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DESENVOLVIMENTO E SUBDESENVOLVIMENTO* Celso Furtado "Capitulo 4 (paginas 163 a 177) de “Desarrollo y subdesarrollo, Buenos Aires, Eudeba, 1971 (Tiulo da cobra original: Desenvolvimento e subdesenvolvimento, Rio de Jancito, Ediora Fundo de Cultura, 1961). Cap{TULo IV ELEMENTOS DE UMA TEORIA DO. SUBDESENVOLVIMENTO O MODELO CLASSICO DO DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL A teoria do desenvolvimento, na forma como é concebida nos grandes cen- tros universitérios do mundo ocidental, tem o propésito limitado de “mos- trar a natureza das varidveis nado econdmicas que determinam, em ultima ins- tancia, a taxa de crescimento da produgio de uma economia”,! Dada uma estrutura econdmica, caberia reconstituir os seus processos fundamentais, de maneira que fosse posstvel identificar aquelas varidveis exdgenas que respondem pelas variag6es no ritmo do crescimento e pela intensidade deste. Dentro des- sa linha de pensamento tém sido construfdos os muiltiplos modelos de desen- volvimento que figuram na bibliografia corrente. Esse ponto de vista, entretan- to, apresenta a falha fundamental de ignorar que o desenvolvimento econdmico possui uma nitida dimensio histérica. A teoria do desenvolvimento que se limite a reconstituir, em um modelo abstrato — derivado de uma experiéncia histérica limitada —, as articulagdes de determinada estrutura, nao pode pre- ‘Nicholas Kaldor, “A Model of Economic Growth” (The Economic Journal, dezemibro, 1957). Formulae ‘goes idénticas da teoria do crescimenco econémico enconcram-se em Hartond, "An Essay in Dynamic Theory” (Economic journal, maryo de 1939) ¢ Tawards a Dynamic Economics (Macmillan, 1949), ¢ tam- bém Domar, “Capital Expansion, Rate of Growch and Employment” (Econometrica, abrit de 1946) © “Expansion and Employmenc” (American Economic Review, matgo de 1947). Grande parte da extensa liseratura sobre a teoria do crescimento econémico, publicada nos ikimos dee anos, constitui simples refinamenco do modelo bisico estrucurado por Harrod ¢ Domar. 244 CINQUENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL tender clevado grau de generalidade, Demais, 0 problema nao se cinge ao nivel de desenvolvimento alcangado pelos distintos sistemas econdmicos que coe- xistem em dado momento histérico. E necessério ter em conta que o desen- volvimento econémico dos tiltimos dois séculos, a Revolugo Industrial — como correntemente lhe chamamos —, constitui per se um fendmeno aut- nomo. Com efeito: 0 advento de uma economia industrial na Europa, nos ltimos decénios do século XVIII, ao provocar uma ruptura na economia mundial da época, representou uma mudanga de natureza qualitativa, a0 mesmo titulo da descoberta do fogo, da roda ou a do método experimental. No mundo anterior 4 Revolugao Industrial, o desenvolvimento econé- mico era basicamente um proceso de aglutinagao de pequenas unidades eco- némicas e de diviséo geogréfica do trabalho. Na classe comercial estava 0 agente dinamico do desenvolvimento. Promovendo a aglutinacao de unidades eco- némicas em mercados mais amplos, ela criava formas mais complexas de di- visio do trabalho e possibilitava a especializagao geogréfica. Os frutos do au- mento resultante de produtividade eram absorvidos em grande parte pelos grupos dirigentes das comunidades promotoras do comércio, o que tornava possiveis importantes concentracées de capital financeiro. Contudo, como a articulagao entre os grupos dirigentes da fase comercial ¢ os grupos sociais responsdveis pelas fases produtivas era reduzida ou nula, a acumulagéo dos lucros nas maos dos comerciantes pouco ou nenhum efeito tinha sobre as técnicas de producao. Do ponto de vista do comerciante dessa época a inver- so mais lucrativa consistia em abrir novas frentes de trabalho ou financiar a destruigao de concorrentes. Os métodos de produgao sé em casos muito es- peciais chegavam a preocupé-lo. Vimos, em capftulos anteriores, as causas que levaram ao advento, na Europa do século XVIII, de uma economia de tipo industrial. Uma vez con- figurado esse primeiro nucleo industrial, os fatores que condicionavam 0 com- portamento da economia mundial sofreram répida e radical transformacao. Em sua esséncia, essas transformagées se concentram em dois pontos. O pri- meiro diz respeito aos fatores causais — genéticos do crescimento, os quais passam a ser endégenos ao sistema econdmico. O segundo é um aspecto par- ticular do primeiro e se refere ao imperativo do avango tecnoldgico, que se traduziu em {ntima articulagio do processo de formagao de capital com 0 avango da ciéncia experimental. 242 TEXTOS SELECIONADOS. Nas economias pré-industriais, 0 lucro — quando resultante de opera- g6es efetuadas dentro do prdprio sistema econémico, e nao do intercimbio externo — consistia, em grande parte, numa apropriacao direta de bens e ser- vigos & disposicdo da coletividade. Assim, lucro do proprietrio agricola era aquela parcela do produto da terra que permanecia em suas maos pata susten- tara familia e outros dependentes; 0 do comerciante provinha dos bens e ser- vigos consumidos diretamente, assim como do ouro que ele conseguia amoe- dare que lhe permitiria aumentar 0 giro do negécio. Se os estoques no fim do ano estavam em nivel mais alto que 0 desejado, planejava-se uma reducao nas compras ¢ tudo voltava 4 normalidade. Esse tipo facil de ajustamento nao poderia, entretanto, ocorrer em uma economia industrial. O lucro industrial, sendo pagamento a um fator de produgao (a atividade do organizador ou empresétio), incorpora-se, necessatiamente, a0 prego de venda do artigo, no momento em que este passa das maos do produtor as do comerciante. Em conjunto com outros pagamentos a fatores, constitu a contrapartida finan- ceira de uma operagao de produgo. Destarte, sé chega a ter existéncia real quando 0 bem produzido é vendido ao consumidor final. Até esse momento, qualquer pagamento a fatores de produgao constitui simples operagao de cré- dito. Para que a totalidade da produgio encontre comprador, é necessétio, pois, que a soma global dos pagamentos aos fatores realizados durante a pro- dugao seja despendida. Caso 0 produtor nao encontre comprador ¢ os esto- ques, em mios do produtor, tendam a aumentar, 0 empresitio industrial no se encontraré — ao contrério do que ocorria com o comerciante — em con- digdes de poder transferir a pressio para um sem-numero de artesdos ou pro- dutores domésticos. Se quiser liquidar os estoques acumulados invo- luntariamente e permanecer no mercado, terd de oferecet 2 mercadoria por mais baixo preco. Eis por que os custos de produgao passam a ocupar o cen- tro de suas preocupacées. Do ponto de vista do empresstic industrial que participa de um mercado de concorréncia, a elasticidade-preco da procura da mercadoria que ele ofere- ce é infinita. Sua principal