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TRÁFICO ILEGAL DE AFRICANOS E CONEXÕES INTERPROVINCIAIS1.

Walter Luiz C de M Pereira2

O tema proposto faz parte de um estudo, em fase inicial, sobre o tráfico ilegal de africanos no litoral
norte fluminense, mais precisamente, pela possibilidade de identificar os principais agentes envolvidos no
comércio ilegal e suas ramificações com outras regiões limítrofes ao norte da Província do Rio de Janeiro,
como o sul do Espírito Santo e regiões da Zona da Mata mineira, fronteiras abertas à integração regional.
Partimos do pressuposto de que havia uma acentuada conexão entre essas regiões revelada pelos anos de
ilegalidade do tráfico pós-50. O que desejamos propor é que o forte impacto causado pela expansão da
economia cafeeira em Minas Gerais, associada à produção para o mercado interno, ganhou contornos em
áreas adjacentes das províncias limítrofes, fato que coincide com a proibição do tráfico de escravos e o
conseqüente aumento de desembarques de africanos na região litorânea fluminense e capixaba, na tentativa
de suprir tais províncias de mão de obra cativa, não obstante a magnitude que assume o tráfico
interprovincial. Tal dimensão permite, portanto, ampliar a integração entre essas regiões e, por conseguinte
os conflitos locais que chegaram a desaguar em uma proposição para constituição de uma nova província no
Império, a partir de um projeto elaborado pela Câmara Municipal de Campos.

Os negócios do tráfico de africanos para o Brasil, nos anos seguintes a Lei Eusébio de Queiroz, ainda
esperam por uma contribuição maior da historiografia. 3 No Rio de Janeiro, abalados com o cerco, traficantes
e negreiros promoveram escapadas ao contínuo mar fluminense até alcançarem a Província do Espírito
Santo, percorrendo das proximidades de Campos até as barras dos rios Itabapoana e Itapemirim,
beneficiando-se do grande vazio demográfico que se apresentava naquele “poroso litoral”, ou da solidão e da
penumbra de praias afastadas, como diria João Oscar 4. Cabe ressaltar que a Província do Espírito Santo, em
meados do século XIX, tinha aproximadamente cinquenta mil habitantes distribuídos num território de
quarenta e seis mil quilômetros quadrados, o que resultava em uma relação de um pouco mais de um
habitante por quilômetro quadrado. Ainda em tempos recentes, a costa praieira que vai do município

1
Esse artigo é parte de em projeto de pesquisa sobre traficantes e tráfico de escravos depois da lei de 1850,
desenvolvido com o apoio da Universidade Federal Fluminense (Fopesq) e da Fundação Carlos Chagas Filho de
Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. Uma versão preliminar foi apresentada na I Jornada
Fluminense de História, realizada no Museu Histórico do Estado do Rio de Janeiro (Museu do Ingá), em Niterói, RJ, no
segundo semestre de 2010 e uma segunda versão ampliada transformou-se em um artigo a ser publicado na coletânea
“Ensaios de História Econômico-social”, pela Editora da UFF (no prelo).
2
Doutor em História, Professor Adjunto do Departamento de Fundamentos de Ciências da Sociedade, da Universidade
Federal Fluminense, em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro. E-mail: walterpereira@globo.com
3
Raros trabalhos, de maior fôlego o do historiador Jayme Rodrigues, dedicam-se ao tema.
4
OSCAR, João. Escravidão e engenho: Campos, São João da Barra, Macaé e São Fidelis. Primeira Edição. Rio de
Janeiro, Achiamé, 1985.

1
fluminense de São Francisco do Itabapoana, no extremo norte do Rio de Janeiro, ao município capixaba de
Marataízes, apresenta uma população rarefeita.

A intensificação e a insistência nos desembarques de africanos nessas áreas contíguas alimentavam


não apenas indícios freqüentes, mas a constatação da abertura de caminhos em direção ao interior seja
serpenteando o litoral até chegar às margens do rio Paraíba, em Campos, e daí acompanhando o curso do rio
Muriaé, afluente do rio Paraíba, até o extremo norte das terras fluminenses, seja adentrando ao sertão
capixaba, ultrapassando Cachoeiro do Itapemirim. Os dois destinos iam dar em Minas Gerais, cuja Zona da
Mata teria sua ocupação mais avançada a partir da expansão da agricultura cafeeira em meados do século
XIX. Portanto, fendas seguidas de deslocamentos sobre o território ajudam a interrogar se a persistência no
tráfico ilegal de africanos, naquela região, pode ser tomada como importante fator na composição ou
recomposição da força de trabalho na tríplice fronteira. Cabe ressaltar que o processo de ocupação do
Noroeste fluminense levou para lá, famílias oriundas da Mata mineira como Cerqueira Leite, Garcia de
Mattos e Monteiro de Barros, para citar apenas alguns nomes mencionados por Elione Guimarães. 5

Torna-se revelador nesses anos, a tentativa de constituir um novo núcleo político-administrativo a partir
da interseção entre essas unidades políticas, face ao projeto de elevação da Comarca de Campos a Província
de Campos dos Goytacazes. A extensão territorial da nova província do Império incorporaria além das terras
da Comarca local, a Comarca de Itapemirim, no Espírito Santo e a Comarca de Pomba (Rio Pomba), em
Minas Gerais. Tal proposta partiria da Câmara Municipal de Campos, com o apoio do Marquês do Paraná.
A primeira medida seria a criação de uma comissão que pudesse colher dados estatísticos e topográficos no
sentido de elaborar um relatório que fosse aprovado e encaminhado ao Senado do Império. Pelo menos,
quanto à vontade dos moradores de Itapemirim havia uma demonstração de adesão ao propósito campista,
explícito no abaixo assinado recebido pela Câmara de Campos, festejando a “feliz idéia de solicitar o
desmembramento do mesmo município para fazer parte da nova província, manifestando seu ardente voto
pelo bom êxito de tão benéfico plano”. 6 A proposta final seria apresentada ao Senado pelo Conselheiro
Joaquim Francisco Vianna, ainda no ano de 1855.

