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Pee eee 6 eee a SE A ea) Onn ed ore) tracam a M MULGAN www.vozes.com.br EDITORA, VOZES. Poa Po nerass © 2007, Tim Mulgan ‘Tradugio autorizada a partir da Acumen Publishing Ltd. Edition. Edigéo brasileira publicada por intermédio da Agéncia Literdria Eulama és: Understanding Utilitarianism 1c em Iingua portuguesa — Brasil: 2012, Edtora Vozes Lida, Rua Frei Luis, 100 25689-900 Petrépolis, RJ Internet: http: //www.vozes.com.br Brasil ‘Todos os direitos reservados, Nenhuma parte desta obra poderd ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (cletr8nico ou mecéinico, inchuindo fotocépia e gravacao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissio eserita da editora, Diretor editorial Frei Anténio Moser Marilac Loraine O1 iki Secretério executivo Joao Batista Kreuch Editoragdo: Fernando Sergio Olivetti da Rocha Projeto gréfico: Célia Regina de Almeida Capa: WM design ISBN 978-85-326-4375. ISBN 978-1-84465-090- (edigao brasileira) (edigao inglesa) Editado conforme 0 novo acordo ortografico. Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luis, 100-~ Petrépolis, RJ — Brasil ~ CEP 25689-900 Caixa Postal 90023 ~ Tel.: (24) 2233-9000 Fax: (24) 2251-4676 Sumario 1 Introdugéo 7 2 O utilitarismo cléssico 14 3 Provas do utilitarismo 66 4 Bem-estar 88 5 Injustica e exigencias 135 6 Atos, regras ¢ instituiges 162 7 Consequencialismo 183 8 Praticidade 206 9 O futuro do utilitarismo 229 Questées para discussdo ¢ revisio 245 Leituras complementares 257 Indice 267 Ideias utilitaristas so encontradas em muitos fildsofos ao longo dos séculos ~ dos antigos gregos até as principais figuras do Tlumi- no Escocés (principalmente David Hume e Adam Smith). No entanto, o.utilitarismo s6 torhou-se claramente identificudo como uma escola filos6fica distinta no final do século XVII. Os trés mais importantes pioneiros do utilitarismo publicaram as suas principais cobras com uma diferenga de poucos anos uma da outra: William Paley em 1785, Jeremy Bentham em 1789 e William Godwin em 1793. ‘Todos os trés pensadores compartilhavam os valores. do Ilu- minismo — um movimento intelectual e cultural predominante em toda a Europa, caracterizado pela f€ na razéo humana, em oposigéo & autoridade arbitréria no direito, no governo ou na religifio, e na crenga no progresso. Hoje Bentham é o mais famoso. A época, porém, ele foi muito menos bem conhecido do que Paley e Godwin, que alcangaram ambos um péblico comparativamente maior, William Paley (1743-1805), um ministro da Igreja da Inglater- +a, ofereceu o utilitarismo como uma maneira de se determinar a vontade divina. Deus, sendo benevolente, gostaria que todos nés agissemos da maneira que melhor promovesse a felicidade geral. Embora tenha sido radical em algumas questées, nomeadamente na sua feroz oposigao a escravidao, a tendéncia geral de Paley era conservadora, especialmente em matéria de propriedade. A melhor ‘maneira de promover a felicidade geral era seguir as leis de proprie- dade estabelecidas. No século XIX, apesar do conservadorismo de Paley, © mo foi associado a extremistas politicos e ateus: Isso se deveu a in- fluéncia de William Godwin (1756-1836) ¢ Jeremy Bentham (1748- 1832). Godwin era um radical, social e politicamente, que defendeu uma verso extrema do utiltarismo: uma moralidade completamente imparcial, sem lugar para obrigagGes especiais ou apegos aos nossos ‘entes mais préximos e queridos. Godwin comprazia-se em apresen- tar os seus pontos de vista em termos designados a chocar os seus contempordineos. Aqui esté um exemplo not6rio. O arcebispo € a cami Voce esta preso em um prédio em chamas ct elas ¢ um arcebispo, 0 qual é “um grande bent ‘outra & uma camareira. Vocé sb tem tempo para sa (que voce deve fazer? coutras duas pessoas. Uma da humanidade’, € @ uma pessoa do fogo. Godwin conclui que voce deve salvar 0 arcebispo, porquanto a sua vida tem mais valor para a felicidade humana do que a da cama- reira, Isso continua a ser verdadeiro mesmo se a camareira for a sua pr6pria mie — ou voc# mesmo! Néo é uma coincidéncia que os stas teol6gicos tendam ‘a ser mais conservadores do que 0s utilitaristas seculares. Se o uni- vyerso foi projetado por um Deus utilitarista, entdo devemos, obvia- mente, esperar que ele jé seja muito bem organizado para promover a felicidade. Por outro lado, tanto Godwin quanto Bentham teriam considerado a ineficiéncia das estruturas juridicas e sociais moder- nas como prova contra a existéncia de uma divindade benevolente. Jeremy Bentham (1748-1832) Jeremy Bentham nasceu em Londres, ¢ viveu a maior parte da sua vida ali. Ele era filho e neto de advogados, ¢ esperava-se que cle mesmo seguisse a carreira jurfdica. Em lugar disso, ele passou a sua vida tentando melhorar o direito. Bentham descreveu-se como um “eremita”, seja vivendo em chalés remotos ou em Londres. Ele escreveu muito, publicando apenas uma Introduedo ¢ um Fragmento de sua vasta obra inacabada, As vis6es de Bentham foram concebidas na segunda metade do século XVIII, antes da Revolugdo Industri No entanto, ele foi quase completamente ignorado até 1802, quando algumas das suas obras foram traduzidas para o francés, Bentham nfo ganhou destaque real até que o seu trabalho fosse divulgado nos anos de 1830 por J.S. Mill. Quando morreu, Bentham deixou 70.000 folhas manuscritas de papel almago atrés de si — incluindo ‘muito trabalho teérico, mas também projetos altamente detalhados para estados, pris6es, notas bancérias e muito mais. Bentham visitou 4 Riissia, @ Polénia e a Alemanha. Ao longo do caminho ele teste- ‘munhou uma grande navios de escravos do Império Turco, Essas experiéncias levaram-no a refletir tanto sobre a variedade de possfveisarranjos sociais quanto so- bre o papel fundamental dos incentivos. Bentham ajudou a estabelecer Universidade de Londres. Em seu testamento ele determinou que © seu corpo fosse preservado a fim de que ele pudesse estar sempre Presente as reunides do senado universitério, A filosofia de Bentham situa-se na tradig&o empirista. Todo co- nhecimento deve, em instncia, ser rastreado &s impressdes itas sobre os nossos sentidos pelos objetos fisicos. Ele aplicou este principio empirista & ago humana e a sociedade. O Seu principal in- teresse estava voltado para o leis eram criac&o de juizes ao invés do Parlamento, Bentham objetou tanto quanto ao contetido do direito da sua época quanto ao modo como era produzido, vindo cada vez mais a ver a ambos como es- tando relacionados. A prinefpio Bentham pensou que o direito fosse um amontoado acidental incoerente, No curso de sua vida, passou a 16 Pensamento Modern consideré-lo como deliberadamente designado a promover os inte resses de uma pequena elite. Bentham via-se como alguém capaz de oferecer conselhos a um legislador. E frequentemente considerou isso literalmente, chegan- do mesmo a viajar para a Rassia com 0 propésito de oferecer ins- trugdes & Imperatriz Catarina, a Grande, (Este projeto teria sido mais bem-sucedido se Bentham tivesse realmente tentado encontrar 1 imperatriz, em lugar de enterrar-se em uma casa de campo em ‘uma propriedade isolada para escrever.) No século XVI Bentham comegou sua carreira, a monarquia absoluta era o sistema de governo mais comum na Europa. Assim, ele retrata o legislador como um monarca absoluto: uma (nica pessoa cuja palavra frustragdo de Bentham com os monarcas absolutos ~ que nfo 0 que- reriam ouvir — levou-o mais tarde a lutar pela reforma democritica.) O princtpio utilitarista : Bentham oferece ao seu legislador tanto um objetivo quanto uma montanha de conselhos para alcangar esse objetivo. O objetivo € 0 principio utilitarista, ou principio da méxima felicidade. O traba- Iho do legistador é utilizar o seu conhecimento da natureza humana para criar leis que maximizem a felicidade do seu povo. (Bentham frequentemente usa 0 termo técnico “utilidade”. Esta palavra pode significar coisas diferentes em inglés. A sua conotago 6 aproxi- ‘madamente equivalente a “instrumental para a felicidade”. Ben- tham, entretanto, também possui uma teoria especifica sobre o que éa felicidade.) tarismo € a base de toda a filosofia de Bentham. Fornece nfo s6 0 conteddo dessa filosofia, mas também a sua motivagio. A tinica justificativa para se engajar em especulac&o tedrica € 0 seu valor prético. Por exemplo, ao contrério de muitos outros dos pri- sofos europeus modernos, Bentham nfo foi absolutamen- mentes, ot da moralidade. Ele toma como certo que ele exista, jun- tamente com 0 seu corpo, a sua caneta ¢ todo o mundo natural, incluindo as outras pessoas. A sua justificativa é utilitarista: Nenhuma consequéncia ruim pode eventualmente surgir de se supor que isso seja verdadeiro, e as piores con- sequéncias nao podem sendo surgir de se supor que seja falso (Manuscritos de Bentham no Colégio da Universi- ‘dade de Londres, apud Harrison. Bentham, 54). Juntamente com o utilitarismo, Bentham endossa o hedonismo — a visio de que o prazer e a dor so a base da moralidade, Por utilidade entende-se a propriedade em qualquer objeto, pela qual ele tende a produzir beneficio, vantagem, prazer, ou felicidade (tudo isso, no presente caso, equivale A mes- ma coisa), ou (o que novamente equivale 4 mesma coisa) impedir a ocorféncia de dano, dor, mal ou infelicidade (Bentham, “Introdugo aos princfpios da moral e da legis- lagao” [1 )], apud Singer (org.). Ethics, 307). (© valor de um prazer é inteiramente determinado por sete medi- das de quantidade: intensidade, duraco, certeza ou incerteza, pro- ximidade ou afastamento, fecundidade, pureza e extensGo. Bentham notoriamente trata todos os prazeres como igualmente valiosos. Preconceitos & parte, 0 jogo do pino é de igual valor ao das artes e das ciéncias da mdsica e da poesia (Bentham. “In- trodugdo aos apud Singer (org. 2, 200). Quando faz comentétios desse tipo, no entanto, Bentham nfo est oferecendo aconselhamento aos individuos sobre como viver as suas vidas, Ao contrétio, ele esté aconselhardo o legislador. O seu pon- to nfio 6 que todos os prazeres so realmente igualmente valiosos, mas que ao legislador no cumpre favorecer alguns prazeres em de- yento de outros. Na prética, com uma ou duas notéveis excegdes, Jador deve considerar as preferéncias das pessoas como o guia ‘mais confivel para a sua felicidade. (Muitos filésofos iberais contem- 18. Pensamento Moderno porfineos concordariam com essa reivindicago, sem necessariamente pensar que todos os prazeres so realmente igualmente valiosos.) £ lamentével que Bentham use poesia como o seu exemplo. O proprio Bentham no gostava de poesia ~ ele achava que os poetas eam desonestos, porque sabiam que o que diziam nao era verdade. ‘Mas ele no era o filisteu que se vé frequentemente em c: do utilitarismo, Bentham era muito apaixonado por mésica, ¢ foi um tecladista de sucesso. No entanto, ele ainda assim diria que 0 soberano nao deveria favorecer a boa miisica em detrimento da m4. Alguns adversétios do utilitarismo argumentam que a teoria aprovaria a escravidio, desde que os escravos fossem felizes. Ben- tham 0 negou tenazmente. As escolhas dos seres humanos sfo a nossa melhor informagio acerca do que torna as pessoas felizes. Como ninguém jamais escolhe voluntariamente a escravidio, deve- mos concluir que os escravos nunca so felizes. Outra caracteristica not6ria do utiltarismo de Bentham é 0 seu apelo “& maior felicidade do maior nmero”. Em discussie filos6fi- cas subsequentes, este principio tem sido frequentemente entendido como significando que o utilitarismo sacrifica