arma de ataque, na luta para expandir o campo de ago, consiste em oferecer a mercadoria por um preco inferior ao que prevalece no mercado, em dado momento. Esse princ{pio era particularmente verda- deiro nas primeiras etapas do desenvolvimento industrial, visto que os pro- dutores detinham, entdo, em suas mios, a lideranga. Ao iniciar-se a meca- 243 CINQUENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL nizagao da industria téxeil, ta Inglaterra, a oferta dos tecidos de la, em pri- meito lugar, e, depois, a dos tecidos de algodao, tomou extraordindrio im- pulso, sem que a procura global crescesse na forma requerida para absorver todo o incremento da produgao. Teve inicio, entao, um prolongado periodo de baixa nos pregos dos tecidos, baixa essa muito acentuada, que permitiu desorganizar toda a produgao artesanal dentro da prépria Inglaterra, em suas coldnias e, mais lentamente, em um grande numero de outros paises.” Des- sa forma, o dinamismo da Revolugao Industrial, em sua primeira etapa, atua- va pelo lado da oferta, concentrando-se a atencdo do empresdrio na grande tarefa de, por todos os meios, reduzir 0s custos. Daf resulta que as técnicas de produgao passam a constituir 0 ponto crucial de todo o sistema econé- mico. Entre os processos econémicos ¢ a ciéncia experimental surge uma articulagao intima que constituird a caracter(stica mais fundamental da ci- vilizagéo contemporanea. Viveu-se a primeira etapa do desenvolvimento industrial, basicamente, nessa revolugao operada na oferta, que se traduz numa firme baixa dos precos de certo nimero de mercadorias de consumo geral. Foi através do efeito-pre- G0 que atuaram os mecanismos tendentes a destruit um ntimero cada vez maior de segmentos da velha estrutura econémica de base artesanal. O crescimento da renda monetéria era, necessariamente, menor que o do produto real,’ mas gracas ao forte aumento da produtividade, no setor mecanizado — reflexo das economias internas criadas por aumentos na escala de produgao ¢ por inovagées tecnolégicas — a taxa de lucratividade mantinha-se em n{vel atra- tivo, Por outro lado, como nio havia pressio dos assalariados, em razdo da crescente oferta de mao-de-obra provocada pela prépria desorganizagio do artesanato, os frutos dos aumentos de produtividade nao transferidos & popu- lago consumidora podiam ser retidos, em sua totalidade, pelo empresdtio. Superada a primeira etapa do desenvolvimento, durante a qual foram erodidas as velhas estruturas econémicas, os fatores dinamicos da economia industrial comegaram a operar, simultaneamente, do lado da oferta ¢ do da procura. 3Para os dados relatives & producto e presos dos tecidos de algodio na Inglaterra, desde o comeso da Revolugio Industral, vejase W. W. Rostow, The Process of Economic Growth (Oxford, 1953). SEntenda-se: o do produto real no setor monetétio. Mas, como a destruigio do artesanaco sigaificava também a substituigéo de atividades de subsisténcia por atividades inregeadas no mercado, a renda mo- neviia crescia, por isso mesmo, mais que o produeo real 244 TEXTOS SELECIONADOS Com efeito, ao elevar-se a produtividade fisica nas industrias de bens de con- sumo, os empresérios desse setor se viam beneficiados por maiores lucros que se traduziam em aumento de procura no setor dos bens de capital.4 Enquanco no aumentava a produtividade fisica neste dltimo setor, sua rentabilidade se mantinha mais alta que no conjunto da economia, estimulando um aumento relativo dos investimentos nele. Esse aumento relativo da procura de bens de capital acarretava aceleragao do crescimento, Enquanto nao surgisse um au- mento compensatério da produtividade, no setor de bens de capital, a expan- so do conjunto de empresas que o compunham processava-se através de ab- sorgio de mao-de-obra, diante da qual nao se levantavam entraves, pois 0 aumento prévio de produtividade fisica no setor de bens de consumo provo- cava uma liberagio de forga de trabalho. Ora, uma expansio da mao-de-obra empregada na industria de bens de capital significa, necessariamente, acrésci- mo da procura de bens de consumo. Essa nova modificacéo no volume e na estrutura da procura vinha afetar, mais uma ve, a orientagao das invers6es, em beneficio, agora, das industrias de bens de consumo. O que interessa re~ tet, de tudo isso, é que a acéo dindmica tanto opera do lado da oferta como do da procura dos bens finais de consumo. As observagées anteriores referem-se a0 modelo tipico do desenvolvimento econdmico na fase da Revolugao Industrial, cuja expresso mais pura estd configurada na experiéncia inglesa. Apés um longo perfodo de desenvol mento comercial intenso que engendrou uma grande expansio colonialista, a0 mesmo tempo que intensa belicosidade (ao alcangarem as linhas de co- mércio uma quase saturagio), 0 problema dos custos de produgio se foi aprofundando no campo econdmico como um elemento de crescente impor- tincia. J4 na primeira metade do século XVIII, 0s procedimentos técnicos mais adiantados eram disputados ¢ por toda parte objeto de espionagem.’ Procurava-se atrair pessoas, de qualquer modo, que possuissem experiéncia técnica superior. Assim, a forma extensiva de crescimento da era mercantilfstica “Em outras palavras: coda vex que ocorre uma redugio de custos nas indistrias de bens de consumo e, conseqiientemente, um aumento de lucratividade nesse setor, a procura de equipamentos, para expansio de capacidade produtiva que se origina nesse setor, determina um aumento da pressio da procura no setor de bens de capital. ‘Sobre as missGes de espionagem enviadas pelos ingleses ao continente, particularmente & Iclia, para copiar os equipamentos téxceis mais avancados, vejase Paul Mantoux, The Indusrial Revolution in the Eighteenth Century (Londres, 1928). 245 CINQUENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL — que visava & abertura de novas frentes de comércio, nem que fosse pela violéncia— foi dando lugar a um novo estilo de crescimento em profundida- de, cuja forga dindmica resultava das préprias transformacées internas do sis- tema econémico. Essas transformagées ndo se processavam, entretanto, de forma errdtica. O avango da ciéncia recebeu enorme impulso, em todas as frentes, assim como a aplicagio dos princfpios cientificos as técnicas de pro- duo. Criou-se, em conseqiiéncia, um acervo de inovacées técnicas em per- manente aumento, sendo que a viabilidade econdmica dessas novas formas de producdo ficava na dependéncia do jutzo dos homens de empresa. Na medida em que as condigées o justificavam, as novas técnicas iam sendo in- corporadas aos processos produtivos. Mas, embora o avanco da ciéncia e da técnica adquirisse autonomia crescente — ampliando-se 0 espectro de possi- bilidades tecnolégicas potenciais — as condigdes econdmicas é que determi- navam, em cada caso ¢ fase, o tipo de tecnologia a ser utilizado. Na primeira fase do desenvolvimento, caracterizado pela absorgao do sis- tema pré-capitalista, o saldrio do operdrio no especializado era, basicamente, um saldrio de sobrevivéncia. Com a desarticulacao do artesanato ¢ o aumento conseqiiente da oferta de mao-de-obra nas zonas urbanas, a tendéncia favoreceu mais a baixa que a alta dos saldrios.