelos diferentes niicleos habi- tacionais, eram também concebidos na légica das coisas como vetribuigdo ao empenho de seus admiradores. Para aproximar- se da drbita de atengdo, os tietes regavam os Dzi - alguns quase que diariamente - de toda sorte de.quinquilharias: fotos do es petdculo, roupas para o paleo ou a rua, flores, broches, versos e desenhos pessoais, estampas, guloseimas e até cachorros. Lo~ go apés, seguiam se incorporando como instrumento para o de- sempenho de pequenas tarefas conforme seus meios: desde dar uma carona, propor um passeio ou mudar objetos daqui para 14 se tivesse carro, trazer indicagdes vantajosas para qualquer mo va resolugio do grupo ou individual, até buscar um sanduiche no bar ou um medicamento na farmZecia da esquina, no intervalo do espetZculo ou durante os "ensaios”, passando pele oferecimen ‘to do alojamento caso fosse possivel. Farejande as necessidades como bons servidores, davam um verniz de utilidade aos seus pa- péis, com a aparéncia da maior espontaneidade. A disponibili- dade vistosa, tarde ou cedo, era reaproveitada por um (ou va~ vios) Dzi, criando-se lagos de tal modo que acabava-se nfo se sabendo mais quem era o devedor de quem. Seja por falta de or- ganizago dos atores certas épocas, seja para cobrir um supér- fluo mpreseindivel',ou por comedidade, as tarefas de "menino de recados" eram finalmente necessdrias, por mais que na fami- ita se insistisse em "ndo usar as pessoas", Apds atritos por ter gente em demasia, ou certa confusSo nos limites estabeleci dos = como a entrada vedada aos camarins, a assisténcia aos en saios, etc, -, reabriam-se as portas para os tietes que por 1a 175 estivessem, A titulo de retribuicdo, portanto apego e prestagZo de favores, na noite avangada, nos dias de folga, alguns Dai juntavam a turma de tietes para entrar numa boate qualquer, as~ sistir uma pré-estréia de outra pega a entrar em cartaz ou um concerto musical e ofereciam ou levavam-nos para festas, | Sem contar o nilmero de convites do seu préprio espetaculo que saiam por este canal, As relagdes de trocas constituidas por um = re- forgo no sustento econdmico ou o emprego de uma forga de traba~ lho disponfvel no esgota a temdtica dos tietes porque a maio~ ria nao entrava em relagSes econémicas com os Dzi. Consideran~ do vasamente a situagdo, a integrag&o de tietes para a presta~ glo de servigos obrigava os Dai a conviver com eles cada dia ea relac3o se convertia num acilmulo de compromissos nos quais “"n3o se progredia". Mas esta queixa encobre também outra reali-~* dade, mais perigosa para o grupo - comentada ironicamente por duas tietes - antropdlogas. "A diferenga @ que nao podemos ser fndios, mas podemos virar Dzi Crequettes” N&o discutiremos mais a existéncia de uma assimetria inicial ea tre as duas partes, que acha fundamento objetivo nos lucros mo- netarios obtidos pelos Dzi por meio dos ingressos pages pelos tietes, ou sua contrapartida - o favor de um ingresso / convite. Pesa simultaneamente, o processo de legitimagdo, pelo piblico em geval e pelos tietes, em particular, Observe~se entretanto, que foi por esta legitimagZo-especialmente na época das boates - que o grupo se coneretizou e pode levar a cabo seu projeto., Os 176 ttetes sao ao mesmo tempo limite da fam~lia e 9 seu prolonga- mento? Avaliar em qué um tiete se opde ou se assemelha a um Dai pode ser estrategicamente abordado perneirando as situag6es em que os seguidores sao postos em quest&o de maneira afirmati- va ou negativa pelos de dentro? Agora entramos propriamente no nivel das diferengas. Algumas ainda sdo fundamentais. A primeira reside na constituigZo do grupo com um certo nime ro de pessoas que se fixa num determinado momento e perdura an través do tempo sem a alteragao dos seus componentes,Lembremos que, apés o primeiro ano de trabalho, o afastamento de um dos integrantes foi uma variagZo mas ele ndo foi substitufdo pela inelusZo de um novo ator. Préximo ao fim da representagao pi- blica da pega, houve uma cis3o do nileleo inicial provocande,co mo se vera, uma alterag&o. Por enquanto, so estes indiv{duos fixos que preenchem os papéis de atores sem a participagio pos +77 sivel dos tietes. Em segundo lugar, ha também objegSes por parte des Dzi & infiltragZo dos ttetes em algumas de suas ati vidades para proteger a organizag3o interna. Sdo os "ensaios", os “esquentamentos", as reuntSeo de familia e a entrada aos ca mains. Mas no concrete estes dois itens que reforcam os limix tes da famflta, s3o sujeitos a discussio. Na pratica, as bre - chas que confrontam o nivel ideal de representagZo de limites como nivel real, sao miltiplas. A priori, as portas do teatro estavam fechadas a qualquer pa- blico na hora dos “ensaios", dos "esquentamentos", Mas era a hora mais propfeia para se chegar trangililamento aos atores e +8-los todes presentes, Onde entravam pessoas com motivos perti nentes e justificaveis perante o grupo, entravam os demais |= - tietes somente para assistir, No balango através do tempo, nun ca faltaram tietes, nem ainda em casos especfficos como vaspe~ va de estréia, ocasides nas quais se pedia 3 maioria para abandonar o local para facilitar o trabalho de ensaic. Se os ~ “ensaios" sé diziam respeito aos Dzi e os tietes respeitavam a distancia, os "esquentamentos" pareciam na sua opinigo, um ter reno propicio para se introduzivem lentamente na familia e vi-~ viam pedindo acesso a ele. Como sabemos, os tietes imitam os atores na escolha das roupas, no comportamento social, nos gostos, na linguagem. Através do espetaculo, aprendem uma linguagem social nova ea pra- ticam na vida coti¢iana, Mas além destes fatos e suas subenten didas fronteiras, querem ainda revestir-se de papdis que os va lorizem ainda mais aos olhos dos Dzi, H& fundamentalmente duas maneiras de fazé-lo. Como fato generalizado, os que permanecen perto dos atores procuram meios para serem seja cépias aperfei goadas dos primeiros, ou se inseriy nas suas atividades (ou ainda as duas coisas juntas). Alguns téetes visam ser semelhan~ 17° ‘tes aos Dzi nas condigdes de trabalho exigidas por estes, isto &, esmerar-se nas qualidades imprescindiveis para fazer o espe tdculo: "saber dangar". E sintomatico, por exemplo, ver pes- soas que confessavam "nado ter vocagio de paleo", no entanto,pe dir para subir a este palco, Noutros casos, a escolha toma © runo de uma complementaridade, ou seja, programar atividades consistentes que se entrosam na legitimagdo da peca: fotogra- far, filmar, projetar uma reportagem, fazer uma tese; ou in- vocando téticas astuciosas, como a de trazer bebida, falar ur~ gentemente com alguém, ajudar um ator a compor sua vestimenta, etc, enganavam-se também os limites eatabelectdos. Das duas pos. turas - 0 semelhante e o complemento ~ a segunda privilegia o tiete » com acesso & dreas mais fntimas dos Dzi. Como se vera finalmente & uma atitude menos perigosa para preservar os li~ mites da familia. Mas por razdes subjacentes a este perigo guase nenhum téete conseguia desempenhar os dois papéis simul- taneamenté, Ainda assim, por meio dum ou outro papel, se por princfpic o:niimero de tietes ia diminuindo segundo a atividade dos atores, isso nao impedia que ciclicamente fosse aumentando até se reafirmar uma proibigo de acesso generalizado. Isto faz com que nos camarins e nas reunides de familia,respectivamente com erivo de selecHo mais rfgido,i semelhanga dos "esquentamen tos" a histOria se vepitia.La,mais do que aqui,eram raros ( ou inexistentes?) os momentos em que no houvesse um ou dois"tie~ tes sobrando", Colocada a insisténcia dos tietes em fazer ceder as barreiras de aspirago 4 tranqllilidade do grupo, ela nao se explica sem a postura equivalente dos atores. 0 espago disponfvel no ch3o era um entrave conereto a uma acu- mulagdo de pessoas durante o "esquentamento". Ainda assim ha- via sempre algun Dzi querendo favorecer certo tiete como "caso excepcional", Como grupo na sua integridade, trabalhando nes- te setor, era o pat quem assumia as objegdes argumentando que "se oriariam antecedentes" ou "se misturariam os problemas". Ao tiete se lhe responderia que nado se tinha conseguido o con~ senso do grupo. Mas o pat por sua conta, as vezes, ji trans- gredia as regras internas incluindo algum de seus ttetes parti culares, com quem projetava wn trabalho de danga para outra fi nalidade que o espetaculo (gravagGo para a televisdo, ete). A ineorporagZo n3o era bem aceita pelos atores restantes mas es- ta arbitrariedade manobrada pelo pai implicava, naquele momen~ to, a versio de privilégio por ser o lider oficial do palco.Di to de passagem e para lembrar o leitor, nos camarins, por exem plo, @ outro lider ~ 0 administrador ~ quem assume a fungdo de guardiao de fronteiras destituindo o pai de suas vantagens an- teriores, S importante sublinhar o fato de que os lfderes nao formam um bloco sélide frente aos outros componentes, nem que 179 um sd deles consiga acumular os privilégios. Entretanto o pat ~ ja que faldvamos nele e nos esquentamentos - tomava a caute- la de assegurar a permanéncia curta - dois ou trés dias - do tiete ~- posto que nao recebia o apoio dos outros; em sina de protesto chegavam a retirar-se do palco mesmo quando 0 tiete em quest&o’ era uma pessoa de conhecimento piblico(ator). Ou, sendo uma 'maquinagdo' voluntaria ou ndo, no momento em que o pat estava ausente (viagem, acidente) apareciam varios tiete fazendo exercicios no palco junto aos Croquettes. As experiSncias de campo provam que as excegdes 4 regra para a penetragio do tiete no provém (com as devidas restrigdes) dos privilégios dos, lfderes circunstanciais, mas de um fator mais sutil e préprio da organizagao interna.Tomemos o exemplo das veuntdeo de familia, Escolhia-se como lugar de intimidade um dos camarins,vedando-se a entrada até dos empregados do tea tro (ndo necessariamente dos empregados da Compania ~ adminis, trador ocasional, ete - isto dependia do tema a ser tratado).0s dos ‘temas confidenciais tratavam dos compromissos econdm projetos novos, da indisciplina de algum membro, etc).0 tiete - eu por exemplo = para assistir a uma das reunidee deveria fundamentar muito bem sua solicitagdo. Aceita uma vez, a si- tuagio continuava delicada no futuro, Tinha que se reiterap o pedido de consentimento cada vez ¢ a cada ator. Se isso ndo a~ contecesse, ou tomasse desprevenido algum Dzi, este faria uma veflexdo alusiva mostrando sua desaprovagio a todos, e também ao tiete, Esta veivindicagSo de direitos de decis%o do(s) a tor(es) nio implicava no entanto, na retirada do tiete a menos que a pressio fosse de conjunto ou desgastante para o ttete em questdo, Desenha-se nas ontrelinhas que um tiete consegue ter um status, 1an ainda que simbdlico, que se iguale em poder a um Dzi nalgum mo, mento, A constatagdo nado se baseia somente na posigdo relativa do ttete perante o grupo mas no que sustenta esta possibilida- de: a fragilidade do argumento do consenso, Quando os Dzi se acham em situagdo liminar frente a invasdo dos tiete apela-se pressupostamente ao consenso como estratégia para preservar os limites externos, quer dizer a relagao familia/ttete. Por este meio se restringe o grande nilmero de tietes que se intrometem “nas suas coisas, Mas em si nio & um critério categérico e As vezes € pouco consistente. Isto porque o consenso ~ como vi- mes na organizagdo interna do grupo ~ serve fundamentalmente pa ra garantir a "liberdade e igualdade" de direitos de decisdo e contestagao de cada ator em particular, E de fato, por evitar 9 enrijecimento das normas inteviias, poucas vezes se chega a” ele. Nessa realidade que encobre outras, os tietes vao achar a bre-~ cha tangfvel para se inflitrar na famflia. 03 limites desta esto a priori demarcados, mas de maneira grosseira, Se o pon- to real da decisdo sobre a presenga do tiete se faz pelo su- posto consenso e se reitera a cada circunstancia, sua vantagem advém de que ndo hd jamais uma decisdo categdrica ou irreversi, vel, mesmo quando negativa. A superagZo das barreiras lLimina- ves pelo tiete @ conseqiléncia direta da frouxid3o das normas e valores do grupo, Mas também porque atinge um ponto fraco dos Dzit o de no se fechar aos de fora,sendo de certa forma absor vé-los. Os Dzi se envolvem com os ttetes @ os procuram, mas n3’o resis= tem a um aciimule de pessoas, Duas tietes foram afastadas na hora da viagem para a Europa (cf.166).Outros tiveram um desti no mais feliz. A princLpio somente a famflia viajaria, Tinha 181 sido objeto de discussao o acompanhamento de um dos integrantes: ele nao sabia ainda dangar. Por outras razdes, o foi também o do operador do som: acompanhava os Dzi desde a Epoca da boate Ton-Ton, Acabou nao partindo junto com eles, Talvez para me~ diar esta perda, ou melhor, a perda de todos os tietes locais na véspera do embarque, convidaram trés dentre eles: um homem e duas mulheres, Dois atores até assumiram o prego da’ passagem de uma delas. 