os poucos infelizes 0s muitos poderosos (capitulo 5). Por exemplo, o utilitarismo po- deria ainda favorecer a escr lade dos escravos fos- se compensada pelos benet 8 que a escraviddo prové 2 outras pessoas. Quando Bentham usa a frase “a maior felicidade do maior némero”, no entanto, ele invariavelmente quer dizer tanto (2) que os interesses dos muitos impotentes devem ter precedéncia sobre os interesses dos poucos poderosos, ou (b) se um determinado beneficio néo puder ser provido a todos, entdo ele deve ser provido a tantas pessoas quantas seja possivel. © utilitarismo é frequentemente apresentado como uma filoso- fia de célculo, atribuindo valores precisos a diferentes prazeres (em ‘unidades ou hedons) e calculando as suas exatas probabilidades. Os escritos de Bentham frequentemente incentivam essa impresséo. Ele fala do utilitarismo como uma “moralidade cientfica”. No entan- to, Bentham estava interessado, sobretudo, nas ciéncias envolvendo classificagdo (como a boténica e a geologia), ¢ no célculo (como a ‘matemética e a fisica). A sua moralidade “cientifica” envolve listas detalhadas de tipos de prazeres, e de coisas que tendem a produzit razer ao invés de célculos exatos das quantidades de prazer. Como tudo 0 mais que escreveu, as listas de prazeres de Ben- tham foram produzidas para um propésito particular. Regras jur cas devem ser aplicadas a casos particulares por jufzes individu: Assim, Bentham oferece ao legistador uma lista de fatores para os juizes considerarem — fatores correlacionados ao prazer e A dor ~ a0 invés de prescrever punigSes especificas para cada ofensa possi vel. Bentham nega explicitamente que os jutzes (ou qualquer outra pessoa) devam aplicar 0 principio utilitarista em todas as ocasiGes particulares, Néo € de se esperar que este processo deva ser estri tanto, ser sempre mantido em vista (Bentham. “Intro- dugdo aos principios da moral e da legislagio” [1789], apud Singer (org.). Ethics, 312). ( hedonismo moderno enfrenta muitas dificuldades, conforme ve- remos no capitulo 4. A maioria delas nfo incomodaria Bentham, Para 6s seus amplos propésitos sociais,é suficiente saber que o prazer 6 bom, ue © prazer de cada pessoa é igualmente importante, e que algumas formas de organizagéo da sociedade claramente tendem a produzit mais prazer do que outras. Por que escolher o principio utilitarista? ‘Ha muitas metas possiveis que um legislador poderia adotar. Por que deveria escolher 0 principio utiltarista? A principal defesa de Bentham é 0 ataque. O utilitarismo fornece uma base moral possivel para a legislagio, e nada mais o faz. A visio dominante na filosofia 20 Pensamento Moderno ica no século XVIII foi a de que descobrimos a verdade ‘moral consultando 0 nosso “senso moral” ou “sentimentos”. Ben- tham objeta que os sentimentos no podem fornecer uma base uni- versal confidvel para a moralidade. Os sentimentos de cada pessoa seguem os seus pr6prios interesses, ao invés dos interesses de todos. Basear a moralidade no sentimento implica baseé-la no “capricho”. Tal moralidade deve ou ser “despética” (se os sentimentos de uma pessoa forem impostos a todos) ou “caética” (se todos usarem os seus préprios sentimentos como um guia mora ‘Uma alternativa ébvia consiste em o legislador seguir a vontade de Deus. Certamente devemos ter as leis que Deus gostaria que tivésse- mos. O préprio Bentham era ateu, pelo menos nos entanto, como todos os legisladores em seus dias eram rel cle ndo quis oferecer conselhos apenas aos legisladores atet Bentham toma emprestado um argumento de ut tais como William Paley. Mesmo se procurarmos seguir a Palavra de Deus, devemos ser guiados pelo princfpio utilitarista. Se Deus, 6 bom, ento vai querer o que é melhor para os seres humanos. ‘Como Deus ama a todos os seres humanos da mesma forma, quereré que sigamos o principio utilitarista, ao invés de privilegiar- mos os interesses de qualquer grupo pequeno. Bentham também argumenta que conhecemos 0 que dé prazer e dor as pessoas muito melhor do que conhecemos a vontade de Deus. Quelquer legislador que afirme seguir a vontade de Deus esté realmente apenas seguindo 08 seus préprios sentimentos (ou os seus prdprios interesses). ‘Uma alternativa popular A época era basear a lei nos direitos naturais. (Isso frequentemente acompanhava um apelo a Deus ~ os direitos naturais eram os direitos que Deus havia conferido aos se- res humanos.) O ataique de Bentham aos direitos naturais € um dos seus temas mais influentes. Comega com a nogéo de uma ficgdo. © imos anos. No do ao tribunal. Frequentemente, embora fosse obviamente desejével que um caso fosse ouvido, nenhuma causa de ago estaria disponivel se esse caso fosse honestamente descrito. Assim, juizes e advogados deliberadamente deturpavam os fatos, fingindo que o caso era um que podia ser ouvido. Isso era conhecido como uma “ficgao legal”. Bentham considerava essas ficedes desonestas, e néio um substituto io para um sistema legal aberto e honesto, baseado no prin- cfpio utilitarista, Ele escreveu sobre William Blackstone (um contem- porfineo defensor da tradigo do Direito Comum): Para purgar a ciéncia [da legislagéo} do veneno introdu- zido nela por ele, e por aqueles que escrevem como ele © faz, eu nfio conhego senfio um remédio [...] definigio, perpétua e regular definigo (Bentham. A Comment on the Commentaries, 346, apud Harrison. Bentham, 52). [Ao invés dé precedente e ficgo] a ciéncia da legislagio deveria ser construfda sobre a base inamovivel das sensa- gdes e da experiéncia (Manuscritos de Bentham no Co- légio da Universidade de Londres, apud Harrison. Ben- tham, 141). No entanto, Bentham coloca a nogio de uma ficgdo legal ao seu , desenvolvendo uma nogfo filosdfica de fiego, com aplicag&o muito mais ampla. Uma ficgao € qualquer termo que pa- foe!” € “o di reito de Bob a no ser torturado” so ambos, para Bentham, termos ficcionais). Termos ficcionais nfo sio todos indteis. Confrontado com uma declarago envolvendo termos ficcionais, o filésofo tende ise em termos de objetos que de fato exi reca referir-se a uma entidade que nao existe. (“Papai no, entéo conclufmos que a entidade em questio é néo apenas fic- cional, mas fabulosa—e assim abandonamos a ficgdo. Bentham compa- +a fiegdes a papel-moeda, uma inovagdo na época. Se soubermos como 22 Pensamento Moderna trocar o papel-moeda por dinheiro real (ouro), entio é uma moeda genufna, Se néo houver ouro a ser obtido, entio o papel é intl. Por exemplo, direitos legais sfio uma ficedo benigna. Podemos ex- plicar o meu direito legal de comer a minha barra de chocolate em termios do dever dos outros de permitirem-me comé-la, do dever da policia de impedir qualquer pessoa de interferir em minha ago de comé-la e assim por diante. Estes deveres podem, por sua vez, ser analisados segundo as punigdes ou sangGes que as pessoas sofrem se no cumprem os seus deveres. A linguagem dos direitos legais é, por- tanto, redutivel, em tiltima instdncia, & linguagem do prazer e da dor. Direitos naturais, por outro lado, so entidades fabulosas, ¢ fa- lar deles é puro “absurdo”. Eles pretendem estar escritos no tecido moral do universo e prevalecer sobre as leis ou costumes de qual- quer pafs em particular, No entanto, a prépria ideia de um direito s6 pode ser analisada em termos de um sistema particular de direito que realmente exista. A nogio de direitos naturais que sejam pré-legais ‘ou supralegais ndo faz sentido. Bentham opde-se especialmente aos “direitos naturais imprescritiveis” — direitos que no podem ser re- vvogados pelo legislador. Ele chama tais pemnas de pau”, e considera-os como uma das principais barreiras & reforma politica e legal. Se eu digo que alguém tem um direito natural a alguma coisa, entdo tudo 0 que isso pode querer dizer é que eu acho que Ihe deve- ria set conferido um direito legal a isso. Essa segunda reivindicagao 6 sempre justificada, quer apelando aos préprios interesses ou sé mentos do individuo, ou ao bem comum. A despeito das aparéncias em contrério, todos os princfpios morais sio defendidos ou por um simples apelo a0 sentimento ou pelo princip cexatamente desse mesmo principio. (Bentham. “Introdugdo aos prinefpios da moral e da legis- ago”, apud Singer (org.). Ethics, 308). Utiltarismo 23 Como o principio wilitarista orienta o legislador? ‘A natureza colocou a humanidade sob 0 gov ‘mestres soberanos, a dor e o prazer (Bentham. tion to the Principles of Morals and Legislation”, apud Singer (org.). Ethics, 306). © conselho de Bentham ao legislador baseado no hedonismo sicolégico: a afirmagio de que as pessoas sio motivadas pelo prazet ¢ pela dor. Bentham claramente endossa tanto o hedonismo psico. l6gico quanto 0 hedonismo ético (a afirmagéo de que a moralidade ‘tata basicamente da promogao do prazer e da redugfo da dor). No entanto, a relagio entre eles nio é clara. Por vezes Bentham sugere que 0 hedonismo psicol6gico suporta 0 hedonismo ético, A mora- lidade deve ser baseada no prazer e na dor, porque essas so as ‘inicas motivagdes das pessoas. Em outras ocasides, o hedonismo psicolégico é apresentado meramente como um fato muito titi © legislador utilitarista deve levar em conta, Para explorar estas ques- tes complexas enfocamos duas éreas-chave de regulago social: liberalismo econémico e 0 di Bentham, em grande medida, segue a defesa de Adam Smith do mercado livre. (De fato, Bentham estende a posigio de Smith 40 defender a “usura” ~ a cobranga de taxas de juros com base no mercado — 0 que era es dos seus prOprios interesses. As coisas vao melhor, sobre- tudo, se as pessoas sdo livres para decidirem por elas mesmas o Que produzir, quais contratos subscrever, ¢ 0 que comprar, Mais geralmente, o legislador nao deve interferir nas escolhas livres dos individuos. valor da liberdade de mercado é instrumental, e nao intrinseco. A liberdade é valorizada apenas porque contribui para o prazer. © apoio de Bentham ao mercado é limitado pelo principio utilitarista, 24 Pensamento Maderno Ele foi influenciado pela observagao de que a maioria das reai vengdes do governo em seus dias serviu meramente para proteger os, interesses de pequenas minorias poderosas ao invés de salvaguardar 08 interesses mais amplos da maior No entanto, as pessoas nio séo jutzes infalfveis dos seus pr6prios interesses. Bentham ndo identifica os interesses de um individu com as suas preferéncias ou escolhas como alguns economistas utilitaristas posteriores fizeram (capitulo 4). As pessoas podem in- terpretar mal os seus préprios interesses. Se o legislador sabe que as pessoas geralmente cometem certo tipo de equfvoco, entéo ele pode e deve intervir para encorajar as pessoas a agirem de acordo eresses a0 invés da sua percepefo equivocada com os seus reais dos seus interesses. Bentham acredita que um erro em particular & especialmente significativo. As pessoas falham em perceber que os prazeres ou as dores no futuro distante sfo tio importantes quanto os prazeres ¢ as dores imediatos. £ por isso que elas falham em fazer a proviso ade- quada para a sua idade avangada. Porque essa é uma caract geral dos seres humanos, o legislador est4 em melhores condigées de conhecer os interesses de longo prazo do povo do que ele proprio. (Como uma solugdo, Bentham props uma forma de moeda que au- tomaticamente atr feresse. Isto forgaria as pessoas a poupar, ¢ também Ihes ensinaria o valor de poupar. Sempre que possivel, © legislador deveria melhorar as motivagées das pessoas.) O mais importante interesse das pessoas ¢ a seguranga. Bentham ‘usa este termo mais amplamente do que poderfamos