® Pode-se admitir, portanto, de maneira geral, que o desenvolvimento se processava em condigées de oferta de mao- de-obra totalmente eldstica, a um n{vel de saldrio real constante em termos de alimentos. Como os precos dos produtos manufarurados, medidos exatamente em termos de alimentos, estavam em declinio? — se nao houvesse essa baixa de precos nao seria poss(vel eliminar, pela concorréncia, a produgio artesanal —, depreende-se que 0 saldrio, medido em termos de produtos manufatura- dos, deveria acusar certa tendéncia a subir, o que evidentemente contribula para expandir a procura de manufaturas nas zonas urbanas. Em tais condi- goes, ndo h4 como negar que as inovagées tecnoldgicas se afigurariam tanto mais econémicas quanto maior fosse a reducao do custo unitdrio que elas per- mitissem, mediante o aumento da producao por unidade de capital aplicado no processo produtivo. Nessa fase a induistria de bens de capital — excluidos “Para uma reconsideragio recente desse problema, eja-seE. J. Hobsbawn, “The British Standard of Living 1790-1850” (The Economie History, agosto de 1957), 70s pregos médios dos tecidos de algodio produzidos na Inglaterra baixaram de quatro quintas partes entre 1790-1800 e 1840-50. Veja-se W. W. Rostow, op. cits apéndice U. 246 TEXTOS SELECIONADOS: os materiais de construgéo — constitufa um setor de importincia relativa- mente pequena. O volume das inversdes no setor industrial estava muito mais limitado pela oferta real de equipamentos que por outros fatores de natureza estritamente econémica. A produgao de equipamentos efetuava-se em base semi-artesanal, permanecendo em segundo plano a preocupacéo de reduzir- Ihe os custos. Seria primeiramente necessério que a indiistria de equipamen- tos alcangasse certa maturidade e a oferta se tormasse relativamente eléstica, neste setor, para que o problema da escolha da técnica comesasse a formular- se em tetmos rigorosamente econdmicos. Com uma oferta eldstica de mao-de-obra, o principal fator determinante do ritmo do crescimento econémico é a capacidade produtiva da industria de bens de capital (ignorado o intercambio externo, para simplicidade de expo- sigio). Por outro lado, a participacéo da industria de bens de capital, na pro- dugéo global, reflete a forma de distribuigo da renda: sendo maior essa par- ticipagdo, maior terd que ser, também, a participacao dos lucros, em particular dos lucros industriais, na renda total.’ Com efeito: se se admite que o consu- mo das classes de altas rendas é regulado por fatores institucionais e pouco afetado por modificasées de curto prazo, no nivel da renda global, ¢ que 0 consumo dos assalariados é determinado pelo nivel de sua renda corrente, apresentando-se praticamente nula sua capacidade de poupanca, cabe con- cluir que o maximo consumo real da classe assalariada tem a determiné-lo, por um lado, a oferta total de bens e servicos de consumo e, por outro lado, 0 nfvel do consumo das classes nao assalariadas. Ora, a oferta total de bens servigos de consumo é determinada pelo seu préprio nivel de produgao se, para simplificar, raciocinamos em termos de uma economia fechada. Como a produgao de bens de consumo ¢ a de bens de capital so complementares, torna-se ébvio que o aumento relativo de uma implica a redugio relativa da outra. Ao transferirem-se trabalhadores do setor de bens de consumo para 0 de bens de capital, a oferta de bens de consumo reduz-se, ao passo que o nfvel de sua procura se mantém inalterado —- supondo que seja possivel tal trans- feréncia sem aumento do salitio médio. Se este aumenta, para induzir os ope- rdrios a trocarem de setor, haverd expansio da procura de bens de consumo, ‘Para uma andlise deste ponto, veja-se N. Kaldor, “Alternative Theories of Distribution” (Review of Economie Studies, margo de 1956) 247 CINQUENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL ao mesmo tempo que se reduz a sua oferta no mercado. Na pritica, seme- Ihante situagio acarretatia elevacao do nivel de precos dos bens de consu- mo, redugao no salério real médio e, conseqiientemente, um aumento da participasao dos lucros no produto. Com efeito: se levamos em conta que a produgao de bens de capital rem que ser comprada pelos empresérios, com parte de seus lucros, e que o consumo da classe nao assalariada é estavel a curto prazo, cabe concluir que uma reducio da produgao de bens de consu- mo fard 0 saldrio médio real reduzir-se também; e que um aumento da pro- duo de bens de capital resultaré num aumento dos luctos. Qualquer des- ses fenémenos acarreta modificagées na distribuicao da renda, provocando reacoes dos grupos sociais interessados. A atitude destes ¢ que, em dltima instancia, determinar4 a forma de distribuigao da renda e a estrutura da produsao. A primeira fase do desenvolvimento industrial se caracterizou por um aumento substancial da participacao da industria de bens de capital — so- bretudo da industria de equipamentos — no total da produgio industrial. Essa modificago na estrutura do aparelho produtivo foi muito provavel- mente acompanhada de alteragdes na distribuicdo da renda, crescendo a massa total dos lucros com mais intensidade que a folha de saldtios, Nao serd facil precisar quando se concluiu essa primeira etapa do desenvolvimento industrial, mas tudo indica que a total absorgao da economia pré-capitalis- taea conseqiiente absor¢ao do excedente estrutural de mao-de-obra devem ter coincidido com o encerramento dessa fase. A partir de entdo, a oferta de mao-de-obra tornou-se pouco eléstica, melhorando a posicao de barganha da classe trabalhadora, 0 que criou sérias dificuldades & absorgao da grande massa de bens de capital em permanente produgao. Foi uma situacao que se configurou com absoluta clareza, na Inglaterra, j4 no comeco do tiltimo quartel do século passado: para absorver o grande e crescente volume de bens de capital era necessdrio transferir mao-de-obra desse setor para o de bens de consumo, o que teria ocasionado uma redugio relativa da produgao de bens de capital, com redistribuiggo da renda a favor dos grupos assalaria- dos. Tal tendéncia Jevaria a uma reduco no ritmo de crescimento ¢ a uma baixa da taxa de lucros. A economia inglesa logrou evitar a eutandsia preco- ce langando-se numa grande ofensiva internacional. Foi quanto bastou para que tivesse in{cio a fase de total liberalizag4o do comércio inglés, das macicas 248 TEXTOS SELECIONADOS exportagées de capital, que mantinham a industria de equipamentos funcio- nando a plena capacidade, e da