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4 A lirica romantica Um novo tempo. Uma nova concepgao de poesia? A sociedade burguesa pds Revolugao Francesa cria os primeiros artistas profissionais. Ao mesmo tempo — € paradoxalmente — data dai também a inadaptacao do artista, tornado indtil num mundo regido pelos critérios do utilitarismo e pelo avanco da ciéncia, da industria e da tecnologia. “Tu que tudo alteras com teus olhos pene- Irantes./ Por que assim rapinas 0 cora¢ao do poeta/ Abutre, com tuas asas que sao realidades chas?” lamenta, em 1829, Edgar Allan Poe, num soneto dedicado a ciéncia, sendo ele um dos primeiros a pressentir a crise que sé explodiré mais tarde, com os modernos. Diante dessa realidade, onde o trabalho da mao tem a maquina como concorrente, o poeta, at6nito, ainda nao se deu conta de que sem a mao a maquina nao pode funcionar. O poeta pressente mudangas, impactado. Uma das saidas, talvez a mais procurada pela maioria dos poetas, é se instalar como um saudoso dos tempos antigos — o caminho da evasiio romantica. O individua- 30 lismo burgués, atomizando a antiga unidade, € traduzido, pelo poeta romantico, por agudo subjetivismo emocional: a fuga para o mundo interior € um meio de autodefesa. Por esse caminho a poesia romantica pode correr o risco de transfurmar-se num mero balbucio emotivo, sufo- cado na esfera pessoul, ¢ © texto seria apenas expressao dessa emotividade (a fungao emotiva da linguagem). A tinica maneira de reacender a chama da linguagem criativa era entdo incorporar, na poesia, o mundo e as Circunstancias da modernidade. Esse privilégio, no en- tanto, ndo o puderam assumir todos os poetas romanticos, mas apenas alguns que, dessa forma, ja estabeleceram didlogo com o Simbolismo ¢ com a poesia moderna. Quando Edgar Allan Poe se declara “out of space/ out of time”, sua resposta, sendo a de um poeta que reflete sobre a criagao poética, enfrenta o desafio feito pelas novas técnicas de reprodugdo e novas tecnologias, capazes de multiplicar as linguagens. Era preciso procurar atentamen- te, no proprio material verbal, as potencialidades de uma expresso que, na trilha da antiga alianga entre palavra e som, desde sempre valorizada pelos bons poetas, pudesse dar novo perfil a linguagem da poesia. O poeta romantico, de um modo geral, ainda tenta manter © antigo mito literério que exalta a figura do poeta. A lucidez de um Edgar Allan Poe nao contagia a maioria dos poctas romanticos, que prefere tralar a crise que se anuncia como uma questao de foro intimo, lamen- tundo a profunda solidio do “eu”. Esse “eu”, assim como © proprio artista na scciedade, pretende manter seu lugar assegurado, e o faz através da valorizagéo do sentimento e da emogio individual. O periodo romantico, coincidindo com um agudo senso do individuo, altcra o conceito do sujeito classico, submetido 4 convengio universalista do “logos” — 0 “penso, logo existo" — que definia o “ego” da tradigéo 3 partir do século XVIF inicia-se clissica. De fato, j; imento da indivi- esse processo de valorizagdo ¢ 1 dualidade: das pessoas, das diferentes épocas historicas, de cada contexto e cardter nacional. Naquele momento, ji era possivel ter consciéncia da diferenga que separava a época grega da época contempo- rinea. Mas antes mesmo da explosao romantica, ja du- rante a primeira metade do século XVIII, a teorizagao clissica vinha sendo deixada de lado por leitores privile- giados. Com 0 advento do Romantismo, a poesia nao se justi- fica mais como imitagio (o conceito neoclassico da “mi- mesis” aristotélica), mas como expressdo inspirada de uma alma. O poeta sera comparado a um organismo vivo: esta, portanto, delineada uma verdadeira revolugdo no conceito de poesia e, dentro da nova ordem de valores, a poesia lirica tera lugar de destaque nas produgoes e refle- xOes estélicas. Tal lugar de destaque é resultado previsivel da valo- rizagdo da produgio literaria como