fazé-lo. Segu- ranga inclui uma alimentago adequada e abrigo, bem como seguran- fica a redis- penal. tribuigio, o respeito pelos direitos de propriedade ¢ 0 di Desde o século XIX Bentham tem sido retratado principalmente como um defensor do livre mercado. No entanto, ele na verdade Utiltarismo | 25 imagina um papel positivo muito mais amplo para o Estado do que quase todos 0s seus contempordineos. O governo deve garan- tir que ninguém fique desamparado, ¢ que todos tenham acesso a uma educagio adequada e a cuidados de satide, para permitir-thes atender as suas préprias necessidades de seguranga. f dificil para rnés percebermos 0 quanto isso foi radical: mesmo quando Ben- tham morreu, o governo britanico ainda nao fornecia qualquer fi- nanciamento pablico para a educagdo, e os ministérios da satide e da educaco que ele havia previsto nfo foram estabelecidos até os primeiros anos do século XX. O “estado de Bentham” esté muito mais préximo do estado do bem-estar moderno do que do estado lista tanto da realidade do século XVIII quanto da fantasia ibertéria contemporanea, Desde que néo estejam-desamparadas, geralmente as pessoas sfo capazes de satisfazer os seus préprios jeresses de seguranga, No entanto, elas s6 podem fazé-lo efetivamente se forem capazes de fazer planos de longo prazo. As pessoas necessitam de seguranga de propriedade. Isso cria uma forte presungao em favor do sis- tema de propriedade existente ~ mesmo se um sistema alternativo fosse mais eficiente quando considerado em abstrato. Este 6 outro exemplo do enfoque pragmatico de Bentham. Crime e castigo Em seus dias Bentham foi, talvez, mais conhecido como um refor- ‘mador da prisio. A sua explicagao da punigdo 6 puramente utilitaria, (O papel da punigdo é a dissuasio. O valor da punigo néo é a puni real, mas a ameaga dela. A punigéo real envolve custos indesejéveis: a despesa ¢ a dor do criminoso. O ideal seria criar uma ameaga de punigéo, sem nunca punir ninguém. Infelizmente, a Gnica maneira confidvel de se criar uma ameaca crivel de punigdo 6 realmente punir as pessoas. As prisdes deveriam ser abertas ao piblico, de modo a que todos pudessem ver o castigo sendo infligido. (A pena de morte é 26 Pensamento Moderno especialmente eficaz porque as pessoas confundem os seus préprios interesses e superestimam a dor envolvida na morte!) Bentham é famoso pela sua defesa do pandptico: uma prisio onde as celas esto dispostas em vérios niveis ‘em um cfrculo em torno de um ponto de observagao central, permitindo que o méximo néimero de criminosos seja gerido pelo némero minimo de guardas. Bentham originalmente introduziu essa ideia de uma maneira ame- nna, como uma solugo para uma ampla variedade de situacées de vigilincia. (Por exemplo, ele sugeriu um harém turco panéptico ~ onde ‘o méximo nimero de esposas poderia ser monitorado pelo nimero mf- nnimo de eunucos.) Mas ele entéio passou muitos anos tentando obter apoio e financiamento do governo briténico para o seu panéptico. No final todos esses esquemas falharam e Bentham perdeu a maior parte da sta heranga. Acabou sendo-lhe concedido £ 23.000 (uma pequena fortuna) por um ato especial do Parlamento para a despesa em que tinha incorrido. (Isso foi irdnico, uma vez que Bentham, a0 longo de toda a sua vida, foi um adversério exatamente desse tipo de uso personalizado ad hoc do poder soberano. Mas, de qualquer maneira, ele ficou com o dinheiro.) 0 panéptico, ¢ a ideia geral de punigéo péblica, também ilustram uma caracterfstica mais ampla do conselho de Bentham ao legislador. ‘A publicidade néo s6 dissuade os criminosos como ainda mantém ho- nestos 0s funcionétios. Sem a publicidade no ha qualquer maneira como o legislador possa garantir que os interesses dos funcionérios coincidam com o interesse pablico. O hedonismo psicolégico aplica-se 20s funcionérios tanto quanto se aplica aos criminosos em potencial. O legislador deve sempre atender aos efeitos de incentivo do plane- jamento institucional. (Adam Smith ofereceu uma critica semelhante da prética das universidades oferecerem salétios aos professores, por- quanto tornou os interesses dos professores contrérios aos interesses dos seus alunos. Se os estudantes pagassem os seus professores, eto 0s seus interesses coincidiriam.) hedonismo psicol6gico néo é uma lei universal. Bentham esta- va perfeitamente ciente de que as pessoas sao frequentemente altru- fstas. (Na verdade, as suas tentativas originais de vender a sua teo- ria aos legisladores pressupunham que eles deviam ter, pelo menos, alguma preocupagao com os interesses dos outros.) Nao obstant. 0s legisladores deveriam pressupor o egoismo universal. Mesmo que 25 pessoas nao sejam completamente egoistas, elas o so em grande medida. Ages completamente alheias aos interesses do agente so excegdes e nfo a regra, Além disso, qualquer que seja a verdade acerca das motivagdes das pessoas, o legislador deveria adotar a hi- p6tese mais pessimista, Se projetarmos as nossas instituigGes sobre © pressuposto de que as pessoas agem sempre apenas segundo os seus préprios interesses, entfio no nos decepcionaremos. A presen- a da publicidade nio vai dissuadir aqueles com motivos altrufstas, 0 passo que a auséncia de publicidade concede licenga demais a funcionérios inescrupulosos. Além de reformar o direito penal em suas éreas tradicionais, Ben- tham procurou estendé-la para cobrir, entre outras coisas, as obri- gages para com os animais e as obrigagGes de prestar assisténcia a pessoas necessitadas (a chamada Jegislagdo do bom samaritano, fre- quentemente incorporada aos cédigos penais da Europa Continental) Ele também defendeu a desi gio dos “crimes sem vitimas” como a atividade sexual nfo convencional. O principio utilitarista deve ‘governar o alcance da lei penal, assim como o seu contetido. ‘Quem guarda os guardides? A sua falta de sucesso em persuadir os monarcas e os legislado- res a adotarem os seus c6digos legais, e suas frustragbes quanto & proposta do pandptico, levaram Bentham a questionar os motivos dos legisladores. Ele chegou a acreditar que, assim como as prises devem ser concebidas sobre pressuposto de que os funciondrios so fundamentalmente autointeressados, devemos fazer a mesma 28 Pensamento Madero suposigdo acerca dos Iideres politicos. O melhor sistema politico faria os interesses dos governantes do povo. Isso é mais eficaz. do que contar com a benevoléncia dos ‘monarcas absolutos. Uma vez que as pessoas geralmente so os me- Ihores juizes dos seus préprios interesses, € uma vez que cada pes: soa esta sistema seus préprios governantes. Bentham compara a escolha de vernante com a compra de um sapato para demonstrar por que © uitiitarismo requer a democracia. Nao é todo homem que pode fazer um sapato; mas, qué do um sapato é feito, cada homem pode dizer se este !he calga sem muita dificuldade (Manuscritos de Bentham no Colégio da Universidade de Londres, apud Harrison. Ben- + tham, 209). is preocupada com os seus préprios interesses, © ico permite ar pessoas escolherem periodicamente os BO- Bentham tornou-se assim um forte defensor da extensfio do teito de voto a todos 0s adultos do sexo masculino. Isso foi r a 6poca. A tinica excegéo que Bentham explicitamente defendi de que 0 voto no deveria ser concedido Aqueles que nao sabiam ler, uma vez que eles néo teriam informagdes suficientes para julgar o desempenho dos seus governantes, (Esta exceg&o foi muito mais significativa entéo do que o 6 agora, uma vez que as taxas de alfa- betizagio eram muito mais baixas do que hoje.) Em particular, Bentham admitiu nfio haver qualquer boa razio para ndo permitir que as mulheres votassem. No entanto, ele abste- vye-se de defender este ponto de vista em piiblico, porquanto pensou {que isso apenas conduziria ao ridfculo. Vemios mais uma vez @ su premacia do principio utiitarista. Ao apresentar o seu ponto de vista ‘em piblico alguém se deve guiar pela effcdcia e nfo pela verdade. Um reformador sta deveria direcionar as suas reivindica- g6es pela democracia tanto as elites existentes quanto ao povo como tum todo, Sem 0 apoio da populagio o atual sistema de governo nio sobreviveria, Uma vez. que as pessoas comuns percebam que a racia favorece os seus interesses, elas comegario a exigi-l Mesmo se os lideres atuais forem completamente autointeressados, cles acabardo partilhando o poder, ao invés de arriscar perdé-lo com pletamente, (Esta tese foi muito mais plausfvel no século XIX do que poderia ter sido anteriormente, uma vez que todos os monarcas euro: peus estavam desconfiados com o exemplo da Revolugo Francesa.) Além da legislagdo Embora a legislago tenha sido o principal interesse de Bentham, ele também escreveu brevemente sobre a moralidade pessoal. O seu ‘inico trabalho sobre este assunto s6 foi publicado postumamente, de uma forma que decepcionou extremamente os seus seguidores mais préximos. A tarefa do “moralista pessoal” é a de convencer as pessoas a cumprirem o seu dever mostrando-lhes que ele coincide com 08 seus reais interesses. Isto no se deve ao fato de as pessoas jamente puramente autointeressadas, nem porque a ralidade consiste meramente em autointeresse esclarecido, Como sempre, as motivagdes de Bentham so pragmaticas. O tipo de per- suaso que ele oferece é 0 tinico tipo de moralizaciio que se pode possivelmente esperar que tenha algum impacto dtil. A sua queixa contra os moralistas populares contemporaneos, os quais, em sua tam principios piedosos, nao é a de que aquilo que dizem nao seja verdadeiro, mas sim a de que, porquanto deixa de envolver 08 autointeresses das pessoas, nfio tem qualquer impacto. © verdadeiro legado de Bentham nfo é um conjunto (mui vezes idiossincrético) de propostas, mas o principio geral de que a ¢ a administragéo pablica devem ser guiadas pelos interesses gerais do pablico, John Stuart (1806-1873) nasceu em Londres, ¢ af viveu a maior parte da sua vida, Foi educado pelo seu pai, James Mill, ele mesmo um filésofo realizado e 30 Pensamento Moderno ‘um amigo de Jeremy Bentham. O jovem Mill aprendeu os classicos, Wégica, economia politica, jurisprudéncia e psicologia, comegando pelo grego aos trés anos de idade. Mill sofreu uma profunda depres- so por volta dos seus vinte anos. Recuperou-se, em parte, por meio da leitura de poesia. Como o seu pai, Mill trabalhou para a Com- panhia das {ndias Orientais — uma empresa privada londrina, que efetivamente governou a india. Em 1851 Mill casou-se com Harriet ‘Taylor, uma velha “amiga” cujo marido havia morrido recentemente, Foi membro do Parlamento por um curto perfodo na década de 1860. Ele esteve frequentemente envolvido em causas radicais, especialmen- te a dos direitos das mulheres. Além da filosofia moral e politica, Mill foi mais conhecido pelo seu Sistema de légica (1843) ¢ pelos seus Princfpios de economia politica (1848) fil6sofos antes e depois, Mill procurou prover a sua defesa filosoficamente sofisticada, informada pelas principais correntes filosoficas ¢ culturais de sua época. ‘A filosofia geral de Mill 6 uma forma muito forte de empirismo. ‘Todo conhecimento é baseado na indugéo a partir da experiéncia. Sabemos que o sol nasceré amanhd simplesmente porque o vimos levantar-se muitas vezes antes. Mill negou a possibilidade de um co- nhecimento a priori - conhecimento que é inteiramente baseado na azo, ¢, portanto, anterior & ex . (Essa caracteristica do em- pirismo foi uma mudanga radical, uma vez que a filosofia havia tradi- cionalmente sido vista como a busca de um conhecimento a prior.) empirismo de Mill aplicava-se a todas as Areas