ofensiva comercial sob a forma do audacioso imperialismo vitoriano. A segunda fase do desenvolvimento das economias industriais — quan- do a oferta de mio-de-obra se torna pouco elistica — esté assinalada por um desequilibrio fundamental entre a capacidade de produgao de bens de capital €.a possibilidade de absorgao dos mesmos. Visto de outro lado, este fendme- no apresenta-se da forma seguinte: a oferta de capital tende a crescer mais rapidamente que a do fator trabalho, o que ctia forte pressio no sentido da redistribuigao da renda a favor dos trabalhadores. A redistribuigo acarreta- ria, entretanto, uma baixa na taxa de lucros, desencadeando por seu lado uma série de reagdes, tendentes a reduzir 0 volume de inversées, a criar desempre- go tempordrio, a reduzir o ritmo do crescimento econémico etc. O ponto crucial do problema estava, portanto, na relativa inelasticidade da oferta de mio-de-obra. Ou se aumentava a elasticidade da oferta de trabalho ou have- ria que reduzir a importancia relativa da produgao de bens de capital e permi- tir que, nessa conformidade, a renda se redistributsse a favor dos grupos assa- latiados. Ao fato de terem as economias capitalistas logrado solucionar esse problema, ao mesmo tempo que mantinham o nivel de participacao dos lu- tos no produto, deve-se a manutengio da clevada taxa de crescimento que também caracterizou a segunda etapa do desenvolvimento industrial moder- no. A fase de grandes exportacdes de bens de capital, em fins do século passa~ do ¢ comegos do atual, constitui um simples perfodo de transiggo — assu- mindo grandes proporgées apenas no caso do primeiro pafs a industrializar-se, a Inglaterra — que teve a virtude de permitir o refinamento de solug&es mais definitivas. Encontraram-nas na propria tecnologia, progressivamente orien- tada no sentido de corrigir 0 desequilibrio fundamental, que se formara na etapa anterior. Um excesso estructural da oferta, no setor de bens de capital, tende a refle- tir-se em redugao dos custos da inversio, no setor de bens de consumo, onde sio utilizados em sua grande maioria os equipamentos. Na medida em que os equipamentos mais baratos véo penetrando nas industrias de bens de consu- mo — seja para reposigio, seja para ampliacdo —, a rentabilidade desse setor tende a aumentar, com respeito ao conjunto da economia. Ora, a maior ren- tabilidade no setor de bens de consumo significa, em tilkima instancia, que 249 CINQUENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL uma fragdo maior dos bens de consumo produzidos nio é consumida pelos operdrios dessa mesma indistria, e, portanto, fica livre para ser consumida no setor de bens de capital. Como esse setor nao estd em crescimento, manifes- ta-se uma pressio no sentido da baixe dos pregos dos bens de consumo, que, em tiltima instancia, significa uma elevacéo do salério real, em termos de mercadorias produzidas pelo setor manufatureiro. A tendéncia & elevagao do salério real incidird mais fortemente sobre as indistrias de bens de capi- tal que jd estejam operando com baixa rentabilidade. Dessa situacao decor- re que as técnicas mais avangadas — que implicam maior densidade de ca- pital por pessoa ocupada — encontram condigées econémicas relativamente mais favordveis nas indiistrias produtoras de bens de capital. E 0 avango mais rdpido da tecnologia nas industrias produtoras de bens de capital tem con- seqiiéncias fundamentais para todo desenvolvimento da economia. Cres- cendo a sua produtividade fisica mais intensamente que nas industrias de bens de consumo, os presos dos equipamentos tendem a declinar em ter- mos de produtos manufaturados de consumo, o que induz a substituir, nas indiistrias de bens de consumo, mo-de-obra por equipamentos. Daf resul- ta uma tendéncia a aumentar 0 grau de mecanizagio, em todo o sistema, isto é, a aumentar a densidade de capital fixo por pessoa ocupada. Como 0 prego dos equipamentos, em termos de manufaturas de consumo (e, por- tango, em termos de salérios reais), vem diminuindo, a maior mecanizagao no implica, necessariamente, redugao da taxa de rentabilidade dos novos capitais invertidos.? O forte avango relativo da tecnologia nas indistrias de bens de capital permitiu conciliar a forma de distribuigao da renda, que cristalizara no pe- rlodo de absorcio da economia pré-capitalista, e uma forte participagio das indstrias de bens de capital no produto total, com uma oferta de mao-de- obra relativamente pouco elistica. Equipamentos que provocavam substanciais aumentos da produtividade fisica nas induistrias de bens de consumo (como os teares automsticos) eram obtidos da indistria de bens de capital, praticamente sem aumento de precos (em termos de bens de consumo). A resultante elevaao dos salétios reais criatia *Para uma andlise aguda das incer-rlagBes entre o grau de mecanizagio ¢ a excolha de tecnologia, veja-se Joan Robinson, The Accumulation of Capital (Macmillan, Londres, 1956). 250 TEXTOS SELECIONADOS boas condigées de rentabilidade para processos tecnologicamente ainda mais avangados. Observado o mesmo fendmeno de outro ponto de vista, pode-se dizer que a tecnologia foi orientada no sentido de permitir combinagées de fatores em que entravam quantidades crescentes de capital (definido no sen- tido convencional) por homem ocupado. Aquelas invengGes que possibilita- vam economia do fator mao-de-obra (dado um nivel de produgao ja alcanga- do) tinham preferéncias as que permitiam aumento da produtividade fisica do trabalho, mas nfo permitiam reduzir a procura do fator mao-de-obra. Em particular no setor agricola — grande viveiro de mao-de-obra — realizou-se esforco substancial no sentido de reduzir a procura do fator trabalho. A me- canizagio agricola, iniciada em fins do século pasado, trouxe enorme desafo- go a0 mercado de trabalho, contribuindo, substancialmente, para que se mantivesse elevado o nfvel das inversées nas economias de mais adiantado grau de mecanizacao. As observacées anteriores evidenciam, com clareza, a {ntima interdepen- déncia existente entre a evolugio da tecnologia nos pafses industrializados e as condigGes histéricas do seu desenvolvimento econdmico. Essa tecnologia, na forma em que se apresenta hoje, incorporada aos equipamentos indus- triais, resulta, portanto, de um lento processo de decantagio. Nesse proces- so influfram, de maneita fundamental, condigées especificas de algumas nagées, sobretudo da Inglaterra e dos Estados Unidos, pafses que, sob vari- 0s pontos de vista, constitufram um s6 sistema econémico, dutante a pri- meira metade do século XIX.'