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JORGE DE SENA, EM CRETA COM NIETZSCHE Oswaldo Silvestre CD © caminho para as origens leva, em todo o lado, & barbie, fe quem se ocupa dos Gregos deve lembrar-se sempre de que desejo imaderada do saber &, em si & em todos os tempos, t2¢ birbaro como ddio 20 saber FB Niewache, 4 Filosofta na Idade Tragica dos Gregos Lugares sem territério Existe, sem divida, uma profiunda daléctica entre a desterrtorializagio da literatura -modemista ¢ 0 eltismo da sua enciclopédia constitutiva. De facto, dos Caniasa Waste Landow 20 Uiisses, 3 obras candnicas da literatura moderista oferecem-se frequentes vezes como thesaurusou Museu da tradigo itera e cultural do Ocidente, denotando ‘uma peculiar fixacao pelas suas origens ou fundagdes gregas. Nio € decerto casual, ¢ outros o relevaram ji, que esta literatura extraterritorial seja ‘em grande medida o produto de estrangeiradas ou exilacos, dos Pound ¢ Eliot em trinsito para a Europa ao Joyce em fuga a sua Inlanda natal ou a0 Pessoa dividido entre a lingua portuguesa e a cultura do Império Britfnico em que se formou. Quase sem ‘excepgio, a literatura modemnista €a minuciosa e cerebral eartografla de um lugar sem temit6rio, ou sem outro teritério que nao 0 do Museu, isto €, uma pura idealidade. Falando-nos de um desses grandes exilados ~ Stravinsky ~, Milan Kundera afirina, com grande agudeza, que “o comeco da sua Viagem através da historia da misica coincide pouco a pouco com o momento em que o seu pais natal deixa de existir para ele; tencdo compreendico que nenhum outro pais 0 pode substituir, encontra na mOsica a sua tunica patria” (Kundera, 1994; 89). Eacrescenta, reveladoramente; "a sua dnica patria, o seu Gnico lugar proprio, era a misica, toda a miisica de todos os mésicos, a historia da :miisica” (dem: ibidem). Entre nds, ¢ (pelo menos) no que 2 esta questio respeita, o descendente directo de Pessoa é, obviamente, Jorge de Sena, sendo © pocma “Em Creta, com o Minotauro”, de Poregrinatio ad loca tnfacta, aquele em que a questio do terit6rio alcanga vercadeira Univers de Caer 4st Fessondincia trigica. Proponho-me pois Ié-lo, tendo em consideragZo () a sua peculiar anticulagao da sedimentagiio secular do saber com o nostas das origens do Ocidentes i) a sua muito nietzschiana aspirago a umn esquecimento da hist6ria, condico indispensivel a vida; (id a sua articulagio das duas grandes linhas dla poesia de Sena nos anos 60, a Possia meditativa em torno de objectos artsticos e a poesia circunstancial feita de urna Peregrinagio aos lugares; Gv) 0 seu papel decisivo na estratégia seniana de automitificacay cultural e civica Enciclopédia eNostos "Em Creta, com 0 Minotauro” é, entre outras coisas, um dos pontos culminantes da “poesia culta” de Sena. Na verdade, a poética de Sena, nisso to devedora das concepgoe do Renascimento e do Manelrismo mas também do Modernismo, € uma poetics que, come o préprio autor referiu a propésito de um dos seus livres, pressupse, na énese do poeia, “a emogio complexa de um espirito culto” (Pil, 156" E certo que, sendo o livro em questao Metamorfoses, poder-sevia talvez objectar que nem tox a poesia do autor cabe numa caricterizagio destinada a textos tio densamente culturais, se nic culturalistas, Se a objeceao colhe, tal ndo significa porém que a poesia de Sena, mesino auando citcunstancial ou vistante de filGes temiticos devedores das mais recudas {tadigoesliicas ~o amor, sobretudo ~, deixe de ser uma poesia que coloca questbes de dlifiel solugio ao letor comurm, Tenha-se na devida atengio, por exemplo, aquilo que # obm postica de Sena mais deve aos cAnones do modemisino, a saber, 4 rehacao de Gependéncia mais ov menos profunda entre texto € metatexto, Na verdade, torlow os paratextos que roxiciam, como uma saudagiio que é também uma selecea0 de Ieitorce, 08 seus voltimes posticos ~ pré e posfcios, notas aos poemas -, desemperhham claraz fangoes metatextuais, Esses textos, als, se por vezcs conklicionam ou dispensam mesmo © leitor do seu trabalho interpretativo, sio nio raro necessivios a uma decifiagio de citagdes ou de cenas alusdes, por vezes demasiado privadas, do autor, Em virios casos Poderiamos mesmo afirmar que em Sena 0 poema ¢ indissoctivel da sua Nota, sendo {esta indissociabilidade um elemento indispensivel part a catacterizagio da sua concep de poesia €, mais atamente, de literatura “Em que medida poemas como estes estio fora do ambito do leitor comum de Poesia", pergunta 0 poeta no posticio a Arte de Misica, Pergunta retérien, cit lay al & inevitabilidacte da resposta. Do seu diverso modo, tambésn “Em Greta." ndo podena debxar de suscitar uma resposta reticente, © poema configura-se como um deppostto cle meméria, pessoal e cultural, reunida segunco © modelo biogrifico ¢ obsessive Cou xaustivo) da colecedo sugetida no inicio, a propsito de macionalidades e roupa. “Coleccionarei nacionalidades como camisas se despein", Memoria nao hereditiria da comunidade, a cultura € agora tansmitida por um sujeto sem comunidade, 0 qqial se dlirige @ um outro apstida (© Minotauro) que, a0 contsirio do primeifo, na poss ‘meméria dessa cultura que ao longo da vida aquete foi coligindo e «le cujo excesso sofre. Este sofrimento denuncia a interiorizacao vital da cultura, a passayem, digamos, dia escola a0 ser, a qual suscitard reacgGes ainda peculiarmente orgdnicas Finalmente, © mesmo sofrimento “selecciona” os interlocutores (lease letores), na medida em que vivam ou nfo este drama nio-socritico do saber @ mais ¢, desde logo, que saibarr 0 suficiente para sentir a sua dramaticidacle Desde 0 titulo, o poema denuncia a sua condigio enciclopédica, a qual comega por abarcar a civilizacio mindica e a mitologia gregs, Destas paragens funcadoras, o poctna refere-nos ainda Parsifaé, Ariadne ¢ Teseu. No segmento II, 0 mais concenteadamente enciclopédico, o texto recolhe ainda Racine (¢ com ele a tragédia) e Valery, Noutros segmentos, o texto conduz-nosa Grécia, e especificamente a Atenas, ¢ ainda a Palestina, concluindo assim 0 périplo pelas origens. No que ao mundo de lingua portuguesa conceme, passamos de Portugal 20 Brasil ¢ a Angola, ¢,intertextualmente, de Pessoa! Bernardo Soares (“A patria/ de que escrevo é a lingua em que por acaso de geragoes/ asc”) a Camoes (“E af que eu quero reencontrarme de ter deixado/ a vida pelo ‘mundo em pedagos repartida, como dizia/ aquele pobre diabo"). Poderiamos pois dizer que esta é uma poesia em estado de Museu, titulo que, lembyra-nos 6 autor, foi a primeira escolha para o que vitia a ser Metamorfoses, na sua acepea0 etimologica de “templo dedicado 4s Musas, ¢ depois local destinado as obras das Musas” (PI, 157). No posficio @ Arte de Misica, Sena colocaeia a questio no quadro das consequéncias da reprodutibilidade técnica da obra de arte para a consttuigo contemporinea do Museu Imaginatio: “A nossa fruicio estétia da arte do passado (..) depend estrlamente de toma experiéncia cultural dela; e, se podemos fruit igualmente de misica medieval on barroca ou contemporinea, é precistmente porque culturalmente a nossa consciéncia estética se abriu, numa experiencia de historicidade, para lé da mtsica da nossa primeira educacio musical ¢ do nosso “meio” Isto &, de resto, hoje, a situacao de todas as ates © muito diversa da que longamente, através dos séculos, foi a delas)” (PI, 209). Muscu Imagindrio e crise da tradiclo surgem neste texto como contrafaces numa situagio em que € dificil decidir da precedéneia de tum sobre a outra: “Ainda que tendamos sempre a resistr a0 novo (..) estamos absertos ao passado, a uma escala que 6s antigos paradoxalmente nunca conheceram, mesmo quando a cultura deles parecia fina, e decididamente apoiada numa visio “etema” da tradigio” (dem). © que se segue & uma notivel descr da crise moda da cultura enquanto vinculo ‘orginico do individuo ao todo social e deste a uma meméria heredariamente ransratia: “Talvez esteja alids no entendimento disto a chave para entenderse muito mundo ‘modemo: peniido 0 valor e 0 sentido da “tradkio" como tal, na modalidade horizontal © vertical das sociedades contemporincas ce massa, a historicidade do passaclo € chamada naturalmente a substituira actualidade dele, naquele mundo da consciéncia, em que a cultura faz individualmente as vezes da vivencia colectiva que se perdu” (PU, 209-210). Em perfeitalogica moclernista, a exta descricio da ruina clo senstss communise, com cla, da constituigto, pelo sujeito, da sua historicidade no termtorio autodeterminado da consciéncia, segue-se o louvor daquela perca que de nés faria seres emancipados & livres: “Cumpre-me acentuar que essa perda me € totalmente indiferente: e acho preferivel serse livre de vistar © passa, a incomodidade de que cle se pretenda presente” (Pll, 210), A.configuracio paradoxal do angumento de Sena, quue €a de todo o Modernism, reside porém no facto de o ser-se livre de vistar © passado ira par com a inevitabilidade dessa visita, uma vez.que a temporalidade € a estrutura da existéncia: se o pasado & tama terra estranha, ele é também, como veremos, uma fatalidade A primeira vista, “Em Greta..." parece ser ura boa ilustragao de um mundo “em que a cultura faz individualmente as vezes da vivencia colectiva que se percieu". O sujeto, em situaciio apenas 0 ssposto deserivinny de “Em Cea. contoua, sind hoje ser algo incmpreenstve sem querer avangar no palo, dla que 0 “pereglac” Uesemypenhs neste iano Sen uma fngo homloga 8 aventee de Jogos" no segunda Carls cde Olives. "¥o priprio Sen, em text frdamental, e suncou de Peswoa:“Também para mim, a poesia io de facto um Prgimente? P25). 2) expresso, de Fugenio Mota, €aplicids por Antonio Tabucel a Pessoa CTabuceli, 1984 1D. Biblografia 1 SSENA, Jorge de (1977) Poesia, Lisboa, Moraes. (4978) Anaigas e Novas Andancas do Deménio, Lisboa, Eaigoes 70. (2980) Sequénclas, Usboa, Moraes. (1988) Poesia 1, Lisboa, Eades 70. (1989) Poesia 1M, Lisboa, Pdigbes 70. 2 CRUZ, Gastho (1973) A Poosa Portuguesa Hoje Lisboa, Pltano Eitora DE MAN, Pavl (1986) “Literary History and Literary Modeseity", in Binudness 6 Insight. 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