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rr José Graziano da Silva O QUE E | QUESTAO AGRARIA Copyright © José Graziano da Silva Capa: Roberto Strauss Caricaturas: Emilio Damiani Reviséio: José E. Andrade brasiliense editora brasiliense s.a. 01042 — rua bardo de itapetininga, 93 so paulo — brasil INDICE — Introdugdo «1.2... eee eee — O Desenvolvimento Recente da Agricultura Brasileira... eee ee — A Heranga Histérica — O Diagnéstico da Estrutura Agraria como Obstaculo a Industrializagdo .......... — A Questao Agraria nos Anos Setenta. .. . — Os Trabalhadores da Agricultura Brasileira e Sua Organizacdo Sindical ............. — Os Distintos Grupos de Trabathadores Rurais.... cece cece eee ae — OSindicalismo Rural Brasileiro . : — A Questdo Agraria Hoje ............... — As Reivindicagdes dos Trabalhadores Ru- Para os Formandos de 1980 do Curso de Engenharia Agricola da UNICAMP. INTRODUCAO O debate sobre o que se convencionou chamar “A Questdéo Agrdria no Brasil” vem se intensifi- cando nos Ultimos anos. N&o 6, entretanto, a primeira vez que esse tema é discutido entre nds. Na verdade, essa polémica jé polarizou grande parte dos debates também em outras épocas da vida nacional. Na década de trinta, por exemplo, essa discussdo girava {em torno da crise do café e da grande depressdo *;iniciada com a quebra da Bolsa de Nova lorque _ ‘em 1929, Oo Jé no final dos anos cingiienta e inicio dos ” anos sessenta, a discussdo sobre a questdo agraria .) fazia parte da polémica sobre os rumos que deveria - seguir a industrializagado brasileira. Argumentava-se ‘ entao que a agricultura brasileira — devido ao £m homenagem a Alberto Passos Guimaraes, Caio Prado Jr., Igndcio Rangel. José Graziano da Silva \seu atraso — seria um empecilho ao desenvolvi- “(mento econémico, entendido como sindénimo “da industrializagdo do pais. * Esse diagnéstico vinha reforcado pela crise da economia brasileira, particularmente no perfo- do 1961/67. Depois de 1967, até 1973, 0 pais entrou numa fase de crescimento acelerado da economia. Nesse perfodo, que ficou conhecido como o do “milagre brasileiro”, pouco se falou da questéo agrdria. Em parte porque a repressdo politica no deixava falar de quase nada. Mas, em parte também porque muitos achavam que a questdo agrdria tinha sido resolvida com o au-' .mento da produgéo agricola ocorrido no periodo: do milagre. Embora todos reconhecessem que esse aumento vinha beneficiando os entao chama- dos “produtos de exportacdo” (como o café, a soja, etc.), em detrimento dos chamados “pro- dutos alimenticios” (como o feijao, arroz, etc.), contra-argumentavam alguns que isso era um desa- ~ juste passageiro que logo se normalizaria. Outros 1 ‘diziam ainda que nao haveria problema se pudésse- “mos continuar exportando soja — que era mais lucrativa — e, com os recursos obtidos, comprar 0 feijao de que necessitdvamos. Mas o "milagre acabou. Passada a euforia inicial, muitos comecaram a se dar conta de que qs frutos do crescimento acelerado do perfodo 1967/73 tinham beneficiado apenas uma mino- ria privilegiada. E, entre os que tinham sido penali- yes O que é Questéo Agriria zados, estavam os trabalhadores em geral, e, de modo particular, os trabalhadores rurais. De 1974 em diante a economia brasileira deixa _' de apresentar os elevados indices de crescimento‘, do perfodo anterior, e no triénio 1975/77 comega! a se delinear claramente outra situagao de crise.; E muito interessante observar que em 1978 muitas coisas voltam a ser discutidas, com o inicio -*,de uma relativa abertura politica no pais. E, entre elas, retoma-se com pleno vigor o debate sobre a questao agrdria, novamente dentro do contexto “mais geral das crises do sistema econGmico capi- : talista. '. A escolha da agricultura como “meta priori- tdria” do governo reaviva as discussGes que se travam em torno do contetdo politico e social das transformagGes que se operaram no campo brasileiro nas duas Ultimas décadas. Nem mesmo a téo anunciada “supersafra’’ — que nao chegou a ser téo “super” assim — consegue esconder i 8 “ressurgimento da questéo agrdria”, como parte dos temas mais polémicos do momento. Evidentemente néo é bem um “ressurgimento da questdo agrdria”, pois ela nao foi resolvida anteriormente. De um lado, ela havia sido esque- cida ou deixara de ser um tema da moda da grande imprensa. Do outro lado — da parte daqueles que nado a podiam esquecer, porque a questéo agrdria faz parte da sua vida didria, os trabalha- dores rurais — ela fora silenciada. Para isso foi 10 José Graziano da Silva necessdrio fechar sindicatos, prender e matar Ifderes camponeses, além de outra série de violén- cias que todos conhecem ou pelo menos imaginam. Esse proprio “ressurgimento” serve para ilustrar “um ponto fundamental: néo se pode confundir ' .a@ questo agraria com a questao agricola. : Um grande economista brasileiro — Ignacio » Rangel — jd havia alertado sobre isso desde 1962.1 Dizia ele que o setor agricola, 4 medida que avan- casse a industrializacdo do pais, teria que: a) aumentar a producdo, para fornecer as indds- trias nascentes matérias-primas, e as pessoas das cidades, alimentos; b) liberar a mao-de-obra necessdria para o processo de industrializacao. Se a produgdo agricola ndo crescesse no ritmo necessério, configurar-se-ia entaéo uma crise agri- cola: faltariam alimentos e/ou matérias-primas, o que inviabilizaria a continuidade do processo de industrializagao. a Por outro lado, se a agricultura liberasse muita ou pouca mao-de-obra em fungao das quanti- L dades exigidas para a expansdo industrial, configu- (| rar-se-ia uma crise agrdria, traduzida por uma} urbanizagao exagerada ou insuficiente. Essa separacao entre questao agraria e questao agricola é apenas um recurso analitico. E evidente ~» que na realidade objetiva dos fatos ndo se pode -"separar as coisas em compartimentos estanques. Ou seja, a questao agrdria esta presente nas crises O que é Questao Agniria 1 cr agricolas, da mesma maneira que a questao agri- cola tem suas rafzes na crise agrdria. Portanto, é possfvel verificar que a crise agricola e a crise agréria, além de internamente relacionadas, muitas vezes ocorrem simultaneamente. Mas o impor- tante é que isso ndo 6 sempre necessdrio. Pelo ~ }eontrério, muitas vezes a maneira pela qual se ‘resolve a questéo agricola pode servir para agravar a questao agrdria. Em poucas palavras, a questéo agricola diz respeito aos aspectos ligados as mudancas na producéo em si mesma: o que se produz, onde | se produz e quanto se produz. Jd a questdo agrariay estd ligada as transformagdes nas refagdes de pro- ~ ducdo: como se produz, de que forma se produz. No equacionamento da questdo agricola as varidveis importantes séo as quantidades e os precos dos bens produzidos. Os principais indica- dores da questao agrdria so outros: a maneira como se organiza o trabalho e a producao; o nivel de renda e emprego dos trabalhadores rurais; a produtividade das pessoas ocupadas no cam- pa, etc. A forga com que a questdo agrdria brasileira ressurge hoje ndo advém apenas da maior liber- dade com que podemos discuti-la. Mas também do fato de que ela vem sendo agravada pelo modo como tém se expandido as relagdes capitalistas e de producao no campo. Em outras palavras, a maneira como o pais tem conseguido aumentar = Ve 1 2 José Graziano da Silva O que é Questo Agniria “a Sua producdo agropecudria tem causado impac- "tos negativos sobre o nivel de renda e de emprego da sua populagdo rural. E a crise agrdria brasi- leira, como também jd havia notado Rangel, jd estava desde o inicio dos anos sessenta ligada - | a uma liberacdo excessiva_de populacao rural. “O Eram milhares de pequenos camponeses que, expulSos do campo, nao conseguiam encontrar trabalho produtivo nas cidades. Daf os crescentes indices de migragdes, de subemprego, para nao : falar na mendicdncia, prostituigéo e criminali- dade das metrdpoles brasileiras. O fato & que a expansdo da grande empresa capitalista na agropecudria brasileira nas décadas de sessenta e setenta foi ainda muito mais acele- rada do que em periodos anteriores. E essa expan- sdo destruiu outros milhares de pequenas unidades de producdo, onde o trabalhador rural obtinha n@o apenas parte da sua propria alimentacdo, como também alguns produtos que vendia nas cidades. Foi essa mesma expansdo que transfor- mou 0 colono em boia-fria, que agravou os confli- tos entre grileiros e posseiros, fazendeiros e indios, @ que concentrou ainda mais a propriedade da terra. Falamos hd pouco das transformagdes que a expansdo do capitalismo no campo provoca sobre a produgdo agropecudria. Mas qual é o sentido dessas transformagées? Como explica um recente trabalho: “Com o Trabalhador volante a caminho do trabatho, desenvolvimento da producao capitalista na agricul- tura (ou seja, nas transformagdes que o capital provoca na atividade agropecudria), tende a haver - um maior uso de adubos, de inseticidas, de maqui- ,- nas, de maior utilizag3o de trabalho assalariado, ~ © cultivo mais intensivo da terra, etc. Em resumo, a producdo se torna mais intensiva sob o controle: do capital’? Quer dizer, o sentido das transformag6es capita- listas 6 elevar a produtividade do trabalho. Isso significa fazer cada pessoa ocupada no setor agri- 14 José Graziano da Silva cola produzir mais, 0 que sé se consegue aumen- tando a jornada e o ritmo de trabalho das pessoas, e intensificando a produgéo agropecudria. E Para conseguir isso o sistema capitalista langa mao dos produtos da sua industria: adubos, mdqui- nas, defensivos, etc. Ou seja, o desenvolvimento ‘das relagdes de producdo capitalistas no campo ‘se faz “‘industrializando” a prépria agricultura. Essa industrializagao da agricultura é exata- mente o que se chama comumente de “pene- tragdo” ou “desenvolvimento do capitalismo no campo’’. O importante de se entender é que é dessa maneira que as barreiras impostas pela Natureza 4 producéo agropecudria vao sendo gradativamente superadas. E como se o sistema capitalista passasse a ‘“‘fabricar’’ uma Natureza que fosse adequada 4 produco de maiores lucros. Assim, se uma determinada regido é seca, tome la uma irrigagdo para resolver a falta de dgua; se é um brejo, ld vai uma draga resolver o problema . do excesso de dgua; se a terra nao é fértil, aduba-se; e assim por diante. Vamos dar um exemplo bastante ilustrativo das transformagdes que o sistema capitalista provoca na producdo agropecudria: o da avicul- tura. Antigamente as galinhas, e os galos também, eram criados soltos nas fazendas e sitios. Ciscavam, comiam minhocas, restos de alimentos e as vezes até mesmo um pouco de milho. Punham uma certa quantidade de ovos — uma ninhada de doze, O que é Questiio Agraria quinze — e depois iam chocd-los durante semanas seguidas. Mesmo que os ovos fossem retirados, periodicamente as galinhas paravam de botar, obedecendo ao instinto biolégico da procriacdo, e punham-se “em choco”. Mas logo descobriu-se que essa parte do processo de procriagdéo das aves podia ser feita pela incu- badora (ou chocadeira) elétrica. E com maior eficiéncia que a prdépria galinha, uma vez que permitia controlar melhor a temperatura e evitar quebra dos ovos. Tornou-se necessdrio entado fabricar uma galinha que nao perdesse tempo chocando, isto é, que se limitasse a produzir ovos todo o tempo de sua vida Util. Evidentemente, uma produgdo assim mais intensiva nao era possi- vel ser conseguida com galinhas que ciscassem e se alimentassem a base de engolir minhocas e restos de comida. Foi preciso fabricar uma nova alimentagao para essas galinhas — as ragdes — que possibilitassem sustentar essa postura. Além de melhor alimentagdo, as aves foram confinadas em pequenos cub/iculos metdlicos, para que nao desperdicassem energia ciscando. Estava consti- tufda uma verdadeira “fabrica avicola”: de um lado entra ragdo, a matéria-prima; do outro saem ovos, o produto. Tudo padronizado, lado a lado umas das outras nas suas prisGes. Nessas alturas os galos que nao botavam ovos e sé faziam baru- Iho e arrumavam encrenca... E claro que alguns poucos — serd que privilegiados? — foram preser- 16 José Graziano da Silva vados para a procriagao. Mas esta atividade Passou @ ser um outro ramo distinto: a produgdo de ovos se separou da producgdo de pintinhos. E a avicul- tura se tornou téo especializada que a producdo de matrizes — quer dizer, dos pais e das maes _ dos pintinhos _— Passou_a ser um outro ramo ~ também especializado. Quer dizer que: quem , » produz ovos, Compra os pintinhos; quem produz \pintinhos, compra as matrizes. Mas por que uma galinha que nao choca, presa numa gaiola, comendo racgdo, é mais adequada ao sistema capitalista que a outra, que ciscava | lo terreno das fazendas 4 procura de minhocas? A Ora, além de produzir mais ovos que a outra durante a sua vida dtil, a galinha que ndo choca / dé lucros também ao produtor de racdo, ao que fabrica as gaiolas, ao dono da chocadeira elétrica, ao que vende os pintinhos, etc. Ou seja, a produgao de ovos com essa “fdbrica avicola” criou mercado Para a industria de ragdo, de gaiolas, de choca- deiras, de pintinhos, de matrizes. Por sua vez, a industria de ragdo dé lucros para o fabricante de medicamentos, ao comerciante de milho; a industria de gaiolas, ao fabricante de arame _ galvanizado e chapas metdlicas; e assim suces- sivamente. : Tudo isso porque uma galinha come minhocas “e a outra nao. E, seria o caso de se perguntar, © quem ganha com isso? A resposta é dbvia: os donos das inddstrias de rag&o, de gaiolas, de O que é Questiéo Agraria 17 has 6 chocadeiras... O pequeno produtor, que cria os pintinhos e vende os ovos, esse nado. Ele tem que comprar racdo, gaiolas, medicamentos, pinti- nhos, tudo de grandes companhias. Entao, é I6gico que ele paga caro essas coisas, porque o seu poder de barganha é nulo frente a essas grandes empresas. Na hora de vender, € a mesma coisa: séo grandes compradores e ha muito ovo (lembre-se que essas galinhas sé fazem botar ovos). Entao, o preco &é baixo, tao baixo que ele precisa cuidar de milhares de galinhas para conseguir |/ garantir a sua sobrevivéncia como pequeno produ- tor. Em resumo, ele trabalha mais e ganha relati- vamente menos. ., A questdo esté justamente af: o sistema todo ‘ ):foi feito para que ganhem os grandes capitais ie néo os pequenos produtores.? Entao diriam certos anarquistas, hoje vestidos com o manto “ecolégico”: vamos voltar a produzir galinhas que ciscam no terreiro e comem minhocas, porque, além de combater o sistema capitalista, estarfamos produzindo um ovo “mais saudadvel” e poupando o milho para alimentar seres humanos. (E claro que ninguém defende que os ovos devam conter resfduos de DDT ou coisa semelhante.) Mas essa posicgao nao é apenas utdpica, mas também profun- damente elitista: ela reduziria drasticamente a produgado de ovos, o que elevaria brutalmente seus precos, além de condenar a miséria milhares de trabalhadores empregados nesse ‘‘complexo 18 José Graziano da Silva avicola’’, Essa proposta de “volta ao passado” € equivocada: tal como D. Quixote, acabamos destruindo o moinho de vento pensando que ;combatemos os gigantes. A questo ndo é a gali- (nha em si, mas o sistema que a orienta: a tecno- . jlogia adotada é apropriada aos interesses dos J grandes capitais, ndo