* Derivar um modelo abstrato do mecanismo dessas economias, em seu estdgio atual, e atribuir-lhe validez universal vale- ria por uma reencatnagéo do homo ceconomicus, em cuja psicologia rudi- mentar os cléssicos pretenderam assentar as leis econémicas fundamentais. A dualidade ébvia que existe e se agrava, cada dia mais, entre as economias desenvolvidas e as subdesenvolvidas, exige uma formulagéo desse problema em termos distintos. ‘Para uma andlise da interdependéncia do desenvolvimento econdmico da Inglaterra edos Estados Unidos, no século XIX, veja-se, do autor, Formaeio Econémica do Brasil (Fundo de Cultura, Rio, 1959), em par- ticular 0 capftulo XVII. 251 CINQUENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL AS ESTRUTURAS SUBDESENVOLVIDAS O advento de um niicleo industrial, na Europa do século XVIII, provocou uma ruptura na economia mundial da época e passou a condicionar o desen- volvimento econémico subseqiiente em quase todas as regides da terra. A acao desse poderoso nticleo dinamico passou a exercer-se em trés direges distin- tas. A primeira marca linha de desenvolvimento, dentro da prépria Europa ocidental, no quadro das divisées polfticas que se haviam cristalizado na eta- pa mercantilista anterior. Esse desenvolvimento, conforme vimos, caracteri- zou-se pela desorganizagao da economia artesanal pré-capitalista e pela pro- gressiva absorgdo dos fatores liberados, a um nivel mais alto de produtividade. Tdentificam-se duas fases nesse processo; na primeira, a liberagéo de mao-de- obra era mais répida que a absorgdo, 0 que tornava a oferta desse fator total- mente eldstica; na segunda, a oferta da mAo-de-obra, resultante da desarticu- lagio da economia pré-capitalista, tende a esgotar-se, o que exige uma reorientagdo da tecnologia. Cabe a esta manter a flexibilidade do sistema, para que os fatores se combinem, em proporgées compativeis com a sua oferta. Desta forma, o desenvolvimento da tecnologia — isto é, as transformagées das indastrias de bens de capital — passa a ser cada vez mais condicionado pela disponibilidade relativa de fatores nos centros industriais. ‘A segunda linha de desenvolvimento da economia industrial européia consistiu num deslocamento para além de suas fronteiras, onde quer que houvesse terras ainda desocupadas e de caracteristicas similares as da propria Europa. Fatores varios respondem por essa expansio. No caso da Austrilia e do Oeste norte-americano, 0 ouro desempenhou um papel bésico. A revolu- 40 dos transportes maritimos, permitindo trazer cereais de grandes distin- cias, para competir no mercado europeu, foi decisiva em outros casos. Mas importa ter em conta, entretanto, que esse deslocamento de fronteira nao se diferenciava, basicamente, do processo de desenvolvimento da prépria Euro- pa do qual fazia parte, por assim dizer: as economias australiana, canadense ou estadunidense nessa fase eram simples prolongamentos da economia in- dustrial européia. As populagées que emigravam para esses novos territérios levavam as técnicas e os hébitos de consumo da Europa ¢, a0 encontrarem maior abundancia de recursos naturais, alcangavam, rapidamente, niveis de produtividade e renda bastante altos. Se consideramos que essas “colénias” s6 252 TEXTOS SELECIONADOS se estabeleciam onde prevaleciam condig6es econémicas excepcionalmente favordveis, explica-se que suas populagées hajam alcangado, desde o in{cio, elevados niveis de vida, comparativamente aos dos paises europeus. A terceira linha de expansao da economia industrial européia foi em dire- do as regides j4 ocupadas, algumas delas densamente povoadas, com seus sis- temas econdmicos seculates, de variados tipos, mas todos de natureza pré- capitalista. O contato das vigorosas economias capitalistas com essas regides de antiga colonizagio nao se fez de maneira uniforme. Em alguns casos, 0 interesse limitou-se a abertura de linhas de comércio. Em outros houve, des- de 0 inicio, o desejo de fomentar a produgio de matérias-primas, cuja procu- racctescia nos centros industriais. O efeito do impacto da expansao capitalista sobre as estruturas arcaicas variou de regio para regiao, ao sabor de circuns- tancias locais, do tipo de penetragao capitalista e da intensidade desta. Con- tudo, a resultante foi quase sempre a criagao de estruturas hfbridas, uma parte das quais tendia a comportar-se como um sistema capitalista, a outra, a man- ter-se dentro da estrutura preexistente. Esse tipo de economia dualista consti- tui, especificamente, o fendmeno do subdesenvolvimento contemporaneo. O subdesenvolvimento é, portanto, um processo histérico auténomo, € no uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que jd alcangaram grau superior de desenvolvimento. Para captar a esséncia do problema das atuais economias subdesenvolvidas necessdrio se torna levar em conta essa peculiaridade. Consideremos 0 caso t{pico de uma economia que recebe uma cunha capitalista, sob a forma de atividades produtivas destina- das & exportacdo. Seja o caso de uma exploragéo mineira, sob controle de empresa capitalista que organize ndo somente a produgéo mas, também, a comercializagao do produto. A intensidade do impacto desse nticleo na velha estrutura depender4, fundamentalmente, da importancia relativa da renda a que ele dé origem e que fique a disposigao dentro da coletividade. Depende, portanto, do volume de mio-de-obra que absorva, do nivel do salétio real médio ¢ da totalidade de impostos que pague. Este ultimo item teve reduzida importdncia nas etapas iniciais de expansio capitalista, pois para atrair 0 capi- tal foraneo criavam-se est{mulos de todo tipo, inclusive o da total isengao de impostos. O nivel do salétio real era e é determinado pelas condigées de vida prevalecentes na regiao onde se instalam as novas empresas, sem conexdo pre- cisa com a produtividade do trabalho na nova atividade econdmica. Bastava 253 CINQUENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL que 0 saldrio na empresa capitalista fosse algo superior & média regional, para que se deparasse uma oferta de mao-de-obra totalmente eléstica. As- sim sendo, o fator decisivo era o volume de mao-de-obra absorvida pelo nticleo capitalista. Ora, a experiéncia demonstra que esse volume de mao- de-obra nao atingia, via de regra, grandes proporsdes. No caso das econo- mias especializadas na exploragao de minérios, dificilmente alcangava 5% da populacao em idade de trabalhar. Além do mais, as novas empresas en- travam em contato com as autoridades locais e tratavam de habilitd-las & execugio de medidas de profilaxia e outras, cujo resultado se fazia sentir numa redugao da taxa de mortalidade, com correspondente aumento da taxa de incremento vegetativo da populaco. Ao cabo de algum tempo, 0 ntime- ro de habitantes havia aumentado o suficiente para restabelecer a relagao entre populacio e recursos, que prevalecia na etapa anterior & penetragao da empresa capitalista. A estrutura econémica da regio onde penetrou a empresa capitalista — no exemplo do pardgrafo anterior — nao se modifica, necessariamente, como conseqiiéncia dessa penetracao. Apenas uma reduzida fragao da mao-de-obra dispontvel