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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DO NOROESTE FLUMINENSE DE EDUCAÇÃO SUPERIOR


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

CAMILA DE SOUSA FONSECA

O SILENCIAMENTO DAS MULHERES NEGRAS NO CAMPO DA SAÚDE


MENTAL

Campos dos Goytacazes-RJ


2019

CAMILA DE SOUSA FONSECA


O SILENCIAMENTO DAS MULHERES NEGRAS NO CAMPO DA SAÚDE
MENTAL

Trabalho monográfico apresentado à


Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para a obtenção do grau
de Bacharel em Psicologia
Tipo de Trabalho:
Formato: Artigo

ORIENTADORA: Prof.a Dr.a Bárbara Breder Machado

Campos dos Goytacazes-RJ


2019
CAMILA DE SOUSA FONSECA

O SILENCIAMENTO DAS MULHERES NEGRAS NO CAMPO DA SAÚDE


MENTAL

Trabalho monográfico apresentado à


Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para a obtenção do grau
de Bacharel em Psicologia
Tipo de Trabalho: Estudo teórico
Formato: Artigo

Aprovada em de Julho de 2019.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________
Profª Drª. Bárbara Breder Machado - UFF

_____________________________________________
Profª Drª.Tainá dos Santos Oliveira - UFF

Campos dos Goytacazes-RJ


2019
Para os meus grandes amores: minha mamãe
Rosana de Sousa, minha irmãzona Carina de
Sousa, minha vovó Janete de Sousa e meu
vovô Paulo da Penha.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe Rosana por sempre ter acreditado em mim e ser o melhor colo de todos.
À minha irmã Carina por ter acolhido meu choro naquela manhã em Maricá, principalmente
por ter estado comigo nos piores momentos da minha vida.
À minha avó Janete por ter me ensinado ser persistente.
À meu avô Paulo por ter me ensinado a importância do cuidado.
À meu pai.
À minhas amigas na qual cada uma teve um papel especial, gerando questões e me acolhendo.
Ao Pretaspsi, pelo acolhimento na reta final e por estarem movendo estruturas.
À todas pessoas e coisas que saíram e entraram na minha vida ao longo do processo de
escrita.
À toda espiritualidade que me ampara e guia todos os meus caminhos.
RESUMO
Esse artigo de conclusão de curso está destrinchado em duas partes, ambos têm por objetivo
descortinar alguns pontos do racismo e misoginia que exterminam a vida das mulheres negras todos
os dias no Brasil. As violências que essas mulheres vêm sofrendo se dão nos espaços físicos e
simbólicos na quais transitam. Essas indagações surgiram a partir das observações que foram feitas ao
longo da experiência de estágio em um CAPS III da cidade de Campos dos Goytacazes – RJ. No
primeiro momento, entraremos nas questões relacionadas à importância da reforma psiquiátrica
brasileira ao campo da saúde mental, mostraremos os racismos desse campo em relação às mulheres
negras. No segundo momento, utilizaremos o feminismo negro com o objetivo de ilustrar as questões
relacionadas à escravidão, exploração das mulheres negras e os padrões brancos de feminilidade
enquanto negação da existência das mulheres negras, o que tem por consequência, o silenciamento. A
partir dessas exteriorizações, introduziremos nas conclusões e discussões os possíveis
questionamentos e saídas nos direcionamentos para a existência das mulheres negras no Brasil.

Palavras-chave: Saúde Mental. Racismo. Mulheres Negras. Feminismo Negro.


ABSTRACT

Keywords: Mental Health. Racism. Black Women. Black Feminism.,


SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................13

2 TÍTULO DA SEÇÃO 2.........................................................................................................14

2.1 Campo da Saúde Mental.....................................................................................................14

2.2 Mulheres Negras.................................................................................................................19

3 CONCLUSÃO.......................................................................................................................26

REFERÊNCIAS........................................................................................................................27
11

1 INTRODUÇÃO
Anterior da minha trajetória acadêmica, existe uma trajetória pessoal-ancestral-
familiar marcada pela violência racista e misógina sob nossos corpos. Esse trabalho pretende
discorrer sobre a violência de gênero que não só marcou minha vida, mas que continua
marcando e ceifando a vida de muitas mulheres negras. Mulheres que são ditas loucas,
mulheres que enfrentam manicômios sociais e institucionais, mulheres que não puderam e
muitas outras que continuam não podendo falar de si mesmas enquanto sujeito.
O presente trabalho propõe refletir sobre a ausência do debate acerca das questões de
raça e gênero no âmbito da reforma psiquiátrica brasileira. Partindo da experiência do Estágio
Supervisionado na Rede de Saúde Mental no município de Campos dos Goytacazes localizada
no interior norte-fluminense do Rio de Janeiro, orientado pela Prof. Dra. Bruna Brito na grade
de formação em psicologia da Universidade Federal Fluminense. O percurso neste campo
deu-se de Março/2018 a Dezembro/2018, nele chamou a atenção o fato de que no território e
nos serviços o racismo e a violência de gênero estavam ausentes tanto nas reuniões de equipe
da rede quanto nos espaços deliberativos da Política Nacional de Saúde Mental, onde
aparecem timidamente em relação aos demais temas de debate.
Os caminhos percorridos nesse trabalho, desejam escrachar para a luta antimanicomial
brasileira de que os usuários atendidos pelos serviços substitutivos ao manicômio, tem raça e
gênero, portanto, não são apenas “usuários”, a luta antimanicomial precisa ser antes de tudo,
antirracista, procura-se, então nesses escritos, racializar o debate sobre as Políticas Públicas de
Saúde Mental.
Procurar dar voz ao sofrimento de quem sempre foi silenciada, ocultada e violentada.
A partir de tais observações feitas no campo de estágio em Saúde Mental, deu-se conta de que
mulheres negras ditas loucas sofrem uma soma de preconceitos que resultam em violências
cotidianas nos espaços que transitam.
Segundo Cândida Beatriz Alves e Polianne Delmondez (2015), deve-se considerar
que as hegemonias só existem a partir da negação do outro. No caso desse trabalho, pretende-
se expor que esse outro são as mulheres negras. É necessário escrachar profundamente os
padrões de supremacia ao investigar as questões inerentes que percorrem na vida das
mulheres negras. O racismo que essas mulheres vivem tem sido arquitetado pela lógica
escravagista, o resultado disso, são incontáveis violências institucionais e simbólicas sofridas
por essas mulheres, -silenciamentos, femínicidios, manicômios e prisões- nas quais iremos
expor ao longo desse artigo.
12