aos dos pequenos produ- pores Mas isso nao é préprio do sistema capi- talista? E importante voltar a lembrar que o objetivo das transformagdes capitalistas na agricultura n(como em toda a economia) é o de aumentar . a produtividade do trabalho. Isto é, fazer com que cada pessoa possa produzir mais durante ‘o tempo em que esta trabalhando. No sistema i icapitalista, quando 0 trabathador produz mais, quem ganha é o patrdo. E ele que aumenta seus lucros. Por isso, o sistema capitalista acumula riqueza de um lado e miséria de outro. “\\ Mas a elevacdéo da produtividade do trabalho Ye fundamental em qualquer sociedade. Especial- mente num sistema econdmico socialista, onde @ trabalhador é 0 dono dos frutos do seu préprio trabalho. Ai, quando uma pessoa produzir mais por dia de servico, ela ganhard mais e poderd inclu- ; sive trabalhar menos dias por ano, se isso for ? conveniente para todos. E claro que, num sistema _desse tipo, muitas tecnologias adotadas no capita- ilismo terdo que ser abandonadas. Afinal, o objetivo . ndo seré mais aumentar os lucros dos grandes NS O que é Questio Agraria capitais, mas promover o bem-estar dos trabalha- dores, o que inclui desde nao se produzir ovos com resfduos de DDT até nao poluir rios ou destruir bosques e florestas. Todavia, antes de entrarmos nesses aspectos polémicos da questao agrdria no Brasil de hoje, vejamos rapidamente como se desenvolveu a agricultura brasileira no perfodo recente e quem sdo os trabalhadores rurais neste pais. Esses serdo os assuntos tratados, respectivamente, nos capi- tulos um e dois. No terceiro capitulo, voltaremos a discutir os novos aspectos que assume hoje a questao agraria no Brasil. O DESENVOLVIMENTO RECENTE DA AGRICULTURA BRASILEIRA A heranga histérica Procuramos mostrar anteriormente que, com a industrializagéo da agricultura, as limitagdes impostas pela Natureza 4 produgdo agropecudria véo sendo gradativamente superadas. E como se o sistema capitalista passasse a fabricar” uma Natureza adequada a sua sede de maiores lucros, a partir das conquistas tecnoldégicas da sua propria industria. Mas o desenvolvimento das relacdes capita- listas na agricultura tem particularidades . em relagdo ao da indtstria. A principal delas é que o meio de produg&o fundamental na agricultura — a terra ~ ndéo 6 suscetivel de ser multiplicado (reproduzido) ao livre arbftrio do homem, como o O que é Questdo Agriria r sao as maquinas e outros meios de producdo e instrumentos de trabalho. E exatamente por ser a terra um meio de produ- géo relativamente néo reprodutivel — ou pelo menos, mais complicado de ser multiplicado — que a forma de sua apropriacdo histérica ganha uma importdncia fundamental. Desde que a terra seja apropriada privadamente, 0 seu dono pode arrogar-se o direito de fazer o que quiser com aquele pedaco de chao. Em alguns paises, como no caso do Brasil, o proprietario de terra tem até mesmo o direito de nao utilizd-la produti- vamente, isto é, deixd-la abandonada, e de impedir que outro a utilize. Por isso é que a estrutura agrdria — ou seja, a forma como a terra esta distri- bufda — torna-se assim o “’pano de fundo” sobre o qual se desenrola o processo produtivo na agri- cultura. Se fosse facil fabricar novas terras, pouca impor- tadncia teria a forma de apropriagaéo dos solos criados pela Natureza, quer dizer, dos solos nao fabricados. Jd dissemos anteriormente que o sistema capitalista procura superar essa barreira da limitaggo dos solos disponiveis fabricando as terras necessdrias através da utilizacdo de tecno- logias por ele desenvolvidas. Por exemplo, um determinado pedaco de solo nao pode ser utili- zado porque estd inundado, ou porque é muito duro e seco, ou ainda porque tem baixa fertilidade ; e nado produz nada. Ora, com o uso de fertilizantes 22 José Graziano da Silva e de mdquinas pode-se fazer a correcdo desses “defeitos” através da drenagem, aragao,_ irri- gacdo, etc. Claro que é possivel hoje “‘fabricar terras”’ ou até mesmo produzir alimentos e animais pratica- mente sem usar terra, como, por exemplo, através da agricultura hidropénica ou do confinamento. Mas; evidentemente, isso néo aconteceu num passe de magica, sendo que pressupde toda uma histdéria do desenvolvimento das relagdes de produ¢do capitalistas no campo, e das transformacées que se Operaram entre os varios agentes sociais da produ- gdo agricola. Seria necessdrio, portanto, que inicidssemos pela ocupacdo histérica, inicial, das terras no Brasil, e que féssemos acompanhando esse desen- volvimento. Todavia, acreditamos que os trabalhos existentes sobre o tema* colocam muito bem a questdo fundamental: a propriedade fundidria Constituiu o elemento fundamental que separava os trabalhadores dos meios de producdo na agri- cultura brasileira. Vanios recapitular rapidamente essa historia. O inicio da colonizac&o do territério brasileiro se fez com a doacao de grandes extensdes de terra a particulares, denominadas sesmarias. Dar surgi- ram os latifundios escravistas: a necessidade de exportar em grande escala e a escassez de mao-de- -obra na colénia uniram-se a existéncia de um rentdvel mercado de trdfico de escravos. O que é Quest@o Agraria Todas as atividades produtivas da coldnia giravam em torno da agricuitura e do comércio, praticamente nado havendo inddstrias. O latiftin- dio escravista produzia para exportar, essa era a sua finalidade bdsica. O produto mudava de acordo com os interesses da metrdépole: primeiro acicar e, no fim da escraviddo, o café. A expor- tacdéo da producao, aliada 4 importagao de escra- vos, € que garantia a lucratividade dos capitais comerciais metropolitanos. O latifundio escravista era o eixo de atividade econdémica da coldnia, definindo as duas classes sociais bdsicas: os senhores e os escravos. Mas em torno deles havia uma massa heterogénea de brancos que nao eram senhores, de negros libertos que nao eram escravos, de indios e de mesticos, que desempenhavam uma série de atividades. Varios eram “técnicos’’ empregados nos proprios jatifUndios, como escreventes, contadores, capa- tazes, etc. Outros se dedicavam ao pequeno comér- cio, como mascates, vendedores ambulantes, etc. E outros ainda eram agricultores: ocupavam certos pedagos de terra, onde produziam sua subsisténcia e vendiam parte da producao nas feiras das cidades. Ai estd a origem da pequena producdo no Brasil e sua estreita ligagéo com a produgao de alimentos. Os latifindios. também produziam géneros alimenticios. Na maioria das vezes essa producdo era feita também por pequenos agricultores, que R José Graziano da Silva pagavam uma renda ao proprietario, pela utili- zagéo das suas terras. Outras vezes, a producao de alimentos era feita pelos prdéprios escravos nos seus “tempos livres’’ — domingos, feriados ou depois de terminada a jornada no eito. Mas a producdo de alimentos do latiftindio variava muito em funcgao do preco do seu produ- to principal destinado a exportacao. Por exemplo, quando o preco do agicar (e mais tarde do café) subia no mercado mundial, todas as terras e os escravos eram utilizados para expandir a sua producgdo, diminuindo assim a producdo de ali- mentos. Nesses periodos havia fome na colénia e as autoridades estimulavam os pequenos agricul- tores a expandirem sua produ¢do, para abastecer nao s6 as vilas e cidades, como as vezes os préprios latifandios. No inicio do século XIX, a extingo do regime de sesmarias, aliada a auséncia de outra legislagdo regulando a posse das terras devolutas, provoca uma rapida expansdo dos sitios desses pequenos produtores. Em meados desse mesmo século, comeca a decli- nar o regime escravocrata. Sob press&o da Ingla- terra — agora interessada num mercado comprador para seus produtos manufaturados, e nado apenas interessada em vender escravos — o Brasil proibe 0 trafico negreiro em 1850. E sintomético que nesse mesmo ano se crie uma nova legislagao definindo o acesso a proprie- O que é Questiio Agraria ( dade — a Lei de Terras, como ficaria conhecida — que rezava que todas as terras devolutas s6 pode- riam ser apropriadas mediante a compra e venda, e que o governo destinaria os rendimentos obtidos nessas transages para financiar a vinda de colonos da Europa. Matavam-se, assim, dois coelhos com uma s6 cajadada. De um lado, restringia-se o acesso as terras (devolutas ou ndo) apenas aqueles que tivessem dinheiro para compré-las. De outro, criavam-se as bases para a organizagdo de um mercado de trabalho livre para substituir o sistema escravista. E facil entender a importancia da Lei de Terras de 1850 para a constituicfo do mercado de traba- Iho. Enquanto a mao-de-obra era escrava, 0 lati- fundio podia até conviver com terras de ‘‘acesso relativamente livre” (entre aspas porque a proprie- dade dos escravos e de outros meios de produgado aparecia como condig&o necessdria para alguém usufruir a posse dessas terras). Mas quando a mio- -de-obra se torna formaimente livre, todas as terras tém que ser escravizadas pelo regime de proprie- dade privada. Quer dizer, se houvesse homem “livre’’ com terra “livre”, ninguém iria ser traba- Ihador dos latifandios. O perfodo que vai da proibicgéo do trdafico eda Lei de Terras até a abolicaéo (1850/1888) marca a decadéncia do sistema latifundidrio- -escravista. Apés 1888, comeca a se consolidar no pais José Graziano da Silva um segmento formado por pequenas fabricas de chapéus, de lougas, de fiagdo e tecelagem, etc. Essas industrias servem pata fortalecer e consolidar vdrios centros urbanos que antes eram puramente administrativos ~ cidades sem vida propria (quer dizer, sem gerar produtos), como se dizia — como, por exemplo, Sao Paulo e Rio de Janeiro. Embora bastante incipiente, esse principio de industrializagao — e a conseqiiente urbanizagao dai decorrente — comec¢a a provocar varias alteragGes na producgdo agricola. Conso- lida-se a produg&o mercantil de alimentos fora das grandes fazendas de café. Além da producdo de alimentos, os pequenos agricultores tém tam- bém agora a possibilidade de produzir matérias- -primas para as indistrias nascentes (como, por exemplo, o algad&o, o tabaco, etc.), uma vez que o latifindio continua a monopolizar a produgdo destinada 4 exporta¢do — o café. As alteragdes de precos dessa cultura provocam crises periddicas durante o inicio do século XX, culminando em 1932, ano em que se dd o auge dos reflexos da crise de 29 sobre o setor cafeeiro. O periodo que se estende de 1933 a 1955 marca uma nova fase Je transicdo da economia brasileira. Nesse periodo, o setor industrial vai-se consolidando paulatinamente e o centro das ativi- dades econémicas comega vagarosamente a se deslocar do setor cafeeiro — exportador. A indds- tria gradativamente vai assumindo o comando O que é Questiio Agraria 27 do processo de acumulagdo de capital: o pais vai deixando de ser “‘eminentemente agricola” (como alguns ainda créem ser a sua “yocagao historica’’). Durante essa fase, a industrializagdo se faz pela “substituigdo das importac6es”: um determinado produto, que era comprado no exterior, passa a ter sua produgdo estimulada no pafs através de barreiras alfandegdrias, que inclufam desde impostos elevados até a prdpria proibigao da importacdo. Mas vai ficando cada vez mais dificil essa substituiggo. Antes eram tecidos, lougas, chapéus; agora so eletrodomésticos, carros, que precisam ser produzidos internamente. E para isso se faz necessdrio primeiro implan- tar a inddstria pesada no pais: siderurgia, petro- quimica, material elétrico, etc. — o que é feito no perioda de 1955/61. Resolvido o problema da industria, vai-se iniciar 0 que se poderia chamar de industrializagao da agricultura. No inicio dos anos sessenta, que corresponde ao final da fase de industrializagio pesada no Brasil, insiaiam-se no pais as rabricas de méquinas e insumos agricolas. Assim, por exemplo, sao implantadas inddstrias de tratores e equipamentos agricolas (arados, grades, etc.), fertilizantes qu(mi- cos, ragdes e medicamentos veterindrios, etc. Evidentemente a industria de fertilizantes e defen- sivos quimicos s6 poderia se instalar depois de constitufda a inddstria petroquimica; a inddstria José Graziano da Silva de tratores e equipamentos agricolas, depois de implantada a siderurgia; e assim por diante. O importante 6 que, a partir da constituicdo desses ramos industriais no préprio pais, a agricultura brasileira iria ter que criar um mercado consu- midor para esses “novos” meios de producio. Para garantir a ampliagdo desse mercado, o Estado implementou um conjunto de politicas agricolas destinadas a incentivar a aquisicéo dos produtos desses novos ramos da industria, acelerando o processo de incorporagao de modernas tecnologias pelos produtores rurais. A industrializacdo da agricultura brasileira entrava assim numa outra etapa. O diagnostico da estrutura agraria como obstaculo a industrializacado Como jé dissemos, no final dos anos cinqienta e inicio da década dos sessenta a agricultura brasileira passou a ser um dos temas centrais em discusséo. Os varios diagnésticos — entre os mais progressistas e respeitados, diga-se de Passagem, como, por exemplo, aqueles inspirados no arca- bouco tedrico da Comisséo Econémica para a América Latina (CEPAL) — convergiam na tenta- tiva de mostrar que a nossa estrutura agrdria extremamente concentrada era /imitante ao proces- so de industrializacdo do pats. O que é Questéo Agriria Os argumentos principais, do ponto de vista daqueles que pregavam a necessidade da industria- lizago do pais, diziam respeito 4 concentracado da propriedade (e da posse) da terra nas maos de uns poucos latifiindios, o que para eles repre- sentava: a) um “estrangulamento” na oferta de alimentos aos setores urbanos, pois a producdo reagia menos que proporcionalmente ao crescimento dos precos (em linguagem econdémica, era ine- lastica). Assim, na medida em que fosse aumen- tando a propor¢déo da populacdo brasileira nas cidades, tenderia a haver uma pressdéo nos precos dos alimentos, com consequente reflexo no crescimento dos saldrios, tornando inviavel © processo de industrializagao; b)a nao ampliagéo do mercado interno para a industria nascente. As fazendas eram quase que auto-suficientes, baseadas numa economia “natural’’: nao adquiriam a grande maioria dos produtos de que necessitavam, confeccionando- -os af mesmo em bases artesanais. Néo se podia pensar que a inddstria nascente brasileira tivesse condicSes de competicao no exterior, ficando as suas possibilidades de mercado restritas ao pafs. Como a grande maioria da popu- lagdo ainda vivia na agricultura, esta deveria ser responsdvel por uma parcela substancial do merca- do. Mas a estrutura agrdria extremamente concen- trada permitia que as grandes fazendas continuas- 2s 30 José Graziano da Silva sem praticamente auto-suficientes, ou seja, nao conectadas 4 economia como um todo. Daf o diagnéstico de uma estrutura agrdria feudal ou com restos do feudalismo, enquanto outros nega- vam o feudalismo ao ressaltar a sua dependéncia do setor exportador. Mas, de qualquer maneira, 0 diagndéstico coincidia no seguinte aspecto: a a@gricultura, de modo geral, nao viria a se cons- tituir mum mercado para o setor industrial nas- cente, representando, portanto, um estrangula- Mento do processo de industrializagaéo do pais. O que vamos