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m SETENTA E CINCO CRIANCAS QUE NAO-APRENDEM-NA-ESCOLA Teal 1. AAPROXIMACAO Esic trabatho origina-se das perguntas: quais as consegiéncias para a crianea, ao ser responsabilizada por ndo aprender na escola? coma reage a crianga de quem se diz ndo aprender na escola por ser doente? ‘A aproximacao destas questoes ooorren por mejo-de-uma pesquisa realizada em nove eacolas municipais, da Rede de Educago de Campinas) Nestas cscolaa, foram toras e as 40 professoras de primeira série do ensino fundamental, no ano de 1988. Foram entrevistados, também, 19 profissionais da Rede de Satide, abrangen- do médicos, psicdlogoe e fonoaudislogos. As entrevistas tinham por objetivo apreender as concepedes dos profissionais da educacao e da satide sobre escola, processo ensino-apren- dizagem, fracasso escolar, papel dos profssionais ¢ das instituigdes de educagao ede sate at Sinteticamente, pudemos constatar, mais uma vez na histéria recente da pesquisa educacional, que todos, independentemente de sua érea de atuagio e/ou de sua formagdo, centram as causas do fracasso escolar nas criancas e suas familias. A instituicdo escolar 6, na fala destes atores, praticamente isenta de reeponsabilidades. A escola, o sistema escolar sao sistematicamente relegados a plano mais que secundario quando falam sabre © que consideram causas do fracasso escolar. Do mesmo modo que todas referem causas centradas na ctianga, todos referem problemas biolégicos como causas importantes do ndo-aprender na escola. Na opiniao destes profssionais, os problemas de satide das criancas constituem uma das prineipais justifcativas paraasituagao educacional brasileira. Dentre os problemas citados, merecem destaque a desnutrigao, referida por todos, tanto da educagdo como da saiide © as disfungées neurol6gicas,referidas por 92,5% das professoras e 100% dos profissionais de ‘satide (médicos, psic6logos e fonoaudiélogos). ‘Aidentidade das opiniges dos profissionais da sade e da educacto € tao intensa, nesta questo, que ndo se consegue identifcar a formaglo de quem fala, a partir da andlise da fala, mesmo quando o assunto se refereespecificamente a problemas de satide que, na 1. Aanalise destasconcepoées dos profisionsis das areas de educacaoe de sade esta ape sentada no iro ‘Preconeios no cotdiano escolar Ersino @ medicaizagda de Cecilia AL. Collares © Maria Aparecida A. Moysés, publcado em 1996, AINSTTTUCIONALIZAGAO INV epinido do entrevistado, impediriam ou dificultariam a aprendizagem. & importante ressaltar que esta identidade ocorre as custas de opinides genéricas, eem embasamento cientifico, que apenas refletem preconceitos estabelecidos. Apenas como exemplo, como identificar, nas falas abaixo, qual a da professora, a do psicélogo, a do médico e a da fonoaudidloga? Hiperative & cranga com preblomaneucléico. Néo péa, nada. a eats, distaldas, lspeses, Income." Distexia 6 uma doonga neurol6gica, que se caractorza pela grande dfculdace em aprender & ler eescrever ‘Asceiangasndo conhecem, no dsciminam, néo tim seqlnciadeldbias,ndotim coordenacéo motor, Ahiperatvdade & uma doonca neucgica que difculta 2 aprendizagem. Ou, ainda, quem é 0 médico, quem é a nutricionista e quem é a professora? ‘Arma aimentacdo 6 a causa do fracasso escola, porque a deenutrigBo afta o céebro ‘As conseqéncies de desnutico, come ¢ de se esperar, S60 desastosas para futuro escolar, {que est tom sua cepacidade mont lesada ‘Uma cianga desnutida a nasce com seqdelas, com pou Poterdal, na recuperando conde (¥esnecessavias a um melhor deserwolimanto ds aprendzagem. ‘Todas as falas sao de todos, na medida em que no se diferencia. Qualquer profissional poderia ter falado cada uma delas. Na concepedo cos profissionais ouvidos, seja da educagao ou da satide, sade ¢ doenca emergem como estados absolutizados, sem modulacées, sem mediagées, Falam de entidades as mais complexas e controversas,? com uma aparente tranquilidade que preocupa, ainda mais sc sc lembrar que se trata de profissionais de nivel universitario, Consicerados especialistas nos assuntos