do conheci- ‘mento, até mesmo & matemética e & I6gica. “Um mais um 6 igual a ser refutada por expetiéncias futuras. Em qualquer drea do conhe- cimento, Mill tem dois prop6sitos: explorar todas as possiveis fontes de informago empftica e refutar as tentativas de outros filésofos de icar © conhecimento nao empirico. Em O utilitarismo, 0 emy de Mill ¢ aplicado a vérias questées, Por que deveriamos ser istas? © que é a felicidade? O que torna os seres humanos izes? Como a sociedade deve ser organizada? Mill oferece uma nova explicagao psicol6gica e histérica dos se- res humanos. Isto leva a algumas mudangas muito significativas em relagéo ao utilitarismo de Bentham, Muitos pensadores subsequen- tes tém argumentado que Mill efetivamente abandona o utilitaris Podemos perguntar-nos se Mill teria se tornado um nao tivesse sido criado como um. A “prova” de Mill no estava satisfeito com as indiretas, e em grande medida negativas, defesas de Bentham do utilitarismo. Ele buscou uma pro va do mento mais sélido do que o de qualquer um dos seus oponentes. Os prin »ponentes de Mill em ética eram intuicionistas — para ©s quais “a distingao entre o certo e o errado & um fato cltimo € inexplicdvel, percebido por uma faculdade especial, conhecida como um ‘senso moral”” (Crisp. Mill on uiilitarianism, 8). A prova de Mill é alarmantemente breve: AA nice prova capaz de ser oferecida de que um objeto 6 visivel & que as pessoas realmente o veem. A Ginica prova de que um som é audivel & que as pessoas 0 ouvem: © o mesmo pode ser dito das outras fontes da nossa experién- cia, Da mesma maneira[..] a nica evidéncia que se pode produzir de que alguma coisa & desejével & que as pessoas de fato a desejam (..] Nenhuma razio pode ser dada pela qual a felicidade geral é desejével, exceto a de que cada pessoa [..] deseja a sua prépria felicidade. Isso, no entanto, sendo um fato, nfo s6 n6s temos todas as provas que 0 caso admite, mas todas que é possfvel exigr, de que afelicidade € um bem: que a felicidade de ceda pessoa é um bem para 32 Pensamento Moderno essa pessoa, e a felicidade geral, portanto, um bem para o Conjunto das pessoas (Mil. Utilitarianism, 81). A prova de Mill tem trés etapas-chave. 1) O movimento de “as pessoas desejam x” para “x 6 desej 2) O movimento de “a felicidade de cada pessoa é boa para e para “a felicidade geral 6 um bem para o conjunto das pessoas”. 3) A afirmagao de que a felicidade € o tinico fim: de que tudo 0 que desejamos ou é uma parte da felicidade, o a felicidade. (Sem esse passo nfo provamos 0 apenas a alegacio fraca de que a felicidade é uma coisa boa ~ talvez uma entre muitas outras.) Geragées de filésofos cortaram um dobrado ao expor as falécias da prova simples de Mill. No infcio do século XX, 0 filésofo de Cam- bridge G.E. Méore acusou Mill de cometer a “falécia naturalista” — ile- sitimamente tentando derivar um “deve” de um “”, Enquanto “vistvel” significa “capaz de ser visto”, “desejével” ndio significa “capaz de ser desejado”, Significa “deve ser desejado”. As pessoas podem desejar toda a sorte de coisas que so nfo desejéveis. Moore é injusto com Mill, porque ele nao compartilha a sua ideia de “prova”. Moore espera que uma prova seja uma dedugio l6gica infalivel. Se tivermos provado alguma coisa, entéo néo deve haver qualquer divida razodvel sobre se ela € ou no verdadeira. Como 0. Ele apenas procura a melhor ‘cular um empirista, Mill no € tao ambici prova que a experiéncia possa oferecer em um contexto pé 0 fato de que as pessoas desejam chocolate no torna logi impossivel que chocolate ndo seja desejvel. Mas fornece a tn evidéncia possivel, e, portanto, a Gnica possivel “prova”, de que cho- colate € desejével. A principal alegagéo de Mill € negativa: néio hé outras provas, (Como Bentham, Mill nfo se deixa perturbar pelo ceticismo, Ele assume que a melhor prova deve ser suficiente- mente boa.) Se quisermos refutar a prova de Mill em seus préprios termos, precisamos de uma rota alternativa para o conhecimento do que é desejével. O proprio Moore, ao contrério, ofereceu uma versio ingénua da abordagem do senso moral. Mill segue Bentham em ar a propria ideia de um senso moral com fundamentagao ta — nds no temos qualquer acesso direto a propriedade da lade. A segunda etapa da prova de Mill tornou-se extremamente con- troversa na discussdo utilitarista recente, Ele é acusado de ignorar a “independéncia das pessoas” ao tratar “o conjunto das pessoas” como se fosse uma pessoa, (Nés calculamos a felicidade do conjun- to através da adigao da felicidade de diversas pessoas, assim como poderfamos calcular a felicidade total de uma pessoa somando a fe- licidade que ela sente em diferentes momentos da sua vida.) © pr6- prio Mill nfo se preocupou muito com a agregagdo. Tudo o que ele parece querer dizer € que, uma vez que a felicidade de cada pessoa é um bem para essa pessoa, a felicidade das pessoas em geral é um iedade como um todo, Isso é suficiente para ju: lade geral para avaliar as regras morais. ‘A ctapa final da prova de Mill é ainda mais controversa. £ tam- bém o estégio da prova ao qual o préprio Mill dedicou a sua maior atengio. A maiovia das pessoas concordaria que a felicidade é uma coisa boa. No entanto, é a dinica coisa boa? Para responder a esta questo devemos perguntar o que Mill quer dizer com “felicidade”. (Voltaremos aos outros detalhes da prova de Mill, e seu lugar no desenvolvimento do utilitarismo, no capitulo 3.) O que é a felicidade? © utiitarismo € muitas vezes atacado como grossciro ¢ fiisteu — uma reclamagéo provocada pela infame observacio de Bentham so- 34 Pensamento Moderno bre os méritos comparativos do alfinete e da poesia. O conservador britdnico do século XIX Thomas Carlyle a chamou de “uma filosofia orca”. Os porcos podem sentir prazer tanto quanto © podem os seres humanos, Portanto, se tudo o que importa’ o prazer, enti ‘as pessoas também podem viver como porcos contentes. Tal filoso- fia é um insulto a dignidade humana. Assim como Bentham, Mill é um hedonista. A felicidade é tudo que importa, e a felicidade simplesmente consiste no prazer € na auséncia de dor. Ele o afirma muito claramente. Por felicidade entende-se o prazer, e a auséncia por infelicidade a dor, e a privagao do prazer (1 tarianism, 55). cr Para contestar a objegio de Carlyle, Mill oferece uma nova ex- plicagio do prazer. Ele comeca perguntando por que € objetével co- locar uma vida humana e a vida de um porco no mesmo patamar. A razfo € que os seres humanos so capazes de experiéncias muito mais valiosas do que os porcos. Mas esta afirmagio € perfeitamente consistente com 0 hedonismo. £ bastante compatfvel com o princfpio da utilidade se re- conhecer o fato de que alguns tipos de prazer so mais de- sejdveis e mais valiosos do que outros. Seria absurdo que, enquanto, ao estabelecerem-se todas as outras coisas, a qualidade seja tdo considerada quanto o € a quantidade, se devesse supor que o estabelecimento do prazer depen- dde apenas da quantidade (Mill. Utilitarianism, 56) Mill entéo introduz uma distingfo entre prazeres superiores prazeres inferiores. Este € talvez. 0 aspecto mais controverso da fi- losofia ética de Mill. Exploraremos a distingdo de Mill usando um simples conto. rismo 35 ler liada de Homero e assstr Brad mas os dois prazeres diferem de varias Vocé tem duas opgbes para a sua ni Pitt em Troja. Ambas Ihe dardo pra { maneiras. Qual vocé deve escolher? Para Bentham a resposta 6 simples. Qualquer que seja 0 prazer lo nega, Hé mais no prazer do que a sua de adrenalina ao se desfrutar de um bom mais intenso é 0 melhor. intensidade. A afluénci filme de ago pode ser mais intensa do que a sensagdo de ler poesi ou filosofia, mas é nesta iltima que consiste o prazer superior. Para descobrir qual prazer 6 melhor temos que encontrar um juiz compe- tente: alguém que tenha experimentado ambos os prazeres. Pessoas que experimentaram tanto os prazeres superiores quan- to os inferiores preferem os superiores. Portanto, os prazeres supe: riores sfio melhores. melhor ser um ser humano insat diferente, 6 porque eles s6 conhecem o seu prépri da questo. O outro partido da comparacio conhece am: bos os lados (Mill. Utilitarianism, 57) A ideia do juiz competente suscita varias dificuldades. E verdade que alguém que tenha experimentado os dois tipos de prazer conta como um juiz competente? Se o fizer, entdo néo podemos esperar que todos os jufzes competentes concordem. Pessoas que foram for: adas a ler poesia (ou filosofia) na escola podem honestamente dizer que preferem muito mais ver o Brad Pitt lutar de saia. Mill poderia responder que essas pessoas nfo experimentaram realmente o prazer de poesia ou filosofia, uma vez que eles realmente no apreciaram experiéncia, mas esta ameaca tornar o nosso teste circular. (Como € que sabemos-que alguém “verdadeiramente apreciou” a filosofia? Porque eles a preferem aos filmes de ago.) Além disso, os aici 36 Pensamento Moderno nados por filmes de ago podem responder que o problema com os filésofos ¢ amantes da poesia € que eles néo aprenderam a apreciar uma boa luta de espadas. Talvez a melhor defesa de Mill repouse em seu empi preferéncias de jufzes competentes nfo so uma prova infalivel da superioridade de prazeres mais elevados, mas elas sfo a (nica evi- déncia que possivelmente nés podemos ter. A unanimidade néo € es- sencial — se a maioria dos jufzes competentes concorda, entao ainda temos alguma evidéncia. E simplesmente néo hé evidéncia melhor ‘que se possa ter. Desse veredicto dos tinicos jufzes competentes entendo que no pode haver recurso (Mill. tarianism, 58). Como um empirista, Mill esté aberto a novas informagées. Se ficasse comprovado que juizes competentes tendem a preferir filmes, de ago & filosofia, ele entéo teria que aceitar que os filmes propor- cionam um prazer mais elevado. Isso néo compromete a alegacao de que hé prazeres superiores ~ apenas redesenha as fronteiras. A ‘inica coisa intrigante acerca da distingdo de Mill € que ele nfo ‘a vé como uma rejeigéio do hedonismo. Apesar do seu menor grat de intensidade, prazeres mais elevados s&o mais apraztveis do que os ‘mais baixos. O juiz competente prefere ler filosofia porque € mais agradével, néo por alguma outra razfio. s oponentes de Mill sempre argumentaram que, uma vez que admitamos 0 teste do juiz competente, devemos concluir que o pra- zer nao & o Ginico bem, Juizes competentes muitas vezes valorizam ‘outras coisas mais do que o prazer, tais como conhecimento, siatus ou realizagéo. Eu poderia optar por ler O utilitarismo de Mill a0 invés de ir a0 novo filme do Brad Pitt, mesmo que eu saiba que o filme seria mais agrad4vel, porque eu valorizo mais 0 conhecimento do que o prazer. Voltaremos a essas questdes nas paginas 95-102 no capitulo 4, Usiltarisma 37 Utilitarismo e da moralidade costumeira Em meados do século XIX 0 utilitarismo era associado na mente do piblico com politicos radicais e ateus perigosos. Embora Mill de fato tenha defendido algumas ideias sociais e politicas bastante radi- cais em nome do utilitarismo, ele também quis mostrar que a teoria s vezes menos radical do que o temiam os seus adversé- rios, Mill procurou aproximar o utilitarismo de uma moralidade costumeira. Isto pode parecer uma tarefa impossivel. Certamente o ut mo diz-nos para tomarmos decisGes, e para avaliarmos a legislagao icas, apenas com base em um célculo impessoal de consequéncias. Nao seria uma coincidéncia surpreendente se esses célculos concordassem com a moralidade costumeira? Os rristas teoldgicos, como Paley, tinham uma resposta | A moralidade costumeira nos é dada por Deus. Deus é um ul ista, Ento, o que quer que Deus nos dé, seré idéntico &s reco- mendagées do utilitarismo. O utilitarismo de Mill nao tem lugar para Deus. Como Bentham, 0 préprio Mill foi provavelmente um ateu. No entanto, ele reconheceu que a religiéo poderia desempenhar um papel positivo na sociedade, provendo um senso compartilhado de comunidade e propésito, Tampouco Mill defendeu 0 atefsmo em puiblico, talvez. por boas raz6es utilitérias. Por outro lado, ele certa- mente no quis que a sua teoria moral repousasse sobre polémicas afirmagGes religiosas. Em lugar de recorrer a Deus, Mill recorre & — em particular & visio em moda no século XIX, que via humana como evidéncia da evolugio e do progresso. A lade costumeira evoluiu para atender as necessidades das so- ciedades humanas. Ela, portanto, reflete os julgamentos e as expe- hist moral ias de incontéveis geragées, cada qual procurando promover a dade geral. O nosso problema original era que o utilitarismo era muito radi- cal. Mill agora parece ter 0 problema oposto. Se eu me afasto da mo- 38 Pensamento Moderno ralidade costumeira, coloco 0 meu préprio julgamento acima de todo julgamento pasado da humanidade. Mas, certamente, esse n{vel de autoconfianga nunca poderia ser justificado. Portanto, eu nunca devo me afastar da moralidade costumeira: O utilitarismo é redundante. A solugio de Mill é localizar 0 principio utilitarista dentro da moralidade costumeira. As regras gerais de moralidade popular fre- quentemente entram em conflito. Por exemplo, a moralidade costu- meira diz-me para sempre proteger 0 inocente, e nunca dizer men- tiras, Mas ¢ se uma mentira for a tinica maneira de salvar a vida de uma pessoa inocente? Uma das principais criticas de Mill aos seus adversdrios intuicionistas foi a de que eles nao proveem qualquer su- tio bem fundamentada para se resolver tais dilemas. O pr utiitarista emerge como a melhor maneira de se sistematizar 0 caos da moralidade costumeira. Embora Mill seja mais i 6 seu principal interesse ainda est nas questdes préticas. O ut tarismo néo € apenas uma teoria a ser estudada — um guia para 4 vida, especialmente para a vida piblica ¢ politica. Nés agora nos voltamos para quatro ilustragées da aplicagdo de Mill do principio utlitarsta, A primeira é da pr6pria obra O utilitarismo, as outras trés de outras obras. linado teoricamente do que Bentham, TJustiga Uma das objegées mais comuns ao utilitarismo é a de que ele niio pode respeitar os direitos dos individuos. O eélculo utili responde que o uti Ele pode reconhecer suficiente para fazer planos para o futuro e assim por diante. Mil segue Bentham ao teferir-se a estes como interesses “de seguranca” Essas precondigées de uma vida que valha a pena devem ser garan- tidas a todos de pleno direito. Eu nao posso desfrutar de seguranca se estou preocupado com a possibilidade de ser privado das necessi dades da vida pelo governo, ou por algum terceiro. Assim, ninguém pode desfrutar de seguranca, a menos que viva em uma sociedade onde cada individuo tenha direito d seguranca: uma garantia de que © seu interesse em seguranga serd atendido. Néo pode haver qual quer boa razéo para se atender o interesse em seguranga de alguns, ‘mas nfo de todos. (Neste ponto Mill toma emprestado um dictum de Bentham: “cada um deve contar como um, ¢ ninguém como mais de um”.) Se o governo segue o principio utilitarista em todos 08 casos individuais, ento ninguém goza de um direito & seguranga € estio todos na pior. prinefpio utilitarista ‘como pensar e sent ‘nos nfo s6 como agir, mas também . Para garantir a seguranga de todos, todos de: vemos sentir-nos obri 108 dos outros, ea 1ndo aplicar o prine{pio utilitarista quando os interesses em seguran- ga de alguém estiverem em jogo. Alguns filésofos recentes argumen- taram que, se 0 utilitarismo diz-nos para nfo seguirmos o prinefpio de utilidade, entéo a teoria ou € intitil ou incoerente. Voltaremos a esta questo no capftulo 6. Seré que este argumento utilitarista satisfaz 0 nosso senso de justiga? O caso de teste crucial € quando uma violagao dos direitos de uma pessoa salvaria as vidas de muitas outras, Devemos torturar 6 filho (inocente) do terrorista se esta for a Gnica maneira de fazer com que o terrorista revele a localizagdo de uma bomba que ameaca a vida de vérios milhdes de pessoas? Os utiitaristas argumentam que, se nés realmente soubermos que estamos nesta situagao, entio devemos torturar — se formos capazes de fazé-lo. Adversérios do mo discordam. Voltaremos a esta questo no capitulo 5. 40 Pensamento Moderno Liberdade O breve ensaio de Mill Sobre a liberdade é um dos textos cléssicos da filosofia politica. Nele, Mill defende o famoso principio de (também conhecido como o principio do dano). © Gnico propésito pelo qual o poder pode ser legitima- mente exercido sobre qualquer membro de uma comuni- dade civilizada, contra a sua vontade, é o de evitar danos ‘a outros. O seu préprio bem, seja fisico ou moral, nio é ‘uma garantia suficiente (Mill. On Liberty, 68). ‘A estratégia bésica de Mill consiste em comegar com uma liber- dade especial que todos os seus contemporfineos apoiariam, e entio apresentar 0 principio da liberdade como uma extenséo, ou talvez apenas uma clarificaglo, da moralidade costumeira. O exemplo de Mill € a liberdade religiosa. Na Inglaterra do século XIX.a Igreja da Inglaterra gozava de privilégios muito significativos. Muitos pos- tos e profissSes estavam abertos apenas para os seus membros, as- sim como as universidades. No entanto, o princfpio geral de que 1s pessoas devem ser livres para escolher a sua prOpria religido era ‘quase universalmente aceito, e muitos cidados respeitév io conformistas”. Ninguém queria voltar a pratica de séculos riores, quando o Estado tentava forgar as pessoas a aderir & [gi estabelecida, Em Sobre a liberdade, Mill tenta demonstrar como os argumentos que justificam tuma liberdade muito mais ampla de escolha de estilo de vida. Mill quer que o seu principio da liberdade seja atraente tanto para nfo utilitaristas quanto para utilitaristas. Portanto, ele defende-o, ino com base em razées explicitamente utilitaristas, mas como uma extensdo de princfpios extraidos da moralidade costumeira. Isso le- vanta uma questo intrigante. E 0 princfpio da liberdade compativel com 0 princfpio utilitarista? A relag&o entre os dois principios de Mill tem gerado uma imensa literatura. Alguns argumentam que os dois princfpios so independentes — Mill opera com dois padres al morais fundamentais. Por essa visio, Sobre a liberdade marca a re- jeigdo de Mill do utilitarismo de seu pai e de Bentham. Outros ar- gumentam que o princfpio da liberdade € derivado do prinefpio de ide, e que as razées de Mill para nfio tornar isso mais explicito so elas préprias utilitérias. (Ele ndo quer que as pessoas rejeitem o seu principio da liberdade por estarem suspeitosas das suas origens tas.) O nosso foco é no utiltarismo de Mill. Portanto, explo- i aristas que ele pode oferecer para o principio da liberdade. © mais interessante desses argumen- tos baseia-se em outro aspecto da explicagio complexa de Mill da felicidade: o papel da individualidade, (Como logo veremos, também oferece argumentos utilitaristas mais convencionais defen- dendo a liberdade em bases instrumentais. Mesmo que a liberdade nfo seja boa em si mesma, 6 a melhor maneira de promover outros bens. Para Mill, isso significa outros prazeres.) ul Mill acreditava que todo conhecimento surgia a pi ciagéio” de ideias apresentadas pelos sentidos. (Essa sociacionista capazes de adquirir conhecimento ~ ninguém nasce com uma inte- ligéncia superior inata. A prépria formagao de Mill Ihe ensinou que as pessoas so capazes de muito mais desenvolvimento do que nor- -nte se pensa. A maneira de maximizar a felicidade 6, portanto, no dar &s pessoas o que elas querem agora, mas encorajé-las a ter hores anseios. Se os prazeres mais elevados so melhores do que 8 mais baixos, nés deverfamos ansiar por um mundo no qual todas as pessoas apreciem os prazeres mais elevados, mesmo que a sua igno- rancia as impega de querer os prazeres mais elevados no presente, O utilitarismo agora corre o risco de ser extremamente pater- nalista, forgando as pessoas a fazerem coisas que elas nao querem. No entanto, 0 préprio Mill é extremamente antipaternalista, como mostra o principio da liberdade. Isto é em parte devido sua nogo de individualidade. A ambigdo de Mill ao longo de toda a sua vida foi m 42 Pensamento Moderno ade reunir as obras de dois pensadores que ele consi grandes mentes seminais da Inglaterra de sua época” (Schneewind. Sidgwick and Victorian Moral Philosophy, 130 — citando a propria avaliago que Mill faz de Bentham, originalmente. publicada em 1838). Um deles era Jeremy Bentham, o outro era 0 poeta ¢ filésofo Samuel Taylor Coleridge (1772-1834). Coleridge era um adversério do utilitarismo, e do Iluminismo em geral. Ele foi um dos lideres in- telectuais do movimento romaintico e fez. mais do que qualquer outra pessoa para trazer a filosofia alema para a Inglaterra, especialmente as obras de Kant, Hegel e outros roménticos ¢ idealistas alemies. Mill aprendew duas ligdes fundamentais de Coleridge © dos a evolugo hist6rica da cultura, bem como a importancia da individualidade para o bem-estar. Mill no enten- -xatamente 0 que podemos entender hoje. idade” sio termos mais precisos para nés, ‘embora 0 pr6prio Mill nfo os utilize. A ideia central é a de se viver a prépria vida de acordo com valores com os quais se identifica, a0 contrério tanto de se viver uma vida escolhida por outrem ou de se fazer a escolha de maneira impensada. A vida humana 36 é verdadei- ramente valiosa se for vivida da maneira certa. A individualidade parece muito nao hedonista. O que conta néo slo os prazeres que uma vida contém, mas a maneira como ela é vivida, Em filosofias morais mais recentes, uma énfase na auton: ou autenticic \- rismo. Mill, no entanto, quer incorporar a individualidade a0 seu hedonismo. A individualidade torna as experiéneias mais agradéveis. (Mill apela mais uma vez para o juiz competente. Ninguém que te- nha experimentado uma vida autGnoma ou auténtica preferiria uma vida inauténtica, Ninguém que tenha sido livre gostaria de ser um escravo, Ninguém que tenha visto 0 mundo real pode ser satisfeito com uma vida na Matrix.) lade é frequentemente vista como a antitese do Usiltarismo 43 Existem vérias maneiras pelas quais a Ihorar o prazer. Ela pode ser um componente extra de valor, ou uma precondigdo de valor. Se a individualidade for apenas um compo- nente, entéo uma vida sem individualidade pode ainda ser muit digna. Se a individualidade for uma precondigéo, entéio uma vida sem individualidade no pode valer a pena, néo importando o que m ela contenha. Por essa visio, o valor dos prazeres mais elevados depende de que eles sejam buscados autonomamente. Isso explicaria por que a pessoa forgada a ler filosofia néo experimenta o prazer da filosofia. Isso também explicaria por que a vida humana € mais va- liosa do que a vida de um porco. Porque néo podem ser auténomos, ‘208 porcos néio podem ser conferidos os prazeres mais elevados. No entanto, 0 proprio Mill no parece endossar a reivindicagdo m. forte, precondicional acerca da individualidade. Como 0 titulo do capitulo 3 de Sobre a liberdade sugere, a individualidade é apenas um elemento do bem-estar, ainda que muito importante. Voltaremos a essas questdes no capitulo 4. Devido as diferengas individuais, as pessoas exercerdo a sua in- dividualidade de diferentes maneiras, A individualidade, portanto, resulta na diversidade. Ela também requer a diversidade. A ma- neira mais importante de expressarmos a nossa individualidade € escolhendo um estilo de vida. Porque somos seres sociais, um estilo de vida requer um contexto social. Precisamos de uma variedade de estilos de vida a partir dos quais escolher. A “experincia de vida” de cada pessoa é nfo apenas uma expressfo da sua propria individual dade, Ela também fornece um suporte necessério para a individualidade dos outros. Em um mundo de conformidade nao poderia haver qual quer escolha significative para ninguém. A conexao entre o bem- estar individual e 0 contexto social 6 um tema central para Mill, ea chave para se entender a conexao entre a sua filosofia moral ea sua filosofia politica. “ ‘i 44 Pensamento Modern principio da liberdade cobre apenas atos autorreferentes ~ aqueles que nfo afetam ninguém mais. Ele néo diz que temos com- pleta liberdade quando as nossas agbes de fato afetam os outros, ‘Mas tampouco diz que somente estamos livres na esfera d feréncia. Além dessa esfera, 0 principio da liberdade simplesmente silencia. Uma vez que tenhamos deixado a esfera especial do principio de liberdade, os argumentos de Mill para a liberdade tornam-se mais claramente utilitaristas. Examinamos dois: a liberdade de expresso © iberdade de mercado. Os dois argumentos utiitaristas de Mill em favor da liberdade de expresso ilustram perfeitamente tanto o seu empirismo quanto o seu interesse no contexto hist6rico das ideias. 