procurar mostrar a seguir é que a estrutura agraria continuou concentrada (e até mesmo 0 grau de concentragéo aumentou a partir dos anos sessenta), mas houve uma transformacdo interna — ao nivel das relac6es de producdo — que permitiu que a agricultura respondesse as necessidades da industrializagao. Ou seja, houve simultaneamente: a)um aumento da oferta de matérias-primas e alimentos para 0 mercado interno sem compre- meter o setor exportador que gereva divisas para o processo de industrializacdo, via substi- tuicao das importagées; b)a agricultura se conectou ao circuito global da economia nado apenas como compradora de bens de consumo industriais, como também houve 0 que podemos chamar de uma verda- deira “industrializaggéo da agricultura”, na medida em que esta passou a demandar quanti- O que é Questéo Agriria dades crescentes de insumos e mdquinas geradas pelo préprio setor industrial. Vejamos inicialmente como se deu a evolucao da estrutura agrdria brasileira nesses Ultimos anos. Na primeira metade dos anos sessenta, que corresponde ao perfodo da crise econédmica de 1961/67, hé um aumento praticamente genera- lizado de todos os tamanhos de propriedade. Mas ainda assim podemos notar que o crescimento das grandes propriedades é maior que o das peque- nas, segundo os dados disponiveis do INCRA e do IBGE. Jd no periodo seguinte, 1967/72, que corresponde ao periodo de crescimento e auge do que ficou conhecido como ‘milagre brasileiro”, aumenta apenas 0 nGmero de grandes propriedades. As pequenas propriedades perdem terreno, Ou seja, sdo engolidas pelas grandes, no que se convencionou chamar, a semelhanca do fendmeno bioldgico onde as grandes bactérias engolem e digerem as pequenas a sua volta, “pro- cesso de fagocitose’’. Assim, por exemplo, uma usina de acicar, quando adquire um sitio em suas proximidades, derruba as cercas e drvores frutiferas, casa do morador, etc., convertendo todas as terras em canaviais, de modo que dificil- mente depois de aiguns anos se poderd identificar qualquer vestigio da outra unidade de producdo que ali existiu. No periodo 1972/76, que coincide com uma forte expansdo da fronteira agricola na Amaz6nia José Graziano da Silva Legal {incluindo af parte da Regido Centro-Oeste), hd novamente uma multiplicagdo das pequenas Propriedades, embora haja também um cresci- mento ainda maior das grandes, especialmente as ligadas as empresas multinacionais. A dindmica da recria¢do/destruicgo da pequena propriedade na década dos sessenta/setenta no Brasil, portanto, é mais ou menos a seguinte: na fase de subida do ciclo econémico, as peque- nas propriedades sdo engolidas naquelas regides de maior desenvolvimento capitalista no campo e empurradas para a fronteira, na maioria das vezes na forma de pequenos posseiros. Na fase de descenso do ciclo, as pequenas Propriedades se expandem, é verdade, mesmo em certas regides de maior desenvolvimento capitalista e/ou de estrutura agrdria consolidada. Mas essa expansdo é sempre limitada em termos absolutos e quase nunca significa também um crescimento relativo, pois em termos mais gerais, do Pais ou mesmo das regiSes, a grande propriedade no Brasil vem crescendo sempre a taxas superiores as das pe- quenas. : Em resumo, nas épocas favordveis de expansdo da atividade econémica, o grande prospera e engole os pequenos a sua volta. Na “crise’’, ao contrdrio, o grande se retrai. Ou seja, nas épocas desfavordveis, a grande Propriedade procura reduzir os seus “custos varidveis” e os seus “ris- cos”, repassando a responsabilidade pela explo- O que é Questéo Agrdria ragao de parte de suas terras para pequenos par- ceiros e arrendatdrios. E importante ressaltar que essa “crise” de que falamos nado é necessariamente uma _ crise no sentido do ciclo econémico. Pode ser tam- bém uma catdstrofe climdtica (seca, inundacdo, etc.), por exemplo, ou uma queda ardstica de precos de um determinado produto agricola, etc. A situacdo é tipica, por exemplo, no caso das grandes geadas de café: nos anos imediata- mente subseqlientes aumenta o numero de parcei- ros. E que é preciso cortar o cafezal queimado e esperar vdrios anos para que ele rebrote e volte a produzir. O proprietdrio entéo “dé a terra em parceria”, para evitar ter que pagar 08 *saldrios integrais, até que 0 café volte a produzir. O traba- Ihador rural cuida do cafezal até que ele se recu- pere plenamente e em troca disso recebe _Paga- mentos irrisérios em dinheiro e a permissao de plantar, nas entrelinhas, géneros de subsisténcia, cuja colheita ainda tem que repartir com o patrao. Vé-se entdo claramente que, num perfodo de prosperidade da economia agrdria, as pequenas exploragdes — especialmente aquelas que tém formas precdrias de acesso 4 terra — sdo engo- lidas pelos grandes estabelecimentos agropecudrios, ficando as suas possibilidades de crescimento nesses momentos, também, praticamente restritas aos movimentos de expanséo da fronteira agri- cola. Foi exatamente isso o que aconteceu nas OE hl 34 José Graziano da Silva décadas de sessenta e setenta na agricultura brasi- leira: um aumento da concentragdo fundidria, acompanhado de uma rdépida expansdo de fronteira agricola. Vamos explicar agora o que significou essa con- centragdéo fundidria que acompanha o desenvol- vimento do capitalismo na agricultura brasileira, @ por que essa concentragdéo no significou um estrangulamento do mercado interno para a indus- tria, senao justamente o contrario. ” A agricultura brasileira depois de 1960 mostrou um claro processo de diferenciacdo em trés grandes regides: a) o Centro-Sul, onde a agricultura se moderniza rapidamente pela incorporagdéo de insumos industriais’ {fertilizantes e defensivos quimicos, maquinas e equipamentos agricolas, etc.); b} o Nordeste, que apés a incorporacdo da fronteira do Maranhiéo (em meados dos anos sessenta) e, mais recentemente, a da Bahia, permanece sem grandes transformagées fundamentais no conjunto de sua agropecudria; c) a Amazonia, incluindo af boa parte da regiao Ceniro-Oeste (Mato Grosso e Goids), que repre- sentou a zona de expansao da fronteira agricola a partir do inicio dos anos sessenta. Nao se pode hoje, portanto, falar sendo abstra- tamente numa “agricultura brasileira” de modo gerai. E preciso descer a mais detalhes se quisermos enxergar realmente o que significa esse processo O que é Questito Agraria de desenvoivimento capitalista na agricultura brasileira e o processo de concentragao fundiaria a ele associado. Infelizmente ndo é possivel fazer isso aqui. - Mas vale a pena apresentar, ainda que rapida- mente, os dados mais recentes de que se dispoe sobre a distribuigdo da posse das terras no Brasil. Se ordenarmos os quase 5 milhdes de estabeie- cimentos agropecudrios recenseados em 1975 do menor para o maior (isto é, colocando em ordem crescente de tamanho), podemos estabe- lecer as seguintes conclusGes: a) 50% dos estabelecimentos possufam apenas 2,5% da drea recenseada. Ou seja, quase 2,9 milhdes de pequenos produtores se espremiam em cerca de 160 milhdes de hectares, cabendo a cada um apenas 3 hectares em média; _ b)somente 1% dos grandes estabelecimentos se apropriava de 45% da area total. Ou seja, menos de 50 mil propriedades eram donas de quase 150 milhdes de hectares, sendo que cada uma delas tinha em média uma drea de quase 000 hectares; c) anim, se juntdssemos cerca de 1 000 dos estabe- lecimentos daqueles pequenos produtores, eles caberiam todos dentro de apenas uma dessas imensas fazendas. a Lembrando que a terra é 0 item mais impor- tante do valor venal dos estabelecimentos agri- colas e também que ela é fonte de prestigio e melo 36 José Graziano da Silva O que é Questio Agriria de acesso a outras formas de riqueza, a relacado entre as dreas possuidas pode ser tomada como uma aproximagaéo do poder politico, econdmico e soclal do grande fazendeiro em relacdo aos pequenos produtores, no nosso pais. O grdfico seguinte ilustra essa idéia mostrando a diminuta fatia do bolo que cabe a metade dos agricultores brasileiros, enquanto que uma pequena minoria de grandes proprietdrios se apossa de imensas dreas de terras. Muitos argumentam que essa concentragdo da posse das terras no Brasil nao deve preocupar porque ha ainda muitas terras devolutas a serem incorporadas pela expansdo da fronteira agrfcola. De fato, a expansdo da fronteira agricola nas ultimas décacas foi muito grande, mas isso ndo melhorou a distribuig¢do fundidria do pafs. Pelo contrério, recentemente, a presenca de grandes empresas muitinacionais agravou o problema. Entre 1960 e 1970, por exemplo, o ntimero de estabelecimentos agropecudrios passou de 3,3 milhdes para 4,9 miihdes, e a drea que ocu- pavam, de 250 milhdes de hectares para 294 milhdes, 0 que significou uma ampliacgéo de 44 milhdes de hectares em 10 anos. Em 1975, o Censo Agropecudrio indicava 5 milhGes de estabe- lecimentos e uma drea de 324 milhGes de hectares, © que significou cerca de 30 milhdes de hectares a mais em apenas 5 anos, ou seja, um ritmo ainda maior de expansdo do que o dos anos sessenta. Grdfico 1: Distribuicdo dos estabelecimentos agropecuarios no Brasil segundo o tamanho (censo de 1975). NUMERO DE ESTABELECIMENTOS 50% menores AREA TOTAL APROPRIADA 38 José Graziano da Silva Mas convém notar que o numero de estabeleci- mentos s6 aumentou em 100 mil no perfodo de 1970/75, contra 1,6 milhdes no perfodo de 1960/70. Isso significa que na primeira metade da década dos setenta a expansdo da fronteira agricola — ao contrario dos anos sessenta — deu-se cam base em grandes fazendas, especialmente na Regido Amazénica. Assim, a expansio recente da fronteira agricola no pais, ao invés de melhorar, tem agravado a concentracdo das terras. Porém, o que significou a manutencado desse padréo de concentracdéo da propriedade da terra tao elevado no Brasil, aliado a uma rapida expansado da fronteira agricola? Significou que milhares de pequenos posseiros, parceiros, arrendatdrios e@ mesmo pequenos proprietarios que iam perdendo as terras que possufam nao tiveram nova oportu- nidade na agricultura. Em outras palavras, que tiveram de se mudar para as cidades em busca de uma nova maneira (nem sempre satisfatéria) de ganhar a vida. Em resumo, a manutenggo de um elevado grau de concentragdo da terra no pafs funcio- nou como um acelerador do processo de urbani- zacdo. Por isso é que, quando analisamos a evo- lugdo no tempo da forga de trabalho ocupada no Brasil, destaca-se a rdpida reducdo relativa do numero de familias ocupadas no setor agrfcola. Por exemplo: em 1960, a distribuicao da popu- lagdo ativa entre agricultura e indistria era meio O que é Questiio Agraria ( a meio; em 1970, apenas 40% das familias ocu- padas no pats dedicavam-se 4 agricultura. Toman- do-se os valores absolutos, o aumento das ativi- dades néo agricolas fica ainda mais evidente: de 6,7 milhdes de famflias ocupadas, em 1960, passamos a ter 11,2 milhdes em 1970, isto 6, quase o dobro. Que importancia tem isso? Ora, essa urbani- zacao da populagdo ativa significou exatamente a ampliacao do mercado interno para a indastria. O povo da cidade tem que comprar as coisas de que necessita; nao pode produzi-las na sua prépria casa, como muitas vezes ocorria nas fazendas. Esse processo de urbanizacao significou também uma transformacdo nas préprias atividades agri- colas. As fazendas néo podiam mais ser auto-sufi- cientes na producdo de alimentos e dedicarem-se apenas a comercializagao dos produtos de expor- tag3o. Era preciso produzir para alimentar 0 povo das cidades. Para fazer frente a essa demanda crescente do setor urbano, desenvolveu-se uma producdo mercantil de alimentos para abastecer © consumo interno do pais. Mas a transformagao. da agricultura brasileira nos anos sessenta nao parou na expans&o do setor mercantil de ali- mentos. Na medida em que as propriedades se voltavam mais e mais para o mercado, houve também uma transformacgdo qualitativa interna | a elas: houve uma especializacdo da producio. 40 José Graziano da Silva O que é Questio Agriria - Quer dizer, néo eram mais fazendas no sentido genérico, que produziam tudo, desde o arroz, o leite, até a cana e o café. Agora eram fazendas de cana, fazendas de café, fazendas de leite, fazen- das de arroz, etc. Mas ndo foi também uma especializacgdo apenas de produgdo: a propria concepgdo da producgdo agricola se especializou. Antes, as fazendas produ- ziam tudo o que era necessdrio 4 producdo: os adubos, 0s animais e até mesmo alguns instru- mentos de trabalho, bem como a propria alimen- tagao dos seus trabalhadores. Agora, nao: os adubos saéo produzidos pela industria de adubos; parte dos animais de trabalho foi substituida pelas médquinas produzidas pela industria de méaquinas e equipamentos agricolas, etc. Isso significa que a prdpria agricultura se especia- lizou, cedendo atividades para novos ramos nao agricolas que foram sendo criados. Em outras palavras, a propria agricultura se industrializou, seja como compradora de produtos industriais ({principalmente insumos e meios de produgao), seja como produtora de matérias-primas para as atividades industriais. A moral da estéria é simples: a prépria industria- lizagéo criou o mercado de que necessitava para sua expansdo. De um lado, pelo processo simul- tdneo de ampliacdo da fronteira agricola e de urbanizagdo crescente da populacao anterior- mente dedicada as atividades agropecudrias. De outro lado, pelas transformagdes que provocou na propria agricultura, a0 transforma-la também numa “industria”, que compra certos insumos (adubos, mdéquinas) para produzir outros insumos (matérias-primas para as indistrias de alimentos, tecidos, etc.). E importante destacar aqui um aspecto funda- mental da economia capitalista, de que nao se deram conta muitos dos que afirmavam que a estrutura agréria seria um obstaculo a industria- lizagio: a ampliagdo do mercado nao é@ apenas aumento do consumo de bens finais, mas princl- palmente o crescimento do consumo de bens intermedidrios. ; Para exemplificar, tomemos uma economia imaginéria que produza apenas 100 paes. Uma coisa é esses pdes serem produzidos por campo- neses que plantam eles mesmos 0 trigo, fazem a farinha e consomem os paes. QOutra coisa é quando o trigo é produzido por uma fazenda, que por sua vez compra adubos quimicos de uma fabrica, depois vende o trigo aos moinhos, que por sua vez compram sacos de algodao, para embalar a farinha, de outra fabrica, a qual por sua vez compra algodao, para fazer sacos, de outra fazenda; a farinha finalmente é vendida as padarias que fazem os mesmos 100 paes, que sGo agora vendidos aos que trabalham nas fabricas e nas fazendas. Evidentemente, no caso dos campo- neses que produzem o que consomem nao existe 42 José Graziano da Silva mercado algum. Mas a producao final é a mesma do caso em que os 100 pdes sAo produzidos parcial- mente por intiimeras fazendas e fabricas. Isso nos leva a conclusdo de que quanto maior for a circulagdo da producgdo — ou, visto pelo lado da oferta, quanto maior 0 nimero de fases de processamento do produto final — maior é o~mercado numa economia capitalista. O valor final da produgdo — os 100 p&es — pode até mesmo, numa situac¢ao hipotética, continuar © mesmo, porque a ampliagio do mercado se faz basicamente pelo lado da oferta, 4 medida que se