Tráfico e traficantes no litoral norte da Província.

Em Campos, região econômica mais expressiva do litoral norte fluminense, o jornal “Monitor
Campista” vinha manifestando em suas páginas fortes críticas, antipatia e repúdio à repressão inglesa ao

5
GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos Viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós emancipação: família,
trabalho, terra e conflito (Juiz de Fora – MG, 1828/1928). Juiz de Fora / São Paulo, Funalfa / Annablume, 2006.
6
Câmara Municipal de Campos dos Goytacazes – Livro de Ata nº 16 (1852-1857).

2
tráfico ilegal na região, mais precisamente, pela nota “insolente e enérgica” do ministro inglês Hudson 7. O
diplomata demonstrara publicamente sua contrariedade ao descaso das autoridades do Império do Brasil,
pela condescendência com os desembarques nas praias fluminenses que, até então, segundo Hudson, haviam
superado a cifra de cinco mil africanos nos últimos meses de 1850.

James Hudson era ministro plenipotenciário no Brasil e teria feito exigências ao Império de maior
rigor contra o tráfico ilegal no litoral norte fluminense, algum tempo depois de um incidente com um navio
de guerra britânico ocorrido no canal de Cabo Frio, que contara com a participação de José Gonçalves da
Silva8, negociante e traficante de africanos com base naquela cidade. Hudson havia liberado, no dia 11 de
Janeiro de 1851, uma nota dirigida ao ministro dos Negócios Estrangeiros do Império, Paulino José Soares
de Souza, exigindo o comprometimento do governo imperial brasileiro com o governo britânico nos
seguintes pontos: apresentar ao legislativo um projeto de lei que colocasse à disposição da Justiça os navios e
as agentes envolvidos no tráfico; aumentar as penas e exigir uma fiança mais pesada das embarcações
destinadas às viagens para a costa da África; obrigar a navegação de cabotagem a postar uma caução
garantindo serem lícitos seus empreendimentos; fechar os barracões utilizados no comércio de africanos
existentes em Cabo Frio, Armação dos Búzios, Barra de São João, Rio das Ostras, Macaé, Manguinhos, além
de Piúma, no Espírito Santo; tomar medidas contra novos negreiros contratados para o trato de africanos; e
empenhar-se em cessar definitivamente o tráfico.

O primeiro desdobramento das exigências britânicas ocorreria em Cabo Frio. Ali, o negociante José
Gonçalves da Silva teria confiscado seus bens arrolados no tráfico, destacando-se o ineditismo e o caráter
exemplar da medida punitiva aplicada pelo governo brasileiro. Seu drama foi posto em cena por um “Libello
ao Público” 9, em que o negociante de grosso trato, fortuna local, traficante, contrabandista, influente na
cidade de Cabo Frio e na Corte afirmara ter sido subtraído de seus armazéns, de seu barracão, de seu
trapiche, e de demais bens, incluindo escravos, por suas ligações com práticas ilícitas pelo trato de africanos.
Sentindo-se destruído, José Gonçalves da Silva julgava-se isento de toda a culpa e iniciara a partir daí um
verdadeiro périplo para reaver seus bens, depois de julgada a sua inocência no processo criminal. Para tanto,
utilizavam-se de recorrentes “Cartas à Nação”, para reafirmar sua inocência, de forma contundente. Sua
agonia teria início no dia 20 de janeiro de 1851, nove dias depois da intervenção de Hudson, quando suas

7
APMCG – Arquivo Público Municipal de Campos dos Goytacazes. Monitor Campista, 18 de fevereiro de 1851.
8
Esse incidente refere-se ao ataque do vapor de guerra inglês Carmorant à escuna “Rival” – supostamente envolvida
com o tráfico de africanos – ocorrido em 23 de junho de 1850, nas águas do canal que liga a Lagoa de Araruama ao
oceano, nas proximidades do trapiche de José Gonçalves da Silva, que se juntou ao contingente de soldados do Forte
São Matheus, localizado na entrada do Canal do Itajuru, para contra-atacar os ingleses. Segundo depoimento de José
Gonçalves, ao indagar certa vez a Eusébio de Queiroz sobre os motivos da perseguição que vinha sofrendo, este lhe
teria confessado ser uma exigência do ministro inglês Hudson.
9
SILVA, José Gonçalves da. Acontecimentos em Cabo Frio – Libello ao Público. Rio de Janeiro, Typografia do
Diário do Rio de Janeiro, 1851. 45 p.

3
propriedades foram invadidas por policiais da Corte e por soldados da Marinha Imperial chefiados por
Bernardo Augusto Nascimento Azambuja. O vapor “D. Affonso” deslocou-se até Cabo Frio, equipado com
sessenta marinheiros e sessenta policiais. Azambuja, o chefe de polícia da Província, trazia em mãos uma
portaria do Ministro da Justiça, Eusébio de Queiroz, com poderes para por abaixo os negócios de José
Gonçalves10. A pressão sobre Cabo Frio deslocou o eixo dos desembarques para o norte, nas praias
limítrofes entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo.

Retomando o diário campista, é inegável sua preocupação em reproduzir por suas páginas, notícias
veiculadas em periódicos da Corte e da cidade de Vitória, que davam conta da ingerência e vigilância
inglesa. Os fatos ocorridos em Cabo Frio com a sucessiva prisão de José Gonçalves da Silva repercutiram no
“Monitor Campista”, naquele que seria o primeiro e o mais duro ataque ao tráfico ilegal na província
fluminense. Alguns dias depois, o periódico abriria espaço para uma notícia publicada no “Correio de
Vitória”, em 29 de Janeiro de 1851, dando conta de patrulhas empreendidas por barcos militares ingleses na
localidade de Barra da Vila de Itapemirim, na Província do Espírito Santo. Segundo o relato do jornal
capixaba, seria a sexta investida que os ingleses empreendiam no local 11. Percebe-se, diante da relevância
que ganham esses relatos no periódico campista, que os incidentes relativos à proibição do tráfico de
africanos e a própria eficácia da lei, traduzem o incômodo e o mal-estar de setores ligados ao comércio ilegal
de africanos, em face dos desdobramentos de um instrumento legal que permitira desarticular de vez os
agentes ligados ao tráfico: comandantes de embarcações, comendadores, grandes proprietários, negociantes,
membros da Guarda Nacional, policiais, caixeiros-viajantes, entre outros.