é absorvida pela empresa foranea; os saldrios pagos a essa mao-de- obra nao so determinados pelo nivel de produtividade da empresa e, sirn, pelas condigées de vida prevalecente na regido. Salientamos, também, que era de esperar a populaggo aumentasse sua taxa de crescimento. Como a empresa capitalisca esté ligada a regido onde se localizou quase que exclusivamente como um agente criador de massa de salérios, seria necessério que o montante dos pagamentos ao fator trabalho alcangasse grande importancia relativa para pro- vocar modificagées na estrutura ¢conémica. O fendmeno é, até certo ponto, idéntico ao observado na primeira fase do desenvolvimento da economia ca- pitalista, quando o sistema artesanal preexistente ia sendo destruido e absor- vido. Fase anterior 20 momento em que o setor capitalista, em expansio, ab- sorveria a totalidade ou quase totalidade dos recursos de mao-de-obra, permitindo que os salirios reais, antes determinados em fungao das condi- oes preexistentes de vida, passem a ser condicionados pelo nfvel de produti- vidade. Ainda assim a similitude é aparente, pois a empresa capitalista que penetra em uma regiao de velha colonizagao e estrutura econémica arcaica no se vincula, dinamicamente, asta tiltima, pelo simples fato de que a mas- sa de lucros por ela gerados no se integra na economia local. 954 TEXTOS SELECIONADOS O dinamismo da economia capitalista resulta, em tiltima instncia, do papel que nela desempenha a classe empresarial a qual cabe utilizar de forma reprodutiva uma parte substancial da renda em permanente processo de for- magio. Jé nos referimos ao fato de que 0 consumo da classe capitalista é de- terminado por fatores institucionais e, praticamente, independe de flutuacées, a curto prazo, no nivel da renda global. E este, por certo, o elemento mais estdvel no dispéndio da coletividade. Por outro lado, 0 consumo dos assa- ariados tem a determind-lo 0 nivel global de emprego, cabendo-lhe um papel ancilar no proceso de desenvolvimento. Assim sendo, o que garante o dina- mismo a economia capitalista é a forma como se utiliza a massa de renda que reverte aos empresarios ¢ que estes poupam. Ora, trata-se de uma parcela que nao se vincula & regido onde esté localizada a empresa: sua utilizacao depen- de, quase exclusivamente, das condigées prevalecentes na economia a que pertence o capital. Considere-se 0 caso dos capitais ingleses invertidos em empresas produtoras de ché, borracha ou metais, no Sudeste da Asia. A renda gerada por essas empresas integra-se em parte na economia local, em parte na economia inglesa. E provavel que a parcela correspondente & economia local seja maior que a outra. Mas, a cota-parte que permanece ligada & economia inglesa que detém as caracter(sticas dinamicas do sistema capitalista. Com efeito: numa substancial proporgao a massa de poupanga, que todos os anos a economia inglesa necessita de transformar em capacidade produtiva, deriva de rendas provenientes de empresas localizadas em todas as partes do mundo. As observagées do pardgrafo anterior explicam por que a expanséo do comércio internacional no século XIX — expansao decorrente do desenvol- vimento industrial da Europa — nao determinou uma propagasao, na mes- ma escala, do sistema capitalista de produgao. O deslocamento da fronteira econémica européia traduziu-se, quase sempre, na formagdo de economias hibridas em que um niicleo capicalista passava a coexistir, pacificamente, com uma estrutura arcaica. Na verdade, era raro vermos o chamado micleo capita lista modificar as condigées estruturais preexistentes, pois estava ligado a eco- nomia local apenas como elemento formador de uma massa de salérios. So- mente quando o tipo de empresa requeria a absorgao de grande mimero de assalariados — como foi o caso das plantagées de ché, no Ceilao, e de borra- cha, na Birmania — é que o efeito da organizagao capitalista sobre a econo- mia local assumia maior importancia. Se a oferta de mao-de-obra local era 255 CINQUENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL relativamente escassa, como ocorreu nesses dois paises, apresentava-se, des- de cedo, a possibilidade de elevagao do saldrio real, ainda que tal tendéncia pudesse ser parcialmente anulada — e assim ocorreu nos dois casos citados — mediante a importacao de mao-de-obra proveniente de palses de baixo nivel de vida. Contudo, apesar dessa melhora de condigées de vida, nao se registrava uma modificacéo estrutural no sistema econémico, isto é, néo se dava o passo fundamental exigido para criagio de uma economia tipicamente capitalista. E desde 0 momento em que as condigdes externas deixaram de permitir que continuasse a expandir-se, naqueles paises, a produgie de cha ou borracha, criou-se uma situacéo de equilibrio em um nivel permanente de subemprego de fatores, que seria inconcebfvel numa economia tipica- mente capitalista. Como os saldrios estao determinados pelas condicées de subsisténcia — e, portanto, é alta a margem de lucro — a empresa fica em condigées de absorver fortes quedas de pregos, tazao pela qual o nivel de emprego pouco flutua. As quedas de precos, a0 afetarem, de preferéncia, a margem de lucro, concentram seus efeitos na prépria renda inglesa, na qual estdo integtados os lucros da empresa. Mutatis mutandis, a recuperasao dos precos e a etapa de bonanga passam quase despercebidas no pats onde se localiza a empresa, a menos que fatores de outra ordem aconselhem a utili- zat os maiores lucros para expandir 0 negécio na prépria regio onde so auferidos. A decisio relativa a uma possivel ampliagao dos negécios é toma- da de Londres, em fungao dos interesses da economia inglesa, no seu con- junto. Eis por que, nao obstante os chamados nticleos capitalistas sejam relativamente fortes, em economias como a do Ceiléo ou das reptiblicas centro-americanas, estas continuam a comportar-se como estruturas pré- capitalistas. Nio seria justo, entretanto, supor que as economias hibridas, a que vi- mos fazendo teferéncia, se comportem em todas as circunstincias como es- truturas pré-capitalistas, Em muitos casos — e o Brasil é um bom exemplo— a massa de salarios no setor ligado ao mercado internacional foi suficiente para dar cardter monetétio a uma importante faixa do sistema econdmico. O crescimento dessa faixa monetéria implicou importantes modificagées nos habitos de consumo, com a penetragéo de imimeros artigos manufaturados de procedéncia estrangeira. A diversificagao nos hdbitos de consumo teve importantes conseqiiéncias para o desenvolvimento posterior da economia. 