especializa a propria atividade produtiva. Por isso é que nao foi fundamental para a ampliagdo do mercado para a industria brasileira o aumento do poder aquisitivo das “’massas rurais”’, pois essa ampliagdo ndo depende exclusivamente {nem principalmente) do poder aquisitivo da populagdo. Ao conirdrio, a ampliagéo do mercado interno para a industrializagdo brasileira se fez, como em todo o mundo capitalista, pela proleta- rizagdo dos camponeses: através da sua expro- priacdo como produtores independentes, conver- tendo-os em miserdveis ‘‘bdias-frias’’. Evidentemente nao estamos querendo dizer que essa ampliagdo do mercado interno tivesse que ser necessariamente feita dessa maneira. O que é Questéo Agniria Ou que nao fosse possivel ter sido também conse- guida de outra maneira, como, por exemplo, por uma reforma agrdria no campo e um aumento dos saldrios reais dos trabalhadores. A explicagao para o fato de nao termos trilhado uma outra via — democratica talvez — de desenvolvimento do ‘capitalismo no pais deve ser buscada nao nas questdes econémicas, mas sim nos interesses @ poder dos grupos sociais envolvidos nesse processo. Em outras palavras, a escolha deste ou daquele caminho foi uma questao eminentemente poli- tica. E enquanto tal s6 pode ser desvendada a luz dos conflitos que permearam a historia recente da sociedade brasileira, 0 que escapa ao ambito deste trabalho. Finalmente, vale a pena ressaltar que o desenvol- vimento do capitalismo, em particular no campo, & um caminho sempre cheio de contradi¢6es, e nado havia de ser diferente no caso brasileiro. Pelo contrario, as contradigdes aqui foram acentuadas tanto pelo cardter extremamente desigual do desenvolvimento das varias regides do pais, como pela presenga marcante do Estado nesse processo. A questao agraria nos anos setenta Ja vimos anteriormente que determinadas maneiras de resolver a questdo agricola podem acabar agravando os problemas que dizem respeito a questdo agréria. E que isso foi exatamente © que aconteceu no nosso pals: a rapida industria- lizagdo da agricultura brasileira a partir dos anos 44 José Graziano da Silva sessenta agravou ainda mais a miséria de expressi- vos contingentes da nossa populacdo. Mas ainda nao especificamos as mudancas recentes ocorridas na agricultura brasileira, nem explicamos por que elas implicaram num agrava- mento da questdo agrdria. Para isso selecionamos trés grandes modificagGes ocorridas na ultima década e que, em nossa opinido, tenderao a marcar profundamente o comportamento da agricultura brasileira no futuro proximo: a)o “fechamento” de nossas fronteiras agrdrias, envolvendo as questGes de colonizagao da Ama- ZOnia e da participacao da grande empresa pecua- tia deslocando a pequena producdo agricola; b)o processo acelerado de modernizacao da agricultura no Centro-Sul do pais; c)a crescente presenca do capitalismo mono- polista no campo, ou seja, de grandes empresas industriais que passaram a atuar tanto direta- mente na produgado agropecudria propriamente dita, como fortaleceram sua presencga no setor da comercializagao e de fornecimento de insu- mos para a agricultura. Vamos detalhar as conseqiiéncias de cada uma dessas transformacées, para em seguida tentar uma anélise das suas principais interdependéncias.* a) O “fechamento” da fronteira agricola O padr&o de crescimento da nossa agricultura O que é Questéo Agniria i supOs sempre uma variavel fundamental: a incorpo- ragdo de novas dreas a producdo, ou seja, a exis- téncia de uma fronteira agricola em expansdo. A fronteira nao é necessariamente uma regido distante, vazia no aspecto demografico. Ela é fronteira do ponto de vista do capital, entendido como relagdo social de produg#o. Nao se deve pensar, pois, que a fronteira 6 algo externo ao “modelo agricola’ brasileiro, se é que podemos nos expressar assim. Ao contrdrio, a fronteira & simultaneamente condicionante e resultado do processo de desenvolvimento da agricultura brasileira. Vale dizer, a existéncia de “‘terras-sem- dono” na fronteira funciona como um regulador da intensificacéo de capital no campo, condicio- nando assim o seu desenvolvimento extensi- vo/intensivo. Em sentido contrdrio, o custo da intensificagdo de capital na agricultura determina o ritmo de incorporagSo produtiva das terras na fronteira. A expansdo da fronteira vinha desempenhando pelo menos trés fungdes bdsicas no “modelo agricola” brasileiro. A primeira, no plano econémico, é que a fron- teira era um “armazém” de géneros alimenticios basicos, especialmente arroz e feijdo. Quando a producdo capitalista recuava por algum problema (seja de prego, seja de alteracdo climatica), havia um suprimento dco mercado nacional através do escoamento dos “excedentes” da pequena 46 José Graziano da Silva produgéo camponesa, funcionando como estabi- lizador dos precgos. Quando, entretanto, a fronteira se “fecha’’, esse efeito de amortecimento tem que ser buscado na importacao de produtos agricolas eno tabelamento dos precos. A segunda, dirfamos no plano social, é que a fronteira representava uma orientacao dos fluxos migratorios. Ela era o “locus” da recriag&o da pequena producdo, ou seja, o destino das familias camponesas expropriadas e dos excedentes popula- cionais. Quando a fronteira se “fecha’’, passa a haver uma multiplicagéo de pequenos fluxos migratérios e um grande contingente populacional passa a perambular desordenadamente por todo o pais. A terceira fungdo, vamos dizer no plano polf- tico, 6 que a fronteira era a ‘‘vdlvula de escape” de tensGes sociais no campo. Os projetos de coloni- zagéo no Brasil sempre foram pensados politica- mente como alternativas a uma reforma agrdria que mudasse a estrutura de propriedade da terra nas regides Nordeste e Centro-Sul. Na medida em que se agucavam tensdes sociais, conflitos potenciais, press6es politicas e econdmicas, a fronteira aparecia como o “novo Eldorado” para os pequenos produtores. E hoje o que se vé é que a propria fronteira esté se tornando uma regido de conflitos sociais pela posse da terra. Quando dizemos que a fronteira estd se fechan- do rapidamente, néo estamos pensando no con- O que é Questéo Agraria ceito classico de que nao hd mais terras para serem incorporadas ao processo de produgdo. O ““fecha- mento” nao tem o sentido de utilizacao produtiva do solo, mas sim de que nao hd mais espacos que possam ser ocupados por pequenos produtores de subsisténcia (sao esses espacos que estamos chamando de “terras-sem-dono”}. Na Amazénia, 0 “fechamento” nao se dé por uma ocupacado no sentido cldssico de expansdo das dreas exploradas a partir de regides mais antigas, onde a producdo capitalista substitui a producdo de subsisténcia, como se deu no Su- doeste do Parand e no Sul de Mato Grosso. E, pelo contrdrio, um ‘fechamento de fora para dentro”, onde a importdncia da terra como meio de produgdo passa a um plano secundério, frente as fungGes de “reserva de valor” contra a corrosdo inflaciondria da moeda e de meio de acesso a outras formas de riqueza a ela associadas, como as madeiras de lei, os minérios, 0 acesso ao crédito farto e barato e aos beneficios fiscais. Em termos de seus reflexos para o futuro, dado que as terras da Amazénia foram apropriadas fundamentalmente como “reserva de valor’’, coloca-se a questao de como realizar esse valor; ou seja, como converter novamente a mercadoria terra em dinheiro, ou entéo como ocupéd-la produti- vamente de modo a obter um rendimento a partir da atividade agropecuéria. E preciso ndo esquecer que a terra funcionou 48 José Graziano da Silva também na Amazénia como “contrapartida”’ dos incentivos fiscais, num jogo contdbil onde o imével foi supervalorizado, de modo a obter, praticamente, “’doagdes financeiras’’ do governo para projetos cuja grande maioria nao passa ainda hoje de verdadeiras ‘‘vitrines’’, embora j4 tenha consumido a maior parte dos vultosos recursos previstos. Assim, 0u 0 governo mantém a atual politica de incentivos fiscais, ou uma fragao insignificante desses projetos tera condicdes de chegar a bom termo. Por isso, existe atualmente uma tendéncia a se “reavaliar’’ esses projetos, numa operacado em que os empresdrios ficariam com as ‘‘vitrines” que construfram com os incentivos fiscais e desti- nariam as dreas restantes para projetos de colo- nizagao. Assim, poderiam realizar o preco da terra, numa conjuntura onde a valorizagdo da mesma parece estar perdendo o jmpeto inicial, além do que assegurariam méao-de-obra barata dos pequenos proprietdrios vizinhos e melhoramentos de infra-estrutura. Evidentemente, serd preciso que o governo entre para “bancar’ o negdcio, isto é, financie os investimentos de infra-estrutura necessdrios. Isso pode ser muito atraente quando se procuram novos projetos-impacto que permitam captar dividendos politicos e sociais, como se pensava inicialmente lograr com a abertura da Transamaz6nica. mh O que é Questéo Agriria 4s b) A modernizagao do Centro-Sul E fato inegdvel que a modernizagao da agricul- tura, em especial a do Centro-Sul do pais, se ace- lerou nos ultimos anos. Mas é preciso destacar que esse processo nado é completo, caracterizando © que se poderia chamar de uma modernizacao parcial da agricultura, num duplo sentido. De um lado, porque essa modernizacao se restringe a alguns produtos e regides. Nao é neces- sdrio repetir que em funcao disso o café, a cana- -de-agucar, a soja, 0 trigo, etc., séo chamados de “culturas de rico”, ficando o feijao, o leite, a fava, grande parte do arroz e do milho conhe- cidos como "culturas de pobre’. Tampouco é necessdrio enfatizar que o Centro-Sul do pais nao é somente a regido que concentra a produgdo industrial, mas também a produgdo agricola do pais. So Paulo, por exemplo, conhecido por seu parque industrial, 6 também um dos estados mais importantes na produg¢do agricola do pais. OQ outro sentido em que se poderia chamar a modernizacao da agricultura brasileira de parcial é que, mesmo em relac&o aos produtos e dreas especificas em que se faz presente, ela atingiu apenas algumas fases do ciclo produtivo. Por exemplo, as culturas tropicais como a cana, café, cacau e borracha nao tém a sua colheita mecani- zada, seja por razdes técnicas em alguns casos 50 José Graziano da Silva e econdmicas em outros. A modernizagéo parcial da agricultura, em especial do Centro-Sul do pais, traz pelo menos trés grandes reflexos para seu desempenho no futuro. O primeiro é& que as disparidades regionais se acentuaram, nado apenas entre as trés macro- -regides do pais — Nordeste, Norte e Centro-Sul — mas também dentro dessas regides. Diga-se de passagem, por exemplo, como ilustracgdo das dispa- ridades entre as regides, que o Centro-Sul absorve hoje mais de 80% das mdquinas e equipamentos agricolas e dos fertilizantes e defensivos, partici- pacgdo essa que vem tendendo a crescer com a incorporagado das dreas de cerrados do planalto central. Crescem também as disparidades dentro das regides, por dois importantes fendmenos: a) a especializacdo de algumas areas, que se trans- formam em monocultoras em fungdo de econo- mias externas (transporte, armazenamento, pro- cessamento do produto, etc.); b)o fato de o progresso técnico ndo se difundir no ritmo que esperavam aqueles que admitiam a falsa hipdtese de um mercado de concorréncia perfeita no campo, nem muito menos de esse progresso eliminar os menos eficientes, ou seja, aqueles que estivessem fora do ‘’tamanho 6timo”, conceito também falso, porque se baseia numa transposi¢aéo de uma_ pretensa economia interna de escala que certamente O que é Questdo Agrdria thn ( existe na industria, mas néo no atual estagio de desenvolvimento da agricultura brasileira (as evidéncias empiricas indicam que a cana- -de-acuicar constitui-se na honrosa excecdo que apenas confirma a regra). O segundo reflexo importante dessa moderni- zacao parcial é o crescimento da sazonalidade® do trabalho agricola. Isso porque a moadernizacao ndo atingiu todas as fases do ciclo produtivo, especialmente a fase da colheita, que é uma das mais exigentes em termos de mdo-de-obra, e também porque o progresso técnico se incrustou em determinadas dreas de monoculturas espect- ficas, reforcando as oscilacdes sazonais préprias do calenddrio agricola. Isso nado s6 acelerou violen- tamente o éxodo rural, como também transformou as relacdes de trabalho nessas dreas. Assim, em aigumas regides do pats, em certas épocas do ano ha uma escassez tempordria de mao-de-obra, enquanto que em outras épocas, naquelas mesmas regides, hd acentuados indices de subemprego e de desemprego aberto. Em outros termos, a modernizacgao parcial da agricul- tura tem significado nao apenas uma menor expan- séo (ou até mesmo uma reducdo) dos niveis de emprego, mas sobretudo um grande aumento do trabalho tempordrio no setor agricola. Ressalte-se que esse aumento do trabalho tempordrio, repre- sentado pelo aumento (pelo menos relativo) do contingente dos assalariados tempordrios $2 Exigéncias de mdo-de-obra José Graziano da Silva Gréfico 2: Esquema ilustrativo da Variagdo das Exigéncias de Mao-de-Obra por unidade de 4rea segundo as fases do ano agrfcola na agricultura moderna e tradicional, g 2 is = 2 oO . 