Ganhara estofo, a contrariedade pela extinção do tráfico de africanos, externada por críticas à lei de 4
de Setembro de 1850, desde as vésperas de sua vigência, pela desmedida intervenção inglesa. O jornal local
utilizava-se de uma retórica antiimperialista, em que sentimentos escravocratas erguiam a bandeira da
soberania nacional.

“Cada vez mais se agrava a situação do império de Santa Cruz! ...

O Brasil não podia envolver-se com pior abelha! A Inglaterra invejou-lhe o seu ouro; os Inglezes ficarão
de posse da sua aurífera minas. O Brasil necessitou de dinheiro; os thesouros da Inglaterra franquearão-lhe as
somas preciosas. Desde logo os dous estados tornarão-se amigos e aliados! O governo inglês após o juro da

10
Sobre o traficante cabofriense, venho desenvolvendo, desde 2008, o projeto de pesquisa, “José Gonçalves da Silva:
tráfico e traficante de escravos no litoral norte da Província do Rio de Janeiro, depois da lei de 1850”, acolhido pela
Fundação Carlos Chagas de Amparo a Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ, em 2009. Resultados
preliminares sobre a pesquisa foram também apresentados no III Congreso Latinoamericano de Historia Económica,
realizado na Cidade do México, em Fevereiro de 2010.
11
APMCG – Monitor Campista, 11 de fevereiro de 1851.

4
quantia emprestada quis gorjeta; impoz ao governo brasileiro um tratado, cujo primeiro artigo era que acabados
três annos depois da troca das ratificações, não seria licito mais aos súditos do Imperador do Brasil fazer
comercio de escravos na costa d’Africa debaixo de qualquer pretexto ou maneira que fosse, e que a
continuação desse comércio feito depois da dita época por qualquer súdito de S. M. Imperial seria considerado
e tratado como pirataria. – Eis o Brasil agrilhoado de braços e pernas. ---

Ora, vê-se como o Brasil deixou-se insensivelmente manietar por uma nação que, com as bellas
palavras de fiel aliada foi-se apoderando de quantos recursos podião tornar o império florescente, rico e
poderoso. ... Á que estado de abatimento tem-nos a Inglaterra reduzido!”12

Presume-se que o “Monitor Campista” se pusesse a expressar, naquele momento, o incômodo vivido
por figuras envolvidas por atividades ilícitas, ligadas ao comércio de africanos, que transitavam na
confluência entre as duas províncias limítrofes: André Gonçalves da Graça, José de Souza Velho, Aurélio
Jorge da Silva Quintaes, Joaquim Thomaz de Faria, Luiz Mendes Ribeiro, Tomaz da Costa Ramos, José
Bernardino de Sá, José Antônio Leite dos Guimarães; Joaquim Marcelino da Silva Lima (Barão de
Itapemirim), Custódio Luiz de Azevedo, Joaquim Ferreira de Oliveira, José Leopoldo Peixoto Lusitano,
Major Caetano Dias da Silva, Antônio Coelho Guedes Guimarães, Diogo Manoel de Vasconcelos de Abreu e
Lima, entre muitos outros, só para citar os que aqui aparecem implicados, processados ou condenados. Esses
registros referem-se ao período entre 1850 e 1858, e apontam reincidências de um mesmo agente do tráfico
por duas, três ou até mesmo quatro vezes 13. Sobre alguns recairia ainda a implicação em crime por derrame
de moeda falsa.

Conexões interprovinciais.

O litoral fluminense foi pontilhado por desembarques de africanos depois de Setembro de 1850. Sob
cabotagem severa dos ingleses em seus portos, as pressões sobre o Império do Brasil intensificavam-se cada
vez mais. Basta, por exemplo, atentarmos às determinações freqüentes do Ministro da Justiça, Eusébio de
Queiroz, entre os anos de 1850 e 1854, para que os presidentes da Província do Rio de Janeiro não
dispensassem especial atenção ao tráfico ilegal. Um bom indicador é o guia de fontes organizado por Thalita

12
APMCG – Monitor Campista, 03 de setembro de 1850. Artigo publicado em série a partir desta data, sob o título de
“Dificuldades da Situação”.
13
Essa relação tem como base documental as correspondências da Polícia para o Ministro de Estado da Justiça.
Pacotes I J 6 56, 472 e 480 – AN – Série Justiça. A documentação está arrumada em ordem alfabética de sobrenome.
Existem duas relações idênticas: uma datilografada e outra manuscrita.

5
de Oliveira14, dando conta dos comunicados reservados entre o Ministério da Justiça e autoridades
provinciais e locais ou mesmo entre autoridades provinciais e municipais, de Parati à Barra do Itabapoana.
João Oscar chama a atenção para os locais destinados a expressivos desembarques clandestinos, que se
sobrepunham aos limites entre a província fluminense e capixaba:

“Ali, vão-se destacar os portos de Manguinhos, distante apenas cerca de quatrocentos metros da
sede da fazenda São Pedro, do traficante André Gonçalves da Graça; da fazendo do Largo e da
ponta do Retiro, nas proximidades da atual localidade de Buena, também no litoral sanjoanense,
onde havia desemboucadouros de Joaquim Thomaz de Faria e outros traficantes; de Quissamã
(praia do Pires), Bom Sucesso, Ubatuba (não confundir com o lugar do mesmo nome no litoral
paulista) e Carapebus, em Macaé, usados por José Bernardino de Sá e outros negociantes
macaenses; de Itapemirim, ao sul do Espírito Santo, na divisa com o município fluminense de São
João da Barra, onde o traficante Aurélio Jorge da Silva Quintaes recebia suas encomendas, etc.” 15