expresso individual, da pessoalizacdo do poético, o que implica também numa revisio da classificagéo classica dos géneros literdrios. conhec Entre os criticos que mais contribuiram para 0 novo rumo do pensamento critico esta o pré-romantico alemio Johann Gottfried Herder (1744-1803), considerado como © primeiro que rompeu com o pensamento neoclassico evropeu. Herder repele a classificagao por géneros e, quando fala em epopéia, drama e poesia lirica, € capaz de fundir o que, em Arisl6teles, cstava rigidamente sepa- rado. Mas o mais interessante para a nova idéia de lirismo & a modernidade de sua concepgio da poesia como lin- guagem de sons, tons e metro: uma concepgdo que, embora 32 moderna, acaba sendo uma recuperagdo da unidade origi- nal de poesia e musica. Além do aspecto da cufonia da linguagem, Herder aponta a importancia da imagem, da analogia, e sua convivéncia, na poesia, com a fabula e o mito. Atente-se para o fato de que som, tom e metro é que sao os elementos propriamente liricos do poema. Herder teve discipulos como Novalis e Goethe. O alemao Novalis (1772-1801), poeta romantico mal compreendido em seu préprio século, langou reflexdes tedricas extremamente proximas de uma poética moderna, na medida em que, como mincralogista, estendia seu en- canto pelos processos quimicos para as combinacées ver- bais. Para Novalis a poesia lirica seria a pura expressado do poético, do mundo da magia, embora, nesse mundo magico, entrasse o dado da construgdo matematica a orga- nizar fragmentos do mundo. Goethe (1749-1832) também discutiu bastante a questao dos géneros e nao aprovava que fossem misturados. Mas ao desaprovar o principio da subjetividade poética que dominava a seu tempo, chamando-o de “doenga geral da época”, deu um passo decisivo no entendimento da ver- dadeira fungao do sujeito da poesia, 0 sujeito lirico, acre- ditando numa identidade entre sujeito e objeto, espirito e natureza ou, enfim, homem e natureza. Durante o século XIX, no entanto, a teoria do critico francés Brunetiére (1849-1906) lembra ainda a visio cldssica dos géneros, embora com tintas modernas. A visio de Brunetiére, aparentemente legado das teorias evo- lucionistas em moda nos fins do século XIX, é ainda nor- mativa, considerando os géneros literarios como entidades em si mesmas, sem levar em conta o processo criativo de produgao dos textos. O novo rumo da reflexéo moderna, iniciada no Ro- mantismo, nao se contentara em accilar etiquetas, e estard 33 cada vez mais interessado na propria especificidade do discurso poetico. Benedeto Croce (1866-1952), por exemplo, direta- mente inspirady pelo espirito romantico, desprezava qual- quer abordagem cientifica ¢, ao inves da id¢ia de géneros como modelos, colocava em primeiro lugar a concepgao de cada obra de arte como expressao unica e insubstituivel: interessavam os objetos reais, os textos, 0 gosto do leitor € nao os conceitos de géneros, suportiveis apenas enquanto instrumentais empiricos. Um novo tempo. Uma nova poesia? Do ponto de vista das conquistas técnicas da lingua- gem poética, o Romantismo dara lugar de destaque ao ritmo, no projeto de organizar analogicamente — por tra- gos de semelhanga ou diferengas — a imagem do mundo no poema. A rebeliao romantica contra a versificacao sildbica ira casar-se com sua propria aventura de pensa- mento, ja liberto do racionalismo anterior. Ritmo e ana- logia: eis os principios romanticos. Os poetas romanticos alemaes e¢ ingleses foranr fun- damentais naquele momento, pela relevancia que deram & distribuigdo ritmica dos acentos — o que puderam apreen- der de sua prépria tradigao poética. Ja a poesia francesa, tradicionalmente mais presa aos modelos métricos silabicos, precisou fazer uma verdadeira revolugdo contra essa versi- ficacao sildbica e regular e, mesmo assim, o seu lirismo romantico é muito menos libertario e arrojado. Se é possivel falar num “estilo lirico”, talvez cle