em pauta. A andlise um pouco mais aprofundada dos discurses permite entrever que @ trangiilidade advém do fato de que refletem preconceitos e formas de pensamento cristalizadas, e néo conhecimentos cientificos, como seria licto supor. Este ¢0 panorama geral em que se desenvolveu este estudo; é necessario conhecé-1o, ‘ainda que superficialmente, para melhor contextualizé-lo. B a partir deste quadro que prossegue @ aproximagao com nosso objeto de estudo: criangas que néo aprendem na ‘escola. Nas entrevistas com as professoras, todas realizadas no primelzo bimestre letivo, foi erguntado se ja tinham condicdes de saber quais alunos, em sua classe, seriam reprovados, 20 final do ano letivo, Todas responderam afirmativamente, concordando em indicar, no 2. Foge ao escopo deste trabalho a dscussaoeapectic das reaches entre desmitri a fxessao escolar, ‘stim como toda a controvérsia a reapeito das disfungies neutolgcse. Pasa maior aprofundamento, ‘emetemos.adols textos: “A histria nao contada dos cisthirbios de aprendizagem’,publicadern Caderon CCEDES28, 1992 e*Aprofundando a decussto das relagtes ese desnutic,fncassoe scoleremerende", {nc Bm Aberio n° 67, 1996. Amos sa0 de autora de Maria Aparecida A. Maysés « Cecilia A L, Collars, EDITORA MERCADO DE LETRAS Jasse, quais alunos seriam retidos ¢ 2 causa desta retencao, Ao final do ano infrontados com os resultados oficiais da escola, de modo que oras como icoes de serem aprovadas ao final do ano, Encerrado o ano letivo, 651 alunc rados (60,5%), incluindo 526 euja retengio jé havia sido pre , 94,1% das criancas que as professoras previram como futuras fracassadas real- ente fracassaram na escola, o que permite supor que ndo se est lidando com previsio, ss com determinagao de desempenho escolar. Olhando os mesmos dados por outro Jo, permite perceber que, entre as criancas reprovadas, 80,7% ja tinham sua reteng3o. erminaca no inicio do eno, Buscando as formas de pensamento subjacentes determinapao dos alunos que © e dos que ndo Irdo aprender, pediu-se que a professora falasse, mais detidamente, cada crianga, indicando os motives pelos quais considerava que nao havia condi «que aprendesse, até o fim do ano. Assim, pudemos nos aproximar do que sos causas ‘aprender na escola, na percepeao das professoras, Entre as cauisas apontadas para as $59 criangas que nfo iriam aprender, 541 Szam-se na propria crianga, as vezes resvalando também para a familia. Para 18 cas, as catisas estariam centradas exelusivamente em problemas referentes a familia, ‘penhuma crianca, apontou-se causas de ordem pedagégica. Para os professores, as de as criang .prenderem na escola so externas A instituigo escolar, devendo ‘buscadas na crianga, e em sua familia, Assim, o deslocamento de uma questo Stucional, politica, para o plano individual, péde ser percebido tanto nos momentos em. ‘se abordavam questdes educacionais em um plano mais amplo ¢ genérico, como do se falava de uma erlanca em particular. Aqui, também, destacam-se as causas de = bicl6gica: para a maioria das eriancas apontadas como reprovadas 20 final do ano, sficativa era elguma doenca que, na opinigo da professora, impedia ou dificultava sua eadizagem. Merece ser destacado que varias das criangas escolhides jé haviam passado por profissionais de eattde, ja tendo recebido um diagnéstico. esta forma, aproximamo-nos um pouco mais, 10 objeto de estudo, tendo em 8 perguntas iniciais: fol delimitado um unive ‘para quem jé definido, desde o inicio do ano, que niéo aprenderiam na escola, por um problema ido a elas mesmas. 