Um dos nomes destacados por João Oscar, cujos interesses circulavam nas duas províncias, seria o do
16
Comendador André Gonçalves da Graça, “famoso e notório africanista de tempos imemoriáveis” ,
denunciado por desembarques ao norte de Manguinhos. André estava sempre ligado a José de Souza Velho
ou (José Velho de Souza), capitão de navios negreiros. Correspondências enviadas ao ministro da Justiça do
Império, de 11 e 14 de março de 1856, alertavam para os desembarques na Fazenda do Largo, de propriedade
de André, e para os vícios das suas relações pessoais com os comandantes dos destacamentos policiais de
Manguinhos e Itabapoana. O ministro, Conselheiro José Tomás Nabuco de Araújo alertara ao presidente da
Província do Rio de Janeiro, Luiz Antônio Barbosa, sobre as constantes partidas de José de Souza Velho para
a África, transportando africanos a serem desembarcados no porto do Comendador André Gonçalves da
Graça. Joaquim de Paula Guedes Alcoforado, da mesma forma, expressara evidências contra André
Gonçalves da Graça, muito conhecido no local, proprietário de lanchas e construtor de picadas que se
comunicam com o interior17. Alcoforado insistia enfaticamente, sobre o abandono dos pontos ao norte de

14
OLIVEIRA, Talita (org.) Documentos sobre a repressão ao tráfico de africanos no litoral fluminense. Niterói,
Secretaria de Educação e Cultura\ Departamento de Difusão Cultural\ Biblioteca Pública do Estado, 1966. Esse guia de
fontes sobre o tráfico fluminense permite visualizar a preocupação das autoridades do Império com a política de
repressão.
15
OSCAR, João. Op. Cit. p. 74
16
O termo “africanista” aparece aqui como sinônimo de pessoas envolvidas no tráfico de africanos.
17
Carta de Alcoforado ao chefe de Polícia da Corte, de 23 de julho de 1854.

6
Campos, que se transformaram em locais privilegiados para a construção de embarcações e fornecimento de
madeiras aos navios que se destinavam a África.

Nabuco de Araújo havia ainda alertado aos presidentes das duas províncias, Rio de Janeiro e Espírito
Santo, sobre os deslocamentos de André da Graça e da necessidade premente da substituição nos comandos
de polícia dos destacamentos locais. O ministro deixara claro em sua correspondência, a necessidade de
serem obstruídas as picadas entre o litoral de Campos e [rio] Muriaé, que conduziam até a Província de
Minas Gerais, e, principalmente os caminhos abertos pela Província do Espírito Santo, como fora destacado
pelo tenente do Corpo daquela Província, João da Silva Nazaré. O oficial tinha constatado que o tráfico
ilegal de africanos havia suprimido a fronteira entre as três províncias pela profusão de caminhos abertos que
interligavam rios e fazendas, do litoral capixaba ao distrito de Guarulhos, em Campos; e também, do mesmo
litoral a Cachoeiro do Itapemirim, com trânsito direto à Província de Minas Gerais, por caminhos que
levavam à Zona da Mata. Nesse sentido, Nazaré calculava ser imprescindível guarnecer as praias desertas no
litoral do Espírito Santo.18 Certamente, o oficial referia-se ao extenso e vazio litoral entre as barras dos rios
Itabapoana e Itapemirim.

Segundo João Oscar, o português André Gonçalves da Graça fora um dos maiores traficantes do norte
fluminense, pois abastecera de africanos os proprietários rurais de Campos, São Fidelis, Minas Gerais e
alhures, não sem “adestrá-los” antes, em suas fazendas. André Gonçalves da Graça fora casado com
Clarinda Dias da Graça Lima com quem criava uma enteada, Maria Dias da Graça Lima, esposa do major
José Fernandes Lima, herdeiros dos bens do casal. O “famigerado africanista”, elevado a potentado local,
recebeu o Imperador Pedro II, em São João da Barra, com todas as honras e pompas, prática corrente dos
homens envolvidos no tráfico, como também faria, José Gonçalves da Silva, em Cabo Frio. Além de
relacionar-se intimamente com autoridades locais, Gonçalves da Graça era bastante próximo do vice-cônsul
português em São João da Barra, Manoel Pinto da Costa. A convicção dos ingleses da ostensiva participação
do corpo diplomático português no tráfico levara a diplomacia britânica a destacar iguais para servir nas
mesmas localidades. Com o firme propósito de manter o tráfico e os traficantes sob vigília, o governo
britânico designou, em 1852, o súdito Charles Browser, para vice-cônsul em São João da Barra, posto no
qual permaneceria até 185619.

Outro ponto de destaque na correspondência de Nabuco de Araújo era o seu conhecimento do


conteúdo de cartas escritas por agentes comerciais em Luanda e Benguela, pelas quais não pairavam dúvidas
de que não seriam lícitos os negócios mantidos por André Gonçalves da Graça e José de Souza Velho. O
português José de Souza Velho era antigo traficante em praias macaenses e tornara-se posteriormente, figura

18
AN – Série Justiça – I J 6 472
19
OSCAR, João. Op. Cit, pp. 59/103.

7
fácil nos mares entre Itabapoana e Itapemirim. Velho foi denunciado, em 10 de Janeiro de 1856, pelo
delegado de São João da Barra, Ludgero Gonçalves da Silva, tendo sua prisão decretada logo depois, em
abril de 1857, pelo ministro da Justiça, quando foi recolhido à Casa de Detenção do Rio de Janeiro. A
denúncia fora feita em razão das evidências constatadas pelo Cônsul do Império do Brasil em Luanda,
Saturnino de Souza e Oliveira, que havia ocupado o cargo de ministro da Justiça no Império, pouco antes da
Lei do Fim do Tráfico. Souza e Oliveira ao ser deslocado para Angola, provavelmente, seria uma das figuras
mais destacadas, pelos dois impérios, para trabalhar no desmonte do tráfico de africanos para o Brasil. O
representante diplomático brasileiro em Luanda é citado por Gerald Horne, a partir de registros no Foreign
Office, como interlocutor de James Haward Harris, Conde de Malmesbury, chanceler britânico. 20 No mesmo
ano, em novembro, Velho seria colocado em liberdade, com a obrigação de reconduzir a Luanda os africanos
trazidos por ele. Antigo conhecido de Aurélio Jorge da Silva Quintaes, residente em Campos, implicado por
tráfico em 185121, Velho era proprietário de lanchas e tinha negócios na África, onde comercializava
charutos, panos, cachaça e... africanos. Seus intermediários nas cidades africanas de Benguela e Luanda
eram, respectivamente, Antônio Felix Machado e Antônio Alves de Lima. 22

