You are on page 1of 9
ercurso: Revista de Psicanilise / Instituto Sedes Sapientiae, Ano xxx n.60 (2018). So Paulo, Instituro Sedes Sapientiae, Publicada desde 1088 Periodlicidade semeseeal SSW O1.036.815 Pasicinaise 2, Peviédicos 1, Insttuco Sees Sapientiae Resumo Este artigo apresenta as primeiras observa ‘ges le uma pesquisa extensacediada na Universi dade de Gdansk Pola) envohvendo quatro pases ieee Polonia, Brasilia e Finlandia) € que £0 detém sobre a colecio de sonhos de expesio- neiros de Auschovitzj no pds-guerta, Apresenta uma brove interpretagdo e dislogo com um dos conteidos que se epelem em muitos sonhos de ex- -prsionciros: os ces ds campos de concentacio, Palaveas-chave psicanise; Auschuilz; campos de ‘conceniragojsonhos Paulo Cesar Endo & psicanaista, pesquisadore pro- fessor Tere-doceate da Universidade de So Paulo, Coorcenadlor da Grupo de Pesquisa em Diteitos Hiumanos, Democracia,Poticae Meméria dos titulo de Estudos Avangados da USP, Bokisia pro- dutividade nivel 2 do CNP, Mambro da Memory Studies Assocation (Copenhagen), dos Terttrios CClinicos de Ia Memoria (Buenos Aires) da Re- search Unit Deas, Memory and Imagination Stu dies (Gaansh {evantern, em polonts. Pe Levi, A teigua W, Owezarsi, “Therapeutic dreamsin Auschwitz", O arquivo de sonhos de ex-prisioneiros de Auschwitz do Museu-Memorial Auschwitz-Birkenau Paulo Cesar Endo 8 Ns sonfamos com as noitesferozes Sonhas densose violentos Sonhel com alma e corpo: ‘Rerorno; comer; cantar CContanto que soasse baixinho (© comando do amanheeer -Wsiawac" ele quebrou seu coragao em seu peta, Agora encontramos a casa, Nossa bariga est cheia [No terminamos de conta junho 2018 p. 09-96 Ess a ora, fm breve vamos ouvir de novo (O-comando estrangeto: ‘Wstawace" PERCURSO 60 En artigo publicado em 2016, Owezarski, examinando os sonhos de ex-prisioneiros de Auschwitz, cunhou trés modalidades de so- snhos denominados por ele de sonhos de autocuidado ou cuidados de si (caring dreams), sonhos de liberdade (freedom dreams) e sonhos metaféricos (metaphorical dreams), xeplecos de ideias e figuras inde- frdveis e cujo significado do contetido é restituido pela interpreta- cio do proprio sonhador. Nesse acervo, contudo, os pesadelos sao a grande mai A despeito dos sonhos de horror, havia também sonhos cujos conteddos pareciam trazer algum lenitivo, alguma saida, algum ponto de fuga para a experiéneia dos campos. De outro modo os “sonhos de cuidado” (caring dreams) poderiam resulcar, ao desper tar, numa experiéncia de desesper ainda existe e o sonhador esta no interior de seus muros?. Em al- a.constatagio de que o campo junho 2018 PeRCURSO 60 « 0 sonho como manifesta¢éo e realizacao do desejo, propugnaclo por Freud desdle 1900, data da publicacao de A inierpretacao dos sonhos, fora questionado pelo proprio Freud em 1920 em seu trabalho intitulado Mais além do principio clo prazer gumas pesquisas por mim realizadas' eu encon- trara possibilidades de anslise que convergiriam aproximativamente para algumas dessas cate- gorias que Owezarski propée, porém de modo ligeiramente distinto. © debate sobre os sonhos que mobilizou Sigmund Freud e um de seus mais imporcan- tes discipulos, Sandor Ferenczi, revelou tam bém esse impasse na primeira metade do século xx. © sonho como manifestagao ¢ realizagao do desejo, propugnado por Freud desde 1900, data da publicagio de A interpretagao dos so- thos, fora questionado pelo préprio Freud em 1920 em seu trabalho inticulado Mais além do principio do prazer, onde se inaugurava um as- pecto inusitado nas elaboracées freudianas so- bre os sonhos: a ingeréncia da pulsio de morte na prépria elaboragao onitica. Sonhos aturdidos pela impossibilidade de salvaguardar o prazer. Tais sonhos eram implo- didos como mecanismo de preservagio do sono eatormentados por experiéncias ¢ contetidos que afogavam 0 sujeito na dor e no desprazer