0 evento seria menos insdlite do que parecia i- ‘nictalmente ou pelos menos criou | antecedentes. Na sua via- gem de volta, um ano e meio mais tarde, a situagio era quase angloga: duas outras tietes voltaram com eles para o Brasil.As mulheres que foram na ida eram j& velhas amigas, por assim di- zep, e ficaram um tempo razo&vel junto a eles, 0 homem tinha se ligado a eles recentemente. No comego da viagem sofreu cer-. ta discriminagao mas superando a situagdo inconfortavel passou 142 @ ser o nove operador de som, No futuro levaria o nome Dai Cro quettes. © tema deste relato se introduz com a nota da possibilidade de permanéneia do tiete junto aos Dzi, Dentro desta, a permanén~ cia segundo o sexo de ego. Na viagem aconteceram certos fatos incomuns, mas por isso interessantes, Indicamos anteriormente a equivaléneia na propor¢ae de sexos entre os ttetes para cada situagao. A diferenga consideravel entre os dois sexos se da no tempo: as tietes criam vrelagdes mais estaveis e duradouras en- volvendo tipos de trocas mais consistentes com os Dzi. A opi~ nigo de um deles num depoimento 4 imprensa era: "f estranho ! (os tietes) so principalmente as mulheres, elas se sentem maes, querem cufdar, proteger"® Efetivamente, elas parecem mais pres- tativas para pequenos servigos, Quanto aos tietes @ diffcil sa- ber até que ponto nao desempenhan estes papéis mitidos, seja por falta de habito social, ou porque este se reforca com anao cohveniéncia, isto €, nfo envolver-se em relagdes onde nao se Ihes reconhece um status determinado. Mas a largo prazo ou a curto, de um sexo ou de outro, para os ttetes as relacgdes com 0 grupo sdo desgastantes (e vice-versa), Nisto, os argumen tos dos Dzi para explicar~se o esgotamento da permanéncia do ttete, so um ponto forte de discussSo. Os termos sHo violentos e absurdes para com os homens, informes e descomprometidos pa- va com as mulheres. As acusagdes sBo da ordem de roubo, malandragem ou abuso fi. nanceiro, de elojamento, comida, convites e assim por diante para os homens, Mas falta a consisténcia com os fatos reais . Pelos casos recolhidos ou pelos sinais préprios de cada indivi duo, observa-se rapidamente que se trata de uma justificativa prépria aos Dai para explicarem os afastamentos, 0 ttate julga do nestes termos, sem diivida sentiu varios tipos de pressdes ow segregagdes, mas dificilmente estara a par da acusag4o. E, apartando-se por um tempo dos Dzi, no futuro reata sem proble- mas as amizades. Inversamente, o ticte estando fora do campo de viedo do grupo, este deixa de comentar o assunto. Este ar tiffcio usado pelos atores vé~se reforgado quando comparade ao caso das milheres. Apés uma larga temporada, elas sZo acusadas de serem “muito tietes" no sentido de intromiss%o, ou de "n&o assumir" subenten dendo dependéncia psico-moral ao grupo, Observe-se que € uma vetdrica da condic3o da mulher na sociedade mais ampla. Mas. no contexto de estude, curiosamente, n&o s3o a priori qualida~ des pejorativas. Os Dzi por seu exemplo,estimularam as pessoas a serem tietes e “assumir” & uma questio de aprendizagem e de tempo. Em suma, os delitos das mulheres sdo insignificantes e 183 irrisGrios. Agora, a defasagem entre as acusagdes aos homens e Gs mulheres junto a repetigio dos afastamentos.levanta uma pergunta, Quais s4o os atributos dos tietes que fazem tremer os Dzi? Voltemos a viagem, Um tiete embarcou e se transfor- mou num Dzi. Este caso 'excepcional' aponta para o perigo que cerca o grupo continuamente, Os tietes/homens so sempre pro- vaveis Dzi Croquettes. Uma permanéncia prolongada, a aprendiza gem dos cédigos dos atores, apagam quase as diferengas, A bre- cha estando aberta, basta percorrer o caminho dos predecessores. 0 niicleo principiante dos Dzi se engrossou com tietes e — ou- tros empregados - eamaretros da Companhia entraram na familia. As mulheres, pelo seu sexo, sao explicitamente descartadas no paleo. £ um espetaculo de homens, sendo uma base de definicao. E importante indicar de passagem que nas primeiras tentativas de formag&o do grupo existiam mulheres, Por vazdes varias e que n&o vém ao caso, nao se apresentaram publicamente junto a eles. De fato a definigHo dos Dzi Croquettes como um grupo de teatro composto somente por homens foi devide 4s contingéncias @ a aceitagZo como tal pelo piilblico. Ainda assim, passaria a sep una definiglo com reservas. Préximo ao fim do espetdculo,a fantlia cindiu-se, perdendo quatro de seus integrantes (Janei. vo de 1976). Por motivos da fidelidade 4 concepgao da peca e do grupo, os desistentes n3o deviam ser substituidos. A aus@ncia a cidental de mais dois atores que continuavam atuando no espetd= culo, exigiu um reforgo do elenco posto que o espago cénico va~ go era excessivo (T. das NagSes, SP, 13-3-76). Foram escolhidas trés mulheres. 0 contetdo e simbolicmo da pega, se viram pouco alterados com a substancial mudanga. Pela improvisagio de flti- ma hora e falta de pr&tica das convidadas, a deficiéncia era mais técnica. Esta constatagdo fez os Dzi discutirem muito as novas incorporagSes. Alias o assunte se aliava a uma experiéncia 104 anterior. As mulheres eram ex-Dzi Croquettas, ou seja, as par= ticipantes do espetZculo empresariado pelo grupo outrora e co- locava, mais uma vez, sobre o tapete as delimitagdes da fami- lia. A solugdo engatou-se numa proposigzo anterior a presenga delas: acabar com a pega e, conseqiientemente, dar as costas 2o problema (31-3-76), A discussZo sobre a familia e os tietes esta recheada de rup- turas, dramas emotives, sentidos duplos, saidas desagradaveis, excegoes &s regras, demonstrando pela prépria redundancia como os Dzi procuram o tempo todo preservar seu niclec original. A necessidade de afastar os de fora se justifica em termos de lu gares no paleo ou de compromissos economicos e inclusive de or= cem interna que nem sempre os Dzi conseguem contornar para si mesmos. Simultaneamente fazem tudo para que os téetes entrem na engrenagem: o vaivém emocional, e de aprendizagem A seme~ lhanga de sua escola, Ter adeptos 6 dilatar a fdrmula de vida adotada; @ reforgar os padres e valores; @ respaldar suas de- ficigneias econdmicas e demais; @ nutrin-se de novas id@ias e saeatas & 7 * ideais; € reconhecer-se a si mesmos. Os ttetes alargam a faniu lia ¢ ao mesno tempo precisan seu limite. G@ que forma a penumbra e se alimenta do prestfgio dos Dai, can rega, no entanto, o peso des significados ambiguos do papel. que dssempenha. 0 tiete estA, por assim dizer,mma categoria ce igual e de diferente perante o grupo, Ora @ ou anseia sep um 'semelhante', ora sé deleita na ‘complementaridade', ora adqui re um status de igual acs Dai, S30 papéis que somados sfo as qualidades ¢ as caracterfsticas dos componentes do grupo. A assinetria inicial entve os Dzi e os ttetes as diferengas que ihe seguem ndo apagam as margens, &’s vezes sutis, entre ambas 185 as categorias. Mas, para entender melhor a posiglo do tiete, & ainda riecessArio analisar o conteiido que abstrai da assistén cia ritual da pega e as possibilidades que ele tem de pdr em pratica as interpretacdes simbdlicas, 4 semelhanga dos Dai Croquettes. 108 Ci) (2) NOTAS. Avintengac nesta parte do trabalho @ analiser 0 grupo a partir de sua rede de relacionamento formada pelos tietes aperfeigoanda nogdss sobre a organizagao do grupo e@ delimitando melher a3 suas fronteiras. Segundo as palavras de Barnes, J, (1969] "Networks and Palitseal Process " in Mitehell (ed) "Social Networks in Urban Situation", Manchester University Press (1969). "The interpersonal links that arise out of common group - menbership are as much part of the tatal social network as are these that link parson in different groups, and analysis of action in terms of a network should reveal, among others things, the boundaries and internal - structure of groups” (1967:54), Suitos assuntes tratados neste parte e na seguinte di zem raspaito ea tipo de andlise micro-polftica de gru- pos, tais como fizeram Homans, G. (1950): £1 Grupo _Hu- mano, ed. Eudsba, Bs, As,-1972; Whyte, WF, (1969) - Street Cerner Society, the scoial structure of an itelian slum ed. University of Chigego Press, 1969 + os intsresses envelvides ne desemsenho de certos pa- péis seetais pelos indivfduos come no trabalho de Blau, P. (1967) Exchange and Power in Social Life eds John Willey and Sons, N.Y. 1967; 95 conflitos e resolu g4o das quebras proposte por Turner, WV. (1957) Schism and Continuity in an African Soctety, a Study a Udembu Villoge Life in Manchester University Press, 1968; foram também de grande ajuda as andlises feitas sobre "redes de relactonamento” seguindo a propeste de Radeliffe-Brown, R, (1952), On Social Structure in Primitive Sontety, London (1952)ie¢especialmente Gott, &. (1970) ed., 1970, Family and Socinl Network in Tovistack, 2 daw A constatag3o me fol confirmada pessoalmente por um mam bro da FUNARTE © do SNT, em fevereiro de 1978, Porém os érgaos ofistais +. Gomegaram a fazer algumas sencessSes a partir ds 1975. Por exemplo, o segundo re- pertério teatral dos Ozi Croquettes = a pega Romance ~ classificada de Comédia dell'Arte, composta de um alen= co exclustvomente masculing assumindo papdis teatrais - (3 4 (s J 1 } tanto femininos quanto masculinos ~ foi em parte par trocinada pela FUNARTE; ORGko do Ministério de Educagdo e Cultura, e da secrataria de Cultura, Ciéncia e Tec- nelogia do Governe de Sao Paulo. Estudando a produgdo cultural em bairras populares de cidade de S30 Paulo, Antonio Augusto Arantes Neto 1978- Produc3o Cultural e Revitalizaco em Bairros Populares: g caso da S80 Miguel Paulista (mimeo), também chama 2 atengio para essa constante tentativa de apropriagse do trabalho de grupos auténomos pelas instituigSes locais~ come o Lions Club de bairre, por exemplo. Se & por problemas analiticos que estou restringindo o campe de discusséo aos temas mais evidentes, pede-se dizer tembém que este 8 o fruto de estudo prévio do material. 0 conceito de familia Dzi Croquettes era aplicedo tanto aos membros do grupo quante 3s mulheres que fizeram parte da verso paralela do espetdculo:"As Fadas do Apocalipse". G crit8rio escolhide era a perti~ cipagdo efetiva no paico. to entanto na mesma Bpoca 0 'camareiro’ do grupo, que também era ator, era publi- caments aprssantade como a "magica da Companhia", de- sinvestido desda modo do status familiar, spesar do sempre ter sido considerado um O#i Croquettes. A dis- cussao deste sssuntc nao.acha sua pertinéncia aqui. Eu uso, pelo momento, familia camo equivalente de 0zi Cro- quettes. Seberia aqui uma distingio teérica entra diferanga @ des Mariza Corr8a (comunicagho pessoal) suge= gualda re que h& uma tendancia em nossa sociedade de raduzir eguela @ esta, enquadrando elementos que aparecem so- cislments dispersos numa escala vertical, hiordrquica, coma forma do aveitar ou rejeitar dissemelhangas em termos de superioridade au inferioridada. A tendéncia dos Ozi Croquettes § exatamente contrdria a esta, como s@ se tratasse da desmanchar escalas hierarquizadas, re cuperendo 9 possibilidade de aceitagéo (ou negagac) das diferengas. (6 J Bidrie Aqut, S.P. ed, 20/2/76, (7.1 Para uma discussao de nog&o de pessoa e andlise essa nogao entre os fndios Krahé, ver M. Manuela Carneiro da Cunha, Os mortos ¢ os outros, editera Hucitec, Sho Paulo, 1978, 1. © lado apotedtico de espetaculo cu a nova cabega sem pé no chao? "Eu ndo aprendi o que & ou o que nfo & mas a ser uma pessoa! Aproveitar toda a minha experiéneia e botar tudo para fora" Um tiete. A proliferagdo de simbolos possiveis inerentes 4 ambigtidade da pega constrange inicialmente a dissertagdo fluentes do espectador, sobre sua trama. Seu profundo impacto enotivo e: timule melhor uma parte do pilblico & agdo. Porém as agoes coibidas ou sem margem de expansdo no contexto singular dos Dzi ou mais amplo impulsionam, geralmente, 4 reflexdes secun davias. Estas interpretagdes catalizando as experiéncias con eretas vividas pelos tictes se vinculam a seu momento histd- rico e aos valores fermentados entre os Dzi. Magnetismo e desorientagdo marcam a primeira fase do confron to dos Dzi Croquettes e dos tietes. Eo aue desliza pela e- xaltacgdo: "8 muita eoisa’,"eles sao maravilhosos", “eles di~ zem tudo" ou ainda "eles falam de paz, amor e unio"; e@ pela desconfianga: "ndo sei o que dizer, "eles sao muito agressi vos" ou "@ um bando de malabaristas mais do que atoves". Es- te padrde de resposta encebrindo quase ‘todas as manifestagdes verbais dadas pelos ttetes (e o publico mais ampio) se repe- te nos distintos lugares geogrdficos onde os atores se apre- sentaram. Eo espectador mesmo se colecando posteriormente co mo tiete (no sentido utilizado na pesquisa, isto @, ligando- se de alguma maneiva mais sélida aos atores)mantém ainda este padrao de resposta por muito tempo. F um discurso entusiasta, 187 reverente ou, as vezes, de diivida e questionamentos. Ele transmite de maneira direta por um simbolismo abstrato a ade sao ou, pelo contrario, um certo distanciamento para com os Dai. Sao abreviagdes do impacto emotive mais que profundas reflexdes pessoais. Ao mesmo tempo a adesdo, em primeira ins tancia, ndo parece precisar ser mais substantiva. Dizer:"eles sao maravilhosos" reafirma verbalmente a aprovacgdo do tiete constatada ao indicar; pela sua permanéncia,o contate com 0 grupo, A agSo toma o lugar das palavras. Come sabemos a primeira agao @ gentar ritualmente na cadeira do teatro, até quando implica mobilizar certa soma de dinhei. ro para pagar o ingresso. A constancia dos tietes, luerativa para os Dzi, nao deixava estes nenos perplexos, curiosos ou inquietos. A segunda agao @ esperar os atores na saida do teatro apds o espetdaculo. EF o momento propfeio para Felicitar i188 os atores mas especialmente comentar o desenvolvimento do es petdculo ¢ mostrar a sua familiarizagao gradativa com as re- gras do jogo cénico. Tratase de uma revisdo geral de todos os pequenos e grandes detaihes que fizeram da versio recém assistida, um espet&culo diferente daquele visto anterlormen te pelo tiete. Invariavelmente os discursos salientam as mu- dangas da pega. Elas parecem incitar os tietes a este nivel de percepgao aparentemente em prejuizo de uma visdo mais glo. balizante proposta pelo enredo, como poderiam ser as transgres sdes, a ambigilidade ou qualquer outro tema. No entanto, = a constatagio desta atitude nos permite retomar alguns aspectos inacabados da relagio tiete-Dei, como formular outras conse- quéncias imediatas. Da aprendizagem da leitura pontual do espetdculo, o tiete perde a nogdo da periferia 4 qual estA relegado como pabli - co, A sua participagao no programa dos Dzi Croquettes nado é totalmente ficticia, ele entra primeiro no jogo dos louvores. Nos seus ademanes precoces aponta para as virtudes gerais que se bem preza sndio dao conta de fundamental. Com o visco de re- cuar na estima dos atores pela repetigao do mesmo estratage~ ma, seus olhos se agudizam’e comega a apontar detalhes mar ~ cantes para ele e para os que atuam. Apds o espetaculo um tiete se aproxima de um dos atores para comunicar-Lhe que “achou um barato a briga de Maria e a Old City" na cena das Batlarinas. De fato nao passa de um deta- lhe,na mira da lupa de wna sequéncia onde cenas simultaneas se multiplicam,quefol novidade para o tiete. A ocorréncia ca sual de um enorme urse de pelicia levado no brago por um per sonagem que o atira na cabeca do outro, vira assunto de noti ela: o insignificante toma consisténcia. Ora, bem pode ser o fluxo ininterrupto de uma briga real entre dois atores , que dos bastidores irrompeu no palco. Como saberos a legitimacao docs problemas pesscais dos atores frente ao piblico @ um re- curso muito usado neste espetdculo que abriga tal filexibili dade. Se o enfventamento é sério e atrapalhou o trabalho dos outros atores sem divida se seguira uma reprimenda pelos ou-~ tres por "envolver a parte sentimental com a profissional” E até 05 ausentes em cena no dito trecho, podem entrar a opi nav pela 'fofoca' do ttete. A interpretagao contréria, dada pelos atores, se nao houver magoa envolvida, no é menos eficiente e alids muito mais fre quente. 