O racismo no Brasil é estruturado pelo processo de escravidão, na qual duraram mais


de três séculos. Apesar de a Lei áurea ter sido assinada em 13 de maio de 1888, a população
negra continuou sendo explorada e rebaixada, ocupando sempre lugares de submissão. O
Estado mantém essa injustiça quando não cria políticas públicas que promovam equidade e
assumam responsabilidade com as diferenças étnicos-raciais no campo da saúde.
Gritantemente o branco é o modelo universal da humanidade, os indivíduos não-brancos
pertencem a um grupo que estão distante dessa humanidade. A branquitude brasileira se
mantém por impor seu grupo como padrão de referência em todos os âmbitos, afirmando e
reconhecendo sua autoestima como modelo a ser seguido, ao mesmo tempo, investem em uma
construção do negro enquanto sujeito inferior e negativo a eles, negando sua identidade racial,
destruindo sua autoestima e o culpando pela discriminação que sofrem, como meio de
justificar suas desigualdades raciais. (CEHMOB-MG, 2014, p. x)
Dar voz a quem passou a vida em silenciamento é tencionar lógicas sociais,
embranquecidas e enrijecidas com tradicionalismos fracassados e excludentes. Além disso,
faz-se necessário poder falar, deixar que as palavras escorram em formato visceral,
convocando ao leitor a repensar certezas. Conforme Léila Gonzales (1983) escreveu em seu
artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, sobre a negação de espaço de fala das
pessoas negras:
exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem
fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos),
que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa
boa. (GONZALES, 1983, p. 225).

Para tal, utilizamos o método de pesquisa exploratória, com fonte secundária e


metodologia qualitativa, com revisão de literatura a partir de autoras e autores
contemporâneos, deste modo buscando o que autoras negras escreveram sobre as mulheres
negras e alinhar o que foi encontrado com que se tem posto no campo da saúde mental.
13

2.1 O Campo da Saúde Mental


O movimento pela reforma psiquiátrica brasileira surgiu no momento ápice dos
movimentos sociais, reivindicavam mudanças políticas no final da década de 70, nessa época
lutava-se pela democratização e pela anistia popular como um todo. De acordo com Passos
(2011), o modelo de cuidado para a dita loucura era o manicômio, o movimento além de
reivindicar o fechamento dos hospícios, também pressionou para que houvessem mudanças de
perspectiva da psiquiatria em sua ótica pela loucura e no tratamento dado.
A Lei nº 10.216/01 referente a reforma psiquiátrica, promulgada em 6 de abril de
2001, decretou o fechamento dos hospícios e da criação dos serviços substitutivos ao
manicômio, busca-se com essa lei garantir direito das pessoas que estão em sofrimento
psíquico. Por conta dessa lei o Brasil entrou em coerência com as diretrizes da Organização
Mundial de Saúde e seu Escritório Regional para as Américas (OPAS). (ALVES, [201-?], não
paginado).
O Sistema Único de Saúde (SUS) tem como objeto a construção e inserção de uma
Rede de serviços que acolham distintas demandas e complexidades no que abrange a saúde. A
política Nacional de Saúde Mental inserida no âmbito do SUS é amparada por uma variedade
de profissionais de diferentes áreas na medida em que a integralidade do cuidado é um de seus
norteadores. As pessoas que estejam em sofrimento psíquico podem ser assistidas no SUS
pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
A política Nacional de Saúde Mental que está no corpo do Sistema Único de Saúde
que parte da compreensão de saúde enquanto direito, foi constituída com o intuito de atender
por via da saúde pública, pessoas que estejam em sofrimento psíquico e questões relacionadas
a álcool e outras drogas.

O estágio se deu em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS): uma das instituições


públicas resultantes da Lei da Reforma Psiquiatra, sendo constituído por uma equipe
multidisciplinar com a proposta de que seja um serviço substitutivo ao manicômio. O CAPS
III é um dos dispositivos da RAPS: A cidade de Campos dos Goytacazes- RJ conta com os
seguintes dispositivos, CAPS-I, CAPS AD, CAPS II, e CAPS III.
14

O CAPS III é um dispositivo 24 horas que consta com até 5 vagas de acolhimento a
pessoa de qualquer idade que considerem está em crise por qualquer instância que esteja
causando sofrimento psíquico. (BRASIL, 2018).

Ao longo do estágio, todas as quartas-feiras, aconteciam as reuniões de equipe.