psi- quicos. Mas, nesse caso ainda, alertava Ferenczi’, trarava-se de uma tentativa do psiquismo de en- contrar uma solugio melhor para o quadro de- vastador engendcado pelo traumstico. Esse dissenso entre dois grandes psicana- liscas pioneiros ainda se arrasta na compreensio dos sonhos trauméticos, mas é evidente que as, experigncias constieuidas no seio do traumitico demonstram claramente, e também, uma aspi- ragio ao sublime, a0 além dos muros e grades e, de algum modo, resticuem criagio, imaginagio e euidado, como evidencia o trabalho de Owe- zarski®, Ainda quando 0 sujeito se encontra na iminéncia da destruigio, da morte e sofrimentos psiquicos cotidianos e interminaveis a oscilacio entre pulsées de vida e morte perdura. O sonho, por vezes, camparece ora como colapso irremis- sivel, ora como ultrapassamenco e superagio sur- teal e imaginada do insuportavel. Neste artigo procurarei apresentar uma pri- eita elaboragio e discussio de um dos contete dos presentes com alguma constincia no arquivo sobre os sonhos de ex-prisioneiros de Auschwitz Trata-se da mencio aos caes que aparecem em de- zenas de trechos cle depoimentos. Reservarei para um proximo artigo discussio sobreos sonhos de ceuidado (caring dream), presentes no mesmo ar- uivo, debatenclo-os com as proposigées de Primo Levi, Sigmund Breud e Sandor Ferenczi sobre os pesadelos e os sonhos trauméticos As reflexdes a seguir apresentam um tinico aspecto envolvendo a pesquisa e os primeiros resulcados parciais dessa pesquisa, Pretendo, numa segunda etapa, aprofundar 0 didlogo com aapreciacio de Primo Levi sobre os sonhos em suas obras E isso um homem? e Afogads ¢ so- breviventes, a lado do trabalho de Freud em suas formulagées sobre a elaboracio onirica en- tee 1900 e 1920 cotejando-os com 0 arquivo de sonhos de Auschwitz Os cies dos alemes,os cies alemaes, os pri- sioneiros cies: condensagio como manifestacio do sem fim da brutalidade na narrativa do sonho. Sonho 1 ‘Narra uma ex-prisioneira de Auschwitz: Os sonhos que se reperem mais frequentemente so aqueles em que nio posso responder 0 chamado da na- sureza sem que alguém assista. Isso me cansa sem fim, No meu sonho, eu preciso ir ao banheiro, entio eu pro- ccuro um bankeito (eo sonho sempre ocorre em algum lugar desconbecido, nfo na minha casa). Bu costume encontri-lo, mas nunca é protegido contra incrusos, ou as vezes nio hi portas. As vezes, esses sio banheiros compartilhados, nio separados, outros sio vazios, mas alguém sempre ver no tilsimo mintco, homens ou mu theres, e obviamente nao posso realizar 0 que preciso. (© sonho dura muito ~ ou entio parece quando estot dormindo ~ e & muito cansativo. No final, eu acordo. A soguir ela faz.a seguinte associagio: Bu acho que esses sonhes decorrem da profunda hu- mifhagio que senti quando tive que satistize necessidades corporais na prisio ¢ no acampamento ~ conde todos (30-40 prisioneiros) podiam ver (e ouvir), como todos nos sentamos em uma miniscula cela ou no barcacéo colectivo de latrinas em Auschwitz Birkenaw (onde 0s oficiais das ss normalmente nos observavam). Nem os nove 1s passados em uma cela da prisio, nem mais de 18 meses de vida no campo poderiam me ajudar a superar 0 sentimenta de humilhagao, de ser lespojado de dignidade,o que me acompanhava sempre aque eu precisava fazé-lo, Esta Faceta da vida coridiana e lo acampamento foi gravada na minha meméria como ‘alvez mais desagradvel, Posso acrescentar que houve ‘momentos em que nossa humilhacio atingiu seu dpice, pex.quando fomos transferdos da prisio para Ausch witz em carros de gado, ou quando fornos evacundos de tum acampamento para 0 outro. Em seguida, no relato, ela menciona a se- ‘guince passagem: “Eu também sonhei ser presa e fugindo dos alemaes e de cies me atacando'. » eu acho que esses sonhos decarrem da protunda humithacao que senti quando tive que satisfazer minhas