0 detalhe novo se absorve rapidamente em terra fér~ til: no dia seguinte se Ihe d& perfeicdo ou relevo. Ja nZo & 189 uma pancada de urso o que leva o parceiro da batalha, — mas varias, enquanto mal se defende com sua terrivel arma: uma enorme pena de avestruz. 0 espago cénico que leva este anexo, o divertimento do piblico, chama a atengdo para outro ator, talvez ainda por fora do que acontece (entre tantas varia- cdes de un dia para o outro, nem todos os Dzi controlam ° desenvolvimento real da pega). Ele se intromete serianente chamando o apoio do piblico, que no entanto, se diverte:"Gen te no 4 para se rir, gente, isto @ assunto sério, acontece todos os dias". 0s téetss iniciados aos problemas do grupo viem maig ainda pelo recorte duplo da vida veal com o paleo. Aos ecos destas gargalhadas, devidas 4 insisténcia da recla- magdo do ator, acompanhada pelo martelamento do chao com seu salto fino, junta-ge 0 coro das risadas de um piblico maior. A outro ator eabe entrar en acho conciliadora para o Giltino: "ant deixa que se acaber de uma vez!". Do negativo aspira-se o construtivo, tudo se desvenda em cena. 0 entusiasmo da pla t@la conscientiza-os do vidfeulo da situagao e os atores se incorporan na brincadeira. 0 acidente vira momento culminan- te da cena ao participarem pouco a pouco todos os integrah ~ tes nos dias seguintes, até que um novo incidente tome prece déneia. Este @ um exemplo do processo que se estabelece en~ tre os Dzi eos ttetes e cujos pormenores analiticos ratoma- remos - A atribuicdo de valor 3s mudangas do espetdculo pelos tietes, assim como a observagao penetrante do desempenho de cada a~ tor, a coordenagao das coreografias, ete., a expensas de coum tros sfnbolos ir& ser o resultado de uma aprendizagem social. Sao padrées verbais aprendidos através de varias assisténcias & pega e da convivéncia com os atores. A vepetigaéo do mesmo 196 modelo de expressdo, ou melhor, a sua importancia como mani- festagdo entre quase todos os t¢etes sd pode ser entendida no Angulo do fenémeno social e n&o (ainda que seja possivel) como observagdo espontanea dos individuos. Os préprios D: 34 estimulam este tipo de participagao perguntando 0 que se achou de tal roupa, personagem, variacdo de cena, etc.Mas do momento em que o ¢iete incorpora este tipo de leitura, deri- vara suas preocupagdes para a intromissdo dinamica ~ ainda que indireta - na composigdo da pega , em detrimento de qual, quer outra reflexdo mais pessoal. Simultdneamente, comunican do aos atores as mudangas do espetdculo, reafirmagdo para es, tes a validez do significado social desta prdtica e em conse qliéncia a reforgar’o. A complementaridade latente dos ttetes na produgdo da pega se da também em fungao de cutros papéis sociais. © discurso permanente e, no mesmo nivel que os membros do grupo mant@m entre eles, leva os téetes a seren Arbitros do desenvolvimento geral do espetaculo, De fato, todo o ptiblico @ Grbitro mas os ¢tetes conseguem sé-lo de maneira andloga a instituida pelos Dzi. 0 impulse tortuesos de pequenos inciden tes cénicos comentado pelo tiete, pode chegar aos ouvidos de quem no grupo nfo acolhe o desfecho desta maneira. Enive os Dzi sera usada a palavra do tiete como testemunha da desor- ganizacdo da cena. Para o exemplo ser correto seria necessa~ rio analisar cada situag&o particular, ou seja, qual é ° ttete que fala, seu status momentaneo, a que se vefere, ete. Porém sdo elementos prescindiveis. Se de vez em quando apare ce um ttete tendo condigdes objetivas para fazer observacdes pertinentes ¢ que sdo seguidas ao pé da letra, j4 sabemos tam bém gue a nenhum deles @ concedido o poder de controle sobre © grupo ou que nio conseguira aplicar sua supremoia por 191 muito tempo. E alids as constatagGes dos tietes sdo manipula das conforme as conveniéncias dos atores em particular ou do grupo na sua integridade. A questao, por enquanto, se inver~ te: porque os Dzi néo sd escutam os tietes ensinando certas regras como os estimulam a falarem continuamente sobre a pe- ga? © que anima fundamentalmente o espirito do grupo sio aspec tos insignificantes para um piblico alheio que tem por pri- a meira tarefa decifrar a pega na sua integridade. A livre ini, ciativa no palco impulsionada pela concepgao ideal do funcig namento da pega, e ainda multiplicada per treze (niimero de a tores) sé pode ser destacada por um ou varios espectadores competentes por lhes serem familiares as regras do espetaculo. Nesta visdo um piblico mais familiar @ portanto conveniente 492 para destrinchar os minimos detalhes. 0 conhecimenta dos ato res, sua localizagao no palco, as segtenciais do espetdculo aprendidas na assisténcia repetida, permite ao ttete identificagdo rapida das mudangas. E, por dedug#o imediata, se pode sugerir sua importéncia 20 nivel individual de cada ator e do grupo em geral. 0 interesse de um Dzi particularna observagdo do ttete pode sey entendido como a avaliagdo de seu préprio trabalho no conjunto na medida que tem certeza de que foi observada a variagdo do personagem, texto , roupa, ete., que tinha programado para a sessdo do dia. A nivel do grupo a participagdo do ttete poderia ser entendida como uma tentativa de fracionamento de poder interno de todos os ato- ves em conjunto, ao serem os tietes Grbitros como os D2i Croquettes. Entretanto, aprendendo os padroes sociais do grupo, eum= prindo papéis optativos de complemento na produgdo continua da peca, sendo arbitros e assim por diante, mais uma vez se veafirma (como o leitor deve estar cansado de saber) que a receita positiva para os tietes parece ser viver uma realida de préxima ou similar a dos Dzi, em vez de parar e fazer dis sertagdes objetivas (exigidas por mim) sobre a estrutura sim bélica do espet&culo. De fato, estas posturas jd eram res- postas a minhas perguntas. Se a ambigilidade era inicialmente um impedimento a formula- gdes clapas de temas gerais de reflexdo, a multidao de sig- nos e simbolos da pega sao decifrados com o tempo. 0 cunho social da proposta cénica dos Dai aparece na medida em queas pessoas vdo se artioulando e 'politizando' por meio das expe riSneias vividas, vao se comparando ou pensando nas que con- trariamente nao optaram por este estilo de vida ou vai se espalhando o novo padrao de comportamento, E ainda, na medi- da em que se amplia o significado da pega por repetidas opinises parceladas dos préprics individuos em estudo, da im prensa e do piblico mais afastado, construindo as versées e@ temas de sua preferéncia. Além da tem&tica dos géneros se~ xuais, Gbvia e chamativa, adquire o mesmo peso e em senti - des diversos o que parece ser uma catirsis para um piiblico 72-76.,2)2 Ainda que parega — curioso Jovem nessa Spoca (. em vez de falarem diretamente sobre os Dzi ou sobre a pega , os informantes invariavelmente fazem peferéncias sobre si, mesmos. £ pela conversdo de uma tem&tica publica para si- nais individuais que os dados a seguir toman relevancia. Sa- lientando as condigGes que os levaram a compartilhar os mes- mos valores e padrdes de vida que os atores, indiretamente dizen respeito a um ordenamento dos simbolos scciais extrai, dos das leituras repetidas da pega, Um tiete recapitula 193 sua expeviéneia assim: "Eu tive todas as sensagdes de piblico:tesao por determinadas pessoas, rir de coisas vi- suais, coisas transadas no espetaculo, até ter um novo jeito na minha vida, No visual vocé percebia disciplina do corpo, de traba- ho, mas era uma coisa livre e individual ,° era um relacionamento de pessoas. Minha tran sa como espectador era da liberdade de expres séo, da oriatividade... eles, cada uma fazia sua propria critica, ninguém falava ponha essa roupa, tima essa roupa, a sensagao era de liberdade" Qs desejos e as explicagdes dos tietes retemam o tom dos ato. res ea gama da sua vida cotidiana, Muitas vexes so desejos mais do que realidades e, em todo caso, as explicagdes esto — ygy mediatizadas pela experiéneia atual vivida pelo tiete. Isto 8, o desvendamento do significado profundo de sua ades&o es~ tard carregado de conteldos sécio-culturais do grupo, devido a sua permanéncia junto a ele e aos conflitos. A maioria dos argunentos des tietes foram impugnados por situagées que vi. nharm & tona, porém bem peculiaves: uma crise das relagées do tiete com o grupos uma ocasido social particular como, por exemplo, um clima de confidéneia com alguns Dai (eu es~ tando presente); uma crise existencial; ou como retrospecti- va apds um longo periodo de tempo. A compreensdo do fendmeno, a conseiéncia social aflora como reinterpretacio circunstan- cial do que chamarfamos situagdes especiais ow limites vivi- das pelos tietes. Nas entrelinhas dos depoimentos se desenham os pontos de frustragaéo ou coibigado para o desenvolvimento da pratica adotada, no contexto mais amplo. Assim os discursos nos permitem situar os tietes na sociedade brasileira de seu tempo e, por comparagdc, localizar melhor os Dai Croquettes. Para destrinchar este processo, o ordenarei por temas, ain- da que para alguns tietes muitos se sobreponhan. Comegared pe las "caréncias.gerais e indefinidas" na versdo de um deles . "Bu era muito timidasmuito fechada nos meus relacionamentos. Fui ver o show uma vez e amei. Ai voltei com amigos meus @ vi que era maravilthoso. Depois fui todas as semanas do Treze de Maio (teatro em S40 Paulo).Sé me atrevi a falar con eles o Gltimo dia, eles me deram muita forga em tudo o que eu fa~ ¢0, a questdo @ que eu tinha que assumir..." No entanto ela trabalha ha tempo num cargo de responsabilidade numa agéncia de viagen. Outra tiete apresentando-se como uma pessoa “inde pendente", estrangeira que veio ao Brasil day uma conferén - cia mas acahou ficando, diz: "eles me conveceram que se pode viver em grupo, me mostraram como se constréi um relaciona ~ ento dos Dzi, mento". Ja experiéncias anteriores a0 conhecii mais ancoradas, colecam condigdes a convivéneia em grupo. U na delas afirnando ter "desbundado” muito a partir de seus 18 anos e tendo vinte na época reclama: "eu quero trabalhar com pesscas numa boa; eu dou tudo de mim, mas que eles me deen também uma coisa, sabe...” E entdo, o que norteou até agora essas opgdes individualis~ tas ou de grupo? "Meus pais sempre falavam que eu era muito esquisite, nao fazia como as outras criangas da minha idade e que tinha mania de gente grande" explica un tiete, mas pela pesquisa eu diria que essa frase poderia ser dita por todos:'éyamos muito esquisites'. Com pais, sem pai ou sem mae, com irmaos ou sem eles, por problemas de educagdo ou 195 sociais, por comportamentos individuais ou a exemplo de ou~ tros, toda idiosincrasia de razdes poss{veis comuns que sur- gem preferentemente nas classes abastadas, n3o eo ignoradas geralmente pelos tietes como justificativa das caréncias pessoais mas, em Giltima inst&ncia, comprimem-se fundamental- mente no carater, na sensibilidade pessoal. “Como explicar o fracasso -- barras no universo dos Dai -- sendo pelo recurso Ac falhas do individuo em seu relaciona '- mento (fungao da psicologia) ou através de forgas ocultas cegas e superiores que transcendem a sua responsabilidade (fungdo da supertigio)?" diz pertinentemente a psicdloga E. Bosi repensando um tema de Merton (1977:118). A propaganda ja epia uma “aspiracao comum, uma linguagem universal de cures- so" (ibider). Seja por esta, ou pelos padrées tradicional- mente transmitidos entre o desejo comume a realidade cotidia Na, © que os tretes enfatizam @ a diferenga individual de comportamentos sociais frente ao contexto familiaw ou mais amplo. Ndo obstante, como diz um tvete: "o que eu sei & que as barras da gente,anormais ndo sdo, olha que j& andei muito por af e vi muita gente igual. Minha teoria 3 que meu PO- blema @ com meu pai, foi meu trabaihe psicanalitico. Agora para os outros ndo sei, tem 50 barras na vida da gente, tem 350 que opinam @ tem 3.500 idéias, realmente nado sei Realista pelo menos na multiddo de fatores possfveis para ex plicar caréncias individuais, ndo o so menos as alternativas que a idéia de grupo fixe para alguns tietes: “em grupo tudo © que vocé sofre, nfo deixa de existir mas voed fica mais a~ somodado" diz um deles, ¢ outro" eu quere gente que comparti ibe minhas alegrias e segure minhas barras*, Ha quem veja o 195 lado pratico do grupo dizendo "as responsabilidades em grupo se dividen" 0 que resulta na mesma para quem pensa que "fi - car s6 @ mais dificil". Mas quando as espectativas nfo se realizam @ porque "as pessoas nunca querem ter responsabili- dade perante o grupo". Dito isto em ceasides especiais pores tas pessoas, a maioria dos tietes pensa que entre os Dai Croquettes tudo se resolve. Na realidade € que em certo ni- vel, através da sua representagao teatval, reeriam "uma lin- guagem universal de sucesso". 