João Oscar destaca, também, a figura do Comendador Joaquim Thomaz de Faria, residente em
Atafona, no mesmo município de São João da Barra, proprietário das fazendas Sant’ana, Campo Alegre e
Floresta, como outro grande traficante local. Faria sustentava-se politicamente, com uma carreira pública de
longa data, tendo ocupado na cidade os cargos de delegado de polícia, patrão-mor do porto e presidente da
Câmara Municipal. Além disso, Joaquim Thomaz de Faria era proprietário de um trapiche na foz do rio
Paraíba. O traficante fora casado com Francisca Barreto de Jesus Faria, com quem teve somente um filho,
morto ainda criança. Para Oscar, havia ainda uma terceira figura de destaque atuante no tráfico ilegal na
região. Tratava-se de Luiz Mendes Ribeiro, pela sua posição de intermediário nos negócios no trato de
africanos, associado a Joaquim Thomaz de Faria. Mendes Ribeiro tinha negócios em Havana, Ambrix,
Luanda e Benguella, citado a partir de cartas apreendidas em navios negreiros, escritas no ano de 1853, por
Francisco Antônio Flores (Luanda), João Pedro Marques e Bento José Pereira (Ambrix) e Rafael de Toca
(Havana) 23.

Joaquim de Paula Guedes Alcoforado, autor de famoso relatório sobre o tráfico pós-50, foi, na
realidade, um atuante agente investigador do tráfico, detetive itinerante e interlocutor permanente com as
autoridades do Império. Além de percorrer o litoral das províncias, Alcoforado dizia dispor de agentes na

20
HORNE, Gerald. O sul mais distante – os Estados Unidos, o Brasil e o tráfico de escravos africanos . São Paulo,
Companhia das Letras, 2010. p. 424
21
AN – Série Justiça – I J 6 472
22
Reprodução de cartas de Luanda (10 de fevereiro de 1856) e Benguela (25 de agosto de 1855) – AN – Série Justiça –
I J 6 472.
23
OSCAR, João. Op. Cit., pp. 88/89.

8
África que o mantinham informado sobre a suspeita de embarques de africanos para o Brasil. Desde 1851,
Alcoforado reunia indícios sobre a utilização de um corredor para o tráfico nas praias que ligavam a
província fluminense e capixaba, por exemplo, ao chamar a atenção para o desembarque de dois negreiros na
barra do rio Itabapoana: um de Joaquim (?) Francisco Guimarães, implicado por tráfico, em 1851, com
quatrocentos africanos a bordo; o outro de José Bernardino de Sá, implicado por tráfico, em 1838, 1845 e
1851, com duzentos africanos nos seus porões. Esses pontos estratégicos utilizados pelo tráfico ilegal eram
dotados de pequenos embarcadouros ou ancoradouros, também chamados de trapiches. Na realidade esses
trapiches, também, prestavam “assistência técnica” e “serviços de manutenção” às embarcações envolvidas
com o tráfico ilegal. È curioso observar a recorrência de grandes traficantes aos trapiches para realizarem
seus negócios associados ao tráfico. Talvez fosse uma forma disfarçada para negociar os “produtos”
transportados nos navios, cuja menção a africanos seria substituída por expressões como “duas mil e
cincoenta peças de madeira de lei”, “cento e setenta saccos”, “oito peças da Índia”, “cento e setenta
volumes”, referências encontradas em cartas apreendidas no interior dos navios negreiros para se referirem a
sua carga24.

Alcoforado fazia referências a “notícias minuciosas” em cartas recebidas de Benguela Velha. Nosso
investigador recomendara ao cruzeiro da Marinha brasileira, que patrulhava a costa fluminense e capixaba,
redobrar a atenção na localidade de Barra do Furado, próximo a Quissamã, e, também, no Açu, entre São
João da Barra e o Cabo de São Tomé, em Campos. Mencionara ainda, em carta a José Ildefonso de Souza
Ramos, ministro da Justiça, datada de 01 de julho de 1852, que o brigue “Romano”, que saíra de Montevidéu
para a África e fora aprisionado posteriormente em Açu, pertencia a Guimarães Brandão e Cia. e teria partido
da costa africana, com quinhentos africanos, contratado por agentes de Tomaz Ramos, que na realidade seria
Tomaz da Costa Ramos, implicado por tráfico (1851) e moeda falsa (1853), fugitivo do país. Impedido de
tratar dos seus negócios, Tomaz designara o caixeiro de sua empresa para representá-lo em Campos e em
Itabapoana, onde possuía fazendas.25

O aprisionamento de navios negreiros na região denunciava as redes envolvidas no comércio ilegal de


africanos, como o que ocorreu com a escuna norte-americana “Mary Smith”. Desde a sua partida do porto de
Boston, nos EUA, o governo brasileiro tinha conhecimento do carregamento de africanos. Alertado pela
Legação inglesa na Corte, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Império deixou de sobreaviso João
Luis Vieira Cansanção de Sinimbu, chefe de Polícia da Corte, que por sua vez comunicara ao ministro da
Justiça, Nabuco de Araújo, que a embarcação saíra do porto norte-americano em lastro para Montevidéu, em
circunstâncias de estar envolvida com o tráfico de africanos. Sinimbu já detinha informações de negociantes

24
Idem
25
As cartas de Alcoforado são de 21 de agosto de 1851, 02 de agosto de 1851, 01 de julho de 1852, 19 de setembro de
1852 e 23 de dezembro de 1852. AN – Série Justiça – I J 6 468.