necessidades corporais 1a prisio e no acampamento — onde todos (30-40 prisioneiros) podiam ver (e ouvir) Sonho 2 Relaca um ex-prisioneiro: Quando eu estava no acampamento para prisioneiros dde guerra literalmente trés meses antes de me trans- nbro de cer sonhos muio is de poloneses presos, portarem para Auschwic claros sobre um grupo de dé eu ineluido, sendo conduzidos da estazio ferroviiria de Auschwiez para 0 acampamento de alemes com cies En corri com os pés descalgos, lembro-me de ser con- duzido através do portio do acampamento ~ [ilegivel] virias horas em um lugar em frente 2 bloco da cozinha, cercas de arame farpado em pilares de conereto macigo, depois sendo Tevado a algum ripe de edificio, onde nos deram uma ragio de pio dividida com umm T; Lembro-me de ajud-losa cortare distribuir o pio, e nos empur- raram para tim quintal o lado de um barracio, e atcis do quartel um grupo de soldados alemesatiraram em alguns peisioneites, ineluindo um pequeno corcanda. @ TExTOs Paulo C. Endo 41 f.Endo,‘Sonhar,cmal-sonhare osonambulismonahorizantedaex-_ Lembro-me do sonho porque conte! aos meus amigos perincia do desaparecimento forcacko de pessoas no Brasil; (2017), 5 5. Ferenezi, Sobre o rauma, : 5 4 SA econ quick porque meus sapatos estavam desconforcivels eeu nao sobre isso, E verdade — eu corria com os pés descalgos CO arquivo de sonhos de ex-prisioneitos de Auschwitz do Museu-Memorial Auschwitz-Birkenau junho 2018 PERCURSO 60 « 0 sonhos dessa mulher indicam que nao hé homens nos campos, apenas gado cdes pastores {incluindo possivelmente 0 soldados e oficiais alemaes). Um mundo entre animais, despovoado de homens e mulheres sinha meias[ilegiveis), pés em bolhas, fagir daqueles cachorros porrece 0 consegu 5 entio eu os tire. [ilegivel] era o habitual — a cerca como eu tinha visto — a ragio de pio dividida com um T e eu ajudei porque falei aleméo, eles airaram contra esses 70 civs,junta- mente com o corcunda, talvez uma semana depois que cles nos trouxeram para 0 campo. Sonho 3 Outro sonho de um ex-prisioneiro: Eu sonhei que estava em um trem ~ no caminho para Cracévia, viajei por paisagens familiares e depois pas- sando por Cracévia ~ através de coisas desconhecidas. 1a cheio de outros homens, .cipalmente jovens. Ns viajamos em siléncio, som- Meu compartimento esta P brios,incereos de nosso destino, Eu estou com aimpres- siiode que alguém est nos observando,Paramos em uma stag ferrovira, uma que nunea antes vi,como pereebi snais tarde, Apesar de tudo isso, sua arquitecara earre- ores parecem familiares. Nés noe movemos ¢, depois dem curto periodo de tempo, stem pars novamente. Eu aja pessoas em bonés da marinha, casacos cas listradas. Hi soldadosassistindo-os com chicotes preparados, Eu ouco gritos ¢ cies latindo, e eu acordo sons ainds na minha eabega. Os gritos © 0s Incidos nio pararam ~ aparentemente algo estava acon tecendo no patio da prisio. A presenga ostensiva dos cies no campo era frequente, as conhecidos pastores alemies (Ger- man shepperds), € 0 amor de Hitler por seu cio Blondi também é sabido. Seja como comparsas, bicho de estimagio ou assassinos e perseguidores dos prisioneitos fugitivos, os cies alemaes com- ppuseram parce do sistema nazisea nos campos ¢ ocupavam um lugar egrégio, Como criaturas cs- tavam sempre em posigaio muito mais vantajosa em relagio aos presos. Muito acima deles. Sua fangio era vigid-los, persegui-los, estragalhé-los. gio em ser cons- tantemente vigiado, portanto, nao era apenas pelos homens e mulheres ~ nazistas e outros prisioneiros -, mas também pelos cies que acompanhavam, com os olhos excitados, cada movimento dos prisioneiros. A mulher neira acrescenta ao sem fim das humilhagbes softidas ¢ evidenciadas em seu sonhos o trans- porte dos prisioneiros nos mesmos caminhdes usados para o transporte do gado e se lembra dos sonhos com cies atacando-a, juntamente com