Chamou-nos a atenção o fato de que as análises sobre os mesmos, realizadas no período que
estivemos compondo a equipe, não incluíam reflexões sobre as questões relacionadas racismo,
machismo e classe. Tais apontamentos raramente eram levados em consideração quando
discutíamos os casos e as diretrizes deles.
Foi complexo perceber que o CAPS, dispositivo de saúde pública, em específico que
atende pessoas em sofrimento psíquico — que passaram ou não por internação em manicômio
— não levem em consideração as violências que cruzam a história dos hospitais psiquiátricos
que são marcados pelas violações dos direitos humanos. É necessário localizar a história
manicomial de Campos dos Goytacazes, de acordo com a autora Marina Faria (2016):
O primeiro hospital psiquiátrico implantado em Campos foi o Hospital Henrique
Roxo por volta de 1942, com fins lucrativos. Em 1947, surgiu o Abrigo Dr. João
Viana, inicialmente criado para acolher os loucos e os excluídos e dar-lhes abrigo.
Esta instituição tinha caráter filantrópico e era mantido pela Liga Espírita de
Campos. A história da saúde mental em Campos iniciou-se com o surgimento desses
hospitais psiquiátricos, que assumem o papel de afastar o louco da sociedade com a
justificativa de que fazia parte de um “tratamento” direcionado pelo saber médico.
Logo, se resumia a um tratamento psiquiátrico para os doentes mentais, lógica
dominante na época de surgimento dessas instituições. (FARIA, p. 17, 2016).

As pessoas que já estiveram internadas sofreram incontáveis abusos, existem livros e


outros escritos com esses registros. Essas violências foram tão fortes que muitos autores se
interessaram a escrever sobre o tema, como Daniela Arbex, jornalista brasileira que buscou a
história do Hospital Colônia de Barbacena, localizado na cidade de Barbacena do estado de
Minas Gerais. Daniela Arbex é autora do livro “Holocausto Brasileiro” de 2013 e escreveu
sobre os abusos vivenciados nesse hospital psiquiátrico.
Segundo Arbex (2013), 60 mil pessoas morreram no hospital colônia de Barbacena. As
pessoas chegavam eram jogadas nos vagões de trem e eram internadas compulsoriamente,
logo quando chegavam ao manicômio tinham a cabeça raspada e as roupas retiradas. A
maioria, aproximadamente 70%, não tinham diagnóstico. Os casos das pessoas internadas
eram de meninas grávidas e estupradas por seus patrões, esposas presas para que os maridos
vivessem com as amantes, mulheres que perderam a virgindade antes do casamento, pessoas
que perderam seus documentos e alguns que eram considerados tímidos. Em determinados
momentos, a alimentação no hospital eram ratos, esgoto ou urina, dormia-se em cima do
15

capim, também apanhavam e eram violentados fisicamente, inclusive as mortes dos pacientes
ocorriam devido a essas violações físicas e também por frio, fome ou doença. Os
eletrochoques que fazem parte do tratamento para dita loucura no manicômio, eram tão fortes
que a sobrecarga acabava derrubando as redes do município. (ARBEX, 2013).
Sendo assim, é importante ressaltar que o hospital psiquiátrico não é um espaço
terapêutico, inclusivo e de cuidado, é um ambiente avesso pelo o que se entende enquanto
Direitos Humanos.
Tais pontos da história como raça e gênero são de extrema relevância para que seja
levado em consideração quando se fala e faz luta antimanicomial. Para explanar essas
afirmativas utilizaremos a história de Sônia, mulher negra, - como mostram as imagens do
livro- que passou pelo Hospital Colônia de Barbacena no qual sofreu por ser mulher e preta.
Rejeitada aos onze anos por fazer molecagem na rua, em Belo Horizonte, foi
despachada para o hospital pela polícia. Antes, porém, apanhou muito de “uma dona
aleijada” com quem morava, sendo obrigada a cozinhar, mesmo sem altura
suficiente para alcançar o fogão. Para conseguir mexer as panelas, precisava subir
num banquinho. Embora tenha aprendido a preparar um bom feijão com arroz,
pegou birra da cozinha. A história de Sônia foi construída dentro do Colônia. Sua
verdadeira data de nascimento é desconhecida. Por isso, o dia, mês e ano de seu
aniversário são estimados: 28 de julho de 1950. No documento de identidade da
antiga paciente, retirado quarenta e cinco anos depois do seu provável nascimento,
Barbacena aparece como local de origem, embora o município não seja sua cidade
natal. É como se ela tivesse aparecido no mundo sem que alguém a parisse. Sônia
cresceu sozinha no hospital. Foi vítima de todos os tipos de violação. Sofreu
agressão física, tomava choques diários, ficou trancada em cela úmida sem um único
cobertor para se aquecer e tomou as famosas injeções de “entorta”, que causavam
impregnação no organismo e faziam a boca encher de cuspe .. (ARBEX, 2013, p.
45).

Em outra parte do livro, mostram as violências sofridas por Geralda, as imagens do


livro também mostram ela era uma mulher negra. Geralda foi empregada doméstica durante a
infância, sua internação foi feita pelo seu patrão e as motivações da internação também
passam pelo racismo e misoginia que sofreu.
Do alto de seu 1,50 metro, a ex-empregada doméstica envolve o tenente nos seus
braços, embora não consiga mais pegá-lo no colo como fez na adolescência, quando,
aos quinze anos, deu à luz João dentro do pavilhão Zoroastro Passos, no Colônia de
Barbacena. O exílio no hospital foi a forma que o patrão de Virginópolis (MG)
encontrou de silenciar a menina que ele havia estuprado no período em que ela
trabalhava em sua casa. Com então cinquenta e quatro anos, ele precisava esconder a
gravidez da garota a qualquer custo, nem que, para isso, confiscasse, mais uma vez,
a inocência dela. (ARBEX, 2013, p. 128).