en- contre em alguns poetas romanticos seus momentos mais exemplares, naqueles casos em que o dado subjetivo con- scgue ullrapussar o estagio da mera confissio para en- contrar até mesmo scu oposto — os limites da propria 3s expressio subjetiva —, dando o salto para o coletivo ¢ 0 universal. Ao referir-se ao poema de Wolfgang Goethe, “Wan- derers Nachtilied", a “Cancgdo noturna do viajante”, Emil Staiger fala nele como um dos “exemplos mais puros de estilo lirico”, Descontado o fato de Staiger, no seu livro Conceitos fundamentais da poética, de 1946, partir da dis- culivel possibilidade de determinar os géneros — épico, lirico e dramatico — em estado puro, sua expressdo pode ter sentido. Sobre os picos paz nos cimos quase nenhum sopro. Calam aves nos ramos. Logo, vamos, viré 0 repouso. (Tradugado de Haroldo de Campos) * A leitura que desse texto fez Emil Staiger destaca a tessitura sonora e as suspensdes de frases modulando a entonagao da voz como um dos modos de falar sobre o siléncio e a espera. Adorno, ao referir-se a esse mesmo poema, mostra como ele presentifica um instante: depois de sonhar com a paz de uma natureza ja perdida, vem a percepcao de que cssa paz é apenas uma promessa, talvez definitivamente adiada. O poema se faz sob o signo da negatividade sem alar- des e, por isso mesmo, dolorosa, ecoando profundamente na alma melancdlica e nostalgica do sujeito lirico. Ao * O texto original é: “Uber allen Gipfeln/1st Ruh/In allen Wipfeln/ /Spiirest du/Kaum einen Hauch/Die Végelein schweigen im Wal- de/Warte nur, balde/Ruhest du auch”. 35 contrapor a tradugdo de Haroldo de Campos com a que vem ao pe da pigina do livro de Staiger * & possivel per- ceber como a recriagdo de Haroldo realiza a profunda unidade entre som e sentido, forgando uma explicagao ex- tralingiiistica, dada pelas sugestéey fonicas: sio clas que mantém a tensdo entre a wopia do souho (paz/quase/ca- lam/vird) © sua ruptura (sopro/ramos/ vamos: repouso ). Qualquer consolo parece impossivel, irremediavelmente travado pelas virgulas de “Logo, vamos,”, Sao as su; fonicas que amarram a paisagem no interior de um clima de desejo do sujeito lirico: pela extrema unidade e coes nao permitem a intromissio de nenhum outro “e apenas o desdobramento, num momento extremo, desse “eu” num “tu”, interlocutor que é apenas uma inutil con- solagdo de si mesmo. As relagdes entre imagens, ritmos e sonoridades pre- valecem sobre a Idgica de uma sintaxe submetida a versi- ficagio: € esse o caminho mais fecundo do Romantismo. Nesse poema de Goethe, portanto, a natureza ja é& um bem perdido. Mas o Romantismo talvez represente os Ultimos momentos em que 0 artista ainda pode sentir-se grandioso e€ glorioso, acreditando fazer da linguagem poé- tica um meio de expressar a si prdprio e a natureza. Levando tal posigdo ao extremo, o poeta, como vimos, cairé num solipsismo subjetivista que nada tem de lirico, como acontece com muitos textos dos romanticos brasilei- ros mais descabelados, que servem hoje mais como exem- plos de clichés liricos (muitos dos textos de Alvares de Azevedo [1831-1852] e quase todos os de Casimiro de Abreu [1839-1860]). Num pais orgulhoso de afirmar-se como personalidade social e poética, num momento de autodescoberta, © liris- des * “Sobre todos os cumes/quictude./Em todas as drvores mal perce bes/um alento./Os passaros emudecem na floresta./ Esperas so um pouco, breve/descansas tu também." 