1) Nao silencie a verdade. Nao devemos silenciar uma visio da qual discordamos porque nfio podemos ter certeza de que ela nfo contém pelo menos parte da verdade, Se eu silencio uma visio (ao invés de apenas discordar dela), entio eu devo estar presumindo que sou infalivel. Os empiristas negam que qual- quer pessoa seja infalivel. 2) Nao silencie a falsidade. Mesmo se tivéssemos a certeza de ‘que uma perspectiva divergente era falsa, ainda assim nao de- veriamos silencié-la, Os pontos de vista divergentes mantém a perspectiva ortodoxa viva. Se a dssidéncia ésilenciada, entéio as pessoas no podem testar a sua crenga considerando objegdes ¢ alternativas. Em longo prazo, a crenga torna-se dogma morto. Para ilustrar isso, Mill compara desfavoravelmente a f€ dos cris- tos ingleses do século XIX com aquela dos primeiros cristdos, que eram constantemente confrontados com os argumentos de pensadores no cristdos, / Durante a sta vida, Mill foi mais conhecido como um especia~ ista em economia politica — 0 que hoje chamamos de economia. Ble escreveu um livro extremamente influente sobre 0 assunto. Em lon Usiltarismo 45 amplos detalhes, a sua posigdo é semelhante a de Benthar rece explicitamente argumentos utilitaristas em favor d cado. Todos estardio melhores em longo prazo se as pessoas forem autorizadas a tomarem decis6es de consumo e de produgéo por mesmas, e se bens e servigos forem alocados pelo mercado ao invés de pelo controle do estado, Entretanto, a liberdade de mercado tem limites definidos. Mill explicitamente reconhece que as transagdes de mercado niio slo autorreferentes, porque tém um impacto sobre os outros. Elas so, portanto, regidas pelo princfpio de utilidade, e no pelo principio de liberdade, Assim, a intervengdo do governo nfo é descartada~e Mill defende regulamentagdes saudaveis e seguras, regras para se evitar monopélios desleais, e outros casos de interferéncia no mercado. tornou-se cada vez mais simpéitico a0 trializagio sobre a individualidade das pessoas. Democracia foi mais cauteloso em relagdo A democracia do que Ben- tham, talvez porque tenha tido mais experiéncia de como ela real mente funciona. Pensadores anteriores, que viveram sob monarquias absolutas, haviam identificado a liberdade com a ps verno, A ameaga a liberdade era o despotismo, e a democracia era a solugéo. Um dos principais objetivos de Mill em Sobre a liberdade 6 ressaltar que, mesmo em uma democracia, a liberdade poderia estar sob a ameaga das forgas da conformidade social (“a tirania da maio- A democracia nfo garante a liberdade. No entanto, Mill realmente favorece fortemente a democracia em relagdo a sistemas alternativos de governo. Em seu longo ensai Consideragdes sobre 0 governo representativo ele defende uma maior participagao politica tanto em bases instrumentais quanto intrinse- 46 Pensamento Moderno cas, O argumento instrumental de Mill € semelhante ao de Bentham, ‘e também a defesa utilitarista padro do livre mercado. As pessoas so os melhores jufzes dos seus prOprios interesses. A democracia representativa é a melhor maneira de manter os governantes hones- tos, e de manté-los focados nos interesses da maioria, Mesmo se um ditador benevolente pudesse fazer um trabalho perfeito de atender aos interesses das pessoas, Mill ainda assim preferitia a democracia. A participagio politica é boa em si mes- ma — promove o autodesenvolvimento dos cidadfos, especialmente daqueles em ocupagSes menos favorecidas. A oportunidade de par- ticiparem das decis6es politicas daria a essas pessoas o incentivo para se preocuparem com o resto do mundo, concentrarem as suas mentes em questdes mais amplas, e desenvolverem a sua capacidade de tomar decis6es importantes. Mill favorece a democracia representativa (na qual as pessoas clegem representantes que, entdo, governam em seu nome) em rela~ fo A democracia direta (onde todos votam em cada decisio particu- lar). A versio representativa é mais eficiente. Ela permite que alguns se especializem na complexa atividade governamental, ¢ deixa os de~ mais livres para dedicarem o seu tempo &s coisas mais importantes na vida, (Uma caracteristica distintiva da filosofia politica de em contraste com a de muitos pensadores antigos, € que ele néo vé a politica como a érea mais importante da vide.) Como Bentham po- deria ter dito, os defensores da democracia direta sfo como pessoas que querem que todos fagam os seus préprios sapatos. ‘Um aspecto da visio de Mill parece antiquado hoje. Ble defende ‘um sistema de votagio diferencial, no qual aqueles com mais educa~ géo teriam mais votos. (Infelizment 1 como isso funcionaria, Por exemplo, como ele iria lidar com aqueles que — como ele — so muito bem-educados, mas carecem de qualquer qualifica- glo formal?) mo. 47 O status das mulheres AAs opiniées mais radicais que Mill expressou em ptiblico dizem respeito ao status das mulheres. Ele argumenta que as mulheres deveriam ter direito ao voto, e, além disso, ser tratadas como po ticamente iguais aos homens. Mill defende os direitos das mulheres estendendo os prinefpios da moralidade costumeira. Em qualquer outra area da vida, seria considerado completamente inaceitével ue as pessoas fossem (a) forgadas a contratos permanentes por uma completa falta de alternativas, e entéo (b) no autorizadas a quebrar ou encerrar esses contratos. Mill ento pergunta: Por que a situagdo das mulheres casadas deveria ser tratada de manei ferente? (A situagdo pessoal de Mill o tornou especialmente cons- ciente da conveniéncia de se permitir que as mulheres divorciem-se mais facilmente!) iscussiio de Il acerca das mulheres também ressalta 0 seu empirismo. Os seus opositores alegaram que os papéis sociais das mulheres so adequados & sua natureza, Mill responde que, pre- cisamente por causa das suas limitadas oportunidades sociais, nfio sabemos muito sobre a natureza das mulheres. Nés simplesmente no podemos dizer se as mulheres poderiam se beneficiar do ensino superior, ou ser bem-sucedidas em certas profiss6es. Portanto, no ‘hd qualquer boa razo para ndo as deixar experimentar, Mill foi o Gltimo utilitarista, ¢ talvez o diltimo fil6sofo de lingua inglesa, que também foi uma figura cultural importante. Na prépria filosofia, Mill caiu em desgraca no inicio do século XX, quando 0 seu otimismo ¢ empirismo foram ambos considerados ingénuos e ul- trapassados. No entanto, nos tiltimos anos, os escritos de Mill, em ‘uma ampla gama de éreas — da ldgica e da teotia do conhecimento a politica e & economia ~, tém sido reavaliados por te6ricos contem- pordneos. Em particular, para os nossos propésitos, veremos que a filosofia contempordnea deve muito a Mill, especialmente em filosofia moral e politica, 48 Pensamento Moderno Henry Sidgwick (1838-1900) Sidgwick nasceu e morreu durante reinado da rainha passou toda a sua vida adulta na Universidade de Cambrid, tica e a economia, Sidgwick também foi profundament em questées religiosas, dedicando grande parte do seu tempo a cri- cas. Na verdade, ele foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Sociedade para as Pesquisas Psiquicas. Embora muito bem relacionado (um cunha- entanto, ele teve considerdvel impacto sobre assuntos académicos c. Sidgwick foi influente no estabelecimento do News nham College, uma das primeiras faculdades Oxbridge abertas as mulheres, Em 1869 Sidgwick renunciou ao seu posto de professor associado no Trinity College porque ele jé nfo podia subscrever os ‘Trinta e nove artigos da Igreja da Inglaterra — como todos os profes sores associados eram obrigados a fazer. Esta exigéncia foi abolida em 1871, parcialmente devido ao exemplo de Sidgwick. Bentham, Mill e Sidgwick: diferencas e semelhangas ‘Sidgwick foi éltimo dos grandes cléssicos utilitaristas. E também, fem; muitas maneiras, 0 primeiro fil6sofo moral moderno. Sidgwick esté muito mais perto do que Bentham ou Mill das preocupagées ¢ da mentalidade dos fil6sofos contemporineos. Ao contrério de ambos, Bentham e Mill, Sidgwick foi um fil6sofo académico profissional ~ ensinando em uma universidade e escrevendo principalmente para publicagées académicas. Os seus escritos filoséficos centram-se na teoria da ética ¢ na hist6ria da filosofia moral. Embora Sidgwick te- nha sido bastante ativo na vida piblica, especialmente na campanha por expandir as oportunidades educacionais para as mulheres, ele permaneceu em grande medida silencioso acerca das implicagdes préticas da sua prépria filosofia. Conforme veremos, esse siléncio mesmo decorre das suas conclusdes filoséficas. Ao contrétio dos seus antecessores utilitaristas, Sidgwick leva a ameaca do ceticismo moral muito a s6rio, Uma das suas principais preocupagées 6 saber se a moralidade pode sobreviver ao declinio da religiéo. Esta & em parte uma preocupagio prética: pode uma visio de mundo secular substituir a religiio como a cola social que mantém a sociedade coesa? Ela tambéra tinha um aspecto te6rico: serd que a moralidade sequer faz sentido na auséncia da religiso? ‘menos otimista aqui do que tanto Bentham quanto I. Ele acredita que o declinio da religido mina a teoria moral néo rismo a uma crise, Como Mill, Sidgwick foi influenciado pelo pensamento corrente na Alemanha. No seu caso, a influéncia foi muito mais filoséfica. Tudo o que Mill tomou emprestado dos roménticos alemdes foi uma explicagao mais rica da natureza humana, e especialmente dos seus aspectos emocior . Ele manteve um compro- so muito britfnico com 0 empirismo e a indugéo. Em contra- la, toda a perspectiva filos6fica de Sidgwick foi influenciada )sofos alemiies, especialmente Immanuel Kant (1724-1804). Embora tenha permanecido simpético & tradigéo empirista, Sidgwick atribui uma proeminéncia muito maior & ideia de razdo. O seu projeto consiste em basear a ética na razo, e néo meramente na observa- cdo empirica, siste em uma “consciéncia desejével”. Para tomar um exemplo mais tarde usado contra Sidgwick por seu aluno G.E. Moore considere dois universos possfveis sem qualquer criatura senciente: um uni- verso é muito bonito, 0 outro muito feio. De acordo com Sidgwick, 50 Pensamento Moderno ‘como no hi qualquer observador para obter prazer ou dor, nenhum desses uhiversos tem absolutamente qualquer valor. O universo belo nfo 6 melhor do que o feio. rais, mas as massas devem ser Ges e regras, endo a a (Bernard Williams, um influente critico do utilitarismo do final do século XX, apelida este elitismo de “utilitarismo da Casa Governa- mental”, alegando que ele decorre da mesma atitude arrogante que governo paternalista das colénias britdnicas no século XIX.) Sidgwick segue Mill ao enfatizar a compatibilidade do ut rismo com a moralidade de senso comum. Sidgwick intitulou a sua obra-prima Os métodos da ética. Um método é uma maneira muito geral de se decidir 0 que fazer. Métados dao origem a principios — guias mais espectficos para a ago, tais como as regras cotidianas de moralidade, Sidgwick discemne trés possiveis métodos de ética: 0 uti- litarismo, o intuicionismo ¢ o egofsmo. Na época de Sidgwick, como na de Mill, os principais oponentes do utilitarismo eram os intui nistas, que acreditavam em um “senso moral” que nos proveria do conhecimento infalivel dos prinefpios morais. (Sidgwick distingue 0 intuicionismo dogmdtico — que ele condena — do intuicionismo filosé- fico — que é 0 nome que ele dé a sua propria metodologia.) ‘A primeira tarefa de Sidgwick consiste em demonstrar a supe- rioridade do utilitarismo em relagio ao intuicionismo. A maior parte do seu livro consiste em um relato bastante detalhado dos principios bésicos da moralidade de senso comum: sabedoria, benevoléncia, justiga, manutengao de promessas, veracidade, virtudes de autoesti- ‘ma, coragem, humildade e outras virtudes. As andlises de Sidgwick Utilitarismo 51 tém sido uma grande inspiragio para geragées posteriores de uti- litaristas. Em cada caso, Sidgwick argumenta que o intuicionismo do pode prover prinefpios precisos para orientar as nossas ages. Sidgwick concorda que um senso moral nos daria certeza moral. Se eu tivesse um senso moral, eu sempre saberia o que fazer. No entan- to, ele usa justamente esse fato para argumentar contra a ideta de um senso moral. Como eu frequentemente no sei o que deveria fazer, eu obviamente nao tenho um senso moral. Como isso é verdadeiro acerca de todas as pessoas, ninguém tem um senso moral. Por con- seguinte, o método Pode oferecer principios norteadores precisos para a ago. Porquan- to 08 remete ao principio ut or que princfpios particulares sio corretos. A abordagem de Sidgwick suscita trés questées amplas 1) Serd que o utilitarismo realmente captura a totalidade da mo- ralidade costumeira? Pot exemplo, assim como com a teoria de Mill, podemos perguntar se um utilitarista realmente pode expl car 0 nosso senso de justica. O préprio Sidgwick argumenta que a principal disputa entre 05 utilitaristas e os seus oponentes diz respeito & benevoléncia. Todos concordam que temos algumas obrigagdes de ajudar os outros, mas nfo hé consenso quanto ao alcance dessa obrigagao. Conforme veremos no capftulo 5, os coponentes do utilitarismo ainda contestam a sua explicagéo da benevoléncia. 2) Seré que as trés opgdes de Sidgwick sio exaustivas? Oponen- tes do utilitarismo frequentemente argumentaram que, porquanto ‘Sidgwick comega com uma visio de mundo. amplamente ta- rista, ele perde uma série de outros possiveis métodos, restrin- ‘gindo todas as alternativas ao utiitarismo (além do egofsmo), em conjunto com 0 “intuicionismo (dogmético)”, ¢ entio oferecen- do uma explicagao bastante estreita da moralidade intuicionista. 52 Pensamento Moderno Sidgwick afirma que todo método deve ter um fim uma fonte arismo e para o egofsmo, este 6 0 prazer — tanto o prazer em geral, ou o meu proprio prazer. O fim alternativo possfvel € a “perfeigéo humana”. A teoria moral com este fim é o intuicionismo — porque as suas regras morais s4o de- rivadas a partir de um ideal de comportamento que aperfeigoaria a natureza humana. (Sidgwick tem em mente intuicionistas cujo pperfeccionismo endossa a visio de que a moralidade consiste em seguir 0 padrdo de Deus para nossas vidas. ‘Ao identificar 0 no utilitarismo com 0 intuicionismo, ¢ ao entiio ick, assim, ignor ‘mo quanto para o intuicionismo. (Um exemplo da primeira det & 0 perfeccionismo consequencialista: uma teoria como 0 tarismo, exceto pelo fato de que a perfeigio sub Em lugar de maximizar o prazer, nés mi Esta opgio tem sido perseguida nos canadense Thomas Hurka.) Muito da filosofia moral do séctilo XX consiste na busca di stas adicionais. O mais proeminente ex: no sentido de Sidgwick. Rawls pede-nos para imaginarmos quais prinefpios escolherfamos se nfo soubéssemos quem se~ fem nossas obrigagées uns para com os outros enquanto seres racionais, abstraindo das nossas preocupagées ¢ interesses par- ticulares. O objetivo é prover uma fundamentagao nao ut ta para os prinofpios morais. Outros no utilitaristas defendem versées modernas de intuicionismo, menos o perfeccionismo a0 qual Sidgwick objetou. Em tese, pode-se supor que Sidgwick néo se incomod: com estes desenvolvimentos. A sua investigagéo é mente hesitante ¢ preliminar. Se outras pessoas chegassem com novos métodos, ou com novas versdes de antigos métodos, ele :om 0 egofsmo. 3) A ética deve ter um método? Muitos fil6sofos mor especialmente Bernard Williams ¢ diversos especi ca da virtude, questionam o impulso de se produzir um sistema moral completo. Esta possibilidade é particularmente importan: uma vez que vemos que a prépria tentativa de Sidgwick de tematizar a ética termifiou em caos. O dualismo da razdo pratica ‘Tendo Sidgwick descartado 0 intuicionismo, restam-Ihe duas formas concorrentes de hedonismo: o hedonismo universalista (uti tarismo) ¢ 0 hedonismo egoista (egofsmo). tas me dizem para ide. Sidgwick conclui que cada método é independentemente um primeito principio racional. Nenhum tem precedéncia sobre outro. Anno ser que o smigdvel” — a nfo ser que seja especi ficamente projetado para fazer com que os dois métodos coincidam — parece claro que eles frequentemente contflitardo na prética. Suponha que eu tenha R$ 10. Eu posso maximizar a minha prépria fe de através da compra de um ingresso de cinema para ver Violéncia gratuita IV, mas se eu estivesse maximizando a felicidade geral eu poderia certamente encontrar um melhor uso para o dinheiro. Neste ponto, a razio nfio oferece qualquer orientagao adicional. Sidgwick encontra um dualismo insolivel no coragéo da razo humana, 54 Pensamento Moderno dualismo de Sidgwick est relacionado & objegao comum de que o utiltarismo é extremamente exigente (capftulo 5). Entretanto, Sidgwick tem um ponto mais profundo. Ele encontra uma contra digo na razio prética, nfo apenas uma dificuldade moral. Ele no esth apenas destacando que os nossos interesses pessoais conflitam com o bem geral, ou que © utilitarismo pode ser muito exigente, ou mesmo que pode ser psicologicamente impossfvel cumprir as exi- géncias do utilitarismo. Em vez disso, ele esté dizendo que colocar ‘9s meus prOprios interesses em primeiro lugar 6 no apenas psico gicamente natural - é também completamente racional ¢ inquestio- nivel. Uma pessoa completamente egoista néo pode ser condenada por qualquer erro racional. Para Sidgwick, o dualismo da razo prética sinaliza 0 fracasso da teotia ética. Se a filosofia moral pretende ser bem-sucedida, ela deve conciliar os dois métodos. Cumpre fazermos uma pausa para bservarmos quio forte € este requisito. A contradigéo na raci lidade s6 6 evitada se a felicidade de cada pessoa sempre exatamente com a felicidade geral. A maior parte restante dest trata de casos nos quais os interesses das pessoas esto em con! to —e assim o faz a maior parte da vida cotidiana. Sem conflito, © que restaria da ética? Uma solugo para o dualismo de Sidgwick dissolveria as principais objegdes ao uutilitarismo e talvez removesse completamente todos os problemas moreis. Sidgwick rejeita todas as solugdes filoséficas ao seu dualismo: religiosa, empirista, hegeliana, kantiana e cética. Isso o leva a explorar uma alternativa paranormal. 1) A solugdo Deus — A solugGo tradicional era Deus. Se Deus sgoverna o universo, entéo podemos estar confiantes de que se- remos recompensados por cumprirmos 0 nosso dever. Portanto, a felicidade e a motalidade devem coincidir. Sidgwick concorda que esta solugo seria satisfat6ria, Infelizmente, nao podemos ter certeza de que Deus existe. (A nossa incerteza a respeito de Deus & mais uma razo para tejeitar 0 intuicionismo, 0 qual tradicio- Utiltarismo 55 nalmente presume que Deus nos deu um senso moral infal Sidgwick, portanto, tem muito em comum com pensadores re- es que argumentam que Deus é necessério para conferir sentido a moralidade. Vemos agora por que Sidgwick ‘menos otimista do que Mill de que a moralidade pode sobreviver a perda da fé religiosa. Vemos ainda por que Sidgwick guardou as suas proprias diividas religiosas para si mesmo. Se a fé religi sa for necesséria para evitar 0 dualismo da razio pratica, entdo a diivida religiosa disseminada € potencialmente desastrosa, 2) A solugio empirista — Mill, seguindo muitos sociélogos con- tempordneos, argumentou que, conforme a sociedade progride, 65 interesses de pessoas diferentes hao de coincidir cada vez mais. A preocupagio de Mill é prética, Ele busca uma sociedade na qual as pessoas agiréo em vista do bem comum, mesmo sen- do naturalmente egofstas. Mill pode assim arcar com algumas divergéncias entre a felicidade individual ¢ a geral, desde que 6, portanto, surpreendente que Sidgwick extraia uma conclusio negativa das suas proprias inquirigdes empfricas — os dos individuos divergem demais do bem geral, 3) A solugdo hegeliana — Os hegelianos britanicos — especial- ‘mente associados ao amigo de escola de Sidgwick, TH. Green (1836-1882) na Universidade de Oxford — basearam a ética na metafisica de G.W.F. Hegel (1770-1831), um fil6sofo alemao muito influente do infcio do século XIX. A Metafisica de Hegel 6 notoriamente dificil de entender, mas uma tese fundamental 6 a de que todas as dicotomias e distingSes so, em ltima instfncia, irreais. Se vissemos o universo corretamente, nés reconhecerfa- mos que a distingdo entre individuos humanos é uma ilusfo — nfo existem individuos separados, mas meramente aspectos de um nico Absoluto eterno. A propria ideia de uma divergéncia de 56 Pensamento Moderno interesses é, portanto, metafisicamente incoerente. Esse quadro idealista bésico foi muito influente na filosofia bri Jo XIX tardio, Ele caiu em desgraca no inicio do século XX — em grande parte devido aos ataques devastadores de dois estudan- tes de Sidgwick: Bertrand Russell (1872-1970) e G.E. Moore (1873-1958). ‘Ainda que fosse simpético a filosofia alemé, Sidgwick era ainda empirista o bastante para acreditar que apenas um argumento cextremamente forte poderia superar a persuasiva evidéncia em- pirica de um conflito entre a felicidade individual e a geral. Os argumentos que defendem a metafisica hegeliana simplesmente nfo foram suficientemente fortes. (Na verdade, apesar do seu respeito pelo seu amigo Green, Sidgwick considerou a metalsi- ca hegeliana em grande parte ini 4) A solugdo kantiana — A solugdo kantiana é baseada no “argu- mento moral” de Kant em favor da crenga em Deus ¢ na imor- talidade. A especulagio tedrica é baseada em nossos conceitos, ‘05 quais visam exclusivamente 0 mundo que experimentamos. Tal especulago nao nos pode conduzir além do mundo da expe- rigncia, Por isso ndo pode nos dizer se Deus existe, ou se somos