0 grupo de apoio é portanto um estimulante para as tempesta- des da alma, quando elas sdo sentidas assim mas, sobretudo, porque ele 2 uma "acomodacdo de Iuta que eu ja tinha". Esta frase expressa ainda um nivel diferente de leitura do espeta . culo: a possibilidade de identificagao das necessidades dos atores com os tietes.E o que um destes chamou o “lado apoted tico do espetRculo". Em geral expressa-se assim: "sdo pes- soas que falan dos meus grilos e das minhas divindades" ou-: "yi, coisas que eram muito minhas, ea no me coloco em termos de palco, mas através dos personagens que fazia cada um, a agressividade que cultiva um, o humor do outro". A solugdo que acharam os Dai Croquettes para si mesmos era a de parte de seu pilblico também. E, na repeticao da assistén- cia ao espetSculo, os ttetes aprendem o que € para eles una espécie de escola de vida: "a proposta @ que as pessoas tdm que fazer coisas bonitas e coisas desagraddveis. Bles falam claramente que 6 trazer coisas fortes, mas com grande beleza.. como por exemplo esses lados de mim jogados num espet&culopa va todo mundo saber. Isto ainda nao estava feito e podia se mostrar". 197 Aqui talvez seja o lugar de discutir a diferenga de padroes familiares prescritos ou do contexto e as opgSes de crité- rio dos tietes. Em termos de comportamento diferencial, nem todos dizem ter sofrido para se impor no seu meio ambiente. Um téiete o confirma com os seguintes argumentos: “entre nos ~ uma turma - eu vejo que para todos @ uma boa, fazemos 0 que mais gostamos ¢ eu vejo que entre todos nfo foi muito conflitive(trata-se de uma faixa et@ria baixa - 16-19 anos). 0 que nos primeiros depoimentos transcritos sentide como ‘oaréneia', aqui @ muitas vezes visto como ‘preconceitos'. Deis tietes contaram que costumavam ter “longas mesaa redon, das de familia para discutir sobre meu destino" por manifes, tarem aspiragSes que desafinavan com o que se Ihes predica~ va en casa. Ora, mesmo assim, o 'preconceito' 6 dele e no do contexto familiar, como diz um: “ora, néo vamos nos per dep por causa de preconceitos, por causa dos grilos, tem mesmo € que ecagar com os pais", e outro: "eu aprendi a ser eritico comigo mesmo e com os outros", un terceiro ainda din: "Na época eu dava muito valor ao que a sociedade pensa va, por mais que eutivesse tudo por debaixo do pano. Eo grupo (os Dzi? e a transagdo com a danga que me fez olhar e cagap com o que os outros falavam, pensavam ou pediam. So indo & Juta 4 que vocé consegue, que enoontra o equilibrio, vocé ndo tem decafdas, af fui ver minha vida..." (0 stete era treinador de um time de futebol e comegot a assistip au jas de danga). . A valovizagSo da experiéneia empivica - usar suas ‘qualida~ des' e seus 'defeitos', o desempenho de novas atividades pe los ttetes mais entuciastas, acompanha-se freqlientemente pe la insisténecia nuaa ruptura com wa de seus pontos de referéncia anterior, sendo este o 'preconceito'. Assim como se desinveste a sociedade de un poder sobre si mesmo, faz-se uma concessdo pessoal para explicar a mudanga formal: acusar 9 contexto seria, de certo modo, 'ndo se valorizar' e sim veafirmar a sua dependéncia. A importancia do grupo ou de grupos € a de dar apoio e aprovagdo as novas opgdes emborao eixo de mudanga permanaga no esforgo pessoal, no mesmo molde que o preciama a sociedade de consuno. Esta reedicdo do "querer & poder” faz parte das represen~ tagées ideais dos D2i Croquettes, no entanto, com uma compo~ sigdo de conteiido diversose ela diz respeito as normas de comportamento o @ também por meio de fungdes __ocupacionais alternativas que pederian desempenhar as pessoas. A reavalia gdo social das atividades ocupacionais transparece identica- mente na maioria dos depoimentos dos tietes. Tomando a verséo de trabalho a sex vemunerado, implica na integragdo tanto de opgdes ocupacionais diferentes e/ou cportunidade de lazer ndo convencionais. Faz figura central a danga, como & de se espe var. A semelhanga do histGvico dos Dzi muitos ttetes desco, brem tardia mas eficazmente - por causa dos padrées ain da vigentes na Epoca (73.,.7), seus dotes pessoais: “eu des- cobri que tinha possibilidades (de danga)" diz um téete, de 28 anos, voltado até entdo para aspiragées de ser arquiteto. © peso social das profissdes liberais & marca conganita de quase toda a geragdo dos pais, segundo eles, - homens ou mu~ lheres , 0 qual fica pendente na escolha para quem ainda rao se definiu: "amanha vou estudar, hoje vou eurtir o que é des jovens" diz euforicamente uma tiete que descobre um grupo de apoio para as suas aspiragdes mais escondidas. 139 Mas a "danga @ um trabalho", a exemplo dos Dzi Croquettes, e isto é muito importante. 4 nogdo de "trabalho" impera por mais que ela seja permeada pelos meandros complexos da "cur- tigdo" e, ela 6 diferente da de “estudo" escolar ou universi tario. Freqitlentemente entre os mais novos ela justificaria o que aqui nao se faz ou, pelo menos, nao se faz seriamente : "natam as aulas" como dizem. Ao perguntar a um deles o que era mais importante, respondeu: "o bom seria fazer es duas coisas: estudar e aprender a danga mas, eu ja ndo tenho di- ploma. Queria ver se conseguia comprar ua do clientifico para ndo ser uma pessoa fodida mas, também ja tinha aprendido mui ta coisa entre meus 14 a 17 anos pata voltar 4 escola". Ao n4o receberp mesada por parte dos pais, em geral, os rapazes com histérico de vida semelhante trabalham avulso por tempo~ vada em laboratérios fotogréficos de amigos, em confecgdes , ds vezes como modelo, em boites para vender cigarros. Seri pertinente, aqui, situar outra referéncia que incide sobre as condigées de sobreviver desta maneira. Trata -se de um movimento anterior 4 aparigdo dos Dzi Croquettes, mais amplo que a do aspecto que possibilita o teatro e que se lo calizou especialmente nas cidades de Rio de Janeiro e S80 Paulo, onde vivem geralmente os tietes de quem estou falando: os hippies", Sem entrar demais no tema vou transcrever somente duas expe iéncias contadas. Um tiete diz: "eu fui hippie durante dois anos, para mim sO serviu para ver quanta gente grilada tem por af. Fu tinha 15 anos e foi at os 18, Mas voeé jd vé, to do muro fica sabendo, os vizinhos ficavam reclamando que iam chamar a policia. No Snibus vocé n@o podia andar de calca 200 vermelha, a Pua, num cinema,tode mundo olhava e depois = a policia perseguia. Fu fui a juizado de menores e até reforma. tério.. mas, bom, eu era vagabundo de primeira classe, nado trabalhava nem tinha documentos". Esta @ uma histéria de vi- da de certa forma incomum pelo extremo a que @ levade o pa - drio de vida na moda, que ja fez parte de novas expectativas onde se cimentam as atitudes atuais de muitos tietes. Esse movimento abriu novos hovizontes: a solidariedade em assuntos comuns a certas faixas et@pias. Porém, com o tempo, vira uma “etiqueta pregada nas costas", como diz outro, e nko brag mais beneficios. A negagdo de ter pertencido a um movimento que 34 passou de moda se traduz agora com o pilar do pantedo de referéncias de seus opositores que seguiam mantendo os valores tradicionais: "ndo se trabalha". 201 Por tras de outro éngulo chega-se também Bs mesmas conclusGes: uma tiete, que na mesma Spoca entrou nesse estilo diz: eu ba ti mita bunda por al,sabe, fiz de tudo... mas era muita lou cura... a gente tem mi] buracos na cabega e nfo sabe o que fazer com eles. Eu sempre falo para meu pai (que foi julz de menores) que com a metade do dinheiro que ele quer dar para eu fazer cursinhos, eu poderia dangar... agora tenho 22 anos vocé 34 pensou eu dangando bem aos 30", As decepgdes as quaisforam levados estes dois tietes nas suas experiéncias'hippies'ndo provém exatamente das mesmas ma 2bes. Se os homens, sem sustento familiar, ‘procuran outro meio de vida, as mulheres, no entanto, seguen sendo mais pro tegidas pelo niicleo familiar quase em todos os casos. Sendo a maioria das pessoas situadas na pequena berguesia e outra mais assentada, pela penda familiar ou pelo desempenho pro - profissional dos pais, @ dificil, porém, apreciar as diferengas nitidas que decorvem de um histérico de vida ou de uma distribuigao particular na escala social. As avessas fica claro que, no limite, vocagSes artisticas ou alternati, vas aos padrées tradicionais nao eram as ocupagdes melhor consideradas pelas familias desses tietes. 0 ttete citado acima diz ainda: “eu numa época fazia cursos de teatro (a m&e tinha sido artista numa Epeca) ‘mas eu na época pensava que era sé uma fuga". Nao chega a ser, tampouco, uma divi- sdo sexual de trabalho. Um ttete argumenta que, ha alguns anos, quando sua irma, 8 anos mais velha do que ele, esco- Lheu fazer teatro e cinema, em sua casa isso foi interpreta do como "vida marginal". E outro ironizando diz: "Vocd ndo sabe que homens que fazem estas profissdes sdo viados e as mulheres putas?". Palando em reavaliagdo de eritérics sociais,existem exem ~ ples diversos entre os t¢etec. 0 que ja era encarado por alguns deles como um meio de trabalho "“indigno”, para ou-~ tres o exemplo dos Dzi significava incorporagdo da sua dig- “Eles (os Dzi) me mostrayan que com o nidade como valo: cerpe se diz muita coisa, trata-se de uma verdedeixa Lingua gen" comenta uma graduada em literatura. Uma economista de~ cide-se a aprender a cantar, um velho desejo. Outro tiete opta francamente pela fotografia apés uns ensaios feitos sobre o espetaculo. F assim por diante. Significativa @ a observacio de um téete que cursou duas carreiras universi- tarias, uma nas artes plasticas e outra cientifica, tendo optado no seu cCotidiano per esta iiltima ainda que seja pou co lucrative para ele: "A mim ninguém me ensinou a fazer duas coisas por vez". A especialidade em determinadas targ fas que ndo as alternativas apontadas aqui tem seus bons 22 fundamentos no sistema produtivo e nas relagSes de produgdo do contexto global. E no contexto da pesquisa o desabafo desta opressao @ muito freqlente. 0s tietes que enfatizam suas escolhas de trabalho como pouco satisfatérias estao conscientes, no entanto, de que as opgdes feitas reafirmam o que @ prescrito pela socie- dade. Uma estudante universitaria expressa assim a sua angis tia na decisdo da alternativa: “ele piram minha cabega, as minhas coisas. Eles me dao forga. Bu sei que eles (os Dzi) e os outros (os ttetes) por aqui estdo por fora da vealidade . Eu ja nfo tenho vontade de fazer minha tese que estava cur - tinde, transava wa menino e deixei ele. Eles fazem um corte, mexe tudo Os conflitos de interesses se resolvem de varias mansivas, e uns dentro dos outros. Ao desempenhar fungées para as quais nem todos os membros que compdem o grupo estavam preparados- bailarinos, ator, cantor, eta. - ativam em sentido duplo pe- lo menos as expectativas dos tietes que os observam diaria - mente: o sonho das multiplas fungdes ea possibilidade a priori de realiza-las. Ao afirma-lo e confirmi-lo dia apds dia os atores conciliam uma nova variante: aperfeicoam-se ¢ especializam-se. A equagdo do palco converte-se em necessida des e, a singularidade, reativa a erenga dos téetes. A corren io: "sao te ndo se esgota aqui, os tietes também entram em ag. as primeiras pessoas que acreditaram em mim e falaran,"entdo faz" diz uma delas apresentando com orgulho sua pega teatral recém escrite e perto da qual ja se reiine wn grupinho entu - siasta para botar 'mdos na massa’. E conseqtentemente ao fazé-lo reafirmardo a proposta dos Dsi Croquettes. Mas, as condigdes veais de aplicagdo de novas atitudes e padrées profissionais em grande escala no merca~ do de trabalho brasileiro, como @ 0 desejo manifestado por muitos tietes ultrapassa os objetivos da pesquisa. As difi- culdades de reproduzir o sistema Dai Croquettes, pressentem -na os proprios téietes que se aplicaram a segui-lo ao pé da letra: ~ "Pode ser que algum dia fagamos algo senelhante, was an- tes de tudo @ necessario a infraestrutura", diz um tiete contando a formagdo de um grupo de danga 4 semelhanga dos Dai. Q@ndigdes econdmicas e sociais, sd obviamente fatores im- prescondiveis para aplicar essa “coisa inteligente e ao al- cance da mao" na expressdo de outra ttete. 0 discurso geral dos t¢etes aponta para uma série de simbo- los scciais extraidos do espet&culo e da sw convivéncia com os atores, Todes estes sImbolos denctan profuadamente suas normas e seus valores e as expectativas de utilizagdo pessoal imediata. Se nos abstivermos do que eles reivindicam ~ ser um individuo reconhecido, trabalhar em grupo, peder cumprir fungdes miltiplas, ter desempenhos profissionais ce conhecidos socialmente, poder fugir de certos padrées pr: 80. E alias foram os princIpios que levaram os eritos, etc. - ndo existe quase diferenga em rela aos va- loves dos Dz Dzi Croquettes a montar e produzir seu espetaculo. Ao perma necerem perto do grupo, ao repetir sua assisténcia eo espex thculo tietes véem a possibilidade de participar na produ = gdo simbdlica do espet&culo assim como se identificar mais ainda com os membros que integram o grupo. Com as devidas restrigées, @ 0 sonho que se realiza. 204 0 desvendamento das necessidades sociaie profundas, em situa gdes especiais,pelo tiete ~ crise de vida, crise com ° grupo, etc. - traduzen as diferengas fundamentais entre es- tes e os Dzi Croquettes. Diferengas estas que dizem sobre a insergdo dos tietes no contexto social mais amplo. Os Dzi Croquettes se realizam concretanente fazendo seu espetaculo. Os tietes, quando deixam de estar sob ’a asa protetora dos membros do grupo, seja por desgaste das relagdes, seja pela néo possibilidade material ou qualquer outra raz3o, confron tam-se uma vez mais com a realidade concreta da sociedade, onde suas reivindicagSes nao sio tidas eono imprescindtveis® Ao ndo encontrarem uma fSrmula de sucesso como os Dzi, os tietes, apesar desta experiéneia de conscientizacao sobreos jiimites de sua vida pessoal e profissional, reduzem seus de sejos de transgressdo a uma constante imitagdo e acompanha- 205 mento do grupo. 0 que ndo impede que mesmo suas mudangas su, tis de comportamento sejam vistas como agressio aos agentes sociais que procuram manter os padrdes vigentes, socialmen- te preseritos, criando situagSes conflitivas com sua familia, em seu emprego, etc. 0 exemplo do"movimento hippie’, sem divida, aponta nas entrelinhas que ,ao achavem um apoio e ao néo se verem tdo isolados como o presumian, 06 individnos tém tendéncia a consolidar ainda mais a novas normas procurando um veajuste na base da colocagao das suas veivindicagGes. 0s téetes insistem que se tem que "trabalhar, ao invés do que proclamavam os ‘hippies',porém reformulando essa nogdo. 