9
da praça do Rio de Janeiro, de que a embarcação saíra de Boston a 25 de agosto, contratada por Manoel
Basílio da Cunha Reis, negociante em Nova Iorque; e por Guilherme José da Silva Correa, negociante na
costa da África, para ali receber quinhentos e cinqüenta africanos com destino ao Brasil 26. As negociações
também foram conduzidas por João José Viana, que estaria a bordo da escuna. Em 10 de dezembro de 1855,
Luiz Antônio Barbosa, presidente da Província do Rio de Janeiro, comunicara a Nabuco de Araujo que a
“Mary Smith”, desembarcaria em algum porto entre o norte de Macaé e a Província do Espírito Santo. De
fato, a embarcação seria aprisionada a duas milhas da costa brasileira, próximo a São Matheus, no litoral do
Espírito Santo. O trecho escolhido tinha a facilidade de espalhar os africanos traficados ilegalmente pelas
áreas de Itapemirim, Itabapoana, Campos e Minas Gerais. 27

Segundo Gerald Horne, essa embarcação era comandada por Vincent Cratonick, austríaco naturalizado
norte-americano, que tinha vasto conhecimento sobre o “poroso litoral brasileiro”. Entre os documentos
aprisionados a bordo, havia diversas cartas de Manuel Basílio da Cunha Reis, referenciado anteriormente por
Sinimbu. Cunha Reis mantinha participação no capital da empresa Figaniere, Reis & Cia, de Nova Iorque, e
seria proprietário de um terço do navio despachado de Boston. Seu sócio Willian Figaniere era Cônsul Geral
de Portugal em Nova Iorque, fato que norteia um dos principais argumentos do trabalho de Horne, ao apontar
para os vastos interesses do corpo diplomático português no tráfico atlântico, seja em Londres, Nova Iorque,
Louisiana, Lisboa, Rio de Janeiro ou São João da Barra. 28 Vale aqui como reforço, a menção ao caso do
negociante cabofriense José Gonçalves da Silva e sua provável relação familiar com membros do corpo
diplomático português acreditado no Rio de Janeiro.

O comércio ilegal de africanos nas duas províncias parecia não ceder tão fácil. As reincidências e
desconfianças na continuidade dos desembarques levaram o vice-presidente da Província do Espírito Santo,
Joaquim Marcelino da Silva Lima, Barão de Itapemirim, a alertar o ministro da Justiça, das providências que
deveriam ser tomadas em áreas frágeis à entrada de negreiros ao sul da província: a nomeação de um juiz
municipal que pudesse servir de delegado de polícia; a remessa de um bacharel que pudesse atuar como
promotor; uma força de linha de oitenta e cem praças com oficiais de confiança; e um vapor de guerra
estacionado nas águas capixabas. Em resposta, o ministro aceitava atender aos três primeiros itens
solicitados e sugeriu a convocação imediata de oficiais da Guarda Nacional para atuar exclusivamente na
repressão ao tráfico ilegal de africanos. 29

As aproximações de homens públicos com o tráfico de africanos não excluíam figuras políticas de
expressão, como o próprio Barão de Itapemirim, implicado por tráfico em 1851. Joaquim Marcelino da Silva
26
João Oscar refere-se à Jeremiah French como fretador da embarcação Mary Smith. Op. Cit., p. 93.
27
AN – I J 6 472
28
HORNE, Gerald. Op. Cit., pp.195/6
29
AN – Série Justiça – I J 6 521 docs. 65, 67 e 125.

10
Lima era um destacado negociante na Província, dono de terras, de escravos e de trapiche, vindo a ocupar
por diversas vezes o cargo de vice-presidente da Província capixaba e por vezes o de Presidente, em caráter
interino. Numa correspondência ao presidente da Província do Espírito Santo, Olímpio Carneiro Viriato
Catão, datada de 21 de agosto de 1857, com cópia aos delegados de Piúma, Benevente e Guarapari, o Barão
de Itapemirim comunicava que recebera a visita, em sua fazenda, na localidade de Muqui, de dois enviados
da Corte, João da Costa Brito Sanches e Antônio Carlos Guedes Guimarães, tidos como representantes do
governo imperial, para alertar sobre desembarques de africanos na região, ligados a negócios com o
português Diogo Manoel de Vasconcelos Abreu e Lima, implicado por tráfico em 1857. Viriato Catão
aproveitava para sugerir ao Barão que desconfiasse dessas duas figuras que o haviam procurado, por ser
Brito Sanches conhecido e tratar-se na Corte de “moço extravagante”. 30 Brito Sanches e Guedes Guimarães
haviam se apresentado ao nobre como “comissionados pelo Governo Imperial”, para a apreensão de navios
supostamente envolvidos no tráfico. 31 Coincidentemente ou não, há uma menção em implicação por atuação
no tráfico, de Antônio (Coelho) Guedes Guimarães, em 1857. Talvez o Barão tivesse o interesse em
aparentar alguma ingenuidade em relação aos seus interlocutores, posto que fosse declarada sua ligação com
o comércio ilegal de africanos.

Não restam dúvidas que Joaquim Marcelino mantinha relações bem próximas à praça de Campos, pois
tinha o costume de depositar documentos relativos aos seus negócios, sob custódia do padre José Rodrigues
Barbosa, pároco da cidade. Foi pelo extravio de um título de crédito, uma letra, provavelmente uma nota
promissória, que Caetano Dias da Silva, implicado por tráfico de africanos, em 1853, morador em
Itapemirim e devedor do Barão, da quantia aproximada de seis contos, fez publicar no “Monitor Campista”,
em 08 de fevereiro de 1851, uma carta em que alertara sobre o extravio do documento representativo do
montante da dívida com o nobre capixaba. Caetano Silva era major da Guarda Nacional e tentara resgatar a
letra após a morte do padre Barbosa.