7 Quais os motives pelos quais se pode determinar a nao-aprendizagem destas cas? Quais as causes apontadas? Sao reais, as criangas realmente apresentam 08, 1as spontados? De outro lado, os problemas citados podem ser considerados do nao-aprender? Estas as perguntas que decorriam desta aproximagao inicial com o objeto, A maloria das causas apontadas situa-se no campo de satide/docnga, com grande s biologicos, com destaque para a desnutricéo eas doencas neurologicas. orizagao das cauisas da nao-aprendizagem na primeira série do ensino fundamental, isto é, das catusas da ndo-alfabetizagao, segundo a percepgao das professoras, resulta no quadro apresentado a seguir, A categoria “imaturidade” merece alguns comentarios. Na fala das professoras, pode set percebido que, ao afirmarem a imaturidade de uma determinada crianga, ora referem se a0 plano biologico, mais precisamente neurolégico, ora ao plano psicolégico, ora a planos indefinidos. Por isto, foi necessario criar esta categoria, embora deva ficar claro que ela apresenta intersecrdes com as categorias “biol6gico” ¢ “emocional’ (CAUSAS DE NAO-APRENDIZAGEM LOCALIZADAS NACRIANCA, SEGUNDO A OPINIAO DE PROFESSORES | Biologico eal 1- Desnutigéo 2. Doonga Neurolégica Disfungo Cerebral Minima Distarbios de Aprendizagom Incaordenagae Motera Doenca Neuroligica (outa) 3-Defleiéncia Mental 4- Outra Doenga 1 Imaturidade I1- Emocional IN. Motivagao V Proatiso Vie Crianga fica sozinna em casa Vil: Outre Moto Retomando nossa pergunta inicial, como reage a crianca de quem se diz nao aprender na escola por ser doente?, para este estudo interessam, privilegiadamente, os alunos @ ‘quem foram atribuidas doengas, de ordem biolégica ou emocional e, ainda, a imaturidade. Foge ao escopo deste trabalho dimensionar quantas criangas podem ser enquadra- das cm cada uma das categorias, pois seu objetivo néo consiste na mensura¢aoquantitativa do fenémeno em questo ~a atribuicdo ao aluno da responsabilidade por sta ndo-apren- dizagem na escola ~mas em apreender o que este fenémeno representa para cada crianga em particular, para sua vida, suas expectativas e possibilidades de realizagdes. Tendo em vista este objetivo, consideramos ser suficiente saber que a maioria das criangas se inci nestas trés categorias: “biologico”, “emocional” ¢ “imaturidade” Calvino (1985) conta que o senhor Palomar, em pé, frente ao mar, propée-se a estudar uma onda; ndo as ondas, em seu movimento, suas caracteristicas de, sendo diferentes, serem sempre iguais a uma outra onda, mas apenas uma onda, uma onda ¢ basta, isolando-a das demais, para registrar todos scus aspectos objetivamente, mensura. Ja, em todas as dimensbes, enfim. E prossegue: EDITORA MERCADO DE LETRAS [Nao fora esta sua impacitneia por aleancar um resultedo completo e definitive através de sua operacdo visual, o observar das ondaa seria para ele um exercicio muito repousante poderia salvéo da neurose, do enfarte € da dlcera gistrica. E talvez, pudesse ser essa a chave para dominar a complexidade do mundo, reduzindo-a ao: ‘to tensos como quando chegara, ¢ ainda me pp. 14-15) © proximo passo na aproximagao do objeto te, algumas destas eriangas para serem avaliad: sunava-se a, primor- .ente, considerando a causa apontada para uma determinada crianca, investig sdoenca realmente existia e se podia ser considerada responsével pelo néo-aprender. ‘A escotha das criangas que seriam avaliadas clinicamente, em um Centro de Satide, baseada nas entrevistas dos professores. O primeiro critério foi englobar as ues Setegorias citadas, em suas variagSes possiveis. Bm cada categoria, foram selecionadas as Siancas sobre as quais as falas das professoras fossem as mais expressivas; outro critério incluir eriangas das nove escolas. Preenchidos os eritérios anteriores, tentou-se, sempre possivel, incluir eriangas de todas as salas de aula. Inicialmente, foram selecionadas 80 criangas, através de processo de escolha “Sptencional, sem qualquer preacupagao com técnicas de amostragem estatistica. O ntimero a serem estudadss nao foi considerado relevante, nem definide a prior, se a 80 criangas em um processo de escolha daquelas que se sentiu mais ‘a partir do discurso das professoras. Se houvesse necessidade, ao fim da “exaliacdo destas 80 eriancas, seriam selecionadas outras, até que se atingisse um carater 2m novos dados, isto é, até que cada consulta representasse a repeticéo do “eonjunto de todas as anteriores. No inicio do ano letive de 1989, tentou-se localizar nas escolas 2s 80 crianca -sclecionadas. Destas, 5 haviam abandonado a escola no ano anterior, ndo sendo facilmente Bealizaveis. Det 10 