0 que persiste do movimento hippie na escola dos Dzi Croquettes @ uma grande analogia ao nivel das normas gerais,aigumas até sendo reforgadas: viver em grupo, vestir- se pouco convencionalmente, sobreviver através de mercados de trabalho marginais, ete. Os propésitos, a realizagdo, o sucesso e a ades3o de um e- norme contingente de pessoas, levaram os Dzi, Croquettes,num primeiro momento - como veremos ~ a acharem que a proposta que tinham procurado como solugdo pare sii mesmos o sera tam bém para seu piiblico. f neste sentido que se reafirma conti, nuamente a representagdo que eles fazem sobre este piblico ao dizerem "o piiblico quer se divertir", Se o espet&culo sempre foi bem acolhido, a sua manutengdo no palco em diferentes cidades e paises criou-lhes sérios pro~ blenas ao longo de sua carreira teatral. Por mais que Vis ~ sem estes transtornos com humor, como "coisa a se aprender", a batalha continua os confrontou varias vezes com exigén - cias do contexto que ndo conseguian manipular & vontade (Cen sura, crises econdmicas, falta de piblico para o mercado teatral, ete.). Apés o primeiro ano de sucesso investiram o seu dinheiro e sous esforgos em vao num grupo de vinte mun lheres com a intengao de fazer a véplica do seu espetdculo em verso feminina, A Familia Dzi Croquettes se engrandecia. Mas o saldo da histdria foi trabalhar ym ano para cobrin as dividas nas quais se tinhan engajado. A lic&o ensinou-lhes a prudéncia de restringir e proteger o nimero de seus componentes ao seu nimero inicial. Sem estender-nos sobre a densidade dag relagdes sociais cria das entve eles, o que mantém através do tempo os atoves &@ o seu espetaculo na medida em que ele @ “livre”. Ora, es= ta liberdade @ concebida através de midancas cotidianas que entrelagam a vida com oe palco, isto @, a exploragdo perma- nente de discursos sociais diferentes e as suas muangas, e dentro destes a discussio dos conflitos que emanam do seu seio. Mas o que estimula a elaboracdo e abundancia de temas novos para o espetaculo ndo se singulariza somente no convi- vio cotidiano do grupo e dos tietes, mas o contato intermi~ tente com pessoas que dispoem de valores e normas sociais, em certa forma alheios aos que entre eles ja ecompartilham. Ora, @ na intromissdo continua de um piblico que se renova e fala sobre o espetdculo que enriquecem seu patriménio cultu ral eo alargam, de forma indireta, para problematicas que dizem respeito 4 sociedade mais complexa e global, Pelo contrario, @ de se perguntar se os atores vivessem de ma neira isolada conseguiviam multiplicar e manipuiar ao infini- to seus personagens e os quadros e se o espetdculo nao se esgotaria numa versdo mais simples? Sugere-se aqui nZo somen- te a necessidade para os Dzi da disposig#o de um piiblico poten cial ~ que manifesta interesse na condugde do espetdcule dian 207 riamente - como de um pilblico novo e variado para ampliar oo seu significado geral. © detathe que me induziu a estender-me sobre vma andlise de certo piblico @ a refiexdo sempre vepetida: "o piiblico ndo de ve entender nada", Esta opinido bem humorada teaduz o esforgo dos Dai na preservagdo da identidade do seu espetaculo e das caracteristicas da sua organizagdo social. Desnortear o pilbli co @ a tatica para nao entregar a “fdrmula magica" que prome~ tem aoiniciar o espetdculo, ao oferecerem um discurso ambiguo que absorve as reformulagSes constantes, e manter a exclusivi dade para eles mesmos. Entvetanto, a proposta do discurse so bee papéis sociais e sexuais e a jungo do cotidiano com ° paleo, 4 maneira do im&, recruta seguidores que quebram a distaneia inicial entre atores e piiblico. Os ttetes sdo parte da platéia que “entende" e decifra o cd. digo entremeado nos canais de expresso artistica, e ao fazé -lo aproximam-se da categoria Dzi Croquettes. Num certo sen- tido os t¢etss realizam uma aspiragao do grupo encaminhando seu espetaculo para uma proposta social que transborda os li. mites reduzidos do palco. Mas ao mesmo tempo a problematica do grupo, ao ser desvendada, passa a ser a do seu publico ou pelo menos especificamente de seus ttetes, sendo que ndo pas sa de uma utopia deles,a veproducgdo ao infinite de Dai Cro- quettes no mercado artistico da sociedade complexa. Servindo gomo catalizadoy de uma problematica insistentemente expres- sa pelo piblico jovem dessa época, os Dzi colocam no paleo as suas preocupagoes cotidianas. A influéneia desse piblico na trajetéria dessa pega e nas definigées do universo Dei @ o tema que explorarei om seguida. 208 NOTAS C1) Existe muita analogia entre o discourse sobre o aspetd- culo dos Ozi Croquettes e dos tietes e a "fofoca” uti~ iizada como elemento anaiftica por certos entrepélogos. Segundo Gluckman, M, (1963) Current of Anthropology, Val. 4, pg. 307-315, (1863) , a "fofoca” @ daterminada socialmente @ serve para man~ Gossip and Scandai"” sd. ter a "unidade moral # dos valores “de um "grupo". Ainda agrega ele que quanto mais as relagées s&e inti- mas, tanta mais a "fofoce" vai ser vista como insigni+ Ficante pare um mambro de fora, A partir deste panto Epstein, W. (1969) ."Gossip, Norms and Social Natwork” ed in Manchester University Press, 1969, desenvelve e Mitchell, C. "Sacial Network in Urban situations", idéia que o fate de poder elaborar um discursa sobre, "pequenos detalhes” @ um detector de distancia social entre indivfduoa. (2) ‘Sobre antecedentes histérices de adesdo do pdblice a propostas teatrais brasileiras, ver Schwarz, Rs (1969) "Cultura ¢ Polftica 1964-1969" in o Pai de Fe ilia_s outros estudes, Paz e Terra, T.J., 1975; Goldtader,s. (1977) Jeatro de Areng © Teatro Oficina ~ 0 Palftico 2 9 Revolucionfria - Tese de Mestrade em Cifnoia Polfti- sa, UNICAMP, 1877 (texte mimeografada). Revista Teatro - (3) 05 dadas provGem da converse com aproximadamente 5o informantes. (4) Pouca ateng&o os pesquisadores deram até agora sobre a maneira dos individuos verem eles mesmos suas car8ncias @ as varidvets que eles aanipulam. Em vex disso procu~ ram justificetivas determinadas pelos sistemas das cién eias que promavem, (5) As reflexiss dos tietes sobre suas opées preferéneias @ condigées reais de aplicagéo tem apoia no argumento cen tral de reflex8o ¢e O.Ianni sobre o comportamenta so- cial dos jovens.(1964), "0 Jovem Radical” in Soctolo- gia da Juventude I, Da América de Marx a América Latina Latina de Hoje, Zahar ed., ReJ+, 1968, Diz o autor "A conseténcia de altenagio do jovem, produatda muttas ve- zea quando ele apenas comega a desenvolver agdes a0 eiais ineventes a papéis de adultos ~ portanto insert— das no processo produbive ~ & = maneire pela qual so estruturados os elementos da situagSo (relagies entre os sujeites © as cristalizagdes de trabalho humonos re lacées de dapend$neia e dominecao; a descoberta das Ti mitagSes @ sentidos restrites abertos a atividade cria dor; conflito entre os valores universais, 0 semporta mento efetiva dos adultos e as exigéncias sactais do somportamento do jovem). & um momento da sootabtlidade produztdo por condigSes objetivas, atuats ¢ prospecti= vas" (1968:224), DZT_CROQUETTES (CONCLUSAO) "Os homans dotados de uma imaginagio desmedida precisam ter em troca essa grande faculdade po€tica: a de negar nosso universo e seus valores afin de agir sobre 8le com uma tranquili- dade soberana™, J.Genet, NOTRE+DAME~DES~FLEURS , 1951. VERSUS “adiamentos ‘ou ambigttidades sendo , aqui, possivelmente perigosos - 6 ent3o classificados, catalogados e colocados em seus devidos lugares nas prateleinas, Ou se oreferirem num computador" D.Lessing, THE SUMMER BEFORE THE OARK,1973. Guerra 3s classificagdes: o andrdgino? "Qual € essa mania de classifican?" Um Dai, "Dos rotulos que tentaram usar para elassificar as Dzi nenhum foi exato, Tnexato também nae foi", Dario Menezes, Oltima Hora, SP oy 12-8=74, Eclipse de fronteiras associadas (tradicionalmente) aos g3ne ros sexuais; irrupgZo de brilho, roupas e cores prolongando barbas, pelos: corpos masculinos; palavras, gestos, temas "assumidos e criticados" atormentando classificagdes usuais registraram um dos selos Stico ¢ estético dos Dzi, Na gama das propestas colocadas no espetdculo, a discussdo sobre es- teredtipo de papéis (ganeros) sexuais esta presente: sufici- entemente articulada para que a imprensa e o piiblico selecio nasse de preferéncia este tema como imagem de marca dos ate- res. Numa Epoca 2 contexto favoraveis para deselerozar con= ceitos e categorias sGcio-sexuais as respostas dos Dai assu- miviam o destino das perguntas que as pessoas reconhecian co. mo pertinentes. A audiéncia ergueria os atores como bastides da "Androginia" pouco apds o surgimento da vega nos palcos brasileiros (1972-1973): N&o obstante, objetos (promoteres?) desta repercussao0, os Dai o lamentam e em certa forma a ne- gam: “o tal do andrSgino vocé sabia que nao passa de waa uto, pla comercial?" (margo 1974), Esta questao* ,especffica, que eonfronta o reconhecimento do pilblico mais amplo com a pro- posta dos atores, se coloca e ag mesmo tempo vai ao encontro 5 : 50.2 dos problemas subjacentes a esta dissertagao. Por parte dos Dai, além das possibilidades de ter uma experiéneia teatral e de grupo, o espetdculo era também um ponto de partida para a refiexlo: "f claro que como autor bo tei nele todoe meus problemas (...) o homossexualismo era meu problema ..ara o problema dos outros também e tudo mun~ do achou Stimo. Nao era questo de fazer Travesti, Gay~Power nada disso, uma brincadeiva de teatro". Como resultado, a roblemas ensinou-os a enfrenta-los ("a consciancia de seus sunir") e, no caso, deles tirar partido: "nem que fosse um show de travesti". Se concretamente "travesti da dinheiro", no entanto, "tinha que ser wna coisa indefinida" j& que "ndo tem nada a ver fazer travesti com peito e tudo, a gente nao & mesmo mulher", Desvirtuando propositalmente as formas tradicionais de representagao artistica do género feito por homens, coaseguiriam confundir as fronteiras des demais es -- teredtipos sexuais conhecidos. A combinacdo desusada de rou- pas compondo seus personagens questionariam tanto o género eultivado do ‘travestit quanto o de thomem’ eo da ‘mulher? (nenelonando sd isso) invoeando, mas si mitaneamante, esca- pando de todas as representagdes e classificagSes utilizadas no Brasil at@ entdo. : Mesmo assim, a surprendente contraposigio de simbolos mascu- linos e femininos recorrentes no vestudrio, nos gestos, nos temas escolhidos levou a classificag#o de "andrSginos" aos atores, por um jornalista ao par da moda surgindo no estran- geivo. Era a manchete de uma reportagem sobre um ensaio dos Dzi anterior 4 estréia da pega na Boate Mr, Pujol (R.J. Nez. 1972). A veflexdo do reporter, o excelente acolhimento da pe ga pelo piblico, a adesdo as idéias veiculadas pelo espetacu lo por parte da juventude paulista ¢ camioca ajudardo os ato ves a assunir certa imagem e criar a seqliéncia - até entdo 210 inexistente ~ do dndrdgino, na Gpoca da passagem das boates para o teatro (S.P. maio 1973). A seqléncia do andrégino a- presentada como climax do espetdculo define o "andrdgino” come a soma de esséncias (algo inato) sexuais isto @ a "forga do macho e a graca da f8mea", simultaneamente esta colocagio & posta em diivida pela ironia, ow melhor, sugerindo que cada pessea faca o que quiser: em suma todos os indivfduos podem apropriar-se dos atributos associados as categorias genéni- cas, A falta de compromisso j& estava vesumida no entao = a> tual subt{tulo irénico da obra: "Andrégino: gente computeda igual a vec8", B, o seu diseurso, apesar da nova inclusao, continuava no se definindo dentre a epftica as categorias géneros sexuais ou a sua aceitagao tradicional em conjunto. Poram um ano mais tarde - 1974 -, entre os Dzi comega um pro 211 cesso de deterioramento do valor do quadro artistico do an~ drégino e seu significado, implicando na vontade de alguns atores em suprpim-lo, Agindo come contrapeso pela sua manu~ tengo, influfa o apego dos intérpretes do valé, a facilida- de de remontagen a cada estréia devida ao nilmero de somente trés bailarinos, sua forga @ beleza plastica no econjunto’ do espetdculo. Com a saida de dois membros do grupo que enfati gavam estes argumentos, além de serem os principais intérpre tes do quadro, foi que sa desencadecu coneretamente o abando no dessa seqUéncia (Bahia, Janeiro de 1976). Entretanto, no processo do tempo, devido a manipulag&o continua da pega - fo co desta tese - 0 quadro do Andrdgine tinha se visto desloca do do seu lugar central na obra deixando o lugar a outros te mas que tinham tomado precedéncia. Tanto a disposigdo de a- bandono ou a solugdo alternativa de deslocamento na diacro- nia da pega vespondia - como para sua criagio - a razdes de Indole diversa para os atores: a exposigao a mecanismos de oriagSo e dinmica do grupo; mas também o encaminhamento par ‘ticular e privilegiado no contexto da categoria em quest&o & expensas das demais encenadas; a perda da originalidade pela erescente difusdo, adocdo e discussdo de seu simbole e ima~ gem por diferentes Srgios sdcio-culturais tais como a impren sa, outros grupos teatrais, etc.; ¢, © gradual confinamento da palavra 'andrégino’ como uma simples alternativa do vova- bulirio da categoria 'homossexual'. Em suma, (como veremos) © apesar da postura dos atores, na aceitacdo da pega pelo pa blico geval, a palavra e categoria "indefinida" viu-se pouco a pouco “definida”. A margem dos atores, autores (produtores ete.) ou na proximt dade deles, determinado pelas normas e valores das pessoas em particular e (ou) pelos valores e investimentos ideoldgi. cos da Spoca em que vivem, a platéia interpreta, veelabora permeia, por sua conta, os conteiidos simbélicos das pegas que assistem. Depositarios do universo ~ cataértico ~ des Dai Croquettes, 0 pfiblico que nfo somente legitimou mas também inoculou id’ias, contribuiu, freou, guiou a produgdo do espe tdeulo, se engajou em especular sobre interpretagdes possf- veis da pega, outorgando~lhe uma dimensdo sécio-histdrico~con textual ndo prevista e aceita como tal pelos autores. Temos visto a jwprensa se debater para classificar o espetaculo (ef: 11-3); retomenos o que a audiéneia subtraiu da confuste de categorias séciossexuais na formulagao ambigua da’ pega. Quemcomo M. Douglas se preocupeu em analisar categorias ambi guas nos antecipa que as pessoas reagem a elas de varias ma- neiras. Por un lado: "negativamente, pode-se ignora-las, sim plesmente niio percebé-las; ou ainda percebé-las e ignora-las” 212 (1870:51). Dois comentarios irénicos, extrafdos de crfticas jornalisticas sobre a pega Dai Croquettes, resumem estas du- as posigdes. Aqui, “até mesmo papal e mamie, que voltam para casa fpustrados de ter visto pouco (sempre esperam mais dos “nanginais") e agradecidos a Deus pelos filhos bonitos que ten" > 3 14: "O respons&vel pela compra de ingressos pa va os alunos da Escola de ComunicagSes ficou apavorado. Quan do soube que iriam assistir "Dai Croquettes" cancelou as en- tradas e nfo permitiu que as alunas comparecessem para assis ‘tir a um dos melhores musicais j& apresentados em S80 Paus 4 lo", Por outro lado, ainda segundo a autora que usa propositalmen ale 3 . 