As referências ao tráfico após 1850 num corredor que ia do litoral norte do Rio de Janeiro ao litoral sul
do Espírito Santo, algumas vezes escapavam para regiões adjacentes, como o norte do Espírito Santo e o Sul
da Bahia, reconhecendo figuras que já eram notórias no comércio ilegal de africanos na região delimitada por
este trabalho. José Leopoldo Peixoto Lusitano, implicado por tráfico em 1853, intermediara negócios em
Caravelas e no Prado, na Bahia. A rede de relacionamento de Lusitano em Campos e em São João da Barra
passava por Antônio Ferreira de Oliveira, negociante local, implicado por tráfico e fugitivo do Império, de
quem era guarda-livros. Lusitano fora a Caravelas, segundo ele, por determinação de Ferreira para “dar um
30
Correspondências diversas de 17 de agosto de 1857, 21 de agosto de 1857, 27 de agosto de 1857, 9 de setembro de
1857, 17 de setembro de 1857 e 27 de outubro de 1857. Arquivo Nacional – GIFI – 5F – 215.
31
Ver também correspondência datade de 15 de setembro de 1857, de Izidro Borges Monteiro, chefe de Polícia da
Província do Espírito Santo ao Conselheiro Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos, Ministro e Secretário de Estado
dos Negócios da Justiça

11
desembarque e ver se por aquelas paragens se poderiam efetuar mais alguns, ou mesmo saídas de barcos
prontos para tal fim”. Dessa forma, há de se suspeitar que quanto mais a repressão instalava-se na região
aqui demarcada, mais os agentes ligados ao tráfico de africanos empreendiam tentativas de desembarques em
áreas vizinhas. Hospedado na casa de “um tal” Castro, no Prado, Lusitano foi alcançado pelo boato de que
seria caixeiro de Manoel Pinto da Fonseca, implicado por tráfico em 1850 e 1851, de quem Castro era
devedor. Ao tomar conhecimento da presença de Lusitano na cidade, o Juiz de Direito o mandou prender em
31 de julho de 1852, pois como Fonseca vinha sendo perseguido por contrabando não poderia ter caixeiros
nem cobrar pelo que lhe era devido. Detido, Lusitano aproveitara para denunciar seu patrão, Antônio
Ferreira de Oliveira, que mantinha em sociedade com Antônio Barroso, negócios com pau-brasil, pólvora e
negros. Oliveira também teria ativos em Lisboa onde negociava letras e comprava pequenos barcos a serem
utilizados no tráfico.32 Algum tempo depois, em 18 de dezembro de 1853, o secretário de Polícia da Corte
repassara uma informação ao ministro Nabuco de Araújo, de que o português Joaquim Ferreira de Oliveira,
supostamente irmão de Antônio, fora condenado e deportado do Império pelo Aviso de 17 de julho de 1851,
por envolver-se com o tráfico ilegal de africanos. Audacioso, como a maior parte dos comerciantes de
africanos, Antônio “iludiu a determinação do Governo, homiziando-se alternadamente nesta Corte, e nos
Termos de São João da Barra, Província do Rio de Janeiro e Itapemirim, no Espírito Santo”. 33

Fronteiras integradas ou zonas de conflito?

Se por um lado tornavam-se evidentes as aproximações entre os negociantes do sul da Província do


Espírito Santo e Campos dos Goytacazes, reveladas em especial durantes os anos do tráfico ilegal, quanto a
Minas Gerais, tais manifestações advindas da Comarca de Rio Pomba, também ganhavam relevância.
Podemos cogitar a existência, para além dos caminhos abertos pelo tráfico ilegal, de significativas redes de
negócios que se moviam entre Campos e Minas Gerais. Vele lembrar que um dos principais caminhos de
tropas entre a Zona da Mata mineira e o rio Paraiba, em Campos, passavam por lugares situados no extremo
norte da província fluminense, sob jurisdição da cidade de Campos. Cito aqui, os Curatos de Natividade do
Carangola (atual Natividade) e da Piedade (atual Laje do Muriaé), que desempenhavam papel estratégico
seja pelas margens do rio Carangola ou do rio Muriaé, respectivamente. Os dois rios bifurcavam-se a poucos
quilômetros da localidade de Porto Alegre, atual município de Itaperuna. Portanto, Minas Gerais abriria em
torno da década de 1850, dois vetores importantes para suas rotas comerciais chegarem ao rio Paraiba e
tomarem o curso dos mares. Natividade do Carangola e Laje do Muriaé eram vitais na função de

32
Carta enviada por José Leopoldo Peixoto Lusitano a Alexandre Joaquim de Siqueira, Secretário de Polícia da Corte,
em 04 de outubro de 1853.
33
Correspondências entre o chefe de Polícia da Corte e o Ministro Nabuco de Araújo – AN – Série Justiça

12
escoamento da produção mineira. Natividade chegaria a ser um entreposto expressivo com trezentas mulas
estacionadas destinadas ao comércio de longa distância. Essas tropas seguiam até a localidade de Cachoeiras
do Muriaé, próximo ao atual município de Cardoso Moreira, para ali as mercadorias serem colocadas em
pequenas embarcações e seguirem pelo rio Muriaé até tomar o curso do rio Paraíba. Não por outro motivo,
de olho na perspectiva por ampliar os negócios interprovinciais, os moradores de Natividade, cientes da
importância comercial que oferecia aquele curato, buscavam na Câmara de Campos, a construção de uma
ponte sobre o Rio Muriaé, na localidade de Porto Alegre (Itaperuna), com o objetivo de facilitar o intenso
trânsito de tropeiros.34 É de se notar que a rota Campos / Minas Gerais teve desempenho considerável na
ocupação do Noroeste fluminense, definindo inclusive a trajetória dos caminhos de ferro que seriam
implantados ainda no final do século XIX.