original, iniciando o estucio com 75 criancas. Esta opcdo pode ser justficada pelo fato de que, durante o processo de selecio, quando se ‘sentia dificuldade em decidir por uma ou ottra crianga, referentes a uma mesma categoria, iiculdade que decorzia do préprio método de selegao adotado, ao se assumir a subjetivi f rabava-se por incluir ambas. Daf, sabia-se que 42s 75 criancas abrangiam todas as categorias de anélise pretendidas. Além disto, deve-se estacar que as 80 criancas representavam um nimero nem migico, nem técnico, mas lepenas as que haviam conseguido sensibilizar mais a pesquisadora. escola, 0 contato fot feito diretamente com cada uma das criangas, sem qualquer ‘espécie de intermediacdo pela escola, Localizada a crianca, era explicado que a professora. 0 ano anterior havia informado que ela apresentava dificuldades para aprender a ler € eescrever; se houvesse interesse dela ¢ de seus pais, ela passaria por uma avaliacdo médica fm um Centro de Satide. Encaminhava-se aos pais, por intermédio da crianca, uma correspondéncia em que se explicava o motivo da consulta, a data e hora marcadas, © side e sen endereco, assim como 0 nome da médica que faria a consulta. Solicitava-se que os pais levassem & consulta todos os comprovantes de satide de seu filo carteira de nascimento, cartdo de vacinas, eartdo de peso e altura, matricula em servico Ge satide, exames laboratoriais, orientacdes especificas etc...|. Nesta correspondéncia, era ais fomecide o telefone do Centro de Satide e solicitado que, caso nao pudessem comparecer no horério marcado, entrassem em contato para que fosse agendado novo horério. Das 75 criangas, compareceram & consulta agendada 67. Os pais das & restates entraram em contato, solicitando a remarcacao da consulta para outro horirio, com comparecimento de todos. Portanto, todas as familias levaram seus fihos a consulta :médicas. Este fato contradiz as freqiientes afirmagdes sobre ignorancia dos pais, descaso dda familia, em relagéo as condigdes de satide dos filhos, reforcando que as falhas dos servigos de satide devem ser explicadas por fatores internos e nao por pretensas deficiencias da populaeao, que nao saberia usar ou valorizar adequadamente os servigos. Cada consulta demorou aproximadamente duas horas. Para muitas criangas, @ avaliagio no foi possivel em apenas uma consulta, sendo marcados retornos sempre que ‘se gentiu necessidade de aprofundar a avaliacao. A consulta realizada incluia todos os pasos classicos de anamnese e exame fisico. Bra dada, entretanto, enfase especial na recuperagao da historia de vida da crianca; em sua histria de desenvolvimento neuro-psico-motor e cognitivo; nas relagoes da crianga e desua familia com a instituieao escola; nas expectativas e opinides sobre ofracasso escolar, assim como suas repercussbes sobre & crianca e a familis. Também se tentava recuperar ‘0s caminhos ja percorridos pela crianca no sistema de sade, a partir de sua ndo-apren- dizagem, com diagnésticos, procedimentos, tratamentos, resultados. Durante toda a consulta, a crianga era o interlocutor privilegiado, sendo ouvids a todo omomento, Alias, deve-se ressaltar que este procedimento se inscreve na preconizagéo do que seja uma consulta médica adequada para a crianca em idade escolar. Preconizado, embora raramente feito. Estabelecido 0 vinculo com a crianca, tentava-se avaliar sua auto-estima ¢ suto- ‘imagem, por meio de desenhos e jogos. Reslizava-se, ainda, uma avaliacdo de seu grau de alfabetizacio, através da solicitagso para que lesse e escrevesse, além de realizar contas aritméticas, Pelo préprio objeto do trabatho, eriancas que nao-aprendem-na escola, a avaliacao de desenvolvimento neuropsicomotor e cognitivo constitui um elemento fundamental para aanilise, 2. RESPEITAR OU SUEMETER. A AVALIACAO COGNITIVA DE CRIANCAS Frente a frente com as eriangas, a partir da decisio de avalié-las, do ponto de vista, intelectual e neuromotor, como avalié-las? Como avaliar uma crianga? Com quais instru- ‘mento? A partir de que parametros? Portando que conceprées teéricas sobre normalidade? Em outras