5 5 uN te “anomalia" como sindnimo de "ambighidade s"bede+se enfrentar a anomalia positivamente e tentar elaborar waa no- se, HBo va orden de vealidade onde a anomalia poderia insert. fvel que um individuo faga uma revisdo de seu esque- na de classificagfo" (idem: 51). Poderfamos ilustrar a pri~ neiva parte da frase com outra referéncia jornalistica: "Ho- ans-mutheres dangando ao fasefnio-panico do piiblico pavlis- 5 . : = tano" } quanto a segunta parte, jA temos visto va~ yias influéncias dos Dzi sobre os ttetes e tambSm que a "ve~ respeito somente 4 pratica artist visio de esquema" nao di eat o “novo padr&o de realidade” tem guarida na expressdo "ga nhar uma nova eabega" como a oferecida go iniciar~se a pega e cujas conseqiiancias foram longamente analisadas (cf: III-8), No entanto, @ importante remarcar que 0 nivel social dos ato ves eo nfvei artistico antrelagades no mesmo plano discursi vo da pega ia contribuir para que um piblico muito mais aba cativo que os tietes, acolhessem a obra teatral como uma pro~ posta de ago. Funé@idas Rs preocupagSes préprias da Spora, 213 Ihe foi permitide que aflorasse publicamente. Por mais que que os Dzi se defendessem a tendéncia geral foi atribuir- lhes uma postura reivindicatéria de sua preferéncia e opc¢io sexual, identificando-os primeiro a um "Croguette Power"S com franca alus&o ao 'Gay-Power’ norteamericano, logo come "Apis 7 totos da Androginia®™. ' Na raiz deste efetivo, se bem que particular, sucesso da pe~ ca e dos autores, uma dupla suposigao - ao menos - tem de ser colocada, Por um lado se sabemos que os atores vertem no espetdculo seus "problemas", nem por isso sfo menos os "pro- blemas" de uma parcela de seu pithlico ou da populacdo mais ampla, na mesma @poca e no mesmo contexto. Isto j4 explica em parte a empatia imediata com as proposigées simbdlicas de euaho social da pega. Por outro lado, @ sensato acreditar que os sistemas de valores préprios aos Dzie também a varias pesscas que formarSo seu pfiblico, tinham anteriormente incor porado e permeado idéias e fatos do estrangeiro (veivindica~ qdes das chamadas 'minorias' na Europa e nos BUA) preparando um terreno favor&vel 4 recepgio da pega. Ne angulo destas consideragdes, o espetdculo Dzi Croquettes surgiu como um ca talizador deste enfoque da vealidade local, inaugurando am canal de expressio préprio que seria veaproveitado e intensi ficado, Logo apés e paralelamente 4 repercussdo da pega Dai Croquet~ tes espalha-se a moda da "androginia", pre’gcando um surto de informagao sobre pessoas estrangeiras - Mick Jagger, David Bowie, Alice Cooper e outros ~ e a consagragao de cantores e miisicos nacionais, como os Secos e Molhados dentacando Ney Matogrosso, Marla Alcina etc., e pegas teatrais cujas inarcas de apresentagao sao semelhantes: maquiagens fortes e 214 'grotescas! roupas imprevisiveis e gestos sexualmente intimi dantes para a platéia na Gpoca, Posto como alternativa as classificagdes séciosexuais conhe- cidas e definidas no Brasil, o “andrégino" disseminou-se tam bém ao nivel do pfiblico que acompanhava mais de perto a car reira dos Dzi, Muitos tietes dizem ter acreditade nas pro~ priedades desmistificadoras do que pudesse ser visto como "marginalizado", "tvansviado" e professavam a mesma identida de social autoclassificando-se como "andrSginos". Como defi nigZo iam de boa f@ na apresentada no espetaeulo: "8 isso af, a fonga do macho ¢ a graca da fémea", Simultaneamente, mas opondo=se a essa moda e rétulo que se espalha os D2i se esforgam em esclavecer sua posicio: "0s Dai Croquettes n#o sao representantes do Gay-Power, nem dos andréginos, nem dos homens, nem das mulheres, nem dos bran= cos, nem dos pretos, mas de todos. Porque ou a gente repre- ~ ~ B senta todos ou ent&e n&o representa nada" ” Em suma o " grito era para mostrar que tudo isso era simplesmente te". Este desafio dos atores is interpretagSes piiblicas fei- tas sobre seu trabalho provoca também questionamentes em al- guns de seus tictes, e vepdrteres: "Palvez nfo valha mais a pena, se & que um dia valeu, comentar os Dzi Croquettes em Gevlo Dal Croquettes cm 4 =, gn 9 passa a ser assim justamente o que nao é" . Mas a ne- ) 0 espe nivel puramente nacional (. cessidade dos Dai em esclarecer sua postura, a disparidade desta frente a comprensdo mais freqtiente do pfiblico nao @ re almente uma questao de “pacionalidade" mas de confronte com fatores conecretos subjacentes aos pp: sociais (histd~ pia, forma da sociedade, conjunturas etc.) que atuan com for gas de peso, conseguindo levar aderiva propostas determinadas 215 ou desviad-las de seu impulso inicial. Assim a “aceitagGo positiva" das propostas miiltiplas de trans gressdo existentes na pega (por exemplo no enquadramento nun estilo teatral conhecido, ete.) Se encaminha para certo pil- blico na diregdo Gnica da mensagem mais gritante; o questio- namento de categorias sécio-sexuais per se. Se coloca entSo © porque desta interpretagdo. Sobre a quest&o sexual, Fou- cault ressalta certos pontos tedricos que ainda nao tinham a flerado com tanta claridade. Suscintamente o autor — sugere que um dos mecanismos do capitalismo europeu - sobretudo a partir do s&culo XIX - se manifesta nao somente por uma gra- dativa repressio da sexualidade como além disso uma sub-rep- tfcia incitagao no discurso. Este @ dirigido mas, controlado, fundanentalmente por determinados setores: do dominio da I- greja (pelo menos desde o século XVET) passa @ Ciéncia, Psi- quiatria, Jurisprudéncia, Literatura etc. Suege, por exemplo, uma nomenclatura das sexualidade onde o interesse e as formu lagSes de diversas categorias sexuais consideradas "perver- sas se contrapdem e reforca a "sexualidade regulac"? A sexua, lidade 6 classificada, ordenada, destrinchada por aqueles s¢ tores piiblicos com limites de manifestagdo bem precisos. Des ta forma e segundo as palavras de Foucault, taedo o assunto lipado ao sexo passou a ser o grande "segredo” da socializa~ cdo dos individuos. Se pudermos utilizar estes conceitos no dade brasileira, voltemos ao assunto da disser marco da so tagio. Ter a cusadia de por a nu este "segredo" a maneira in @iscreta dos Dai, infringir os limites de forma contextual~ mente inusitada e fora dos padrées adequados as circunstan- cias (nao numa boate de ‘strip-tease! por ex.) sé podia res~ saltar aquela transgressao, para o pitblico. Resumindo, a dicional preserito (por SMemplo, manter relacSes sexuais en~ tre parcairos de sexo diferente, conservan 3 virgindade an- tee do casamento ou evitan relacdes extra-matrimoniais nO 0a So das mulheres, ete.) @ claro, 58 seria adotado peltag pes fas mais interessadas; alguns homens e mulheres conscienti- zados da pressao secial ou simplesmente Pop estarem do lado ruim do poder e do bom tom tradicional, Porém, Simultancanen te apés a divulgacio eserita ov ilustrada dog Dei na impren- sa = no entanto pré-ceusurades nas suas vestes teatrais, pe~ ja televisdo — mobilizou outro setor de bessoas, Equele indi cado Por Foucault. Supgiu um Datalh3o de profissionaig (ge- expresses artisticas Paralelas. Alguns dos profissionais es plgra fe). Nestes casos ag classificagSes eram taxativamente "big Sexualidade", "homossexualidadat Ber, OU NO estilo de wna i al rénica manchet t "quarto sexo 217 Entretanto e para continuar a breve exposigdo sobre o confi- namento do significado sdcio-simbdlico da pega, a vepercus- sdo denuncia que o ponto crucial para a platéia foi uma preo cupacéo com uma sexualidade - de preferéncia masculina - de- finida pela sociedade como centralmente "desviante” (Becker: 1963:14 vary Douglas j& nos previnia que a “cultura” ten- de imediatamente a “reduzir a ambigllidade ao adotar uma ou outra das interpretagdes possiveis" (1970: 52). A canaliza- gio para um suposto 'Gay~Power! sem diivida foi provocada pe- la presenga exclusiva de homens no palco; mas as mulheres po deriam ter cabido no seu discurso teatral. No mesmo episédio da “androginia" pecou-se freallentemente com outra "redugdo da ambigliidade" ao separa-la das "definigdes as quais a anomalia ndo se conforma" (M, Douglas, ibidem), Pa va definir os Dai eriaram-se expressdes como “Travesti sem bichisno" "travesti tgem cara de homossexual” ° A im prensa, 4s vezes, recorreu a essa tatica para apresentar os no", Me~ atores pelo menos até se difundir a palavra “andré; nos condescendentes consigo préprios @ mais conscientes das diferencas de classes, os Dzi ironizavam "no fundo, no fundo & tudo a mesma coisa: "travesti @ bicha de classe baixa, ago ra, andrégino @ filho de militar". Frente A reducdo da pri-~ meira redugdo, isto @, de um projeto mais amplo para uma te- mitica definida, de uma nova definicdo separando-a das exce= ges, os atores mantinham uma posigdo tao vaga ou tio abarea tiva como qualquer de suas afinmagdes: Yexistem muitas pala- vras (pava definir a categoria homossexual) porque as tontas n3o sabem que nico é para se dividir, impendo, dirigindo, se botando para c& de um esquema ou outro, Fu acho que @ falta de assumir também botar termos pejorativos nos outres quando 248 eles tem uma coisa que vocé também tem..no heterossexual n&o tem tantos termos. Mas tudo isso @ também terminologia anti- Ga. 0 fato de ter agora menos diferengas € que deve ter muda do a minha cabega", A fltima parte do depoimento insinua uma espécie de revisdo nos esquemas de produgdo de categorias séciossexuais 1°. Neste sentido os malabarismos da imprensa com as — palavras "travesti", “homossexual" quando referidos aos Dzi Cro- quettes interessam porque revelam simultaneamente os pressu- postos valores &tico-morais da imprensa vigentes no Brasil da década dos anos 79, assim como expdem as dificuldades em utilizar categorias. verbalizadas na literatura de massa e na imprensa fora das situagSes em que geralmente eram aplicadas. A terminologia "travesti" enraiza-se fundamentalmente pow meio da produgdo artistica-comercial considerada de segunda categoria ou excepcionalmente permissiva no carnaval. Enquan to "homossexualismo" & visto pelo Gngulo do sensacionalismo relacionado geraimente com o noticiaeio criminal ou a prosti tuigdo masculina, Assim ambos tratamentos, nesses vefeulos de comunicagio, visam quase sempre reificar a 'normalidade! dos padvSes preseritos vigentes numa sociedade impregnada pe lo 'machismo', No quadro da sexualidade "desviante" a difusao da terminolo- gia "andrdgino" foi cronolégico @ contextualmente o encami- nhamento para um desvendamento piblico de um discurso varia~ do sobre categorias sdciossexuais a nivel de certos setores da populag3o. A imprensa sempre avida para renovar-se apro- veitaria amplamente o fildo, Revistas como: Veja, Manchette, Ele e Ela dedicardo matérias sobre o assunto desloeando o es pago tradicionaimente exclusivo sobre a categoria masculina 218 e feminina: do “andrégino", que serviu como elo introdutério para abordar publicamente o tema (sem criar grandes constran gimentos aos leitores) posteriormente voltou-se a palavra "homossexual" (1973-74). Para outros setores da populag3o, informados pela divulgacio impfopria que dava maior peso ao sensacionalismo, 0 assunto passou como uma moda mais do que um motivo para reflexdes profundas sobre segregagdes e pre- conceitos. A irritagZo de um leitor do Jornal da Tarde (S.?.) a invasdo no teatro brasileiro, durante os anos 73 e 74 de pecas teatrais questionando a "horossexualidade" esclarece a desaprovagao de sem diivida grande nfimero de pessoas que nao conseguiram sensibilizar-se com a temftica particular; "nao estou pedindo a eriagdo de nemhum CCA (Comando de Caga & An- évoginia), pois estas eriangas tém 14 os seus direitos. 