3 méquinas Colheita defensivos mo : iat | Tratos { ! | culturais { Fases do } a Plantio ano agricola A linha tracejada reflete uma mator sazonalidade do trabalho rural na agricultura moderna, tanto pelo fato de ter reduzido a mao-de- -obra necessdria nas atividades do plantio e dos tratos culturais e aumentado na colheita, como por ter introduzido a descontinui- dade da ocupacdo durante o ano agricola, devido a que a mesma atividade pode ser realizada em menor tempo. conhecidos como volantes, ou bdias-frias, tem significado uma redugado no seu nivel de renda familiar, dado que geralmente encontram trabalho em apenas metade dos dias Uteis do ano. Isso vem obrigar 4 incorporagao crescente de mulhe- res e criangas em idade escolar, especialmente por ocasido das atividades da colheita, segundo O que é Questéo Agraria § = = = oo se pode demonstrar a partir dos dados do Censo Agropecudrio de 1975, na tentativa de manter o nivel de renda familiar. “Como um aparente paradoxo, com a queda do nivel de vida desse contingente cada vez mais numeroso de assalariados tempordarios, os saldrios rurais continuam crescendo como forma de garan- tir a oferta necessdria de mao-de-obra nos momen- tos de pico. Deve-se recordar que 6 exatamente esse crescimento dos saldrios reais, aliado 4 escassez temporaria de mao-de-obra que ameaga o ciclo produtivo no momento crucial da colheita, que representam os incentivos necessdrios para a mecanizagdo dessa atividade. E que, se isso ocor- rer, passaremos de um problema de subemprego dos volantes para 0 de desemprego aberto, a menos que os outros setores da economia possam absorver esses contingentes de mdo-de-obra libe- rados do campo. Em outras palavras, caso a moder- nizagaéo da agricultura brasileira se complete ao nivel dos ciclos produtivos das nossas princi- pais culturas tropicais — tendéncias que vém se delineando para curto prazo — sé teremos agravados os indices de pobreza dos trabalhadores rurais. E oportuno relembrar aqui que a “culpa” nao deve ser atribuida 4 mecanizacao em si, como querem alguns; seria muito bom que os volantes trabalhassem metade dos dias do ano, se ganhassem o suficiente para viver os outros dias sem trabalhar. O iterceiro grande reflexo dessa modernizagado 54 José Graziano da Silva parcial da agricultura diz respeito ao que se poderia chamar de uma tendéncia 4 unificagaéo do mercado de méo-de-obra nao qualificada nas regides de agricultura mais desenvolvida. Essa tendéncia pode ser traduzida no fato de os saldrios rurais passarem a acompanhar as variacdes dos saldrios urbanos, especialmente da mao-de-obra empre- gada na construcao civil e nas demais atividades urbanas que exigem pouca qualificacao. Essa unificagdo, se de um lado permite evitar um crescimento maior dos saldrios nos momentos de pico de demanda de mao-de-obra por parte das atividades agricolas, de outro lado representa uma dificuldade crescente para a acaéo do Estado no sentido de minorar o subemprego. Por exemplo, grandes obras de construgdo civil, ou ainda uma politica de descentralizacéo industrial nessas regides de agricultura parcialmente moderni- zada, s6 viriam a agravar a competicao por mao- -de-obra em algumas épocas do ano. O mesmo ocorreria em relagdo a uma politica que incenti- vasse 0 processamento local da produgao agricola, dado que as agroindustrias também tém uma demanda sazonal de forca de trabalho, com o pico na mesma época das colheitas, o que viria a agravar ainda mais a escassez sazonal de mao- -de-obra nessas regiGes. E nunca é demais repetir que é exatamente essa escassez temporaria que representa para os empresérios um estimulo adicional 4 procura O que é Questdo Agniria de novas formas de poupar mao-de-obra, o que tenderia a gerar ainda menores niveis de emprego no setor agricola como um todo. E num pais como o nosso, onde a industria é altamente oligo- polizada e com sofisticados padrdes tecnoldgicos determinados em fungado das necessidades de eco- nomias mais desenvolvidas, a agricultura precisa reter mao-de-obra, criar empregos, ao contrdrio do que se propaga nas suas chamadas “fungdes cldssicas”, que valiam para a época do nascimento do capitalismo concorrencial. Nesse sentido, 6 importante salientar que a modernizacaéo, ainda que parcial, da agricultura brasileira s6 tem sido possivel gragas 4 fundamental acao do Estado, subsidiando a aquisi¢aéo de insu- mos, madquinas e equipamentos poupadores de méao-de-obra. Enquanto esses produtos chegam a ser incentivados com altas taxas de juros reais negativas (em alguns casos superiores a 25% a.a.), os saldrios carregam sobre si um Gnus adicional de pelo menos 30% para o empregador. E, como ainda assim se mostram competitivos, isso nada mais demonstra do que os baixos niveis de remune- raco a que estéo submetidos os trabalhadores rurais brasileiros. c)A crescente presenca do capital monopolista no campo A terceira importante modificagdo na agricul- 56 José Graziano da Silva tura brasileira, e que tende a refletir profunda- mente sobre o seu comportamento no futuro préximo, é a crescente presenca dos grandes Capitais no campo. Essa presenca aumentou tanto do ponto de vista de sua participagao na producgdo agropecudria propriamente dita, como também do ponto de vista da sua participacao controlando © processamento dos produtos agricolas e a venda dos insumos adquiridos pelos agricultores. Em relacdo a presenca do grande capital na produgao agropecudria, jé comentamos alguns dos seus aspectos quando tratamos do “‘fecha- mento” da fronteira agricola. Muitos poderiam pensar, entretanto, que a grande empresa agrope- cudria tem a sua expansdo restrita a essas regiGes de fronteira. Ledo engano: os dados mais recentes revelam um crescimento generalizado no grau de concentracao fundidria no pats. Por exemplo, entre 1970 e 1975, o indice de Gini’? de concen- tragdo da posse da terra no Brasil, calculado a partir dos dados censitdrios, se elevou de 0,840 para 0,855, que é um acréscimo significativo para um curto perfodo de 5 anos, ainda mais se tendo em vista que vinha se mantendo estdvel pelas trés dltimas décadas. A concentragaéo da propriedade da terra também se acentuou, a julgar pelos dados do cadastro do INCRA, no periodo de 1972/76, tendo o indice de Gini aumentado de 0,837 para 0,849, considerado um dos niveis mais altos do mundo. O que é Questéo Agraria Esse aumento do grau de concentragao fun- didria, seja da posse, seja da propriedade da terra, deveu-se em parte a politica de ocupacao da fronteira amaz6nica através das grandes empre- sas pecudrias, deslocando a pequena producdo agricola, como jd dissemos anteriormente. Parte significativa, contudo, deveu-se 4 expansdo das grandes propriedades na regido Centro-Sul, em especial nos Estados de Goids, Séo Paulo, Parana e Rio Grande do Sul, vale dizer, nos estados de agricultura mais modernizada. Esse processo de modernizacgdo do Centro-Sul resultou na expro- priago de pequenos produtores, em particular daqueles que detinham formas precarias de acesso a terra, Como os posseiros, parceiros e pequenos arrendatdrios. Vale a pena enfatizar que esse aumento do grau de concentracao fundidria se deu em indmeros casos pela utilizacio da terra néo como meio de produgdo, mas fundamentalmente como reserva de valor e meio de acesso ao crédito rural e aos incentivos fiscais, ou, simplesmente, como especu- lacdo imobiliaria. Mas deixemos de lado esses aspectos para nos dedicarmos um pouco 4 questaéo da crescente dominacdo do grande capital no campo a jusante e a montante do produtor rural, isto é, na venda dos insumos e na compra da produgdo agrope- cudria. 7 «*-, Podemos dizer que a renda do produtor rural, th 58 José Graziano da Silva especialmente do pequeno, nas regiGes de agricul- tura mais desenvolvida, encontra-se duplamente prensada. De um lado, pela compra de insumos agricolas num mercado oligopolista, isto é, onde existem alguns poucos grandes vendedores que controlam os precos de venda, os quais vao ser os custos do agricultor. Do outro lado, pela venda de “sua produgdo em mercados que podemos ‘chamar de monopsdnicos ou quando muito oligops6nicos, ou seja, onde hd relativamente poucos compradores e/ou em que ha uma ten- ‘déncia ao fortalecimento de apenas um grande comprador. Essa articulagdo entre vendedores de insumos, pequenos produtores e grandes compradores dos produtos agricolas ocorre sob as mais variadas formas. Por vezes é o caso das redes de super- mercados que passam a comprar diretamente dos produtores ou das cooperativas, que desempe- nham também ai o papel de vendedoras de insumos, como acontece nos hortifrutigranjeiros em geral. Outras vezes é o caso das agroinddstrias que estabelecem contratos diretamente com os pequenos produtores, como é o caso do tomate, do fumo e de outras atividades de alto risco e que sdo bastante exigentes em termos de mao-de- -obra por ocasido dos tratos culturais. Em outros ainda, © pequeno produtor se vé preso em sistemas de comercializagao que foram teoricamente criados para favorecé-lo e se converteram numa formula O que é Questao Agriria ue mais eficiente de espolid-lo, como 6 o caso dos CEASAs (que acabaram fortalecendo os grandes intermedidrios) e das cooperativas (que acabaram representando apenas interesses prdprios ou de uma minoria de grandes cooperados). Essa articulacéo entre o grande capital industrial * e/fou comercial e a pequena producgdo modifica fundamentalmente o papel que até entdo esta desempenhava na agricultura brasileira. De um jlado, esses pequenos produtores deixam de ser ‘produtores de subsisténcia, no sentido de oferta- -rem o “excedente”,® e passam a produzir funda- mentalmente para o mercado. E agora, como pequenos produtores mercantis, nado se ligam necessariamente 4 produgdo de géneros de subsis- téncia, dedicando-se muitas vezes também 4s chamadas “culturas de rico’. De outro lado, porém, se devemos concordar que eles se tecni- ficam, dificitmente poderfamos admitir que a pequena producdo esteja sofrendo um processo geral de diferenciacéo, de modo a converté-los em pequenos capitalistas do “tipo farmer’ (pare- ce-me ser 0 caso de uma tecnificagao sem capita- lizag&o, entendendo que a capitaliza¢do implica num processo de diferenciacdo social e econdmica). Essa tecnificagdo ocorre na maioria das vezes por imposicéo do grande capitalista comprador, que exige uma padronizagéo da produgdo, ou por necessidades inerentes ao préprio tipo de cultivo. Nao se deve esquecer que as variedades 60 4 a / 4 José Graziano da Silva selecionadas que existem para a grande maioria das “culturas de rico” sé sdéo altamente produtivas quando acompanhadas de um verdadeiro “‘pacote tecnolégico”. Tampouco se deve esquecer que esse pacote é uma imposi¢aéo do grande capital industrial que produz os chamados insumos mo- dernos para a agricultura. O fundamental af nao é o aumento da produgdo em si, mas sim que os pequenos agricultores passem a desempenhar um novo papel, o de compradores de insumos industriais, mesmo que isso se reflita numa ele- vacao dos seus custos. E importante entender que foi esse processo -de tecnificagdo da pequena producdo que repre- “sentou uma completa modificagdo na sua estru- ‘rada para produzir tura de custos. Antes, o pequeno produtor de subsisténcia utilizava-se quase que exclusivamente da terra e da mao-de-obra familiar néo remune- seus “‘excedentes’’. Agora, ‘ entretanto, Oo pequeno produtor mercantil tem . custos monetédrios elevados, devido aos insumos “ modernos que necessita utilizar. Ele nao pode mais vender a sua producao ‘‘a qualquer prego”, como na economia do “excedente”, pois tem agora um custo minimo a cobrir. Em outras palavras, o fato de a agricultura se transformar numa crescente consumidora de insumos indus- triais tem implicado um crescimento mais rapido dos pregos dos produtos agricolas, sem que necessariamente o produtor se beneficie desses O que é Questao Agréria acréscimos. Mesmo onde a pequena produgado nao se tecni- ficou, como ainda é 0 caso dos géneros alimen- t(cios basicos, 0 fortalecimento dos oligopsénicos _‘. mercantis tem-se refletido num encarecimento da alimentagdo bdsica ao nivel do consumidor urbano, especialmente de baixa renda, além de atribuir a agricultura um componente inflacionério - significativo. / A expropriacado crescente da pequena produgaéo no Centro-Sul do pais, aliada a dificuldade de Ag. Foihas O fechamento da fronteira amazénica, Na foto maquinas do Projeto Jari, responsdvel pela ocupacdo de grande parte do territorio amazénico, 62° José Graziano da Silva »}* sua recriagdo na fronteira “‘fechada”, tem impli- &; cado numa redugdo gradativa da sua importancia + como produtora de alimentos para trabalhadores ® brasileiros em geral. Por outro lado, essa reducdo ‘ obrigou o grande capital industrial do setor de t “sprocessamento de alimentos a satisfazer uma _Parcela crescente da cesta de consumo desses .,trabalhadores, que acabaram por substituir a , {tradicional combinacéo toucinho, arroz e feijao ‘por Gleo vegetal, macarrao e farinhas. Mas, se a pequena producdo perde importancia como ofertante de géneros alimenticios, paralela- mente ela ganha destaque como reservatério ¢’ de bracgos para as atividades capitalistas, Para ‘ NY fazer frente 4 dupla compressdo na sua renda — fe ‘tanto pelo lado da compra de insumos, como pelo da venda de suas mercadorias —, 0 pequeno produtor e Os membros de sua familia tem que * ‘se assalariar temporariamente nas grandes proprie- dades vizinhas, o que se torna compativel com “ 0S momentos de pico de demanda de mao-de- “| -obra acentuados pela modernizagado parcial da agricultura, especialmente no Centro-Sul. E esse . um dos mecanismos responsdveis pelo aumento da rotatividade da populacdo rural em todo o pais. E importante destacar que essa mesma moderni- ‘]}zagdo do Centro-Sul é também responsével pela ' ‘gdnstituicao de um novo fluxo migratério, a partir : dessa regido, em direcéo a Rondénia, Acre e, imais recentemente, Amazonas e Roraima. Ora, uae . a O que é Questao Agraria ( na medida em que esses Ultimos se esgotam, os fluxos migratérios que se dirigirem para a “fron- : teira fechada’” tenderaéo a ser “rebatidos” para - as grandes metrépoles do Centro-Sul, agravando ~ © caos em que se encontram, ou forcarao uma / répida urbanizacéo da prépria regido Norte. O° risco de uma “urbanizagdo precoce” nessa regido torna-se bastante real na medida em que para [a continuam a se dirigir grandes levas de populagao que jd ndo tém acesso a terra. Surgem, entdo, - verdadeiras cidades no meio da selva, como se costuma dizer, obrigando o Poder Publico a correr atrds desses fluxos migratérios, para garantir as condigdes minimas 4 sua sobrevivéncia urbana. O fechamento da fronteira amazénica devera recolocar a questéo da ocupacdo efetiva da ‘‘fron- teira interna” da regido Centro-Sul. E sabido*, que cerca de um tergo da drea total das proprie- dades agricolas dessa regido ndo é efetivamente ., explorada. £ mais: uma fragdo significativa da‘ “ rea explorada com pecudria refere-se a pastos - {+ naturais, especialmente nas zonas de campos © de cerrados, com baixissima lotagao por unidade © de drea. Parece evidente que, entre ocupar produti- ~~ vamente a Amaz6nia e os cerrados do planalto. * _central, esta ultima opcdo deverd prevalecer. Isto porque tem a seu favor uma renda diferencial., ‘ ‘de localizagdo, uma infra-estrutura de transportes, - além de ter solos mais favordveis 4 mecanizagao, *- de facil desmatamento e possivelmente de fertili- ty dade igual ou superior 4 média da regido Ama- :z6nica. Assim, o fechamento da fronteira amazé- ynica. juntamente com a ocupagéo da “fronteira F interna” do planalto central, levaréo a uma moder- nizagao ainda maior da agricultura do Centro-Sul. _' Como jd dissemos anteriormente, a nao existén- cia de “‘terras livres’’ obriga a que a agricultura , Se” capitalize para responder ao crescimento da , demanda de alimentos e matérias-primas. E essa’ capitalizagéo serd mais intensa nas terras que,, apresentarem maiores rendas diferenciais, seja; pela localizagdo, seja pela fertilidade. E como. se 0 capital tivesse que criar mais terras: 0 caminho , possivel seré Oo aumento da produtividade por ‘ hectare através das tecnologias fisicas, quimicas e bioldgicas, ou seja, fertilizantes, sementes melho- radas, novas prdticas agricolas, etc. E possivel, entéo, que a difusdo das inovagdes { piolégicas se dinamize e tenda a acompanhar ; inda mais de perto as inovacdes mecanicas. ‘ Neste caso, a produtividade do trabalho nas gran- des propriedades tenderé a crescer simultanea- } mente 4 produtividade da terra nos pequenos estabelecimentos, milagre que os agrénomos e” | OS poetas acreditam ser a redencdo dos agricul-— | tores brasileiros. Mas certamente esses aumentos ~ | de produtividade virdo acompanhados de uma | presenca cada vez maior de capitais monopo- ; \listas controlando tanto a venda dos insumos.. ‘bdsicos como a comercializagdo e o processamento José Graziano da Silva O que é Questéo Agraria 6f [. YO dos produtos agricolas. E sera submetido a esse estreito controle oligopolista-monopsénico que 0 pequeno agricultor teré que organizar o seu or¢ca- mento, incorporando cada vez mais o trabalho dos membros da familia, tanto na propria produ- cdo, como na forma de trabalho assalariado alu- gado temporariamente. . , Parece-nos evidente, portanto, que a “velha’ agricultura, entendida como um "setor autd- nomo”, tende gradativamente a desaparecer.