Ao longo da experiência de estágio no CAPS III pode-se deparar com outras mulheres
negras que partilham de narrativas similares ao de Sônia e Geralda, houveram muitos relatos
de mulheres que falavam sobre as violências de raça e gênero que sofreram e sofrem, esses
16

relatos eram de experiências que aconteceram no CAPS, em casa, pelas ruas e nos
manicômios.
Era recorrente que essas falas não encontrassem lugar porque essas mulheres
encarnam dois estigmas: suposição da loucura e o fato de serem mulheres e em maioria
negras. O termo estigma se refere a uma caraterística que representa algo profundamente
insultuoso, que permite validar a normalidade de alguém em cima do dito desvio do outro que
se entende enquanto normal. A concepção de normalidade se dá a partir de um modelo de
higiene mental no qual os indivíduos inscritos nesses parâmetros são bem ajustados e
ponderados, a quem foge disso, consideram-se limitados, enrijecidos e inadequados.
(GOFFMANN, 1980).
A partir dessas observações feitas ao longo da experiência de estágio, nas quais não
poderão ser comprovados por meio das métricas cientificas, pode-se observar que a maioria
dos assistidos no CAPS III são pessoas negras. Os questionamentos ocorrerm porque as
questões sobre raça e gênero surgiram, porém não encontraram espaço de fala no dispositivo
para que esses assuntos fossem pautados nos direcionamentos clínicos dos casos
acompanhados.
Acredita-se ser sintomático que justamente essas observações sejam silenciadas, visto
que a Lei da reforma psiquiátrica propõe garantir direitos dos usuários da Rede de saúde
mental; mas como falar em garantia de direitos se as pessoas quando chegavam nesse
dispositivo não tinham suas falas que encontravam-se atravessadas por racismo e misoginia
respeitadas?
Na conjuntura pós-reforma psiquiátrica, são poucas mulheres que pesquisam o tema
saúde mental e questões de raça e gênero. Para Passos (2017), a carência de material literário
sobre esse campo impede que haja evolução nas abordagens dos dispositivos substitutivos ao
manicômio.
Ao longo da história, a ligação entre doença mental e raça foi uma prática alienista do
século XIX no Brasil. Essas concepções fizeram com que as práticas psiquiátricas brasileiras
fossem feitas tecendo ligações entre características étnicas e de raça a formas de doença
mental. (SANTOS; SCHUMAN; MARTINS, 2012 apud DAMASCENO; ZANELLO, 2018).
A autora Rachel Gouveia Passos, professora e pesquisadora em assuntos relacionados
à Saúde Mental, no artigo “Holocausto ou Navio Negreiro?: inquietações para a Reforma
Psiquiátrica brasileira”, faz críticas sobre a construção da Luta Antimanicomial e ao livro
“Holocausto Brasileiro”, por acreditar e evidenciar que as questões raciais no campo da saúde
mental precisam ser exteriorizadas para que sejam ouvidas.
17

Segundo o mapeamento dos perfis dos usuários atendidos no Nordeste do país, a


população majoritariamente atendidas nos CAPS é negra (pretos, pardos, morenos e
afrodescendentes). (OLIVEIRA; DUARTE; PITTA, 2017 apud PASSOS, 2018)
O que aponta o segundo relatório da Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack,
(BASTOS; BERTONI, 2014 apud PASSOS, 2018) as mulheres negras são a maioria que
utilizam crack de forma prejudicial.
As mulheres negras representam 83% das mulheres em sofrimento psíquico internadas
no manicômio judiciário do Estado do Rio de Janeiro. (RAMOS, 2018 apud PASSOS, 2018).
O IFOPEN Mulheres mostra que população feminina carcerária é majoritariamente
negra, sendo 67%, o que representa 2 a cada 3 presas. (SANTOS; VITTO, 2014, p. 24 apud
PASSOS, 2018).
Conforme sinalizam as autoras Zelma Madeira e Daiane Gomes (2018) O último
censo do IBGE, feito em 2010, mostra que 92,4 milhões da população brasileira se
autodeclararam branca, o que representa 45,5% da população. A população que se considera
parda ocupa 45% do total populacional, 8,6% se declararam pretos, 0,9% se declarou outra
cor ou raça (indígena ou amarela). Para a construção de políticas públicas voltadas para a
igualdade racial, os pretos e pardos são considerados negro, o que significa que a maior
população no Brasil é negra.
Em 2009 as mulheres negras correspondiam a um quarto da população brasileira. A
população total era de 191,7 milhões de brasileiros, enquanto eram 50 milhões de mulheres
negras no total. (MARCONDES, et al., 2013, p. 19).
Ocupar gritantemente as piores estatísticas, mesmo sendo a maioria populacional, faz
que a população negra brasileira, em específico as mulheres negras, estejam sendo a linha de
frente no desamparo da violação de direitos. Ocupar a última escala da pirâmide social no
Brasil é aprender lidar com os restos, o que significa se encontrar nas piores violações
garantidas e mantidas pelo Estado. O único grito das mulheres negras que tem sido validado
pela branquitude é o de dor, para que sejam encurraladas ao silêncio.