palavras, olhar o qué, a partir de que lugar? A resposta meis facil, © uso de instramentos tradicionals, testes padronizados, estava, a priori, descartada por nossa experiencia prévia, tanto em atividades profissionsis, propriamente ditas, como na docéncia. Os testes padronizados trazem alguns equivocos conceituais decorrentes de sua propria concepedo: a erenca na possibilidade de se avaliar o potencial intelectual de uma ‘pessoa em particular. EDITORA MERCADO DE LETRAS Acreditamos que este é 0 ponto central deste debate, B possivel avaliar 0 potencial sal de alguém? Afastemo-nos do assunto inteligéncia, O distanciamento do objeto em controvérsia tc certa proteeio emocional, que pode nos ajudar a aprender vertas nuances com, facilidade, com menores conflitos. Centremos a reflextio na questao especifica do cial. & possivel avaliar o potencial de alguém? Como modelo de entendimento, podemos tomar algo facilmente mensurdvel no ser 30, desprovido de controvérsias: @ estatura, possivel avaliar 0 potencial de estatura alguém? Qual o significado de potencial de estatura? A heranca genética dessa pessoa, isto ‘© maximo de altura que ela podera ating, se o ambiente em que vive, sua qualidade de suas condigées de satide ete... propiciarem tal condipao que seja possivel que essa nea genética se expresse totalmente. Em outras palavras, uma situagéo em que 0 =biente fosse, teoricamente,* tao adequado que o gendtipo (heranca genética) fosse iado, em perfeigao, pelo fendtipo (expressio da interagdo entre o gendtipo eo ambiente) © que representa, entéo, a estatura de uma pessoa? Seu fenétipo, ou seja, a 10 de seu potencial 5 inegavel que esse potencial constitui um substrato essencial para a altura da essoa, porém a altura final ndo seré jamais um reflexo Linearmente univoco do potencial. 0 saber quantos milésimos de centimetros eu perdi naquelas trés semanas em que tive aricela e no queria comer nada? Quantos centésimos perdi naquela primeira desilusio ‘Smnorosa, inesquecivel, em plena adolescéncia? Impossivel saber. A medida a que temos acesso & apenas a expressdo do potencial, jamais o potencial. Mesmo quando se fala em estatura, sem diivida uma medida mais fécil. Nao s6 facil, como ‘einda com outro elemento que poderiamos chamar de elemento de simplificacao: 0 potencial Ge altura apenas pode se expressar em uma direco, um tinico sentido. A pessoa cresce ou nao cresce, em dimensao tinica, linear. Por que estamos falando aqui em estatura? Para que se apreenda que, mesmo aguilo que seria mais tranqailo, nao temos acesso ao potencial das pessoas, apenas & expresso do potencial. Iniciemos 0 retorno ao objeto central de andlise. Porém, paulatinamente, fazendo uma parada em um ponto intermediairio, pois ainda é necessério certo distanciamento. Pensemos na avaliagio da coordenagéo motora, por ‘que inteligéncia, porém ja mais complexa que altura. ‘stamos admitindo que o que avaliamos nao é o potencial de coordenacao motora, fe é que podemos chamar assim, mas a expressio desse potencial, a coordenagao motora ‘gue se nos apresenta. Se quisermos maior rigor, poderemos dizer que ndo temos acesso ao anos nos referindo a uma possblidade apenss eérice, ols a qualidade de condigio de vida do ‘homens, a qualidade do armbiene, est, abidamente, detente deste pamar. Sem divide, a qualidade 4e vide da humaniade tem melhorado constantement, foto que se reflte no conhecido aumento de estaruraa cada gerapdo, na msioria dos grupos aociais, denonsinado aceler Enwetante, anda estamos Jonge de sequercoptar que altura das pessoas esija se aproximanda de se, potencial genético, ITUCIONALZACKO INN desenvolvimento neuromotor (que alguns autores chamam de maturidade neurologica), base para a cootdenagdo motora, mas apenas as formas de expresso desse desenvolvi- mento. Ressalte-se que agora ja estamos falando em formas de expresséo, enquanto pera estatura frisamos que se tratava de medida unidimensional. Por que a diferenca? Porque ‘a mesina coordenagao motora pode-se expressar em infinitas atividades do homem, sem hierarquia “neurcl6gica” entre