*« A agricultura do futuro, tal como ja se esboca i hoje em algumas regides do pais, sera apenas mais | um ramo da industria, com pequenas especifi- cidades ligadas ao papel desempenhado pela: / terra como meio de producgdo. De um lado, rece-' beré matérias-primas de certas industrias, como a as de adubos, de defensivos, de maquinas, de. sementes e mudas selecionadas; de outro, forne- ceré insumos a outras industrias, como as de tecidos, alimentos processados, calcados, etc. Ai entéo a producgdo agropecudria deixaré de _ser uma esperanca ao sabor das forcas da Natu- reza, para ser uma certeza sob o comando do Capital. Ou seja, se faltar chuva, irriga-se; se nao houver solos suficientemente férteis, aduba-se; se ocorrerem pragas e doencas, responde-se com defensivos ou técnicas bioldgicas; e, se houver ameacgas de inundacao, estardo previstas formas de drenagem. ; Mas esse é um longo caminho a ser percorrido 66 José Graziano da Silva a partir do marco que temos hoje na agricultura brasileira. O importante é que, da mesma maneira como o capital tentaré encontrar suas prdéprias formas de superar os obstaculos nesse caminho, -a resolugdo dos problemas da populacao rural terd que ser buscada por ela mesma, na medida em que se organizar e defender os seus préprios interesses. E, para ajudar a remover as pedras desse caminho, precisamos reconhecer hoje a t necessidade de autonomia e liberdade da estrutura “( sindical, para que os trabalhadores possam falar ° | Por eles mesmos. Finalmente, 6 preciso ressaltar que da mesma maneira que nao estamos diante de nenhum impasse, tampouco estamos diante de nenhum * milagre agricola, nem ha nenhuma solugéo tecno- crética para a miséria dos pequenos produtores se trabalhadores rurais. ‘\ A importancia do momento em que vivemos teside em que tentamos superar uma fase de crise. _O crescimento das economias capitalistas é ciclico ~.@ aS crises fazem parte dele. Elas representam “@ momento politico em que se renegocia o pacto de poder e o momento econémico em que se Ppreparam os mecanismos que ativardéo a préxima etapa de expanséo. Como explica Schumpeter, 4 um grande estudioso do problema, as crises desem- eq penham no sistema capitalista o mesmo papel dos freios nos automdveis. E, por paradoxal que possa parecer, quanto melhores forem os e> O que é Questio Agraria € freios, mais rapidamente poderdo correr os automéveis sem que a sua seguranca fique com- prometida. A industrializagao da agricultura ea fabricagéo da natureza B ~ OS TRABALHADORES DA AGRICULTURA BRASILEIRA E SUA ORGANIZACAO SINDICAL Os distintos grupos de trabalhadores rurais A complexidade das relagdes de producado “ina agricultura brasileira é enorme: ,Ela advém, ‘de um lado, da multiplicidade de formas sob as ‘quais se organiza o trabalho no campo, sob o comando do capital.) Por exemplo, desde a produ- ¢4o que tem por base a unidade familiar, organi- zada de uma maneira “artesanal’”, até a grande empresa que se assenta no trabalho assalariado, organizada de um modo semelhante a uma grande manufatura ou até mesmo, em alguns casos particu- /j\ares, a uma grande industria maquinizada. . ‘\" De outro lado, essa complexidade decorre O que é Questéo Agraria Pa ate { 1 do imbricamento que existe entre os diferentes L grupos sociais engajados diretamente nas ativi- dades produtivas. S6 para exemplificar, grande parte dos trabalhadores que se assalariam tempora- riamente séo também pequenos produtores de mercadorias, vivenciando uma dupla referéncia de “operdrios e camponeses”. Como se isso nao bastasse para complicar os esquemas tradicionais, podemos acrescentar outra dupla referéncia igualmente contraditéria, a de “empregados e empregadores”. Apenas a titulo de ilustragao, de acordo com o Recadas- tramento do INCRA de 1972, os minifundistas sao responsdveis pela contratagdo de mais de 40% da forca de trabalho tempordria ocupada na agricultura brasileira. Ou seja, aqueles mesmos pequenos produtores que sao obrigados a se assa- lariarem temporariamente em certas épocas do ano, visto ser impossivel garantirem sua sobrevi- véncia apenas com os precdrios meios de producgdo que possuem, constituem um dos grupos que mais empregam assalariados na época de pico de atividades do imdvel, geralmente a colheita. E 6 preciso enfatizar que o trabalho tempordrio se generalizou de tal forma na agricultura brasi- leira que se torna diffcil encontrar uma proprie- dade, seja ela “camponesa”, seja uma grande empresa comercial, que pelo menos na época da colheita nao contrate mao-de-obra de fora. Essa complexidade das relacSes de producgdo i 70 José Graziano da Silva na agricultura brasileira jd torna em si muito diffcil — e muito discutivel — qualquer andlise agregada das relagGes de trabalho no campo. jx {Como se nao bastasse isso, ainda temos que ‘agregar a precariedade dos dados disponiveis ’ ido IBGE e do INCRA, tanto pelo fato de nao . {se dispor de determinadas informacdes, como ipelas diferencas de critérios nas formas de apre- ssentagdo e de coleta das diversas fontes e até nas diferentes publicagdes de uma mesma fonte. » Gostarfamos de deixar explicito que, ao sepa- "rar os diversos grupos de trabalhadores rurais, estamos buscando apenas uma primeira aproxi- macdo, ainda que grosseira, das diferentes formas sob as quais se organiza o trabalho na agricultura brasileira. Evidentemente, isso sO seria possivel ser feito com algum rigor se dispuséssemos de um amplo e sistemdtico levantamento da realidade brasileira, em todas as suas variagdes. No entanto, nao podemos ficar apenas nos lastimando por nado se dispor das condigdes necessdrias para tal em- preendimento; é preciso tentar fazé-lo a partir das evidéncias disponiveis, pelo menos para deixar claro 0 pouco que ainda se sabe a respeito dos trabalhadores rurais brasileiros. Para simplificar um pouco as coisas, vamos considerar aqui apenas os trabalhadores rurais que vendem sua forca de trabalho, ou seja, todos os que obtém do trabalho assalariado pelo menos uma parte dos meios de sobrevivéncia. Vamos aa ‘ ee O que é Questéo Agraria i ; See 7 t excluir, assim, os “pequenos fazendeiros’” ou * “camponeses médios’” (bem como seus depen- dentes) que trabalham somente em suas proprie- dades.? Ou seja, vamos incluir apenas aqueles pequenos produtores que organizam a produgdo} com base no trabalho da familia e que tém neces-~ Sariamente de se assalariar fora certas épocas do ano para conseguir sobreviver, como acontece com os proprietdrios minifundistas, os pequenos posseiros e os pequenos rendeiros. A Tabela 1 apresenta de modo resumido os resultados preliminares de uma pesquisa em anda- mento onde procuramos quantificar os trabalha- dores rurais ocupados no ano de 1975 a partir dos dados secunddrios disponiveis. Os ntmeros expostos representam uma manipulagdo (no melhor sentido. que essa palavra possa ter) dos dados do Censo Agropecudrio de 1970 e de 1975 e do Recadastramento de Imdveis Rurais de , 1972 e de sua atualizagéo para 1976, tomando-se \ o Brasil como um todo. yo’ E importante destacar que o conceito de ocu- yy pados é bastante vago e impreciso, baseando-sé / “exclusivamente nas informagGes prestadas pelos ~ declarantes junto ao INCRA e ao IBGE. Estado - af incluidos todos os declarantes e dependentes que trabalham, bem como seus empregados, contratados pelo préprio estabelecimento ou por empreitada, sem especificar o tempo em que estado efetivamente engajados na producao propria- 72 José Graziano da Silva h P O que é Questéo Agraria s { Tabela 1 Estimativa da forca de trabalho ocupada na agricultura brasileira em 1975/76 MilhGes de pessoas gue temna Participacao Grupo agricultura sua pains - “atividade ' permanente’’ Proprietarios minifundistas” 4,0 0,26 Pequenos posseiros* 2,4 0,16 Pequenos rendeiros* 4,0 0,26 Empregados assalariados 49 0,32 (permanentes) (1,6) (0,10) (tempordrios) (3,3) (0,22) TOTAL 16,3 1,00 * Inclui os dependentes ocupados sem remuneragao. Fonte dos dados bdsicos: Censo Agropecuério de 1970 e 1975 @ Recadastramento de Iméveis Rurais de 1972 e sua atualizagéo para 1976, mente dita. Nés vamos considerd-los como pessoas que tém na agricultura sua atividade “perma- nente” ou “principal”, pois mesmo no caso dos ea Rapa aA it aSteNEtiee i is AAS trabalhadores tempordrios utilizamos certos ajusta- mentos para tornd-los compardveis aos trabalha- dores permanentes. Assim, os valores apresen- tados na Tabela 1 devem ser entendidos como. uma aproximagéo da forea de trabalho ocupada na agricultura brasileira e nao da méao-de-obra total disponivel no setor agricola. A seguir faremos uma breve descrigéo de cada um dos grupos listados na Tabela 1, segundo se pode apreender das informacgdes disponiveis. a) Proprietdrios minifundistas Ve Qs proprietdarios minifundistas representam um contingente de cerca de 4,0 milhGes de pessoas | ativas, ou seja, mais de 25% da forga de trabatho ; ocupada em cardter “permanente” na agricul- tura brasileira. f Grosso mode, os proprietdrios minifundistas tém duas caracteristicas marcantes: a) possuem uma propriedade menor que o médulo rural, definido como a drea que, “direta ou pessoalmente explorada pelo agricultor e sua familia, |hes absorva toda a forca de trabalho, garantindo-ihes a subsisténcia e o progresso social e econdmico, com drea mdxima fixada para cada regido e tipo de exploracgdo, e even- tualmente trabalhada com a ajuda de terceiros” (Estatuto da Terra, Lei 4504 de 30/11/1964, ee ee 74 José Graziano da Silva art 49). Em resumo, sao pequenos proprietdrios, com dreas quase sempre inferiores a 50 ha.’ b)s80 pequenos proprietdrios pobres, com um valor bruto da sua producéo equivalente a quantia de um ou no maximo dois saldrios i> minimos." . Dessas caracteristicas fundamentais decorre a nécessidade imperiosa que tém de se assalariar « fora de suas propriedades para completar a subsis- : téncia da familia. Em outras palavras, esses peque- nos proprietdrios e os membros de suas familias nado poderiam sobreviver como pequenos produ- tores, ou seja, nao garantiriam a sua reproducazo social se nao langassem mao do assalariamento tempordrio em certas épocas do ano em outras propriedades, como meio de complementar a \Sua_renda. Isto, alids, decorre da propria defi- ae nicgo de médulo rural, entendido como a area _ Minima que asseguraria a sobrevivéncia da familia ‘a-partir da produgao af obtida; ou seja, se o mini- |o“fundio é€ inferior ao _médulo, significa que o proprietdrio e os membros de sua familia nado conseguem retirar daquela terra o necessdrio , para a sua reproducdo como pequenos produ- ‘) nem mesmo os chamados “sindicatos cristaos”, ‘erganizados por setores progressistas da Igreja <>para se contraporem & aco do Partido Comu- “~ nista, conseguiram evitar as intervengdes e prisdo de seus lideres mais expressivos. A diretoria eleita para a CONTAG em 1965 permaneceu até 1967. Na sua forma de agir procu- rou sempre nao hostilizar o governo militar, na intencéo de minorar a repressio ao movimento sindical, atuagdo essa que se poderia sintetizar pelas expressdes “colocar panos quentes” e “‘apa- gar incéndios”. Em 1968, essa postura modifica-se com a vitéria da oposicéo, passando a CONTAG a empreender Sendo ou nao essas criticas procedentes — é. : um esforco continuo para expressar e defender algumas realmente 0 séo —, no se pode deixar’ efetivamente Semel iteresses dos trabalhadores : de destacar os méritos da CONTAG..O maior “ rurais. Essa nova diretoria (com pequenos ajus- : deles, sem dividay 6 0 de ter mantido acesa a tes) vem se mantendo a frente da CONTAG em \ chama da luta dos trabalhadores rurais brasi-,-’ sucessivas reeleigdes, tendo recentemente reafir- i leiros contra 0 monopélio da terra. E a CONTAG mado sua lideranga por ocasido do WI Congresso faz isso através da bandeira da reforma agrdria, Nacional de Trabalhadores Rurais realizado no mantida sempre desfraldada —~ por princ(pio. - Ud de mato ae pane aie Mest aes “remédio para todos os males” dos trabalhadores A Se ray eriennes Teron baal cae rurais brasileiros. Na verdade, a luta pela reforma se trata de " pelegos , como aconteceu em agrdria desenvolvida pela CONTAG nfo era apenas confederacées sindicais brasileiras. Evidentemente, muitas criticas tém sido feitas:- a atuagdo da CONTAG nesse perfodo. Entre elas* destacam-se a de que n&éo tem dado suficiente énfase na organizagdo das bases, a de manter uma postura estritamente legalista (decidindo © que pode e nao pode ser feito em funcado da legislagéo existente, de pareceres juridicos, etc.) e a de nao buscar aliancas nos setores mais progres- sistas da sociedade brasileira. Em resumo, a acdo da CONTAG, segundo seus criticos, tem sido a de “encaminhar as quest6es as autoridades competentes”, sem exercer uma forte pressdo reivindicatéria por outros meios. Isso se justifica em parte pelo fato de a CONTAG nao dispor de maior sustentagdo nas suas prdéprias bases, e em parte pela falta de apoio sistemdtico de outros setores da sociedade brasileira nesses . anos todos de repressao. a 86 José Graziano da Silva O que é Questéo Agriria 87 oo politica. Ela significava, na prdtica, uma luta pelo cumprimento da legislagdo vigente (daf autenticidade da luta dos trabalhadores rurais,. brasileiros. Em outras palavras, hd um saldo posi- : ,, a explicagdo, em parte, da critica a “conduta legalista’’ dos atuais sindicatos rurais, onde a figura de maior expressdo 6, muitas vezes, o assessor jur{dico). Majs do que manter acesa a chama da luta dos trabalhadores rurais pela Reforma Agraria, a CONTAG acumulou, nesses anos todos.de repres- séo ao movimento sindical, importantes vitérias. Ela soube avancar, embora de ‘maneira sempre muito precavida, nos momentos em que a .conjun- \tura polftica do pais assim o permitiu. Por exem- ‘plo, a CONTAG sempre denunciou invasdes de uterras de posseiros, a cumplicidade do governo ‘com os grandes proprietdrios rurais na definicao “das polfticas agrfcolas, o desrespeito aos direitos ‘ | mais elementares dos ‘’bdias-frias’’ e, mais recente- mente, até mesmo juntou a sua voz no coro de pleno restabelecimento das liberdades democra- ticas e pela ampla, geral e irrestrita anistia. A CONTAG também soube recuar nos momen- + tos de crise. Manteve, porém, o escudo da legis- lagdo vigente como um limite do aceitadvel para esse recuo, sem esquecer suas reivindicagGes, em- bora as mantivesse sempre num “‘plano legalista’”’. Assim, se fizermos um balango das atividades da CONTAG no perfodo 1968/78, mesmo que se coloque em divida se mais poderia ter sido feito, restardé a certeza de que ela conservou a tivo ao nivel das “contradigdes externas” da, CONTAG, ou seja, na defesa dos trabalhadores rurais contra o Estado, personificado num governo autoritdrio que representa os interesses dos grandes proprietarios rurais e do grande capital. Mas é no nivel das “contradicdes internas”, isto 6, no choque de interesses dos varios grupos de traba- Ihadores nela representados,* que se coloca hoje uma “nova questdo” para a organizacdo do sindicalismo rural brasileiro. , O desenvolvimento do capitalismo no campo, na medida em que incorporou méquinas, defen- ' sivos, fertilizantes @ outros insumos