2.2 Mulheres Negras


O feminismo negro ganhou força entre os anos 1960 e 1980 porque feministas negras
começaram a escrever sobre a temática criando um reduto literário. Foi a partir do III
Encontro Feminista Latino-Americano que aconteceu em Bertioga em 1985 que as mulheres
negras adentraram ao feminismo, e por conta desse encontro trançaram rotas para que sejam
18

visíveis, gerando criação de coletivos de mulheres negras, conforme analisa Djamila Ribeiro
(2018).
Se tratando de feminismo1, a necessidade da existência de uma vertente como a do
feminismo negro no Brasil, aponta que o movimento político ainda não está pronto para
acolher mulheres negras. Acreditar que o racismo é um recorte dentro do feminismo, além de
falácia, é desonestidade e omissão com a existência material das mulheres negras, Segundo o
Atlas da Violência de 2018, (BRASIL, 2018) a taxa de homicídio de mulheres negras
aumentou em comparação a mulheres não negras, para cada 100 mil mulheres negras o
aumento foi de 15,4%, enquanto as não negras houve queda de 8%. Em vinte estados a taxa
de homicídio cresceu entre 2006 e 2016, em doze desses estados o aumento foi maior que
50%. A questão de raça e etnia no Brasil, país colonizado pelos portugueses deveria ser
central para a luta e pela emancipação feminina, mas ainda não é, por isso a necessidade
repetitiva de expurgar o racismo da branquitude brasileira que diz ser feminista.
Para Sueli Carneiro (2003), as mulheres são diferentes em suas perspectivas e
experiências e por conta disso, mulheres não brancas, não podem ter as violências sofridas
lidas apenas como questões de gênero, porque não é só o gênero que a fazem ser violadas.
Faz-se necessário lançar mão do conceito de feminilidade que é um modelo de mulher
universal concebida pela ótica masculina e branca que a incentiva ao fracasso. Desumaniza o
feminino a partir da construção social do que é ser mulher, ela, contudo dentro dessa
imposição, torna-se inferior ao homem no quesito material e simbólico. Seguindo esse modelo
de feminilidade, espera-se que a mulher viva para um homem.

No livro intitulado “Segundo Sexo”, Simone de Beauvoir (1970) aponta que a


composição de feminilidade coloca a mulher como pessoa inferior ao homem, como se a
mulher fosse um ser humano frágil e de nível intelectual abaixo dos homens. Por conta dessa
construção simbólica, resta a existência afetiva como centralidade de sua vida. Portanto, o
trabalho doméstico e tudo aquilo que envolva o casamento como marido, maternidade e
filhos, restam como prioridade na vida feminina.
Beauvoir usa o caso de Auguste Comte, filósofo francês e seu amor por uma mulher
chamada Clotilde de Vaux, escritora francesa, no qual era concebida por ele como uma pessoa
endeusada. Por consequência dessa ideia, torna-se uma pessoa desumanizada, não sendo uma
1
Feminismo: movimento social que tem por fim a equiparação da mulher com o do homem. Também as
ideologias que preconizam a igualdade jurídica, política e econômica da mulher. Como movimento e ideologia, o
feminismo é um característico peculiar às culturas ocidentais. (E.W.) Movimento social que teve sua origem na
primeira metade do século XIX, dirigido por mulheres para conseguir para si próprias um status social e legal
mais avançado e maiores direitos de propriedade do que aqueles que desfrutavam.
19

pessoa enquanto mulher, mas algo para, além disso, ela era tida como um ser superior,
merecedora de adoração, mas essa devoção só acontece por conta da moralidade na qual essa
mulher estava supostamente inscrita: ela é pura e amorosa segundo ele.
Mas, segundo o sistema positivista, ela nem assim permanece menos encerrada na
família; o divórcio é-lhe proibido e seria mesmo desejável que sua viuvez fosse
eterna; ela não tem nenhum direito econômico nem político, é apenas esposa e
educadora. (BEAUVOIR, 1970, p. 144)

O que Simone de Beauvoir aponta com isso é que de alguma forma as mulheres
precisam estar inscritas nos símbolos da feminilidade, como seres dóceis, domesticadas e
brancas. As mulheres enquanto seres submissos ficam adormecidas de suas próprias potencias
e desejos, deslocando-a de sua grandeza e de sua autonomia enquanto pessoa. Fazendo com
que vivam em torno de um lar.
As mulheres são escravizadas à cozinha, ao lar, fiscalizam-lhes ciumentamente os
costumes; confinam-nas em um ritual desavoir-vivre, que trava qualquer tentativa de
independência. Em compensação, honram-nas e cercam-nas das mais requintadas
delicadezas. "A mulher casada é uma escrava que é preciso saber colocar num
trono", diz Balzac; está estabelecido que, em quaisquer circunstâncias
insignificantes, o homem deve eclipsar-se diante delas, ceder-lhes o primeiro lugar;
ao invés de fazê-las carregar fardos como nas sociedades primitivas, insistem em
desobrigá-las de toda tarefa penosa e de toda preocupação, o que significa livrá-las
ao mesmo tempo de toda responsabilidade. (BEAUVOIR, 1970, p. 145).