clas, apenas diferentes em relagdo ao significado pratico da atividade e ao valor social atribuido a ela. Concretamente, qual a diferenca entre desenhar com lapis e papel e construir uma, pipa? Bm termos de coordenaeao viso-motora, nenhuma.” Diferem pelo uso que a criangs pode fazer da pipa e da cépia. Diferem, principalmente, porque necessitam de outros rrequisitos para sta execuo, nao apenas da coordenacao viso-motora. Para a pipa, por ‘exemplo, a crianga deve ter uma boa diseriminagao visual para cores, pois nao se costuma ‘encontrar pipas com combinaces aberrantes de cores, do ponto de vista estético, Porém, 0 requisito essencial que queremos destacar aqui ¢ a necessidade de ja saber fazer. Ou, de ter aprendido. Uma atividade é ensinada, estimulada, quando € valorizada no grupo social, quando ‘se integra ao conjunto de valores sociais, historicos, culturais, politicos, de um determinado grupo. Valores de classe. Para uma crianca fazer pipa, € necessario coordenaco viso-motora e pertencer @ ‘um grupo em que tal atividade sea valorizada, onde se fazem pipas, onde se ensina a fazer pipas, onde fazer bem pipas é elemento diferenciador. Para uma crianea copiar uma cruz com lapis e papel, é necessario coordenacao vviso-motora e pertencer a um grupo social onde se escreve, onde se le, onde existem lapis ‘e papel, onde se ensina desde cedo a brincar com lapis de cor, com livros, onde ler ¢ eserever bem é elemento diferenciador, Em outras palavras, onde existe um contato intimo ¢ nao-traumatico com lapis e papel ‘Algumas criancas fazem pipas, outras desenham. Ambas com amesmacoordenagao ‘motora. Cada uma com expressées diferentes da mesma coordenacao. Expresses cuja aquisigao € estimulada, direcionada, por valores de sua pertenca social. Qual das duas atividades melhor representa a coordenacio viso-motora, qual deve ser eleita como parametro de normalidade? Nenhuma pode ser considerada a methor, na medida cm que ambas séo apenas expresses diferentes, sem hierarquia entre si, de uma mesma coordenagao, & qual nao se tem acesso. ‘Ao se preconizar 0 emprego de testes padronizados para avaliar a coordenaca0, ‘motora, fica implicita que se acredita no accsso coordenagdo motora em si, 0 que permitiria identificar que uma das tarefas seria superior a outra, dentro de uma hierarquia neurologica, Como nenhuma tarefa fornece ao pesquisador - ou, ao profissional —a chave para esse acesso, podemos afirmar que se esté transitando nao mais pelo campo do conhecimenta, mas pelo terreno de opcoes, de escolhas do profissional. Seria razodvel, “1 Tanez fose mals sensato admitr a posibildede de que a constructo de pipa sea tarefa mais complexa do que copiar uma crue, portm pars os propSsios desta anslse podemos aesitar a equiraléncia, EDITORA MERCADO DE LETRAS e, supormos que essas escolhas abrangessem diferentes formes de expressio, isto &, ns testes elegessem desenhar uma cruz.com lépis e papele outros definissem que fazer pipa seria o parametro de normalidade. O carater idcologico da opcdo revela-se pela » de que as preferéncias sempre recaem sobre as formas de expressio encon- nas classes sociais privilegiadas, Existe, ainda, outro ponto provocative, quando se trata de desenvolvimento neuro- or, seja coordenagao motora, equilibrio dinamic ete... Quando se ave for 0 objeto desta avaliacdo, ndo se tem acesso ao objeto em si, sempre apenas as suas mas ce expressio. Entretanto, mesmo 0 acesso as formas de expresso do objeto pode indireto. Quando observamos uma crianca fazendo pipa, desenhando, eserevendo, ndo de bicicleta, correndo, subindo em arvores, o que vemos é exatamente isto: uma ica fazendo pipa, desenhando, escrevendo, andando de bicicleta, correndo, subindo = rvores. Nao temos a capacidade pretendida de observar sua coordenagdo motora, eeu. ibrio, sua discriminacdo visual ete... Temos acesso, basicamente, a setis movimentos; -amente, 0 que podemos avaliar diretamente resume-ee a movimentos. A partir dai, esta observacao direta dos movimentos, a luz de referenciais conceituais, deduzimos ‘camente a coordenagao, o equilibrio ete