modernos, modificou profundamente a base técnica da produgdo de algumas regides do Brasil, especial- mente do Centro-Sul. O resultado foi uma_alte- racdo nas relacdes de trabalho existentes no campo, .traduzidas na disseminacéo do assalariamento |< tempordrio por todo o pais e tipos de proprie- “ dades. Vale dizer, com a mercantilizagao das + relagGes de trabalho no campo, o dinheiro passou > a intermediar até mesmo o que antes era conside- ©, rado uma forma de ajuda mitua,.entre pequenos produtores, da qual o mutirao éra o exemplo tipico. Assim é que, hoje, de um lado, coloca-se um contingente significativo de trabalhadores rurais completamente separados dos meios de produgdo; ‘ 88 José Graziano da Silva de outro, trabalhadores rurais que ainda possuem ume dupla condicgéo de “empregados-empre- gadores’”, como jd salientamos anteriormente. Qu seja, de um lado, o pequeno produtor (seja ele posseiro, parceiro, arrendatdrio ou pequeno proprietdrio) que contrata assalariados tempo- rériog apenas no momento de pico de suas ativi- dades e que nao se personifica como “‘patréo”, fconsiderando seus contratados como “ajudantes’’. x De outro, porém, o assalariado tempordrio contra- ' tado que se sente um trabalhador explorado pelo patrdo. E preciso destacar que os pequenos produtores que contratam assalariados tempo- rérios para ajudar nos momentos de pico também | pagam baixos saldrios e, em geral, ndo cumprem ‘as exigéncias da legislagéo trabalhista. Alias, _ n&o se deveria esperar coisa diferente, em fungado - da precariedade da situagdo em que se encontram _ esses pequenos produtores, a qual é fruto da exploragaéo a que se submetem nas suas relacdes com o sistema capitalista de modo geral. Essa dupla condigaéo de “empregado-empre- gador” dos pequenos produtores em muitas zonas do pafs leva, no plano da representacdo sindical, a situacdes esdrdxulas. As vezes, por exemplo, ’ “9 sindicato se transforma numa verdadeira “Junta ‘de Conciliagao”, decidindo sobre pendéncias ‘entre seus prdprios associados, as quais sao verda- deiras acdes trabalhistas de empregado contra ee Em outras palavras, pequenos patrdes O que é Questéo Agraria e seus operdrios muitas vezes convivem num mesmo 6rgdo de representacgaéo -- o sindicato rural. Temos observado também que, em certos municipios, © numero de volantes sindicalizados sé deixou de ser insignificante quando a chapa de oposigéo, representante dos trabalhadores assalariados, venceu a_ situacédo, representada pelos pequenos produtores, que dominam ainda hoje a maioria dos sindicatos da regido Sul do pafs, inclusive S. Paulo.’® Nesse estado jd apareceu mesmo o pedido do reconhecimento de um sindi- cato de trabalhadores volantes distinto do atual sindicato de trabalhadores rurais. Isso entretanto nao é permitido pela legislagao vigente, que impde o sindicato dnico a nivel municipal. Em resumo, em algumas regides do pals, devido as modificagdes na base técnica da producdo e suas consequentes alteragdes nas relagdes de trabalho, vem crescendo a participagdo relativa dos operdrios rurais completamente separados da terra na forga de trabalho agr{cola. Acentuam- se, assim, as “contradigdes internas’’ na base da estrutura sindical brasileira, colocando-se hoje a questéo da conveniéncia ou nado da sepa- ragéo em um sindicato apenas de trabalhadores assalariados e outro de pequenos produtores. Como era de se esperar, na discussao a respeito, duas posigées se cristalizaram. De um lado, os que defendem a unidade na base, com a argumentagao de que é perigosa uma diviséo num momento 90 José Graziano da Silva pol(tico em que as ‘‘contradicdes externas” ainda sdo fundamentais. De outro lado, os que defendem a separagdo, ponderando que um sindicato de traba- Ihadores assalariados somente reforcaria a luta dos trabalhadores rurais, 4 medida queeliminasse grande Parte das ‘‘contradig6es internas’’ que se manifes- tam na base, e que seria possivel manter a unidade ao nivel politico, numa Confederagdo Nacional que se preocupasse apenas com as “’contradicdes exter- nas” dos trabalhadores rurais, em geral. Evidentemente, é impossivel para alguém envolvido no debate colocar a questéo de uma forma “‘neutra’’, nem foi isso o que pretendemos fazer aqui. Gostarfamos apenas de ressaltar aa o fortalecimento dos sindicatos rurais esta indisso- luvelmente ligado 4 questdo mais geral das liber- \ qh, dades democrdticas no campo, e das liberdades ie sindicais, em particular. Acreditamos que essa , seja a grande bandeira de luta do momento, que - pode ser encampada por todos os setores progres- | sistas da sociedade brasileira. Assim sendo, o sindicato de assalariados rurais ganha sentido se surgir enquanto uma reivindicacgdo de base, e ndo por imposicgaéo do Estado como uma nova forma , de manter sob seu controle a luta dos trabalhadores | rurais brasileiros. Alids, 6 esse o sentido politico : da proposta de criagdo das “‘cooperativas volantes”, atualmente sendo implantadas sob a égide do, Ministério do Trabalho em todo o pais e que sao / manipuladas pelos grandes proprietdrios rurais. ._A QUESTAO AGRARIA HOJE ‘ oe r As reivindicagées ~ dos trabalhadores rurais Durante muitos anos se discutiu qual seria ‘a reivindicagao principal dos trabalhadores rurais: se seria a reforma agrdria ou apenas a reivindicagao ‘por melhores saldrios. Muitos chegaram mesmo a afirmar que os trabalhadores rurais brasileiros ‘,eram todos ‘‘assalariados disfargados” e que - |queriam melhores saldrios e nado terra, conside- \rando esta como uma reivindicacdo tipicamente icamponesa (o que para alguns era tido até como reaciondrio, pois significava uma volta ao passado). Na nossa opiniao, essa oposicado ‘‘terra-saldrios” sO aparece quando nado se consegue entender \° camplexidade das relagées de trabalho na agri- 92 José Graziano da Silva cultura brasileira. No fundo, o que os trabalhadores rurais querem — como todos os trabalhadores, em geral — sdo melhores condigdes de vida e de trabalho. Se isso é possivel obter trabalhando num pedaco de chao que nao seja de outro, ou recebendo altos saldrios, pouco importa: o funda- mental 6 que ele obtenha com isso os frutos do seu trabalho. ~°" Acreditamos que a reivindicacéo mais geral ainda hoje dos pequenos proprietdrios, parceiros, posseiros e pequenos arrendatdrios, que consti- tuem a grande maioria dos trabalhadores rurais brasileiros (conforme mostram os dados da Tabela 1), 6 a reforma agrdria. Ela éa reivindicacao maior de todos aqueles que poderiam ser chamados de “operdrios-camponeses”, os quais, por terem terra insuficiente e/ou condicdes precarias de acesso a mesma, sao obrigados a se assalariar tempora- riamente para garantir a sua sobrevivéncia. Mas nao sao apenas os “operdrios-camponeses” que a reivindicam: também os assalariados tém na reforma agradria sua bandeira de luta politica. A reforma agraria que os trabalhadores rurais em geral reivindicam nao é a pulverizacado antieco- nomica da terra; é sim uma redistribuigaéo da renda, de poder e de direitos, aparecendo as formas multifamiliar e cooperativa como alternativas vidveis para o nao fracionamento da propriedade. Em resumo, nao desejam a mera distribuigéo de pequenos lotes, 0 que apenas os habilitaria O que é Questéo Agriria a continuarem sendo uma forma de barateamento da méo-de-obra para as grandes propriedades. Mas almejam uma mudanca na estrutura politica e social no campo, sobre a qual se assenta o poder dos grandes proprietdrios de terras. A reforma agrdria é para os trabalhadores rurais uma estratégia para romper o monopdlio da terra e permitir que possam se apropriar um dia dos frutos do seu préprio trabalho. Para tal é necessdrio eliminar o latiftndio e incidir sobre a dominagao parasitdria da terra, desde o caso daqueles que deixam a terra inculta a espera de valorizacdéo imobilidria, até os que a utilizam Para repassar recursos financeiros aos pequenos produtores rurais. Apesar das enormes desigualdades regionais do pais, nao se pode ignorar o desenvolvimento econémico por que passou o campo brasileiro, especialmente nas Uultimas duas décadas, nem as transformagdes poiiticas a ele associadas. Em consequéncia dessas transformag6es, a estratégia de politicas alternativas reivindicadas pelos traba- Ihadores rurais nao se limita 4 reforma agrdria. Ela concede lugar fundamental também a questdes como precos minimos, comercializacdo, crédito e assisténcia técnica, politicas essas que, num regime democrdtico, poderiam estar voltadas para oS pequenos produtores e nao apenas para uma minoria privilegiada de grandes proprietdrios. O problema fundamental af, do ponto de 94 José Graziano da Silva [ vista dos trabalhadores rurais em particular, esta ;em que as politicas agricolas permanecem orien- ‘tadas de acordo com os interesses mais imedia- _ tos dos grandes capitais, em particular da indus- tria e dos bancos. E o seu principal beneficidrio na agricultura (e, portanto, o aliado desses setores) 6 o grande proprietdario de terras. A-politica de crédito rural subsidiado ilustra bem essa triplice alianga entre indUstria, bancos e latifundidrios, hoje, no Brasil. Como regra, apenas os grandes proprietdrios tém acesso ao crédito, pelo menos naqueles programas que sao mais vantajosos. De um lado, porque o crédito é para comprar coisas que somente os grandes fazendeiros podem comprar: tratores, colhedeiras, adubos e defensivos quimicos, etc. De outro, porque a burocracia bancadria da _preferéncia ao grande, porque o custo operacional de um financiamento, por exemplo, de mil cruzeiros .@ © mesmo que o de um bilhdo. Resumindo, “ganham os grandes fazendeiros que recebem ‘o crédito subsidiado. Ganham os bancos que * fazem o empréstimo, e garantem mais um cliente. E ganham também os fabricantes de tratores, de adubos quimicos, de defensivos, etc., de quem esses fazendeiros compram os produtos. Falamos das reivindicagdes mais amplas dos trabalhadores rurais em geral. Mas existem outras reivindicagGes que dizem respeito especificamente a este ou aquele grupo de trabalhadores rurais. J O que é Questéo Agniria Ou seja, as reivindicagdes mais especificas dos trabalhadores rurais variam em funcgdo de suas diferenciagSes internas e das desigualdades do desenvolvimento regional do pais, dando origem a um grande ndmero de lutas especificas. Assim, por exemplo, nas zonas “mais modernas” da regido Centro-Sul do pars, as reivindicagdes dos assalariados tempordrios por melhores saldrios e seguranca no trabalho (maior estabilidade, pro- tecdo, previdéncia social, etc.) jd se fazem ouvir com grande peso. O ponto central dessas reivin- dicag6es parece ser 0 néo cumprimento da legis- lacdo trabalhista existente naquilo que ela beneficia o trabalhador rural assalariado (saldrio minimo, domingo remunerado, férias, indenizagao, etc.). Para se ter uma idéia a respeito, basta dizer que mais de 80% dos trabalhadores rurais assalariados ainda n&éo tém sequer suas carteiras anotadas pelo empregador, o que dificulta provar até mesmo a sua condicaéo de empregado. Assim, embora exista um consenso de que as garantias oferecidas pelo Estatuto do Trabalhador Rural e legislacdo complementar sao insuficientes, o problema fundamental enfrentado pelos assalariados rurais no momento reside no desrespeito a. prdépria legislag4o vigente. Em outraspalavras, além de pouco, 0 que existe em beneficio do trabalhador rural nado é cumprido. O nao cumprimento da legislagdo, segundo admitem seus prdprios Iideres mais combativos, estd ligado somente em parte 96 José Graziano da Silva ao pequeno numero e a morosidade das Juntas da Justica do Trabalho. Na verdade, isso se deve muito 4 fraqueza dos sindicatos de trabalhadores rurais no Brasil, ponto que voltaremos a enfatizar mais adiante. Jd na regido Nordeste (com as excegdes ja ressal- tadas) e em certas zonas do Brasil Central, desta- case a luta dos pequenos rendeiros contra os proprietérios de terras. Como os trabalhadores rurais em geral, a sua reivindicagao especifica também é o cumprimento da legislacao existente. Mas ndo apenas da legislagao trabalhista propria- mente dita, porquanto eles sao também assala- riados tempordrios, em algumas épocas do ano, nas grandes propriedades. De modo especial, os rendeiros reivindicam a aplicagdo da legislacao agréria consubstanciada no Estatuto da Terra e textos complementares. Essa legislacdo limita “as exigéncias que 0 proprietdrio pode fazer, quer na partilha dos frutos da parceria, quer nos precos do arrendamento, com o objetivo de impedir condicées extorsivas. Entretanto, as normas do Estatuto da Terra constituem ainda um sonho. Segundo as infor- magdes prestadas pelos préprios fazendeiros ao INCRA, hd um desrespeito generalizado a essa legislaggo, especialmente no que se refere aos ‘ contratos de arrendamento e parceria. Assim, por exemplo, arrendatdrios e parceiros sao obri- gados a vender a sua produgado ao proprietdrio, O que é Questéo Agréria (, se abastecer nos armazéns deste, a prestar servicos gratuitos aos proprietdrios, etc. Acontece que todas essas cldusulas séo proibidas expressamente pela lei. Veja o ponto a que chegam as coisas no campo brasileiro: um grande numero de proprietérios rurais declarou (por escrito e assi- nado) ao INCRA, por ocasiao do cadastro de 1972, que desrespeitavam o Estatuto da Terra. E o INCRA, que é 0 6rgao criado para fiscalizar © cumprimento do Estatuto, néo fez nada... Em resumo, a grande maioria dos contratos de parceria e arrendamento no Brasil desrespeita a lei, tanto no que se refere a condigdes especiais néo permitidas, quanto 4 porcentagem maxima cobrada do parceiro e aos pregos do arrendamento das terras. Cumpre destacar ainda, nesse quadro geral das reivindicagdes dos trabalhadores rurais brasi- leiros, a luta dos posseiros, em especial dos “possei- ros itinerantes”, nas zonas de expansdo da fronteira hd uma obstinada resisténcia dos posseiros contra a grilagem de suas terras, que é uma das maneiras pelas quais a grande propriedade amplia seus domi- nios. A questao levantada pelos “posseiros itine- rantes” na verdade nado é apenas do dom/nio das terras em si, mas o sentido da sua ocupagao. Ele ndo valoriza a terra como uma forma de propriedade, mas como seu instrumento de traba- iho; ou seja, ele precisa da terra para viver, assim agricola das regides Norte e Centro-Oeste. Ai. 98 José Graziano da Silva como o pedreiro precisa da colher e o pintor do pincel. E a luta desses posseiros que coloca hoje um dos mais profundos questionamentos a proprie- dade capitalista da terra no Brasil. E af que a reivindicacdo “terra para quem trabalha’’ ganha a sua expressdo politica mais profunda: o que o posseiro da Amaz6nia quer ndo é apenas as suas terras, mas que as terras em si deixem de ter valor." Em outras palavras, a resisténcia dos pos- seiros contra os grileiros (que muitas vezes sdo sofisticadas empresas multinacionais) 6 uma luta contra a utilizacgaéo da terra para fins nao produtivos, seja como uma forma de reserva de valor contra a corrosdo inflaciondria da moeda, seja como meio de acesso a outras formas de riqueza (minérios, madeira de lei, incentivos ’ fiscais, crédito farto e barato, etc.). No plano mais concreto, os posseiros, de modo geral, reivindicam uma acdo efetiva do Estado com vistas a titulagdo de suas