0 que nfo admito @ a confusdo que se faz entre intelectualida- de e homossexualidade; porque todo homossexual tem, obrigatg rigmenwede assumir uma atitude intelectual? Nao h4 um homos~ sexual que nao se considere artista e o teatro 0 lugar i- deal para essas palhagadas sem sim 15) Esta lamentdvel colocagio periga ainda reforgar seus funda- mentos tomando come alvo os que se orientam em falsas reivin dicagSes. Na medida em que as pessoas, segregadas por alguma vazdo estrutural (forma da sociedade, sistema de producao, histéria ete.) tentam reagir & discriminagao correm o risco, no entanto, de achar solugdes nem por isso despojadas de seus males criginais. As opgdes escolhidas para desviar-se da tradicional submiss3o sd conseguem, na maiopia dos casos, des lecar a questGo posto que transformam em sub-versSes (e nao subversSes) dos padrdes dominantes, Refletindo scbre a ques~ tdo J, Knisteva observa: "Até aqui se uma mulher tentaj 226 fazer-se notar, ela nfo tem senZo, grosso modo, duas alterna tivast seja identificar-se ao poder (revindicacio viril,"ser como as homend), seja tornar-se desviante (vevoltada ou cor= po calado, doente, conforme sua capacidade de dialetizar sua estranhesa em relago 4 ordem" (1974: 224). Esta afirmagSo feita a partir de uma andlise da situagZo da mulher @ em se~ guida, generalizada, pela propria autora: "Mas pode ser, an- tes de descobrirmos que & muito tarde, que nemo Ho- nem nem a Mulher existem ou tem a necessidade um do outro, Que todo sujeito deve manter-se numa instancia abstracta, sim bélica se quisermos, que nfo @ obrigatoriamente seu compa~ nheiro sexual, seu psicanalista, nem seu Partido mas uma pra ttea soctal: polftica, estética, cientifica" (ibidem). Eis uma concepgao do mundo original e otimista frente a conturba da sociedade atual repleta de labirintieas perspectivas e so lugSes. Mas podemos concluir que a pratica sociale teatral dos Dzi aproxima-se am parte a esta visSo? Qs atores se limitavam antes de tudo a sua realidade social como grupo @ este composto sd de homens. Assim sem diivida perderam a primeira chance de mergulhar na prefundidade da reflexdo de J. Kristeva ao nao se decidirem categoricamente por incluir mulheres no séu elenco, naquela pela teatral. Mas, por alguma ironia esta falta de disposigZo (como no caso das Dai Croquettas) foi um tema tdo persistente e inacabado de suas relagdes internas, perseguindo-os ao longo de seu histd tied. 0 equfvoco analftico seria procurar nés Dai uma inten- gao de movimento social quando eles nao acenavam para tal i- dentificagio. Suas preocupagdes essenciais ndo se apegavam a uma linha de Lidevanga humanitaria, polftica ou revolucion’- ria em sentido estrito, Elas se acionavam primeiro sobre a 221 iiberagdo de suas potencialidades como pessoas abaladas pe- los valores antagdnicos da época e contexto que lhes cabia. No entanto, @ noe limites deste marco impressionista que a- cha-se a perplexidade do observador ao descobrir o ° brilho deste universo suspenso em fragilidades e mesmo, As vezes, a tivando respostas pouco s6lidas, Talvez o impacto da propos- ta Dzi reside na faculdade de desdobrar seus significados so ciais para as mais diversas plat@ias e a capacidade de seus autores em antecipar os confinamentos que os sufocariam. Enquanto pradtica social, a jungio de diferentes niveis de re presentagao no projeto do grupo ~ formag3o do grupo em si,ir vupgao de possibilidades alternativas de expressio e traba~ lho, etc. - e sua conseqiiente pratica favoreceu, por exemplo, o desabrochar da postura especifica adotada pelo conjunto dos componentes: “assumir a transa sexual". Neste particular nfo havia realmente wna ruptura com wa modelo de comvortemen to anterior, Pelo contrario era um pento comum a todos eles, @ foi por esta afir idade que se conheceram entre si. A sudan ga veal foi “assumir a transa sexual" publicamente concate- nando vesultados imediatos. Significou a imtegracdo de diver sas esferas - fundamentalmente as Sreas de trabalho e la- zer - que se viam ou viviam de maneira sepavada (da mesma ma neira que a maioria das pessoas em semelhante condigdo so- cial e/ou moral} devido aos constrangimentos ou a marginali+ zagZo provocada pela prefer$ncia sexual de conotage social negativa v7 . Significou a concentragZo num grupo de “tres geragdes de pessoas" (tendo em conta a difevenga de guase vinte anos entye alguns deles) tornando préspera a ava liagdo e reformulagdo continua de valores e costumes. 0 su- cesso aliande-se, significou a confianga na férnmla adotada 222 como campo de ag&o positivo e certa independ&ncia econdmica. Pela contribuigio destes iltimos fatores, esta pratica - co- mo quase todas as formuladas no projete ~ viu-se favoravel~ mente recompensada. Isto aponta para as razdes basicas que invalidam a crenga de que @ suficiente um pequeno niimerc de pessoas "assumirem" e adotarem novas atitudes @ticas para se pultar ~ ao nivel de suas relagdes sociais ou da sociedade mais ampla - seus diversos problemas, alias como aqueles in- tyinsecos a prdtica sexual apontada.(o enfrentamento aos pre coneeites) no particular era, para os Dzi, tio mais eficaz quanto mais apoio de seu piblico, de seus tietes, Mas inevi- tavelmente aqui também os benefIcios véem-se falseados quan- do nos afastamos deste ofroulo (de apoio miittuo) privilegiado ou o comparamos a outros setores da populag%o menos favoreci dos para postularem as mesmas reivindicagdes naquela época, 223 Nem com as vantagens adquiridas porém, os Dai se preocupavam muito em reabilitar sua identidade social & maneira tradicig nal, aspirando novo status, papel ou reconhecimento social camuflando antigos estigmas. A figura ¢ representag&o do "an drégino" parece mais ter sido um acidente nas suas propostas. A recusa da reificagdo da identidade sdciossexual nao reside somente na aurea irGnica que destinavam aquela imagem simbé- lica como fundamentalmente na constatagio que resistiam a qualquer confinamento, A transgressZo a certa ortodoxia ja se assinalava nas préprias caracterfsticas sociais dos compo, nentes de grupo, atravessando indistintamente os compartimen tos classicos de idades, ocupagdo anterior, origem gon cial ete.; e 0 salto inicial se sustentaria ainda evitando cireunscrever-se numa determinada categoria teatral, profis- sional ou inclusive de vegras estritas para o funcionamento interno do grupo. A caréneia da necessidade de teorizar suas propostas, enqua- drar suas respostas, definir-se como agentes sociais de uma eerta linha parece ter achado safda na instituicao da pega que conseguia consumir os excessos, disparidades e contradi~ gSes. Articulado principalmente na ambigttidade, o espetdculo dava margem 3s manipulagdes continuas que absorviam a prati- ca social, Esta respondia a varias necessidades que tanto po diam ser a expectativa de satisfazer ou, em caso necessario, enfrentar a regular aceitacdo de sua platéia, a imprensa, o3 diretores de teatro ou empresdrios de ocasiao, quanto a de manter ativa as aspiracSes de cada ator confrontadas com as condigées (psiquicas, sdcio-econdmicas, ete,) vividas momen- taneamente pelo grupo decorrente do impacto continuo destas influéncias e as vantagens e desvantagens em tirar-lhe parti 228 do. 0 saldo desta harmonia desvendou-se no processo histérico da pega um deslocamento na ordem de produg&o das seqliiéncias res saltando certos sfmbolos e categorias de discussao a despei- to de outras representadas simultaneamente, ou anteriormente. Como guia cronolégico dos diferentes cunhos simbélicos ser~ vem~nos somente os sub-titulos anexados ao nome da obra no fio do tempo posto que de fato as mudangas eram cotidianas. © ponto de partida foi o "Underground", ou seja, a proposta anticonvencional de teatro (R.J. 1972~73). Seguiu-lhe a épo~ ca de “Andrégino: gente computada igual a voce" (8.P. 1973). Na medida em que lideravam um movimento para uma parcela da juventude paulista e carioca, destacou-se a id@ia de Dai Pa> milia Croguettes coincidindo com a organizagdo do grupo tea- tral feminino (fin de 1973-1974). 0 lado folelérico e¢ 0 veconhecimento das rafzes de seus autores sobressai na Euro- pa ondé se apresentam como Troupe Brasilienne (1975), E, vol tando para o Brasil, j& representapiam para o piblico poten- cial os seus seguidores um estflo particular de teatro que pelos antecedentes do trabalho em varios contextos, tinha su perado definitivamente a moda local passageira do "Andrégi- no" (1976), Se o princfpio de manipulag&o da peca sempre esteve permeado de férmulas puramente teatrais e/ou comerciais delatando a dose de oportunismo dos seus autores-atores, o que questiona este efeito sGo dois aspectos da composicdo intencionalmente preservados: "falar de tudo e de nada" e "no revelar tudo ao espectador para que ele possa também curtir encima". fino tema, to ambiguo quanto as formas que o sustentam e na previsio da manipulagdo e re-ordenagio das imagens e simbo- les sécio~culturais por eles mesmos e por seu piiblico, que ndo semente afastavam seu teatro da produgdo meramente comer cial, como se desenha nitidamente © verdadeiro mundo dos Dzi Croquettes. A caracteristica de todos os temas do espetdculo, ainda que sejam de espéeies diversas, @ terem seus significados dire- tos sempre distanciados de qualquer veferente imediato ou de peso no contexto onde os atores estao momentaneamente inseri dos. Alguns deles tem a particularidade de nao ter um conced to local claro como “andrégino” e sua simbologia na @poea da gua encenacko inicial. Outros, pelo contrério, no se pren- ficagio abar= dem a conteiides precisos por ja tere cativa para uma pareela grande da populagdo. Esta série a brange a utilizagSo da imagem de estrelas cinematogrificas 225 como Marylin Monroe, Marlene Dietrich, Carmen Miranda eta. Ao mesmo tempo sfo esteredtipos inexistentes na vida real - senSo produtos da indiistria cultural - como formas desgas- tadas pelo uso recorrente dos meios de comunicagio de massa. Neste sentido pertencem tanto aos filmes, como a programas de 'auditério' ou as figuras reprisadas especificamente nos chamados "show de travesti". Finalmente, ha temas da pega Dzi Croquettes que de certa maneira recobrem os dois vequisi tos anteriores, Sdo lugar comum por seu contefide preciso am plamente difundido mas que por um prosesso de transgressio ou deformagdo de seu significado primeiro adquirem outra di- menso. Seria o caso do conceito de fami2ia, na composig#o classica de pat, mie, fithas etc., mas cujos papéis sao pre- anchidos exclusivamente por sujeitos masculinos. 0 empobrecimento dos sistemas prévios de referéncia contex- tual denota a presounagko de seus autores em utilizar sua pe ga como vefculo permanente de id@ias novas e renovaveis. A convengao € poder atribuir conteiidos miltiplos e diferentes a qualquer sistema formal ¢ conseqlientemente eliminarso es- tes quando destruirem a qualidade da praxis, 0 esforgo vai estar sempre ligado a manuteng4o das possibilidades de refor mulagdo mais que a preservagdo dos temas em si mesmos. Como @ um propSsito b&sico, a ideologia do grupo § também uma pre eaugio que se reatualiza no processo histérico que eles vi- vem ou nos seus deslocamentos em contextos diferentes. Para poder fugir de pressupostos sociais que dificultariam ou anulariam o debate, corta~se a raiz dos valores, atitudes, regras de conduta que mesmo representadas teatralmente pode riam apresentar-se como verdades, Reciprocamente, ainda se no espet&culo s3o ditas grandes verdades “elas sao feitas 226 no tom de bpincadeira" ou seja, eponta~se o lado fingido pa~ va resguardar-se que sejam tidas como posturas determinadas que modificariam sua proposta. 0 engajamento real esta na critica de diversos pontos contro versos da cultura sociai nos niveis do conhecimento que es— +o segundo eles "presos a regras de valores que nao deixam a gente se expandir" ou seja, uma contestagHo ao nivel das convengSes sociais se bem que haja uma certa negligéncia em delinear ou aprofundar o conhecimento des fatores que histo-~ picamente determinam essas regras sécio-culturais. Alguns Dai vem esta quest&o com indiferenga, para outros trata-se de uma proposta: "A gente vai pirar a cabega das pessoas pam va depois propor o que? Primeiro nfo se pode falar o que se quiser. A gente ja luta para sobreviver com nosso show. Sen gundo, eu pessoalmente falo tudo o que et puder cada dia ¢ entende quem quiser" (fevereire 1976). Em termos gerais e por consenso vao resistir ao que se atribui o direito de classi- ficar ou induz a tipos de comportamentos especificos, Do mes mo modo no pretendem "dar mensagens", isto &, moral Bs esté vias que representam e se indignam de quem tire tais conclu- sdes. Mas 0 esvaziamento voluntario de conteiido imediato e a pre- tenso de que cada pessoa do grupo ou da platéia tire suas préprias conclusdes nfo impediu que a pega fosse — portadora de significados - em parte filtrados pela ‘ppépria eleig&o dos temas ou sua énfase recorrente ~ que pela operagdo do comple xo histérico e contextual adquiriam seu peso. Alguns foram localmente mancantes, outros foram peneiras de trans forma- odes miltiplas mas sutfs. 227 Querendo ou nJo, a ousadia dos Dai, seus paetés, plumas, flo- res e purpurinas tiveram um impacto que foi muite além da proposta aparentemente descomprometida do grupo e cujos efei- tos chegam até hoje, repostos e transmutados no trabalho de Lampigo, do grupo Somos. 0 confronto com uma dada experi€ncia social € o ponto de par tida dos grupos de vanguarda teatral brasileiros das idltimas décadas, Diretamente polf{tico, assumindo wma postura didatica, o Arena d& sua resposta ao governo militar instalado no pas a partir de 1964, dando voz, a camadas sociais que nao t8m acesso ao teatro, De origem semelhante, o Oficina se opSe a forma did&tica e visa outros grupos sociais: caricatura e agride a burguesia espectadora, No auge de suas carreivas tea trais, as suas téndéncias sao contemporaneas entre si, e como 228 o foram do Tropicalismo, Todas estas expressées artisticas so frergo as vicissitudes do imediato pds 68. 86 muito lentamente & que vao sendo descobertas as brechas na muraiha que foi construida para conter esse tipo de mani~ festag&o, Caetano Veloso, Chico, Gil apreendem a contornar os obstaculos, Os Dzi Croquettes estouram na forte crise teatral que abalava o mercado brasileiro em 1973 e um ano depois eram censurados por recitar versos patriéticos ensina- dos s criangas, Algumas reformas no espetaculo e foram nova- mente liberados, 0 disfarce, o enfeite, a artimanha, foram os meios para abrir um novo discurso teatral que acabou ser ~ vindo de caminho para certos grupos que se sentiam limitados pela forga. Um grupo como as Frenéticas - onde participam Dai Croquettas d'"As Fadas do Apocalipse" - €@ uma de suas expres~ sdes mais visiveis., Esse deslocamento do conteiido para a for- ma - uma forma ainda n3o decodificavel - constitul a fraqueza do grupo e ao mesmo tempo lhe deu a possibilidade de falar. {Aeabaut) Poseriptum A desintegragao do grupo Dzi Croquettes inictal significou a incorporagda de novos componentes e, no tempo, resultou na sub divisGo em novos grupos, novos trabathos, De fato o8 Dat eriaram una verdadeira escola de vida e teatro que se bem em parte esquectda localmente se eapressa de maneiva tninterrup~ ta até hoje, prinetpalmente na Europa. Romance, Amuse-Gueueles, Speakearines (l'affatre Pétrin S'épatestt..), um retrospecti- va da vida e do teatro de Lannie, $tupidas e&o os nomee de pegas que continuam a carretra teatral do grupo. 