Perceber ¢ assumir os limites do olhar coloca limites & pretensao avaliatoria. Nao 1 de registrar que a néo-percepcao de limites costuma chegar a tal ponto 0s avaliadores ndo apenas acreditam em seu acesso direto ao objeto da avaliago como dia no acesso as intenodes de quem est sob avaliagao. Anotagdes sobre as intengdea de sendo avaliado, geralmente negativas, com destaque para a agressividade, sio eqllentes nos laudos, evidenciando a carga de juizos de valor incorporada a avaliagao, a0 Apos este breve distanciamento para espag ‘podemos retornar ao ponto central: a avaliagao intelectual. Se se acredita na impossibilidade de acesso a0 potencial de objetos mais facilmente statura, ou mais facilmente avaliaveis, como 0 equilibrio, a coorde- acio motora, como se pode pretender avaliar o potencial intelectual de uma pessoa? © instrumento padronizado, 0 teste, fundamenta-se na concepeao de que uma “determinada forma de expresado constitui a chave de acesso ao potencial. Nao é relevante, sseste debate, se se acredita ter acesso direto ao potencial ou que uma determinada forma de expresso scja superior as demais; ambas as crencas apenas justificam o fato de que o teste clege uma forma de expresso Como a tinica que merece ser considerada, Isto vale tanto para os testes mais simples de equilibrio, como para os mais sofisticados, no campo das fungves intelectusis superiares. Exatamente o campo onde o conhecimento € mais complexo, mais controverso; © que diferencia o ser humane das outzas espécies, ‘Um dos muitos pontos polémicos nas discussdes sobre desenvolvimento intelectual reside em saber se o conceito de potencial, no sentido do maximo que pode eer atingido, é aplicavel as fungdes intelectuals do homem. Isto €, se existiria uma inteligencia maxima ‘que uma determinada pessoa poderia desenvolver, este méximo sendo determinado Biologicamente, por scu patrimonio genético; por seu genétipo, enfim. Os autores que defendem a determinacso genética da inteligencia parecem descon- Siderar o fato de que o pensamento esté intrinsecamente vinculado & eco e, assim como © conhecimento cientiica, suas possibilidades de avanco esto definidas e limitadas, para AINSTITUGONALIZACKO INVISNEL ‘amaioria dos homens, pelas necessidades ¢ possibilidades concretamente colocadas a cada, momento histérico, Assim, pode-se imaginar que, para a humanidade em geral, exista um maximo de desenvolvimento intelectual que pode ser atingido, porém um miximo que € determinado pelas condigdes concretas daquela sociedade, em termos historicos, culturais edo proprio grau de desenvolvimento intelectual. Um maximo possivel que ¢ determinado, em tiltina instancia, pelo modo de producdo. Assim, a cada momento histérico, o maximo ppossivel de inteligencia que pode ser desenvolvida seria necessariamente menor que 0 aximo possivel do momento subsequente. O proprio avanco do pensamento, do conhe~ cimento coloca novas possibilidades, derruba limites anteriormente postos eo desenvolvi- ‘mento intelectual, 0 desenvolvimento de uma erianga no ultimo quiingiténio do segundo milénio nao pode ser comparével ao de uma que tenha vivido ha 40 anos. Nao necessariamente cla € ‘mais inteligente, do ponto de vista genética (pois ¢ dbvio que nao se pode negar 0 substrato blolégico da inteligencia), apenas esté viendo em um outro espaco social e geografico, outro cespaco intelectual, que Ihe permite um outro patamar de desenvolvimento. Da mesma forma que nao se pode comparar criancas que vivern em classes e grupos seciais com valores distintos, mesmo que vivam em um mesmo espago geogréfico © temporal, néo se pode pretender comparar criancas que vivam em espacos temporais, ¢ portanto histéricos e sociais, distintos. B vice-versa, [Nao se pode ignorar queem plena virada do século, existem criancas cujas condigdes concretas de vida estao mais distantes dos beneficios produzidos pelo desenvolvimento cientifico e tecnolégico atuais do que outras criancas que viveram ha décadas... © que nao significa que sejam menos inteligentes, apenas apresentam um desenvolvimento cognitivo conformado