256 TEXTOS SELECIONADOS Jévimos que o nivel de emprego, numa economia desse tipo, tende a er rela- tivamente estavel, embora o valor das exportac6es flutue ao sabor das oscila- ‘gGes nos pregos internacionais das matérias-primas. A estabilidade da renda monetéria interna, em confronto com a instabilidade da capacidade para importar, cria fortes pressdes sobre o balango de pagamentos, nas fases de baixa dos presos internacionais, e dificulta a adogao das regras do padrdo-ouro. Na medida em que foi crescendo a importancia relativa da renda monetéria, den- tto da economia brasileira — como resultado da expansao do setor ligado ao mercado internacional — tendeu a aumentar a press4o sobre o balango de pagamentos, nas fases de baixa dos pregos internacionais. Surgiram, assim, condigdes favordveis 4 criagao de atividades ligadas ao préprio mercado inter- no. Nas fases de forte declinio dos pregos de exportacio, a rentabilidade dos negécios ligados ao mercado interno rendea crescer, em termos relativos, pois aumentam os pregos das mercadorias importadas a0 mesmo tempo que se mantém o nivel da renda monetéria. Quando a atividade exportadora era controlada sobretudo por capitais nacionais — como foi o caso, no Brasil, durante a expansio cafecira —, 0 problema apresentava outros aspectos de importancia. A simples existéncia de vultosa massa de lucros formados na atividade ligada ao mercado externo abria novas possibilidades, ou criava novos problemas. E necessério ter em conta que esses lucros nao desempenhavam, na economia cafeeira, o mesmo papel que cabia aos lucros de uma economia industrial. O elemento dinami- co da economia cafeeira era a procura externa, € nao o volume das invers6es nela realizadas. Se essas invers6es se revelassem excessivas, 0 efeito ultimo podia ser uma perda de renda real, através da baixa de precos. Nas repiblicas cen- tro-americanas pdde-se observat, lado a lado, os dois fendmenos: o do efeito da incrustacao de empresas estrangeiras — no caso das plantacdes de banana; € 0 do efeito de uma expanséo controlada por capitais nacionais — no caso das plantagdes de café. O resultado nao foi muito distinto, se bem que desse © café origem a um fluxo de lucros, além do de salétios. Lucros que foram invertidos na prépria atividade cafeicultora, na medida em que a disponibili- dade de terras e mao-de-obra o permitiu. Mas, uma vez esgotadas as possibi- lidades de expansio do setor cafeciro, a experiéncia demonstrou que os novos capitais nele formados tendiam antes a expatriar-se que a buscar outros cam- pos de aplicagéo dentro do sistema. 257 CINQGENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL A experiéncia brasileira surge como um caso especial, o que se deve & sua propria magnitude. De fato: dada a grande abundancia de terras aptas para plantar café ¢ a elasticidade da oferta de mao-de-obra,"' as inversées na cafei- cultura nao encontraram limitagao pelo lado da oferta de fatores. Explica-se, assim, que se haja formado, desde fins do século passado, uma situagao créni- ca de excesso de oferta ¢ a0 mesmo tempo que fosse poss{vel controlar, por ancios artificiais, essa oferta. Os lucros do setor cafeicultor, nas fases de pros- peridade, cendiam a concentrar-se nesse mesmo setor, sem desempenhar qual- quet papel fundamental, no sentido da modificagéo da estrutura do sistema. A nica diferenca, com respeito & experiéncia centro-americana, estava em que, havendo oferta eldstica de fatores, os lucros eram invertidos na propria base que os gerava. E essas volumosas inversées efetuadas no setor cafeicultor — mesmo quando a sua rentabilidade real era relativamente baixa — provoca- vam a absorgao da economia de subsisténcia preexistente ¢ financiavam a imigragao européia, promovendo, assim, a expansio do setor monetério den- tro da economia. Como as necessidades de manufaturas desse setor eram bas- tance clevadas, surgi um mercado de produtos manufaturados, que justifica- ria, mais tarde, a criago de um nticleo industrial, tornando posstvel, com 0 tempo, a transformagio estrutural da economia. O elemento dindmico, na primeira etapa do desenvolvimento industrial europeu, atuou, conforme vimos, pelo lado da oferta. A aco empresarial — através da introdugéo de novas combinagées de fatores — criou sua prépria procura, na medida em que conseguiu oferecer um produto mais barato e mais abundante. No caso do desenvolvimento induzido de fora para dentro— como foi o brasileiro — formou-se, primeiramente, a procura de manufacuras, sa- tisfeita com importagées. O fator dinamico atuaria do fado da procura, a partir do momento em que esta nao pudesse ser satisfeita pela oferta externa. Por um lado, a estabilidade do nfvel da renda monetdria, por outro, a instabilida- de da capacidade para importar, agitam, cumulativamente, no sentido de ga- rantir atrativo as inversées ligadas ao mercado interno. A hébil polftica de primeira fase de grande expansio cafeeira no Brasil — rerceiro quarrel do século passado — teve como base a mao-de-obra que havia permanecido semi-utilizada, na regigo mincira, desde que entrara ‘em decadéncia a economia do ouro; na segunda etapa de expanséo — titimo quartel da século passado =o problema da mio-de-obra foi resolvido mediante a imigragio européia; a expansio dos anos 1920, 1940 e 1950 fez-se com base na absorgao de excedente de mio-de-obra, proveniente de Minas Gerais € dos estados do Nordeste 258 TEXTOS SELECIONADOS controle artificial da oferta de café, iniciada no primeirto decénio do século XX, deu maior estabilidade 4 capacidade para importar e, muito provavel- mente, afetou de forma negativa o desenvolvimento do nucleo industrial em formacao. Mas note-se que essa politica tornou mais profunda e de efeitos mais duradoutos a crise cafeeira, iniciada em 1929, precipitando, assim, as transformagées estruturais que se vinham anunciando. O nticleo industrial, criado com base na procura preexistente de manu- faturas — antes atendida com importag6es — iniciou-se a partir de induis- trias ligeiras, produtoras de artigos de consumo geral, como tecidos ¢ ali- mentos elaborados, Passam a coexistir, entao, trés setores, dentro da economia: no primeiro, predominam as atividades de subsisténciae ¢ redu- zido 0 fluxo monetério; no segundo, esto as atividades diretamente ligadas a0 comércio exterior; no terceiro, finalmente, as que se prendem ao mercado interno de produtos manufaturados de consumo geral. Depara-se-nos, por- tanto, um tipo de estrutura econémica subdesenvolvida bem mais complexo que o da simples coexisténcia de empresas estrangeiras com remanescentes de um sistema pré-capitalista. Nas estruturas subdesenvolvidas de grau in- ferior, a massa de saldrios gerada no setor exportador constitui o tinico ele- mento dindmico. A expansio do setor exportador engendra um fluxo maior de renda monetéria, que torna poss{vel a absorgao de fatores antes ocupa- dos no setor de subsisténcia. Se se mantém estacionério o setor exportador, © crescimento da populagio forcard A redugao do saldrio real médio ¢ a0 declinio da renda por habitante. Nas estruturas subdesenvolvidas mais complexas — onde ja existe um nticleo