os alemies (cies?), que fazem 0 mesmo, talvez, do mesmo modo. Os sonhos dessa mulher indicam que néo O incdmodo e a humi isio- hd homens nos campos, apenas gado e cies pastores (incluindo possivelmente os soldados ¢ oficiais alemies). Um mundo entre animais, despovoado de homens e mulheres. Ela sence grande falta do instante de privacidade, do ins- tante de retiro que por sisé humaniza, recoloca € permite que entre os elementos de dignidade também sejam atendidos e respeitados os pu- dores humanos. $6 as mulheres ¢ homens sen- tem constrangimento de evacuar em pablico, s6 homens e mulheres precisam se proteger do olhar alheio, intrusivo e perverso quando vio 20 banheiro, Sé eles eém o direico de fechar a porta, bloqueando olhares alheios e preservando alguma privacidade. ‘Niio mais esquecer de ter sido olhada em uma cena intima, no mais esquecer de cer sido avileada e exposta como um animal de carga e observada (e humil identicério que produz sofrimento ¢ aprofunda a vergonha. fio saberemos 0 que tanto feria essa mu- Iher, ao ser observada publicamente enquanco ia as latrinas de Auschwitz diariamente. Sua dor parece pouca ante as atrocidades do campo, mas &em seu sono que ela diz o que the era artan- cado além da pele: a possibilidade e o direito de se distinguir dos animais. A hierarquia nos campos coloca os cies acima de todo prisioneiro. Fortes, robustos, Age! bem alimentados e protegidos os cies evidencia- vam também o geau de degradagio do prisionciro incapaz de ser cio, Desautorizado a sé-lo, desti- nado a ser muito pior. O cio e a morte, mencio- nados por virios depoentes, colocam lado a lado, quase indiscerniveis, os cies e © porrete, os cies © 08 alemies, 0s cies e a morte. Ces amigos; ju- deus, comunistas, ciganos, homossexuais e polo- neses, inimigos. ies dos alemes, mas também alemies feito cies que ladeam, ferem e matam, Nio entendem a lingua dos presos e apenas gritam, latem.O es- tupor da alvorada que teaz consigo os gritos (Lati- dos) dos alemées nos blocos dos campos: levantar! (Weawac!) Grito que invade o sonho e violenta a quietude do sono como lembearia Primo Levi no sonho descrito em A trégua, ‘A narrativa afliea do segundo sonho expée pés descalgos nos campos. Ferit os pés pode sig- nificat, em Auschwiez, ter como destino os cre~ ada) até pelos cies. Fosso matérios. O prisioneiro que nio anda, nio pode trabalhar é literalmente, peso morto. Indl para os campos de trabalho deve ser exterminado ¢ incinerado, como 0s invdlidos, como lixo, ‘Ohomem sonha que tirao sapato,corre des- calgo para fugit dos cies ¢ dos alemées (ou dos alemies feito cies). Os pés em bolha jé delacam. os, pés feridos podem significar morte, » 2 hierarquia nos campos coloca as cies acima de toclo prisioneiro. Fortes, robustos, 4igeis, bem alimeniadios e protegidos 08 cies eviclenciavam também o grau de dlegradlacao do prisioneivo incapaz de ser cao. Desautorizado a destinaclo a ser muito pior TEXTOS 8 mas o homem sonha cer ajudado os alemies, fa- lando alemao. Ajudado os alemées a assassinar 0s 70 poloneses, seus compatriotas? No sonho, seus pés feridos nao o levariam entio aser 0 71%? Ajudou os alemies, mas consequentemente pro- vavelmente logo também seria morto. A morte compensatoria que tantos testemunhos eviden- ciaram confessando o dissabor de se mancer vivos li onde tantos pereceram. No sonho morrem 70 e 0 homem corcunda (o homem que nao ergueré mais a eabeca — um muslim2), mas 0 sonhador, com pés feridos, cl- vez também perecerii. Tudo enti retorna a or- dem quando todos, menos os nazistas ¢ os ces, morrem. No terceiro sonho, gritos e latidos se imis- “aes e alemées perturbam as paisagens familiaves da Cracdvia. Algo sempre vigia e ob- serva. Nao se comunica, ndo escuta, nao fala, mas vigia e observa. Apenas isso. Isso & uma ta- refa suficiente para os cies. Tudo ali se resume vigilincia