por suas necessidades e possibilidades concretas, pelo bloqueio de seu acesso aos bens culturais. Nao s¢ esta pretendendo tecer elogios pobreza, ao contrario. O que se est colocando é que esse maximo de inteligéncia possivel 6 construido hist6rica c socialmente. Isto € totalmente diferente de se afirmar que haveria uma determinagao genética, linear, exclusiva, desse maximo ou, como se costuma falar, do potencial intelectual. ‘A nogéo de determinacdo, tao cara a uma concepcdo determinista de mundo ¢ de ciéncia, traz em si, de modo inerente, uma rigidez acerca das relagies de causa c efeito que ‘nao meis se sustenta nos dias de hoje. Atualmente, em todos os campos de conhecimentos, inelusive no campo da fisioa, 0 conceito de verdade universal ¢ altamente questionado, constantemente negado pelo embate entre teorias e mundo empirico, sendo forcoso reconhecer que tuma lei da fisioa, que explique um proceso que ocorra em determinado fespaco e tempo, poderé ndo ser adequada ao mesmo processo ocorrendo em outro espaco fe tempo. Acreditar que um fator seja determinante, ou causa, de outro fator, le modo linear fe constante, independentemente das condigdes em que ocorre o fendmeno, como se este fendmeno pudesse acontecer isolade de tudo equilo que esta acontecendo no mesmo ambiente, muitas vezes sem ser nem mesmo percebido, considerado inaceitavel, por ‘muitos pesquisadores de renome em todas as areas de conhecimento, especialmente na fisica quantica. Assim, 0 campo de conhecimentes que aparentaria ser o mais duro entre ‘as ciéneias exatas, também conhecidas como ciencias duras, revela-se como um dos que mais precoce e intensamente reconhece @ necessidade de assumir a flexibilidade das proprias teorias, para dar conta de entender 0 mundo em que vivemos, mundo que, 20 ‘mesmo tempo que nos transforma, ¢ transformado por nossa simples presenga, No mestio EDITORA MERCADO DE LETRAS momento em que as ciéncias do mundo da natureza (ciéncias exatas), consideradas por ‘smitos como paradigma de ciéncia, questionam varias das concepgdes em que vem se -slicergando, entre elas a de determinacso, também as ciéncias do mundo da vida (bioldgi- € as cincias do mundo dos homens (eiéncias cociais) passam pelos mesmos questio- ‘eamentos acerca de suas concepedes, Assim, no terreno da biologia, os campos da genética © da biologia molecular estiio, a cada novo avanco de conhecimento construido, tecendo sais perguntas que respostas, fazendo desmoronar conhecimentos até pouco tempo sonsiderados fundamentos do proprio campo, como é 0 caso do préprio conceito de gene: ‘© seqdenclamento do genoma humano, longe de representar o deciframento do cédigo enético, terminou por destruir o conceito de gene fixamente estruturado c molecularmente bem definido. Se a flexibilidade torna-se conceito fundamental para as ciéncias exatas © ‘para as ciéncias biolégicas, sua importdncia & mais facilmente perceptivel quando se trata 4as ciencias socials, que tomam por objeto as relagées entre seres htumanos ¢ entre cles € © mundo em que vivem. E neste contexto, em que concepeses deterministas e biologizantes de cada aspecto a vida do ser humano tém sido desmentidas pelo préprio conhecimento cientifico em que prctensamente se fundariam, que defendemos que a avaliaco cognitiva de uma crianca deve respeitar suas condigdes concretas de vida: assim como o desenvolvimento da possibilidades de pensamento é historico, 0 olhar dirigido as possibilidades de pensamento de uma crianca necessita ver historicamente focalizado. A berreira imposta, cultural ¢ politicamente, as possibilidades de desenvolvimento de criancas normais ¢ que deve ser objeto de analise, na busca ce modes de enfrentamento © superagio e ndo o scu produto ~ a diferenca construida entre criangas ~ transformado ‘em mais uma justificativa para a desigualdade social. A desigualdade, as diferencas de possibilidades de pensamento, a barreira imposta enfim, no so fendmenos naturais, nao ‘pertencem ao mundo da natureza mas 20 mundo dos homens. A naturalizacdo da

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