0 que impede selar a experténeta inietal que deserevenos & 0 fato de que, apesan dos diverses grupos estarem separados ~ uns moran na By ropa, outros nog U.S.A., outros no Brasil ~ ¢ trabalharen ca- da um nas suas cotsas,néo detzam de se comuntoar intermttente mente de maneira direta ou indiveta. Hoje as faegdes se defi- nem - como antigamente pelos eamarins e domteilios eireunstan etais - pela localizagdo geogrdfiea de eada individuo, se ali- nhando de um lado ow de outro no ritmo de sua grande mobilidg de espacial, Sodas as resolugdes das partes tem um fundo de in centivo para os outros, Resuminds, todos éles vivem como se al, gua dia aquelte espetdculos Dat Croquettes pudesse ser ressus~ citado. 229 (1) Alguma palevra tem de ser dita sobre a histéria do termo andrégine e os perigos que implica seu use como categoria social referente a sexualidade. A origem da palavra andréginc acha-se na mitologla gre ga. Plato na sua obra 0 Sanguete nos dd sua verso . Inicialmente existiam trés espécies de homens: a nacho, 2 fmea © outra composte com as caraéterfsticas das duas primeiras chamada de andrégina. Todas as espacies eram seres de formas redondas, com quatro bragos, qua tro pernes e dois rostos.numa cabega sd, Por castiga de Zeus todas as espécies foram divididas em duas partes, © a partir de ents cada uma procura aus outra metadar "Tous les hommes qui sont une moitié do ce composé dos deux sexes que i’on appelait andragyne aiment les Fem- mes (..J; de m&me toutes les Femmes qui eiment los a hommes (..J. Mais teutes celles qui ont une moit de Femme ne prétent aucune attention aux hommes, elles préférent s'adrasser aux Femmes (4. Ceux qui ont une moitié male s'attachent aux m&les (4..) et dis sant parmi les enfants et les jeunes gargons les meilleurs, parcequ'ils sont les plus males de nature” (Tradug. Ee Chambry; 1994:51), A imagem do andrégino como ser completo tendo as can racterfsticas de g3nero e dos papSis sdcio-sexuais atch, buidas 3s categarias masculines @ feminines foi reite- radamente cultivads por eseriteres come Anais Nin Jour- nel 1931-3934, Stock/Srodard et Taupin Paric 1966 . Antonin Artoud 1938 "Le Thédtre st son Jouble, Galli - mard/Idéas Saint Armand, 196438 principelmente por Virginia Wolf, que eleborou a partir dessa idéia seu belfssimo romance Qrlends (Nova Fronteira, Rio de Jja- neiro 1979) cuja personagem intemporal & parte de sua vida homem, parte mulher. Mas a categoria que @ tratada alf como um simbolo de negagéo da determinismos sociais fet, na mesma Spaca = nas primeiras décadas deste século - utilizada pera ela borar teordas francamente racistes como a preposta por Spiess segundo o relate de um de seus seguidoras : Estéve, Le 19Z27"LtEnige de i'Androsyne™, ade André Delpeuch, Paris, 2927 ~ por exemplo,afirmava: "Au sein d'un méme Stre nous avons 1*hermaphrodisma double, ia "bisexualité asexusile ou psychique", 1° androgynat axiomatique du Zahar, pour qui, seul mérite le nom d’homme absolu, ou intégral ("ethno~ Psycho-sexuei"), l'individu réunissant en sa personne comme l'enfant chez qui se confandent, los principas masculins et féminins Lthomme est réellement plus humain que la femma,cette préeminance reflfte sa double constitution sexuelle”. (1927:63), Observemos que do relate de Piat&o a Spiess hd uma derivagao nos referentes da definicSa. Neste contexto c¥andréginov o ser que compartilha es piritualments as caracterfsticas tradicionalmente im- putadas a cade sexo ambas tendo como baliza o sexe mas culino. Mas a utilizagio de classificagées sociaissé pode ser entendida no contexto particular em que s&e ubilizadas, 0 exemplo da apolagia doondrégino por Spiess, postura radical @ intransigente, faz sentido se nos remetermos a Foucault (La Volonté de Savoir, Gallimard, Paris, 1976) Segundo ele, um dos mecanismas do capitalisme europeu Ro sdculo XIX agia per meio de uma reprassfo crescante sotre o sexo mas tambim através de uma maior discussSo Cporém controlavel) sobre 0 assunto. Esse discurso nag eido no dom{nio da igreja (pelo menos desde a século XVII) passa pela ei@neia, psiquiatris, jurisprudancia, etc.. 0 resultado 6 uma proliferegdo na nomenclatura das sexualidedea em que o interesse e as formulagdes de diversas categories sexusis consideradas “perver- sas" tem coma referente o que & considsrado a "sexua lidade regular” Em cases particulares (como o de Spiess 8 seguidores) as consequancias deste fendmeno sécio-politico se ex- pressam através de reivindicagdes de legitimidade par parte dos egentes sociais que sfc ou se acham desgua- lificades dos padrées saciais dominantes, E ainda coma Fouceult o aponta, as formulagdes cada vez mais aspeeializados no assunto ou sublimogdes se enfrentam com uma contradigao insoldvel: ao mesmo tem po que desenhem suas proprigdedes, determinam seus préprios limites, Generalizande asta questo e numa C2) Cal 4) C5) vis3o mais ampla que diz respeito ao processo histérd co curcpeu, Foucault constata "1*homosexualité est apparue comma une de figures de la sexuslité lorqu'elle a été rabattue de la pratique de la sodomie sur une sorte d'androgynie intérieure, un hermaphroditisme de l'amea. Le sodomite Stait um relaps, L'homosexuai ost maintenant une espace" (1967:59). Nesta parte da dissertagaa, vou considerar a ‘imprense como uma categoria de piblico. Gevemos ter cuidado nessa utilizes da imprensa, lem~ brando que as afirmagdes af feitas partem de pressupos tos que definem o piblice/leitor. Como bem lembra E.Be si sistema que nfo se erticula a partir do consumidor (ne "a indistria cultural, como toda indistria, @ um caso, a partir das relagSes concretas entre os homens na sasiedade), mas em fung3o de um piiblico-massa, abs trato, porque homog&nea, nivelado a priori pelas insti tuigSes que produzem e difundem as mensagens® (citeda, 1972:49}, Shopoing News City, S80 Paulo, 14-a- Triguerinho, R 1s74. Viana, He: Didrig da Noite, S40 Peulo, 29/6/1973, “E apologize for using anomaly and ambiguity as if they were synonymous, Strictly they are not: an onemaly is an glament which does not fit a given set or series 3 ambiguity is a character of statements capable of two interpretations. But reflection on examples shows that there is vary little advantage in distinguishing between these two terms in their practical aplication. Treacle is neither liquid nar solid; it could be said to give an ambiguous sense-impression. We can also say that treacie is anomalous in the classification of liquids and solids, being in neither one nor other set"(idem + sl). Maciel, E.A. Diario de Saura, 13-5-73. Dias, M. Veja, Sao Paulo, 14-2-72. R.A.P.0., Folha de_$3a Paulo, S30 Paulo 2-08-73, ca) oo) aly a2) Triguerinha, Re: Shopping News City, S40 Paulo, 16-8-74, Em termos de jurisprudéncia, uma pesquisa sobre a moni- pulagSo jurfdica de papéis sexuais no contexto brasilei ro aponta no masmo sentido - pera uma execerbagéo de de talhes corrigueiros e a priori n3o definfveis sexualmen te mas cuja utilizag&o conjunta serve afinal para de~ sembiguizar as ages das pessoas, caracterizando-as co~ mo masculinas cu femininas em terms quase absolutos ~ (Mariza Corréa, Os Atos e os Autos, representagées ju- ridicas de papéis sexuais.Universidade Estadual de Campinas, mimea, 1975}, Pode ser interessante apontar © fate de gue a autora mostra, em sua andlise dos casos de mulheres levadas a julgamente, que a mulher @ quem foi atribufda a pona mais alta ora justamante uma figure ambigua, que nSo pede sar exatamente enguadreda numa definigSo masculina ou feminina, “Comportamento” in Yaja, SAo Paulo, 1-5-1974, Sagundo Becker, H. (196 Sociology af Deviance, The Free Press of Glencoe, : : Outsiders, Study in the Collier factillan Ltd-London, 1963):"seme people may object that is merely quibble, that one can, after all, define terms any wey he wants to and that if some people want to speak of rule-breaking behaviour as deviant without reference to the reactions of others they are free to do so, Yet it may be worthwhile ta refer to such behaviour as ruling-breaking behaviour nd reserve the term deviant for those segment of socisty-I do not insist that this-usage be followed . But it should be clear that insofar as a scientist uses "devient" to refer to oly rule-breaking behaviour and takes as his subject of study only those who have been labelled deviant, he will be hampered by disparities between the two categories: If we take as the object of our attention behavicur which comas to be labelled as deviant, we must recognize that we cannot know whether a given act will be cotegorized os deviant until the response of others has occurred, itself, Deviance ia not a quality that lies in beheviour but in the interaction between ths person who commits . » an act those who respond to it. (13) Savah, Ast Rotetro, Sao Paulo, 19-5-73, (14) Giba Um: Ultima Hora, S40 Paulo, 1-7-735 {15] € essencial indicar que a terminologia "homossexual" @ utilizada como forma de generalizar a-priori pera clas sificar formas alternatives da prdtica sexual masculi~ na gue nSq se adequam aos valores e padrdes prescritos, numa linguagem pretensamente destituida de pregsupostes valorativos. As rassalvas fundamentais so duas. Por um lado esta 6 geralmante a terminologia de médicos, psiquiatras jornalistas, sociélogos, antrapdlegos, etc, Ora, a maioria de astudos tedricos que atordam a tema mal canseguam no raciccinio.sobrepassar o formato elinise estabelecido por seus priprios autores (*doenga malia’, ’desajusta’ ete.), Por eutro lado, como P. Fry aponta "o termo homossexual 6 raromente usado no Brasil fera dos eircules de clas- se média o intelectual”. (Mediunidade e sexualidade in Religizc e Sociedade a? Ll, 1977). M.MeIntosh (1968: "The Human Sexual Role” in Gell, RoR. and Gordan, M. The Social Dimension of Human Sexuatity, Little Brown end cia, Boston, 1972) aponta qua os te: Ficos confundem frequentements a relago sexual com o papel sexual, isto & g30 negativa, uma identidade secial de cenota~ A partir de uma leitura cuidadosa do RelatGrio Kinsey, em outro trebalho P.Fry (1976 "Mudanga na Construgio Social da Sexualidade Masculina no Brasil” comunica- Gao ao XVIII Encontro de S.6,P.C., 1978) levanta um pohto assencial esquecido pela maioria dos pesquisade res que o leram ov 0 citam. Ele indica que o autor u- sa a palavra “homossexual" como um adjetiva e n&o co~ mo ume categoria sociosexual, Este percepgao faz que Fry consiga ir mais ao funde da questo da construg&a das categories peles préprios agentes vociais, Embora os componentes do grupo que estuded resistam ao en- Qe) quadramento em categorias sociais definidas, acho re lJevante lembrar como alas so formuladas no Brasil. Fry (1976 } analisande a quest&e indica pelo menos trés possibilidades de formagae de sistemas taxondmicos re- ferentes @ sexualidade masculina no Brasil. Um primet- ro tipo seria daqueles sistemas que se beseiam no pa- pel desempenhado pelos parceiros durante a relagéo se- xual. Gs termos correspondantes seriam “papel da homem"/ "papel de bicha", “ativo”/"passivo"” ou numa exprassao comum "quem come" @ "quem dé". 0 papel de homem, senda ative € independent do parceiro, ficando estigmatiza~ do 9 parceire que dasempanha um papel semelhante ao da mulher. 0 autor localiza este sistema sobretude no Nor te e@ Nordeste do pafs entre as classes operdrias. Um segundo tipe & o daqueles sistemas que tomam camo ponto de refer&ncia 6 sexo dos parcmiros. U papel da homam sst& relacionado exclusivamente aos neterossexuais enguanto individuas masculinos que mantem relagdes da meeme sexo ou de ambos os sexas, os quais recsberde una classificagas especffica (conforme o autor ‘entendidos") Eate seria um tipo moderna de classificagao eotre pessoas da classe médie e se situaria nos grandes cen= tros urbanas. Finaimente, um terceiro sistema que agru- pa os critérios de classificagSo dos dais anteriores a- tingindo por isso uma classificagéo maior. Este fenéme no & possivel localizar nes grandes cidades, abrangando uma populagdo maior qua os sistemas pracedentes resul = tando numa multiplicagée tanto de critérios classifica~ trios quanto de designagées para as preferéncias se- xuais dos individuos masculinos: bicha, bofe, gilette, ndria , viedo etc. Jornal de Tarda, S.P., 9/8/74, 0 comentario do leitar vém como respostas a um artigo intitulado "Nossa Po- bre Androginia” publicado no mesmo jornal em dias anteriores, Seu auter, o erftice teatral Sébato Magal- di, contate que “A Gnica preacupagéo e o dnico proble- ma do pafs @ a homossaxualismo" bassando sua reflexao no surgimente quase simultSneo de pagas tratando o assunto: “Ladie na Madrugeda” na esteira dos Dzi Cro- quettes traz implf¢ita a mesma quest&o; Greta Garbo , a7) Quem Diria, Agabou no Trajé tem como protagonista um homossexual que gostaria de identificar-se como mito cinematogrdficos 9 Que Voc& Yai Ser Quando Crescer? sa tiriza @ a0 mesmo tempo assume o problema ao ligé-lo & Imagem popular da gente de teatro: Oh? Gabriel, Ga- briel a certa altura pée o protagonista em travastt + Orguestra de Senhoristas serd interpretada por hamenss e tanto Lulu quante Entre Quatro Paredes epressntam ho mossexuais entre 2s personagens" (Jornal da Tarde - 6/9/74, 3.Pede Algumas profissdes vistas como partencentes 3 asfore feminina, quando desempenhadas gor homens trazem cono~ tagées negativas, como a de cabslereiro, manequim, cos tureiro, eto. Evitendo esata carga de proconceitos, a maioria dos indivfduos com compartamenta sexual chama de "desviante® se vem constrangidas a separor cutdade semente seus universos de atuag3e social (por exemplo, lazer/trabalhol. Veja-se a drama@tica situago vivida pela rede de rela- etonaments social estudada por Carmem Guimardes (1977. O homossaxualismo visto por entendidos , tese de mas- trade, em Antropologia - Universidads Federal do Rio de Janeiro). BIBLIOGRAFIA Abrams, P. @ MeCulloch A. (1975) Comunes, Sociology and Soctety, Cambridge University Press, Cambridge, 1876. 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