atenta, muda, ameacadora e violenta, cuem. Paulo C. Endo eis de Auschwitz do Museu-Memorial Auschwitz-Birkenau O arquivo de sonhos de expr 2 junho 2010 PeRCURSO 60 « Adam, o palhago que, para sobreviver nos campos, se tora um palhaco clo Kommandant Klein. Para o Herr Kommandant ele finge-se de cao, age como cao e 4 semethanca dle um cao alemao transforma-se em objeto de riso, escdmio e€ loucura prisioneiro no campo esté no mundo dos ani- ‘mais entre os quais se encontra na base da cadeia alimentar. Légica linear de caminhdes de gado, lacrinas piblicas, bareacdes geometricamente or- ganizados e, no final, o abatedouro. No impressionante livro de Yoram Kaniuk? todas essas imagens e outras adquirem uma es- pécie de terrivel eloguéncia em profundo dislogo sobre as experiéncias do lager. O titulo de seu livro: Adam, filho de cio (ou do cio, de Cains). O primeito ou o tiltimo homem? Uma dédiva ou uma maldigio? Kaniuk remonta o mais extremo da sienasio dos judeus na Shoah. Invenca um per sonagem entre a graga e o tormento; entrearuina ea pilhéria; enere 0 horror e a fiegio. Adam, 0 palhago que, para sobreviver nos campos, se torna um palhago do Kommandant Klein, Para o Herr Kommandane ele finge-se de cio, age como cio ¢ 4 semelhanga de um cio ale- io transforma-se em abjero de riso, escdrnio e loucura. Ao lado do cio do Kemmandant Klein, Adam, o primeito (¢ iltimo homem a conhecer © paraiso) larga suas tiltimas vestes humanas e age como um cio alemio, depois enlouquece. Faz par com um cio que odeia e estragalha judeus. Cito Kaniuk: E depois que Kommandant Klein se sentava na pol- ‘ona, chamava Fraulein Klopfer, acomodava-the o belo traseiro sobre os joelhos, traseirinho envolvido numa sia justa de seda caqui, mui limpa, agarrava-a com forga e chamava vocé. E vocé vinha de quatro, conforme fora estabelecido no contrato; voc? engatinha, um sor- misso esc registrado no contrato. E vocé vai de quatro na diregio de Rex, eseeg rogao nariz no focinho dele, eo comandante humanisea 0 Kommandant Humanista e Fraulein Kopler riem. Ricm também porque Rex foi educado a ediar pelo faro qualquer judeu que se aproximasse dele: sua lei sio 0s rele, dlentes, sua sentenca é 0 despedagamento. Mas a voc? Rexperdoou. Até passow a gostar de voré apesar do ito de cer de compartilhar as refeigdes consigo. E vocés dois, de quatro, arrancavam carne dos ossos.* Ser tolerado como cio, entre 0s cies. Dos alemies, dos cies alemies, dos judeus feito cies. Para além do canil nada, a loucura, o lugar no qual homens e mulheres sio execurados,calcina- dos e convertidos em cies. © primeiro homem que entrou pelos portées de Auschwitz também serd o ileimo. A literarura ea elaborasio onirica 20 iluminarem, ainda que brevemente, um acon- tecido inimagindvel, restauram as cenas onde a humanidade termina e onde ela recomega. Tem. de recomegat. Num lugar (Auschwitz) onde"o sentido do trabalho € entio a descruigio do tra balho no e pelo trabalho", como disse Blanchot, a elaboragio ontrica, 0 trabalho do sonho é um recomeco em estado de impermanéncia. Sio infindéveis as possibilidades interpreca- tivas dos sonhos em seus dislogos com aliteracura de tescemunho. Néo teremos, contudo, as associa- es dos sonhadores para dar-lhes sentido mais profundo e singular como nos exige a escuta psi- canalitica. Mas é possivel reconhecer algumas de suas verdades, aquelas nascidas do mais secreto nos sujeitos que viveram o diaa dia dos campos, e podemos sempre coloci-las para trabalhar, lado lado, com outros testemunhos ¢ obras, as infor mages que temos, as teorias de que dispomos ¢ © que escutamos enguanto os lemos. Os campos sempre precisario ser interpretados e os sonhos rompem com o absoluto do siléncio imposto li e entio e restituem o ponto em que a linguagem_ emerge, se instala e principia aqui e agora. (Os sonhos de Auschwitz ainda se alimen- tam da singularidade dos