Nesse sentido é preciso destacar que a pressão ligada a interesses econômicos, provavelmente, nutriam
os conflitos de jurisdição nessas regiões limítrofes. Relatórios de polícia e correspondências entre
presidentes de província e entre estes e o Ministro da Justiça tornaram-se freqüentes, por conta das investidas
de forças policiais, contra moradores das três províncias. Em final de 1853, o presidente da Província de
Minas Gerais, Visconde de Baependi e o presidente da Província do Rio de Janeiro, Luiz Antônio Barbosa,
trocavam missivas entre si e o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, sobre as constantes incertas de
policiais do Arraial de Nossa Senhora dos Tombos do Carangola, Freguesia de Carangola, da Comarca de
Pomba, Minas Gerais, contra os moradores de Natividade, 2ª Distrito da Freguesia de Santo Antônio de
Guarulhos, da Cidade de Campos, Rio de Janeiro, conflitos que se estendiam de longa data, ferindo o
Decreto de 19 de maio de 1843, que estabelecera a divisa provisória entre as duas províncias. O que se
depreende em uma primeira instância é que essas fronteiras moviam-se a partir de interesses diversos.

A questão parecia radicalizar-se com o deslocamento para Natividade do Carangola de policiais da


Província de Minas Gerais acompanhados pelo coletor da Vila do Presídio, daquela Província, para “invadir”
a fazenda de Manoel Martins Oliveira, Juiz de Paz local. Segundo correspondência do subdelegado do
Curato de Natividade, encaminhada pelo delegado de Campos, Sotero José do Carmo Rocha, ao chefe de
polícia da Província, José Ricardo de Sá Regio, havia grande possibilidade de resistência armada pelos
moradores do distrito da freguesia campista. Para o delegado a situação na divisa com Minas Gerais era
complexa, pois, além disso, haveria forte sublevação de escravos nas fazendas daquele distrito, inclusive a de
Manoel Martins. A questão aponta para o permanente registro de rebeliões em áreas de expressiva economia
escravista como a Zona da Mata mineira, estudada por Elione Guimarães, constatada sua extensão por áreas
adjacentes. Toda essa região, depois da lei do fim do tráfico, teve que apelar ao tráfico interprovincial para
recompor sua força de trabalho, ampliando os níveis de tensão. Entretanto, proponho que uma primeira saída

34
Câmara Municipal de Campos dos Goytacazes – Livro de Atas nº 16, PP. 376/380.

13
encontrada pelo impacto da Lei Eusébio de Queiroz foi ampliar as redes de tráfico ilegal, na construção de
vetores em direção ao interior dessas províncias a partir do litoral fluminense e capixaba. Daí a hipótese de
que a continuidade de tráfico na região impôs uma dinâmica capaz de forçar a integração entre as três
províncias, ou vice-versa.

Devemos enfatizar que dessa integração surgiram também, os conflitos. A rivalidade entre autoridades
e habitantes na fronteira levou à fronteira uma força de dezesseis policiais da Corte comandadas por um
alferes e um delegado de polícia. Na sequência foram presos alguns integrantes da força policial de Minas
Gerais, entre os quais Manoel da Costa Pereira, inspetor de quarteirão em Minas Gerais por atacar com dez
libertos e doze cativos, a casa do juiz de paz campista; o oficial de justiça de Minas, Manoel Dias Pinto;
Francisco Antônio de Amorim, todos moradores do Arraial de Tombos; além de João Vicente, conhecido por
Galinha, envolvido em furto de escravos e evadido da Cadeia da Vila do Presídio. 35

Não alheio ao conflito, porém, sem esconder um interesse pela questão, o presidente da Província de
Minas Gerais, Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos, informado dos acontecimentos por seu colega do
Rio de Janeiro e pelo juiz de direito da Comarca de Pomba, assinalou às suas autoridades locais que
evitassem controvérsias e inconvenientes e se limitasse a atuar nos limites da Província, chamando à
responsabilidade àqueles que transgredissem tal ordem. 36 Tanto para um quanto para outro presidente de
província a contenda expressava exclusivamente um capricho do corpo de polícia de fronteira, mais
especificamente dos subdelegados dos Termos de Natividade (RJ) e Carangola (MG). Assim, dissimulavam
divergências mais profundas em uma região de acelerada ocupação.

Na esteira das complexas relações entre as três províncias surgiam delicadas situações entre litigantes.
Em 1857, o mesmo Luiz Antônio Barbosa, ainda Presidente da Província do Rio de Janeiro, comunicara ao
Ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, que moradores da mesma Guarulhos haviam entrado em conflito com
o subdelegado de polícia do Distrito de Itabapoana, do Termo de Itapemirim, na Província do Espírito Santo,
por conduzir tropas para proceder ações policiais na freguesia campista. Em correspondência ao Presidente
da Província do Espírito Santo, o mandatário fluminense havia sugerido que as autoridades policiais
capixabas não transitassem em terras fluminenses acompanhados de subordinados seus e sim requisitassem o
auxílio da polícia fluminense para realizar a prisão de fugitivos capixabas domiciliados no Termo de
Campos.37

35
Arquivo Nacional – Série Justiça – I J 1 455 – 1853/1854.
36
Arquivo Nacional – Série Justiça – I J 1 456 e I J 1 457 – 1854/1855.
37
Arquivo Nacional – Série Justiça – I J 1 458 e I J 1 461 – 1857.

14
A concluir

Podemos inferir, a partir dessas evidências, que eram tensas as relações entre habitantes na confluência
demarcada entre as três províncias. O que teria levado a esse estágio de tensão? Por que motivos a Câmara
de Campos tentava criar uma província englobando as três áreas? Diante de tais interrogações, essa pesquisa
investe na possibilidade de apontar elementos significativos na construção de estratégias individuais ou
coletivas que traduzem interesses regionais de maior complexidade, em que um dos vértices era o tráfico
ilegal de escravos na região, com o contínuo desembarque de africanos nas praias locais, depois da Lei de
1850. Dessa forma, a redução da escala permite estudar uma vasta rede cuja articulação reveste-se das
dimensões históricas do contexto. Defendemos, pois, uma prospecção mais minuciosa sobre os ditos anos de
palidez de um negócio secular, o trato de africanos, que insistia em manter-se por soluções cambiantes, cujas
motivações poderiam implicar objetivos mais ousados.

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