Maria Rita Kehl, em seu livro, “Deslocamento do Feminino”, nos mostra a


constituição de feminilidade a partir dos discursos na Europa durante os séculos XVIII e XIX.
A autora aponta que por conta dos discursos masculinos da época, a mulher passou a ser vista
a partir da sua biologia, contudo, o corpo feminino precisou ser dominado para que as
mulheres seguissem o suposto destino, “corrente, de que a "natureza feminina" precisaria ser
domada pela sociedade e pela educação para que as mulheres pudessem cumprir o destino ao
qual estariam naturalmente designadas”. (KEHL, 2008, p. 58).
Esse suposto destino feminino que é pautado pela sociedade de forma discursiva,
contudo é violenta por levar a subordinação feminina para a prática, por produzir o
enquadramento ao reduto doméstico e o da maternidade como seu grande papel social. A
mulher, dentro dessa lógica, supostamente, existe para servir ao lar e a família.

Afim de melhor corresponder ao que se espera delas(que é ao mesmo tempo,


sua única vocação natural),pede-se que ostentem as virtudes próprias da
feminilidade: o recanto, a docilidade -uma receptividade passiva em relação
aos desejos e necessidades· dos, homens e a seguir dos filhos (KEHL, 2008,
p. 48).
20

O que Simone de Beauvoir e Maria Rita Kehl apresentaram enquanto feminilidade que
é construída a partir da visão dos homens brancos e localiza as mulheres brancas enquanto
segundo sexo, não se enquadra na produção de feminilidade de uma mulher negra. Por serem
historicamente exploradas e escravizadas, essas mulheres não são concebidas para a ótica
patriarcal como as mulheres brancas são, por isso, as mulheres negras por conta do racismo
não estão dentro dos parâmetros de feminilidade no qual é branco e domesticado e não
literalmente escravizado.
Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a
proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos
falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres,
provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito,
porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de
mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas,
como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada
quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar!
Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a
serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. São
suficientemente conhecidas as condições históricas nas Américas que construíram a
relação de coisificação dos negros em geral e das mulheres negras em particular.
(CARNEIRO, 2013, p. 2)

Dessa forma, por conta da sua condição racial outros cruzamentos sobre a
feminilidade percorrem na vida das mulheres negras. A relevância da feminilidade negra no
feminismo é esquecida porque cria-se um mito de que o sexismo não possa ser tão devastador
quanto o racismo na vida de uma mulher negra e de que ambos não possam ser combatidos
juntos. O feminismo branco acredita que o racismo e o machismo não estão entrelaçados, o
resultado disso são: mulheres negras silenciadas e negadas das reivindicações de seus direitos.
(Hooks, 2014)
Levando em consideração esse duplo emudecimento, evidencia-se que as mulheres
negras vivem uma realidade diferente das mulheres brancas. Toda a existência de uma mulher
negra é atravessada pelo racismo.

De acordo com Gama (2018), as mulheres negras ocupam o último lugar na escala
social porque vivem em um sistema social machista, racista, desigual e injusto que só
contribuem para que seja feita a manutenção da suposta subalternidade dessas mulheres, essa
continuidade de opressão endereçam ao período escravocrata e se contemporizam para que o
Estado não garanta os direitos básicos das mulheres negras.

Tendo em vista que as mulheres negras foram escravizadas juntas aos homens negros
faz que consequentemente, uma mulher branca historicamente tenha poder sob corpos de
pessoas negras e das mulheres negras, isso destaca novamente a importância de debater
21

questões raciais no feminismo e na sociedade como um todo. Tecendo a ligação entre gênero e
raça, Angela Davis, expõe as diferenças entre mulheres negras e brancas ao longo da história.
As mulheres negras sempre trabalharam mais de casa do que a mulheres de brancas. O
espaço que o trabalho ocupa na vida das mulheres negras é fruto do padrão de anos sendo
escravizadas, enquanto escravas, essas mulheres tinham outros âmbitos da sua vida ofuscados
pela escravidão, sendo assim, qualquer ponto de partido de exploração da mulher negra na
escravidão, tinha como intuito avaliar seu desempenho enquanto trabalhadora. (DAVIS,
2016).

Há outros pontos que estão relacionados à feminilidade na vida das mulheres negras e
que são diferentes das mulheres brancas; espera-se que uma mulher branca seja frágil e dócil,
no entanto, as mulheres negras ao longo da história não foram concebidas como frágeis.
Sequer como humanas.

O sistema escravista definia o povo negro como propriedade. Já que as mulheres


eram vistas, não menos do que os homens, como unidades de trabalho lucrativas,
para os proprietários de escravos elas poderiam ser desprovidas de gênero. Nas
palavras de um acadêmico, “a mulher escrava era, antes de tudo, uma trabalhadora
em tempo integral para seu proprietário, e apenas ocasionalmente esposa, mãe e
dona de casa”. A julgar pela crescente ideologia da feminilidade do século XIX, que
enfatizava o papel das mulheres como mães protetoras, parceiras e donas de casa
amáveis para seus maridos, as mulheres negras eram praticamente anomalias.
(DAVIS, 2016, p. 24)

Mulheres negras consideradas anomalias enunciam sobre a experiência feminina na


qual estão mergulhadas. As questões relacionadas à raça ocasionam objeções que estão além
do gênero feminino. A escritora e filósofa Djamila Ribeiro, no primeiro capítulo de seu livro
“Quem tem medo do feminismo negro?” (2018) aponta para as violências que sofreu ao longo
da vida e as diferenças em relação a mulheres brancas.

Sobre sua própria trajetória, Djamila Ribeiro relata:

Em 1988, precisei insistir para fazer a leitura principal no Dia do Livro. A


professora havia escolhido uma colega de classe branca de cabelo liso que não lia
bem. Eu já lia com fluência, mas mesmo assim a professora relutou. Já estávamos
bem perto do dia da apresentação e a outra menina ainda não evoluía nos ensaios,
então a professora não teve opção a não ser me escolher. Me saí muito bem no
evento e recebi elogios de professores e pais. (RIBEIRO, 2018, p. 11).