36 mo romantica brasileiro acabou superpondo afirmagio nacionalista, personalidade literaria e eloqiiéncia retorica, Nesse contexto, o verso de dez silabas, por exemplo, tor- hou-se apenas um molde repetinvo € empobrecedor, Nesses aliou-se a retorica: mesmo flagrando, apa- casos, u estelica fio dia cmogio pes- rentemente, a “mais auléntica™ expres soal e suas relagdes com a natureza, essa poesia romantica apenas respondia a codigos € expectativas de linguagem ja Previstos, No podemos nos esquecer de que a persuasdo e in- ducdo retéricas — hoje chamadas consenso e manipulagdo — podem incluir no seu projeto de aceitagéo uma “retd- rica do afeto”, para facilitar a adesdo do leitor 4 mensagem. Nao sendo a regra, no entanto, o lirismo romantico brasileiro também conseguiu, em muilos momentos, inte- grar “cu” ¢ “natureza" na linguagem do poema. O poema de Gongalves Dias (1823-1864) que vem abaixo, temati- zando o proprio decorrer do tempo no decorrer do texto, é um belo exemplo de como a expressio lirica pode al- cangar um estatuto amplo e contundente. Leito de folhas verdes Por que tardas, Jatir, que tanto a custo A voz do meu amor moves teus passos? Da noite a viragac, movendo as [folhas, Ja nos cimos do bosque rumoreja. £u sob a copa da mangueira altiva Nosso lelto gentil cobri zelosa Com mimoso tapiz de folhas brandas, Onde o trouxo luar brinca entre flores. Do tamarindo a flor abriu-se, hd pouco, Ja solta 0 bogari mais doce aroma! Como prece de amor, como estas preces, No siléncio da noite o bosque exala. 37 Brilha a lua no céu. brilham estrelas, Correm perfumes no correr da brisa, A cujo influxo magico respirase Um quebranto de amor. melhor que a vidal A flor que desabrocha ao romper d'alva Um sé giro do sol, nao mais, vegeta: Eu sou aquela flor que espero ainda Doce raio do sol que me dé vida. Sejam vales ou montes, lago ou terra, Onde quer que tu vas, ou dia ou noite, Vai seguindo apés ti meu pensamento; Outro amor nunca tive: és meu, sou tual Meus olhos outros olhos nunca viram, Néo sentiram meus labios outros labios, Nem outras méos, Jatir, que néo as tuas A arazéia na cinta me apertaram. Do tamarindo a flor jaz entreaberta, Jad solta o bogari mais doce arome; Também meu coragéo, como estas flores, Melhor perfume ao pé da nolte exala! Néo me escutas, Jatir! nem tardo acodes A voz do meu amor, que em vao te chamal Tupa! lé rompe o sol! do leito indtil A brisa da manhé sacuda as folhas! Gongalves Dias Entre os romanticos que foram capazes de levar as sugest6es de sua época a ponto de reverter radicalmente modelos e expectativas estélicas, esta o brasileiro Sousan- drade (1832-1902). O Guesa errante, longo poema divi- dido em cantos, publicado em Nova lorque em 1876, traz uma introdugdo 4 edigéo americana onde o préprio poeta ja sente dificuldades de encaixar seu texto nas classificagdes de épico, lirico ou dramatico, talvez pelo carater de inven- 38 ¢ao melédica que ultrapassava a concepgao tradicional de melodia romantica. “O Guesa nada tendo do dramitico, do litico ou do épico, mas simplesmente da narrativa adotei para cle o metro que menos canta, e como se té fosse necessaria, a monotonia dos sons de uma s6 corda." Eia, imaginagao divina! Os Andes Vulcdnicos elevam cumes calvos, Circundados de gelos, mudos, alvos, Nuvens flutuando — que espetac'los grandes! La, onde o ponto do condor negreja. Cintilando no espago como brilhos D'olhos, e cai a prumo sobre os filhos Do Ihama desculdado; onde lampela Da tempestade o raio; onde deserto, O azul sertao, formoso e deslumbrante, Arde do sol o incéndio, delirante Coragao vivo em céu profundo aberto! (Fragmento iniclal do Canto Primelro) Em outros poemas do mesmo autor, que nao perten- cem ao Guesa, observa-se também a opcao modernissima por uma légica analdgica que, sem precisar ficar amarrada ao modo da subordinagao estabelece, entre as imagens colhidas, verdadeiras relagdes de montagem. Dé mela-nolte Alb... Dé mela-nolte; em céus azul ferrete Formosa espddua a lua Alveja nua, E voa sobre os templos da cidade. Nos brancos muros se projetam sombras: Passela a sentinela 39 Sa etm A noite bela Opulenta da luz da divindade O siléncio respira; almos frescores Meus cabelos afagam; Génios vagam, De alguma fada no ar andando & caga. Adormeceu a virgem: dos espiritos Jaz nos mundos risonhos — fora eu os sonhos Da bela virgem ... uma nuvem passa. Sousdndrade

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