industrial ligado ao mercado interno — podem surgir reagées cumula- tivas, tendentes a provocar transformagées estruturais no sistema. O fator dina- mico bdsice continua a ser a procura externa: a diferenga est4 em que a aco desta é multiplicada internamente. Ao crescer a renda monetéria, por indugao externa, crescem, também, os lucros do niicleo industrial ligado ao mercado interno eaumentam as inversdes nesse niicleo, o que também afeta, favoravel- mente, o nivel da renda monetdtia — com conseqiiente redusao da impor- tancia relativa da faixa de subsisténcia. Contudo, como a expansio do setor externo é acompanhada de melhora na capacidade de importagdo, 0 poder competitivo das importagdes aumenta nessas fases, por via de regra, reduzin- do-se a magnitude real do multiplicador interno da renda. A diferenga maior 259 CINQUENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL ocorre, entretanto, na etapa seguinte de contrago da capacidade de importa- cio, ao declinarem os precos dos produtos exportados. Como a renda mone- tdria se mantém em nivel relativamente alto, 0 declinio da capacidade de importagéo acarreta forte desvalorizacéo cambial. O niicleo entra, assim, em etapa ae bonanga, exatamente na fase de declinio da rentabilidade no setor exportador. Embora decline o nivel da renda monetéria, aumenta a procura de manufaturas de producao interna, devido a desvalorizagao cambial, me- Ihorando a rentabilidade no setor ligado ao mercado interno. Contudo, as possibilidades efetivas de crescimento sio frustradas pela redugio da capaci- dade de importacao. A alta rentabilidade das industrias ligadas a0 mercado interno é, em parte, aparente, pois os precos de reposicio dos equipamentos importados crescem com a desvalorizacio cambial. A existéncia de uma im- portante massa de lucros, provenientes de atividades ligadas ao mercado in- terno, numa etapa de aumento relativo dos precos de equipamentos indus- triais, faz surgir uma tendéncia a inverter capitais nas atividades menos dependentes das importagées, tais como as construgées residenciais. Como essas inversées no provocam modificagées permanentes na estrutura de em- prego da coletividade, o seu aumento relativo tende, em iiltima instincia, a frear 0 proprio processo de crescimento, Acetapa superior do subdesenvolvimento éalcangada quando se diversifi- cao nticleo industrial e este fica capacitado a produzir parte dos equipamen- tos requeridos pela expansio de sua capacidade produtiva. O fato de se alcan- ar essa etapa nao implica que o elemento dinamico principal passe, automaticamente, a ser 0 nticleo industrial ligado a0 metcado interno. O pro- cesso normal de desenvolvimento do niicleo industrial é ainda o da substitui- ao de importagées; destarte, 0 elemento dindmico reside ainda na procura preexistente — formada, principalmente, por indugdo externa — e nio nas inovag6es introduzidas nos processos produtivos, como ocorre nas economias industriais toralmente desenvolvidas. No entanto, como o sistema é capaz de produzir parte dos bens de capital de que necessita para expandir sua capaci- dade produtiva, o processo de crescimento pode continuar por muito mais tempo, mesmo que haja estancamento da capacidade de importagao. O de- senvolvimento se opera, em tais condig6es, entretanto, com forte pressio in- flacionéria, por uma série de razbes que observaremos, mais detidamente, em capftulos seguintes. 260 TEXTOS SELECIONADOS Sintetizando a andlise anterior: o subdesenvolyimento nao constitui uma etapa necessdria do processo de formagao das economias capitalistas moder- nas. E, em si, um processo particular, resultante da penetrago de empresas capitalistas modernas em estruturas arcaicas. O fendmeno do subdesenvolvi- mento apresenta-se sob formas varias e em diferentes estddios. O caso mais simples é 0 da coexisténcia de empresas estrangeiras, produtoras de uma merca- doria de exportacdo, com uma larga faixa de economia de subsisténcia, coe- xisténcia esta que pode perdurar, em equilibrio estético, por longos periodos. O caso mais complexo — exemplo do qual nos oferece o estédio atual da eco- nomia brasileira — é aquele em que a economia apresenta trés setores: um, principalmente de subsisténcia; outro, voltado sobretudo para a exportago, €0 terceiro, como um nucleo industrial ligado ao mercado interno, suficien- temente diversificado para produzir parte dos bens de capital de que necesita para seu préprio crescimento. O niicleo industrial ligado ao mercado interno se desenvolve através de um processo de substituicéo de manufaturas antes importadas, vale dizer em condigées de permanente concorréncia com pro- dutores foraneos. Daf resulta que a maior preocupasio do industrial local €a de apresentar um artigo similar ao importado ¢ adotar métodos de produsao que o habilitem a competir com o exportador estrangeiro. Por outras pala- vras, a estrutura de pregos, no setor industrial ligado ao mercado interno, ten- dea assemelhar-se & que prevalece nos palses de elevado grau de industrializa- 40, exportadores de manufaturas. Assim sendo, as inovagées tecnoldgicas que se afiguram mais vantajosas so aquelas que permitem aproximar-se da estru- tura de custos ¢ precos dos paises exportadores de manufaturas, € nao as que permitam uma transformagéo mais répida da estrutura econémica, pela ab- sorcao do setor de subsisténcia. O resultado prético disso — mesmo que cres- a0 setor industrial ligado ao mercado interno e aumente sua participacao no produto, mesmo que cresca, também, a renda per capita do conjunto da po- pulagdo — é que a estrutura ocupacional do pafs se modifica com lentidao. O contingente da populacio afetada pelo desenvolvimento mantém-se redu- zido, declinando muito devagar a importancia relativa do setor cuja principal atividade é a produsao para subsisténcia. Explica-se, deste modo, que uma economia, onde a producdo industrial jé alcangou elevado grau de diversifi- cacdo e tem uma participacao no produto que pouco se distingue da observa- da em paises desenvolvidos, apresente uma estrutura ocupacional tipicamente 261 CINQUENTA ANOS DE PENSAMENTO NA CEPAL pré-capitalista e que grande parte de sua populacao esteja alheia aos beneficios do desenvolvimento, Como fendmeno especifico que é, 0 subdesenvolvimento requer um es- forgo de teorizagao aucénomo. A falta desse esforgo tem levado muitos eco- nomistas a explicarem, por analogia com a experiéncia das economias desen- volvidas, problemas que sé podem ser bem equacionados a partir de uma adequada compreensio do fendmeno do subdesenvolvimento. A tendéncia 20 desequilibrio no balanco de pagamentos & daquelas que, & falta de um marco teérico adequado, mais tém sido incorretamente formuladas e mal interpre- tadas nos paises de economia subdesenvolvida, como no caso do Brasil. 262

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