Esse relato expõe a necessidade de pensar feminismo e raça. As mulheres negras não
só estão disputando os espaços com os homens, mas também com as mulheres brancas,
porque ao longo da história sofreram inúmeras violências e silenciamentos. Por conta da carga
22

histórica de racismo, as mulheres negras são compreendidas como pessoas inferiores em


muitos aspectos. Jaíne Pereira (2016) afirma que:
O dia 8 de março, por exemplo, é considerado um dia de luta por conta daquela
greve das trabalhadoras de uma indústria têxtil de Nova Iorque em que as
mulheres(brancas) foram fortemente reprimidas pela polícia e muitas morreram.
Elas lutavam para assegurar melhores salários e o mínimo de garantias durante a
execução do trabalho, motivos mais que justos de reivindicação. Mas as mulheres
negras, por seu turno, ainda eram escravas aqui no Brasil, visto que a "abolição" da
escravatura só veio, oficialmente, no dia 13 de maio de 1888 quando a princesa
Isabel promulgou a chamada Lei Áurea. É importante dizer que essa lei não
assegurou nenhum tipo de assistência para as/os escravas/os alforriadas/os. Este
fator fez com que a população negra dessa época fosse absolutamente escanteada.
Todos esses acontecimentos reverberaram de maneira significativa na posição
econômica-social que é relegada às mulheres negras na atualidade e na forma
hipersexualizada como elas são lidas socialmente. (PEREIRA, 2016, p. 4).

Para que haja equidade entre as mulheres dentro e fora do feminismo é preciso ouvi-
las. Ao longo da história os homens brancos tiveram suas vozes e teorias valorizadas. Até
mesmo quando falaram sobre as mulheres. É preciso ouvir para que se saiba a direção das
lutas e as questões entre as diferentes mulheres. Podemos levar em consideração que mulheres
negras e brancas, pessoas LGBTS, nunca serão ouvidas como um homem branco pois
vivemos em uma sociedade sob poder do patriarcado e da branquitude. (RIBEIRO, 2018).

O feminismo falhou em relação a questões de raça, por isso, as mulheres negras


tiveram e permanecem tendo a necessidade de evidenciar suas pautas sobre o racismo.

Exercendo a consideração entre o modelo de feminilidade e as mulheres que estão nos


serviços substitutivos ao manicômio, faz-se também necessário o seguinte questionamento:
são também essas mulheres louváveis? Tais mulheres não estão dentro do padrão de
feminilidade, não são tidas doces — sendo vistas como perigosas — e em grande maioria não
são brancas, são em maioria mulheres negras.

Como disse Sojourme Truth, mulher negra, escravizada e estadunidense no Women’s


Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851:
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em
carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor
lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a
saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou
uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei
a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma
mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde
que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma
mulher? Eu pari 3 treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e
quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E
não sou uma mulher? (TRUTH, 2014, não paginado).
23

Retomando nossa questão apresentada de saída, nos cabe refletir sobre o fato de que
mulheres negras, usuárias da rede de saúde mental atendida por algum CAPS com ou sem
histórico de internação em Instituições manicomiais sofrem vários tipos de violência.
Assim sendo, o feminismo, a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica não poderão
ser verdadeiramente libertadores se não possibilitarem que todas as mulheres negras falem por
si mesmas. Como dizer que há liberdade de fala e garantia de direitos, se as mulheres negras
ditas loucas não encontram espaço de fala nos lugares que teoricamente as defendem e
protegem? Algo falhou e precisa ser mudado: elas precisam ser urgentemente ouvidas e não
somente seus gritos e prantos pela dor e morte previamente garantidas pelo Estado.
Apontar, portanto, para a falta de debate em relação as mulheres negras que não se
restringem ao feminismo, esse furo acontece em grande escala na luta antimanicomial e em
espaços deliberativos, não só o debate sobre gênero, mas o de raça também. Ou seja, pontuar
que, se, por um lado, a pauta antimanicomial não adentrou o campo das reflexões do
feminismo, por outro, o movimento antimanicomial não incluiu em seu interior os debates
acerca de gênero e raça.
Em espaço deliberativos para as políticas públicas de saúde mental como o Conselho
Nacional de Saúde e o Colegiado Gestor em Saúde mental, não encontra-se nos websites essas
questões evidenciados.
Até mesmo no congresso da ABRASME (Associação Brasileira de Saúde Mental),
importantíssimo para as políticas de saúde mental, a palavra gênero apareceu nos eixos
temáticos a partir do terceiro congresso (2012)2. Mas, no entanto, no quarto (2014)3 não
constava. Retornando somente no quinto (2016)4 e continuando no sexto (2018)5, é importante
frisar que a palavra raça sequer apareceu nos eixos pesquisados.
Segundo, Damasceno e Zanello (2018, p. 452) isso acontece porque o mito da
democracia racial fez com que a sociedade brasileira como um todo esquecesse a ligação
entre racismo e a concepção de saúde.
Na legislação de Saúde Mental e em suas diretrizes as palavras gênero e raça também
não aparecem.
2
Disponível em: https://www.congresso2012.abrasme.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=623. Acesso em:
05 jul. 2019.
3
Disponível em: https://www.congresso2014.abrasme.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=721. Acesso em:
05 jul. 2019.
4
Disponível em: https://www.congresso2016.abrasme.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=816. Acesso em:
05 jul. 2019.
5
Disponível em: http://www.congresso2018.abrasme.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=410. Acesso em:
05 jul. 2019
24