terras pelos érgdos que deveriam incumbir-se dessa tarefa e, na | verdade, dedicam-se justamente a ajudar os grilei- ros, Essa acéo deveria impedir, acima de tudo, que os programas e iniciativas governamentais * visando ao progresso social nas regides de frontei- ras (estradas, etc.) se transformem em meios de enriquecimento de poucos e prejuizo de muitos, como acontece hoje na Amazonia. Essa regionalizacdo das reivindicagdes especi- O que é Questiéio Agriria ficas dos trabalhadores rurais brasileiros nao signi- fica, em absoluto, a inexisténcia de uma unidade num plano mais geral. O essencial é que todos os grupos citados, em maior ou menor intensidade, dependem da venda de sua for¢a de trabalho para sobreviver, seja por disporem de meios de produg4o insuficientes (como é o caso dos “ope- rdrios-camponeses’’), seja por nado disporem de nada mais para vender além de sua forg¢a de traba- Iho (como é o caso dos béias-frias). E, enquanto trabalhadores rurais, unem-se a luta dos trabalha- dores brasileiros em geral, em busca de melhores condigées de vida. A retomada da soluc&o “*Reforma Agraria’ Ja vimos anteriormente que a reforma agrdria é a aspiragao maior dos trabalhadores rurais brasi- leiros. nos dias de hoje. Mas por que a reforma agrdria, e qual reforma agrdria? Esse debate também nado é novo no pais. Mas hoje ele tem uma conotacdo muito distinta da que teve em perfodos anteriores. Por exemplo, nos anos cinqiienta, o debate da reforma agrdria estava ligado 4 discusséo mais geral dos rumos da industrializagdo brasileira. Como jd dissemos anteriormente, temia-se que a agricultura viesse a constituir um entrave ao processo de industria- 100 José Graziano da Silva lizagdo brasileira porque nado aumentaria a produti- vidade dos trabalhadores nela ocupados. Isso significaria que, de um lado, o setor agricola nao responderia as necessidades crescentes de produzir alimentos e matérias-primas de que a industrializagdo iria necessitar. De outro, que nao se elevariam os niveis de renda da populacdo agricola e, portanto, nao se conseguiria um mer- cado suficiente para consumir os produtos indus- trializados que se criariam. Mas a expansdo da fronteira agricola, a urbani- zagéo acelerada e a industrializagao da agricultura acabaram criando simultaneamente a oferta e o mercado consumidor que a industrializagao neces- sitava, como vimos anteriormente. O importante a ressaltar aqui é que a reforma 1 agréria aparecia no fim dos anos cingilenta como o remédio para a crise agrdria e para a crise agri- cola por que passava o pais. A reforma agrdria visava entao a alterar a estrutura de posse e uso da terra no Brasil, para que pudesse haver um desenvolvimento mais rapido das forgas produ- tivas no campo. Como se dizia na época,’” era preciso acelerar a penetracdo das relacGes capi- talistas de produgdo na agricultura brasileira. Pretendia-se assim exorcizar os fantasmas dos “restos semifeudais” escondidos nos latiftindios ‘que atormentavam a vida dos trabalhadores rurais. A reforma agrdria, entregando esses latifndios para os camponeses, suprimiria as “relagdes pré- O que é Questio Agraria -capitalistas” {isto é, resoiveria a questao agrdria) e faria aumentar a producao, uma vez que colo- caria as terras ociosas dos jatifGndios em cultivo {isto 6, resolveria a questao agricola). Sabemos que essa reforma agraria nao foi feita. Que nado houve redistribuigao de terras, até pelo contrdrio: os dados mais recentes mostram que a concentrac¢do da propriedade aumentou e os trabalhadores rurais se tornaram ainda mais mise- raveis. E, no entanto, a estrutura agrdria brasileira nao constituiu empecilho ao processo de industria- lizagdo do pats. Jd vimos nos capftulos anteriores © erro desse ‘‘diagnéstico” e os fatores que ievaram a que a agricultura nao constituisse um entrave ao processo de industrializagdo. De maneira resu- mida, podemos dizer que o desenvolvimento das relacdes de producdo capitalistas na agricul- tura brasileira conseguiu grandes avancos na solucdo das quest6es agricolas, isto é, dos proble- mas ligados a produca&o propriamente dita. Mas esse desenvolvimento sé fez agravar a questao agraria, ou seja, o nivel de miséria da populacdo rural brasileira. 10 E nesse contexto que o remédio da reforma: agrdria ressurge hoje no Brasil em nova embalagem, como reaparece sempre nas épocas de crise das economias capitalistas. A solugdo “reforma agrd- tia’ coloca-se especificamente hoje dentro do contexto de ser uma resolucdo para a crise agrdria brasileira e nao mais para a crise agricola: ela é 102 José Graziano da Sila» ~——«O. que é Questo Agriria 10 apenas uma reivindicagao dos setores populares e nao mais da burguesia, se é que o foi algum dia. Hoje esta claro que o processo de desenvolvi- mento capitalista no Brasil, como em todas as partes, criou riqueza em poucas mos e miséria generalizada. Muita gente tinha esperanca de que esse processo fosse representar nado apenas a redencdo da burguesia nacional, mas também a dos trabalhadores brasileiros em geral. Por isso, as aliangas propostas eram as dos trabalhadores (rurais e urbanos) com a burguesia nacional, contra seus inimigos comuns: o latiftindio e o imperia- lismo. Hoje, o latiftindio se aburguesou e se inter- nacionalizou. Nao sao mais apenas os velhos coronéis do Nordeste. Os grandes latifundidrios, hoje, sio também os bancos e as grandes multina- cionais: o BRADESCO, a Volkswagen, a Jari... O capitalismo brasileiro mostrou no campo uma face do seu desenvolvimento profundamente prejudicial e parasitdria, ndo s6 do ponto de vista dos trabalhadores, mas também da_ sociedade no seu conjunto. E ilustrativo, por exemplo, o nivel que atingiu a especulacéo imobilidria, com a propriedade da terra funcionando apenas como reserva de valor contra a corrosao inflaciondria e meio de acesso aos favores fiscais e crediticios das polfticas governamentais. Isso porque, no sistema capitalista, pouco importa que um peda¢o de chao produza soja ou cana-de-aciicar ou feijao. O que interessa é que produza lucros. Nem mesmo $ § a gS & x & a 2 § § s 2 & 8° 104 José Graziano da Silva interessa se esse lucro advém da utilizagdo produ- tiva do solo ou nao... E enquanto milhdes de hectares de terras férteis e bem localizadas séo retidos improdutivamente, outros milhées séo apropriados, 4 custa de tram- biques e violéncia, por grandes empresas capita- listas que, como jd destacamos, nado sdo mais ape- nas os “velhos latifindios’, mas também os bancos e as empresas multinacionais. Como resultado disso sdo expulsas do campo, a cada ano que passa, milhares de familias, que nao tém para onde se dirigir a nao ser as favelas das periferias’ das cidades. E por isso que a reforma agrdria aparece hoje como a Unica solugéo democrdtica possivel para a questdo agrdria. Evidentemente, hd outras solugdes, como, por exemplo, deixar Os migrantes morrerem de fome, continuar confi- nando esses excedentes de populagéo em novas _ favelas, etc. A questéo agrdria se alia hoje a uma série de “outras” questées, como a questo energética, a questao indigena, a questaéo ecolégica, a questao urbana e a questaéo das desigualdades regionais. Ou seja, a questao agrdria permeia hoje uma série de problemas fundamentais da sociedade brasileira. No fundo, todos eles tém a ver com o cardter parasitdrio que atingiu a forma especifica como se desenvolveu o capitalismo neste pais. Assim, o remédio “reforma agrdria’’ tem que se apresentar hoje ndéo apenas com uma nova emba- O que é Questao Agraria 10: lagem, mas tem que ter também um outro con- tetido. A reforma agrdria jé nado é mais hoje no Brasil! uma_ reivindicaggo do desenvolvimento capitalista, e sim um questionamento da forma que assumiu esse desenvolvimento. Por isso, a reforma agrdria é hoje — mais do nunca — uma questéo eminentemente politica. Ela nao visa fundamentalmente a aumentar a produgaéo, embora isso também seja desejdvel e possivel de obter. A reforma agrdria é hoje a expressdo da reivindicacéo dos trabalhadores rurais pela apropriagao dos frutos do seu trabalho. E é nesse sentido que a reforma agrdria nado é Mais apenas uma reivindicagdo dentro da “‘legali- dade capitalista’: ndo é mais o direito de cada um 4 sua propriedade, mas o direito dos trabalha- dores ao resultado da sua produ¢ado. A reforma agréria é agora uma bandeira de luta politica capaz de unificar nao sé os traba- Ihadores do campo, mas inclusive de se estender aos trabalhadores urbanos. A reforma agrdria comega a se apresentar hoje como uma luta pela transformag¢ao da prépria sociedade brasileira para um outro sistema, onde o trabalhador nao s6 trabalhe, mas também se aproprie dos frutos do seu trabalho. Evidentemente, nao basta desejarmos isso. Essa é uma luta politica de muitos, durante muito tempo. E apenas a organizacao dos trabalhadores do campo e da cidade em sindicatos livres e autén- 106 José Graziano da Silva ticos poderd leva-la a frente. agricultura brasileira depende basicamente do futuro da democracia brasileira. Resumindo em poucas palavras, o futuro da O que é Questdo Agraria 10 a) (2) {3) (4) (5) (6) (7) (8) NOTAS RANGEL, Igndcio (1962). A Questéo Agréria Brasileira. Recife, Comissfo de Desenvolvimento Econémico de Pernam- buco. 108 pp. Graziano da Silva, José, coord, (1980). Estrutura Agrdria @ Produgéo de Subsisténcia na Agricultura Brasileira, 22 ed., Sdo Paulo, HUCITEC, op. cit., p, 64. Veja a respeito: Alberto Passos Guimaraes (1979). A Crise Agraria, Rio de Janeiro, Paz e Terra. Vejase por exemplo: CAIO PRADO Jr. (1970). Histéria Econémica do Brasil. 122 ed. Sao Paulo, Brasiliense. © texto dessa secdo fez parte da exposicao apresentada na mesa-redonda preparatéria do Seminario “Agricultura Brasi- leira — Agenda para o Amanha”, realizado em Brasilia de 15 a 18 de janeiro de 1979. Foi publicado na Revista Encontros com a Civilizagéo Brasileira, Rio de Janeiro, 10:58-70 de abril de 1979, com o tftulo “Para onde vai a agricultura?“. Qu estacionalidade do trabalho agrfcola. Refere-se as variagGes nas exigéncias de mao-de-obra numa determinada cultura, fato que estd ligado as diferentes estagdes do ano agricola (ver grafico 2). O indice de Gini 6 uma medida do grau de concentragdo de uma distribuiggo qualquer. Ele assume o valor zero quando a distribuigdo é igualitéria. E tende para o valor um quando toda a distribuig¢do esté concentrada nas maos de uma s6 pessoa, © termo “excedente” & sempre aqui usado entre aspas para evitar a falsa impressdo de que a parcela que é comercializada pelo pequeno produtor 6 0 que sobra do consumo familiar. Longe disso, esse “excedente” 6 obtido exatamente as custas da redugdo do consumo da familia e da extensdo da jornada de trabalho de seus membros, 108 José Graziano da Silva (9) A quantificagdo desse grupo 6 praticamente impossfvel de ser feita a nfvel global por nado dispormos de cortes quali- Tativos que pudessem ser agregados 4 estratificagdo por valor da produ¢do e drea total dessas propriedades. Uma avaliagado grosseira indica que eles abrangeriam pelo menos 300 mil unidades produtivas com um contingente familiar de cerca de 1 milhdo de pessoas ocupadas, Seria preciso, todavia, estudd-los nas-suas diferenciagdes nas varias regides do pafs a-partir de outras informacSes disponfveis com estudos de caso, por exemplo. {10) Apenas 6,7%, dos minifiindios cadastrados em 1972 tinham uma area total superior a 50 ha, (11) Segundo o INCRA, o declarante informava o valor total da produgdo (inclusive a parcela perdida) do ano agricola 1971/ 72. O maior salério minimo em vigor no pats de 01/05/71 a 01/05/72 era de Cr$ 225,60 por més, o que perfaz Cr$ 2,932,80 por ano, contando-se 13 saldrios. O INCRA registrou 1,6 milhdes de iméveis com menos de 50 ha na faixa de renda bruta anual inferior a Cr$ 3,000,00, e cerca de 400 mil imé- veis, dessa mesma dimensdo, na faixa de renda de 3 a 6 mil cruzeiros. Ou seja, cerca de 80% dos iméveis menores que 50 ha tinham uma renda bruta inferior a dois salérios mfnimos anuais, Esse ndmero 6 aproximadamente obtido pela diferenca entre o ndmero de ocupantes com menos de 10ha registrados pelo Censo de 1975 e o numero de posseiros com menos de 10 ha cadastrados pelo INCRA em 1972, {13) O Censo Agropecudrio de 1975 registrou aproximadamente uma média mensal de 2,2 milhdes de pessoas empregadas como assalariados tempordrios, excluindo-se os contratados por empreitadas. O nimero de trabalhadores tempordrios contratados por empreitada foi por nés estimado, grosseira- mente, dividindo o total de despesas com servicas de emprei- tada no ano de 1975 por 300 vezes a didria do trabalhador eventual no segundo semestre daquele ano, segundo levanta- O que é Questéo Agniria (14) (15) (16) mento do Centro de Estudos Agrfcolas da FGV. Obteve-se assim 1,1 milhdes equivalentes-homens, o que, somado 2 média de 2,2 milhGes de temporérios contratados pelos estabe- lecimentos durante o ano de 1975, dé um total de 3,3 milhGes de trabalhadores tempordérios ocupados na agricultura em 1975. Isto nao significa, evidentemente, que existam 3,3 milhdes de trabalhadores tempordrios que vivem exclusi- vamente da venda de sua forga de trabalho no setor agricola, Teoricamente, sao associados potenciais da CONTAG todos aqueles que nado s4o empregadores rurais. Ou seja, tanto os assalariados rurais propriamente ditos, como os pequenos posseiros, parceiros e arrendatdrios, até os proprietdrios mini- fundistas, Para uma andlise das contradi¢ées externas e internas da CONTAG no perfodo recente, veja-se: Luzia Guedes Pinto, ~ (1978), A CONTAG: uma Organizacéo Contraditéria, Brasfl tar DCS/UnB. 170 pp. (Dissertacdo de Mestrado). Sdo Paulo é o Estado da Federacao onde os trabalhadores rurais tem um diss(dio coletivo de trabalho desde 1976, muito embora isso tenha tido até agora pouco significado pratico, devido 4s artimanhas legais dos érgdos patronais e a pouca organizagéa dos trabalhadores assalariados na maior parte dos sindicatos. Segundo o Jornal O Estado de Sao Paulo de 26/04/79, o nado respeito aos fndices de reajuste salarial fixado no dissfdio coletivo de 1978 foi a causa da quarta greve de trabalhadores rurais de que se tem not(cia, desde 1962, na zona bananicultora do litoral sul paulista. Ver a respeito: Martins, José de Souza (1980). Expropria- go e Violéncis: a Questéo Polftica no Campo. Sao Paulo, HUCITEC, (17) Ver a respeito o livro A Questdo Agrdria no Brasil: Textos dos Anos Sessenta. Sao Paulo. Ed. Brasil Debates. 10! —— Biografia José Graziano da Silva nasceu em Urbana, Illinois, nos Estados Unidos, tendo no entanto nacionalidade brasileira. Formou-se engenheiro agrénomo, em 1972, pela Escola Superior de Agricultura Luis de Queirés da USP ~- Piraci- caba. Defendeu mestrado, também na ESALQ-USP, em 1974, com uma tese na qual desenvolve uma andlise critica dos estudos que aquele tempo se faziam sobre a distribuigéo de renda no Brasil. Doutorou-se em 1980 no Departamento de Economia da UNICAMP com a tese: “Progresso Técnico e RelagGes de Trabalho na Agricultura Paulista”. E coordenador de um livro sobre a estrutura agrdria e a produgdo de subsisténcia na agricultura brasileira e prepa- ra para a Brasiliense uma coletanea de textos classicos sobre a quest4o agraria.

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