testemunhos dos que sobreviveram aos campos. Cada relato éumibelo, a prova de que a transmissio € efeito de um dizer que funda, no seio do traumstico, um mais além. dole e que, nio raro, percorre o itinersvio da deli- cadeza para se confirmar como 0 que precisa ser -Agralga 8 Janete Frochtengaren 3 indicagio desse Ivo peecioxo, ‘enquant cansersivanos sobre inicio da realizagSo da presente pesquisa em 2017. Y. Kani, Alam, fhe ds ea, p90, ‘M. Blanchot, entre du desastee, 129. os sonhos de Auschwitz ainda se alimentam dla singularidacle dos testemunhos dos que sobreviveram 205 campos. Cada relato éum libelo, a prova de que a transmissao 6 eleito de um dizer que funda, no seio do waumético, um mais além dele dito, ainda que imperfeitamente, ainda que frag- mentariamente e ainda que flutue muito tempo ao léu, como uma garrafa ao mat, cuja mensagem ‘busca seu leiror. A garvafa eransparente que guarda tum papel alvo na imensidao azul sobrevive As tem- pescades também por sua pequenes efragilidade. Ba isso que nos remetem os sonhos, suas narrativas, seus testemunhos, fonte inesgotavel ¢ fluruante, em que a rentincia a saber tudo, de- finitiva e peremptoriamente, nos permite sem- pre saber algo mais, no tempo (a)guardado pelo trabalho e pela delicadeza do sonhar como obra » TexTOs Paulo C, Endo juseu-Memorial Auschwitz-Biekenay arquivo de sonhos de expr Paulo C. Endo Auschwit-Birkenaus (© arquivo de sonhos de ex-prisianeiras de Auschwitz do Museu-Memor Referénclas hibliograticas lance Mi (tats). rte da dente Pai Galina no PC soos) A wise no corso de cidade: wm ete pices. S50 Paulo: raves Eseuta, oro). Prt, restemanhn ea instncs ea mpermanéncla do die 1hG. Mian Ramon N.V.A. Late, Tra frie point, nema, pon, ee Comins: Mereado dae Lec. (ors Baboragbo air sonhos aunties eeprom fertaea ‘de tetemanho pé-diedurano Gras In M, Seligman) Ginsburg, Foe Hardman (orgs) rian vol. payee Representa dh viléncia na hits en cule concemporineas, ode Jee: 7 ea tes, Drea pesto in he ise of pin and hag da W, Own 2. Zien (etic) Dreams, paar end mmo, Caan: Gane Uni very Press, (cos Viens, Dream Work (Drea abortion and the testimonial Tovzo la W.Owear: MV. F Crem. Selarity, menry od ey [Newsnt: Cambridge Publishing Scholae (go1e).Sonhet mal senha 0 namibia nohorzone ds experi Ede denpareineno Fad de evo no Beas Reta Leu tks nao 09 eres Ss Abiko Kimmel Eons (os Peas ul ware oi Now Yrs oration Pocosnslcl ees. een (3493) In Oras Cope Sab Fen YobTral Ala Cel Sto Par Marts Font Fred 5. (ooo/ooe)- A ieee deo. S Freud sano Tesi dao: ees comp de Sir read (ee) Ri de oc age — bshasotm): Paya dean psa pr neuraogs In Olas Gnade Siu Frew. Tea Ls Lopes Balers Mad: Mote Nowa ps 76 —rvco/aoi)A interpreta do ok Tead, Renato Zvi RavisioTe- Ties Tana River, Poste Alere: LAP, 969) Mis all dl principio de place In S. Feud, Ons compl ‘ar Trad JL Eeherecry 2d ral. p doze, Buenos Aes: Amorort Gayl (8/90). Unsvida pone ns tmp: Trad. Denise Bata. So Pals ‘Companhia ds Letras. Kann ¥ (203) def de So Pal: Globo. Levi (oez/one). Bio nt onc Ri de Jancis Rac. _—ostiotr).A tiga. Sto Pas: Compania das Lees (Owczarti W: (2010) Therapie deans in Anschits asks Now. ‘= Disponivel em: chu owigaduplfoj/index php edna lve ‘The dreams archive of Auschwitz exprisoners fom the Auschuitz- Birkenau Memorial Museum [Abstract This article presents the fst observations of an extensive re- search based inthe University of Grlansk (Poland) involving four dif. ferent counts (Poland, Brazil, aly and Finland) and that focuses ‘on the collection of dreams of exprsoners of Auschwitz already in the postavar It presents a brief inkexpretation and dialogue with one ofthe contents that are repeated in many dreams of ex-pesonees the dogs ofthe concentration camps. Keywords psychoanalysis; Auschoitz; concentration camps; dreams. Texto recebido: Aprovades oa018 os/2018

You might also like