Tais dados denunciam que a preocupação com as mulheres negras e a população negra
ainda é faltosa. Esta realidade nos faz colocar a seguinte questão: em um país marcado por
tanto racismo e misoginia, o debate no campo da saúde mental não pode se furtar a incluir em
seu campo a analise destes vetores e produzir políticas de acolhimento à população negra.
Levando em consideração a importância discursiva e reivindicando o espaço de fala,
faz-se necessário apresentar a Stela do Patrocínio, que foi uma mulher negra internada no
Centro Psiquiátrico Pedro II, por ter sido encaminhada em 1962 pela Delegacia de Polícia do
Rio de Janeiro. Foi diagnosticada com esquizofrenia. Em 1966 foi transferida para a Colônia
Juliano Moreira, onde ficou até morrer em 1992. Stela era solteira, gostava de óculos de sol,
caixa de fósforos, cigarro, Coca-Cola, leite condensado e biscoito de chocolate. (MOSÉ,
2009, pp. 14-15 apud ALMEIDA, BONFIM, 2018, p. 1).

EU ERA GASES PURO

eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo


eu era ar, espaço vazio, tempo
e gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó
eu não tinha formação
não tinha formatura
não tinha onde fazer cabeça
fazer braço, fazer corpo
fazer orelha, fazer nariz
fazer céu da boca, fazer falatório
fazer músculo, fazer dente
eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
fazer cabeça, pensar em alguma coisa
ser útil, inteligente, ser raciocínio
não tinha onde tirar nada disso
eu era espaço vazio puro (Estela do Patrocínio, 2009, p. 74)
25

3 CONCLUSÃO
Adentrando na importância de dizer e expor para a sociedade brasileira que as pessoas
assistidas pelas Políticas Públicas de Saúde Mental tem raça, gênero e classe, buscou-se com
o feminismo negro, mostrar que as estruturas manicomiais estão além dos muros do
manicômio, podem ser encontradas no discurso, na segregação espacial-urbana e no
silenciamento que as mulheres negras sofrem. O feminismo negro mostra que as observações
feitas no estágio, de que a maioria das mulheres ditas loucas, não por acaso são negras.
Portanto, atrelar o campo da saúde mental e as questões das mulheres negras deveria ser
primordial na luta antimanicomial e no manejo clínico dos serviços da RAPS.
Torna-se evidente que há necessidade urgente de que as Políticas Públicas de saúde
mental tenham suas práticas de cuidado direcionadas por raça e gênero. Vivemos em um país
que os índices de feminicídio e encarceramentos só aumentam em relação as mulheres negras.
As mulheres que vivem dentro dos CAPS, apesar de não se enquadrarem no modelo de
feminilidade construído pela ótica patriarcal também não se configuram dentro dos
paramentos do próprio movimento feminista. Tais mulheres precisam acessar meios de
reivindicar para si a garantia de direitos, que mesmo previstos por leis, por vezes não são
acessados.

Em relação à feminilidade, deve-se questionar as possíveis consequências desse


padrão na vida das mulheres negras e não-brancas, como isso tem gerado efeito na construção
de subjetividade em torno da concepção de sua existência enquanto mulher, não apenas em
sua autoimagem, mas também para a sociedade. Visto que a feminilidade é um construto
26

branco e colonizador, portanto hegemônico para validar a mulher enquanto gênero, pergunta-
se, como validar uma mulher negra dita louca se as condições da mesma fogem dos critérios
psíquicos e estéticos do que supostamente são uma mulher, dessa forma, elas então escapam
dos padrões do feminismo e da sociedade ocidental do que é ser um ser humano, acaba-se que
para as mulheres ditas loucas não há lar, não há fugas, não há álibis, não há proteção, não há
voz e escuta.

As diferenças entre o feminismo negro e o feminismo branco são muitas. As mulheres


brancas utilizam do feminismo como se esse movimento político fosse a grande salvação das
mulheres, como se mulheres fossem um grupo homogêneo – um grupo branco- no qual as
mulheres pudessem sofrer só com o sexismo, deixando de lado as questões étnico-raciais. O
feminismo para as mulheres negras é exaustivo e adoecedor, por serem obrigadas a terem que
mostrar aos homens brancos, mulheres brancas e homens negros, o que é a opressão que
sofrem, mesmo que no Brasil seja a maioria em quantidade populacional. Pelo o feminismo
ser um movimento político advindo da Europa, deixa-se de lado a centralidade da questão
racial que é primordial no Brasil, inclusive negligenciando os aspectos coloniais brasileiros.
Muitas autoras negras, que foram utilizadas nesse artigo, escrevem para que pessoas brancas
entendam o que é o racismo atrelado ao sexismo, criou-se um imaginário que para existir
validação da existência do sofrimento que as mulheres negras vivem, as feministas negras
precisam explicar o que é isso para as feministas brancas, essa lógica além de racista e
exaustiva, é desonesta, colonizadora e silenciadora, perder tempo explicando o obvio para a
minoria (mulheres brancas) sendo exaustivamente a maioria (mulheres negras) pode-se tirar o
foco de se manter viva em latência. Essas constatações são preocupantes, visto que, o
feminicídio das mulheres negras aumenta enquanto o das mulheres brancas diminui, é por
uma questão de sobrevivência de que se reivindica o grito da libertação de todas as mulheres
negras.
27

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