jimortais. No entanto, a moralidade diz-me para almejar @ mi nha propria perfeigéo moral e um mundo justo. Essas demandas so incoerentes ¢ irracionais a menos que haja uma além-vida presidida por uma divindade benevolente. A crenga em Deus € moralmente necesséria, Temos raz6es préticas para acreditar em Deus, e nenhuma raaio te6rica para nao fazé-lo. Portanto, & crenga em Deus é razoével. ‘Sidgwick foi por vezes atraido ao argumento de Kant. No final, entretanto, ele 0 rejeitou enfaticamente. A nossa necessidade de sistematizar a ética fornece-nos uma tazio urgente para esperar que 0 universo seja amistoso, e prove uma motivagao muito forte para se buscar evidéncia de amistosidade, mas isso nfo € raziio Utiltarismo 57 para se acredi iF que o universo seja realmente amistoso. Nao podemos simplesmente presumir que a ética ndo seja incoerente. Estou tdo longe de me sentir obrigado a acreditar para pro- pésitos préticos no que eu nfo vejo qualquer motivo para considerar como uma verdade especulativa, que eu néio pposso sequer conceber o estado mental que estas palavras parecem descrever, exceto como uma momentinea, qua- se intencional irracionalidade, cometida em um violento acesso de desespero filos6fico (Sidgwick. Os métodos da ética, 507) 5) A solugdo cética — Outra alternativa € tomar o fracasso da ética ao pé da letra, A ética falha porque é incoerente. Devemos abandonar a busca de uma explicagao unificada da racionalida- de, admitir que a razio seja uma guia inadequada para a ago, © ser guiados ao contrério pelos nossos instintos ou desejos. Alguns dos contempordneos de Sidgwick abragaram 0 vécuo especialmente na moralidade sexual. O préprio Sidgwick parece ter favorecido uma abordagem mais liberal da moralidade pes- soal ~ embora aqui, mais do que em qualquer outro lugar, a sua reticéncia péblica torna muito diffcil descobrir 0 que ele realmente pensava. No entanto, ele considerava o instinto e a paixio como bases muito pouco confidveis para uma moralidade péblica. Se 10 se tornasse generalizado, o resultado seria néo a li bertagéo, mas 0 caos. 6) A solugdo psiquica — A sua rejeigéo de todas essas solugées plausfvel que os interesses de to- do completamente na vida presente. A vida apés a morte é, certamente, insuficiente para resolver 0 dualismo da razio prética. © préximo mundo pode ser simples- 58 Pensamento Moderno mente téo hostil como este mundo. No entanto, a vida apés a morte € necessdria para a ética. A menos que haja outra vida onde a justiga possa ser alcangada, a tentativa de sistematizar a ética € desprovida de esperanga. A necessidade mais urgente para os filésofos morais € examinar a evidéncia de que os seres humanos podem sobreviver & morte. As atividades paranormais de Sidgwick so, portanto, néo um hobby excéntrico. Elas sio fundamentais para as suas preocupagées filosGficas. Dissolvendo o dualismo de Sidgwick dualismo da razio prética surge a partir de quatro afirmagées. 1) O egofsmo é racional 2) O utili 3) A finica maneira de se reconeiliar dois métodos racionais é provar que eles nunca conflitam. 4) O uiltarismo e o egofsmo conflitam, Fil6sofos modernos tém desafiado cada uma dessas quatro afir- mages. Talvez a mudanga mais Sbvia, especialmente para os uti- litaristas, seja negar que 0 egofsmo seja racional. Muitos dos pri- meiros criticos de Sidgwick objetaram que a sua discussio sobre o egofsmo 6 muito menos detalhada, e menos convincente, do que a sua discussio sobre 0 utiitarismo, Sidgwick justfica o utili demonstrando como ele subjaz. os princfpios da moralidade de senso comum, No entanto, ele admite livremente que o egofsmo conflita com a moralidade de senso comum, no defende a racionalidade do egofsmo. O utilitarismo, portanto, parece apresentar uma hipéte- se muito mais forte do que 0 egoismo. Se os dois métodos conflitam, por que nfo simplesmente rejeitar o egofsmo? Sidgwick respondeu a essa critica em edigGes posteriores do seu livro. Parte do seu argumento 6 negativo. Os utiltaristas s6 seriam justificados em considerarem o egofsmo como irracional se pudes- smo é racional. Utiltarismo 59 sem demonstrar que 0 egofsmo conduz ao utiltarismo — que é | gicamente inconsistente aceitar o egofsmo e nfo ser um uti ta. Por exemplo, poderfamos argumentar da seguinte maneira, Um egofsta acredita que 0 seu proprio prazer seja bom. A consisténc exige que ele reconheca que os prazeres de todos os demais sejam igualmente bons. Portanto, a posigo do egofsta é instével, ¢ 0 res uma vez que eles no compartilhavam a preocupagao de quanto & ameaca do egofsmo. Ao contrério, representa 0 acerca deste ponto.) Sidgwick rejcita todos esses argumentos. Se alguém é um eg ‘nés néo podemos racionalmente obrigé-lo a aceitar 0 rismo. Neste ponto, Sidgwick apela para o seu hedonismo. A ni gio do bem geral é construfda sobre uma ideia mais bésica: a de que um determinado estado de consciéneia é bom para uma pessoa particular. O método que responde diretamente ao bem ind dual é, portanto, mais bésico do que o método que responde & consciéncia desejével em geral. O egofsmo é mais bésico do que Porque primeiro sentimos as reivindicagées do egofsmo, Se 05 dos conflitam, ento néo podemos oferecer qualquer razéo pela qual o egofsmo deveria ceder.) Em defesa de Sidgwick, poderfamos observar que algumas formas de egofsmo tém forte apelo intuitivo. A alegagao de que me é racional perseguir os meus prOprios interesses 6 central & propria ideia de racionalidade. Imagine uma pessoa que seja comple. tamente indiferénte aos seus prOprios interesses. Quem negaria que 60 Pensamento Moderno essa pessoa € irracional? (Voltaremos & relagio entre o utiltarismo € ‘oegofsmo no capitulo 5.) ‘A segunda resposta dbvia 6 rejeitar o utilitarismo. O mo 6 abjetamente exigente — ele deixa muito pouco espago para os proprios interesses do agente. £ por isso que confli io for- mente com egofsmo. Uma teoria moral mais plausfvel pode no conflitar com 0 egofsmo, (Essa via naturalmente atrai aqueles que rejeitam a tese de Sidgwick segundo a qual a moralidade de senso comum é equivalente ao utilitarismo.) Se queremos uma teoria mo- ral que absolutamente nfio entre em contflito com 0 egofsmo, entdo a estratégia ébvia 6 inferir essa teoria diretamente do proprio egofsmo. Se as exigéncias da moral so aquelas do autointeresse, nao hé espa- go para conflito, Um exemplo recente & 0 contratualismo de David Gauthier. Baseando-se em uma tradigéo que remonta a Thomas Ho- bes e John Locke no século XVII, Gauthier identifica a morelidade com os resultados de uma berganha entre agentes racionais autoin- teressados que precisam de um conjunto de regras para governar as suas interagdes uns com os outros. ‘A reducéo da moralidade ao interesse proprio nfo tem amy accitagdo. A maioria das pessoas sente que € moralmente heroico para alguém sacrificar a sua vida para salvar os outros. Mas se a mo- ralidade consiste no interesse préprio, entiio devemos dizer ou que tal pessoa é imoral ou que ela esté simplesmente perseguindo o seu proprio autointeresse. A nogdo de autossacrificio moralmente adini- tdvel nao faria sentido. Poucos te6ricos morais querem basear a sua teoria completamente no egoismo. Entretanto, a menos que o facam, alguns conflitos entre a moralidade e 0 autointeresse. mo original de dever adr Eles esto, portanto, abertos a uma variante do du gwick, com o utilitarismo substitufdo pela moralidade em geral Se o egofsmo e a moralidade so ambos racionais, € se ¢ entio devemos encontrar alguma outra maneira de reconcil mo 61 ente negar que a moralidade seja ra- ser moral. Os filsofos tendem a nao 1, Mesmo se a moralidade nfo for racion mente compulséria, os filésofos nao querem que ela seja irracional Outra abordagem consiste em dar espago ao autointeresse den- tro da moralidade, e, entdo, negar que o egofsmo seja racionalmente aceitével quando excede esses limites. Esta € a abordagem de mui- tos te6ricos que trabalham na tradig&o utilitarista, Alguns defendem ismo tradicional ~ cada pessoa é autorizada a conferir sua propria felicidade apenas tanto peso quanto o da qualquer outro individuo. Outros constroem versées do tem que os agentes confiram um peso despropore gs seus préprios teresses, e, entdo, negam que seja racional igno- rar tamente o interesse geral quando ambos conflitam. Estes tas aceitam que, embora o utilitarismo € 0 egofsmo repre: em pontos de vista diferentes (0 ponto de vista do individuo e ponto de vista do universo”, como Sidgwick 0 coloca), nao ha qu: ‘quer razfio pela qual esses dois pontos de vista no possam ser com- jinados e reconciliados dentro de uma tinica teoria moral moderada, (Exploraremos essas opges mais profundamente no capitulo 7.) Baseando-se em temas de muitos dos contempordineos de Sidgwick, tais como Mill e Green, utltaristas contempordineos tentam ainda redu- arismo e o egofsmo, enfatizando em que medida os interesses reais das pessoas coincidem. Uma estratégia é argumentar que os prazeres € conquistas mais valiosos vem de vidades cooperativas, onde o conflito é minimizado. (Voltaremos a essa estratégia no capitulo Muitos fil6sofos nao utiitaristas veem o dualismo de Sidgwick como uma caracteristica inevitavel do seu arcabougo ut insistirmos em ver a moralidade a partir do ponto de vista do uni verso, ento no poderemos esperar concilié-la com a visio de cada pessoa acerca da sua pr6pria vida. Em vez disso, deverfamos ver a 62 Pensamento Moderno moralidade como um equilibrio entre os pontos de tes individuos. Adotar 0 ponto de vista moral nfio con jgum ponto de vista sobre-humano, mas meramente em aceitar que © meu préprio autointeresse deve ser constringido pelos interesses legitimos de outros. Um exemplo contempordneo é o contratualismo de Thomas Scanlon, no qual a moralidade é baseada em regras que inguém pode razoavelmente rejeitar. Uma vez que estamos equi- rando diferentes pontos de vista do mesmo tipo, € muito mais razovel esperar conci Outra maneira de dissolver o dualismo é argumentar que, embo- cada um tem los. 12 0 utilitarismo e 0 egofsmo sejam ambos racionai mo seja a explicagéo correta da racionalidade individual. Ou talvez devamos reconhecer que a racionalidade (representada pelo egoismo) ea moralidade (representada pelo utilitarismo) sejam dominios inde- pendentes do pensamento prético — cada qual governado pelas suas, préprias leis, e nenhum deles subserviente ao outro. Talvez, quando idgwick demanda um Gnico padréo de racionalidade para resolver ‘odas as disputas entre os dois dominios, ele esteja demandando mais azo humana do que ela pode possivelmente esperar entregar. {A solugéo favorecida pelo proprio Sidgwick para o dualismo da raziio prética no encontrou muitos seguidores (se houver encontra- do algum) entre os filésofos morais contempordneos. Os utilitaristas contempordincos tendem a nfo prestar muita ateng&o na pos dade de sobrevivermos & morte, ¢, provavelmente, nenhum deles aceitaria que o utilitarismo s¢ Por outro lado, aqueles filésofos que de fato levam a possi outra vida a sério quase sempre ndo so i ‘operam dentro de uma perspectiva religiosa fortemente elementos antiutiitaristas em sua filosofia moral. O pro- blema de Sidgwick foi muito mais influente no pensamento moral incoerente se nfo sobrevivermos. istas. rismo 63 recente do que a sua solugdo. Apesar de seu fracasso final, a busca de Sidgwick por uma teoria moral coerente, intuitivamente atraent racionalmente fundamentada, estabelece o cenério para a filosofia moral moderna, Isso completa a nossa pesquisa do utilitarismo cléssico, Agora comecamos a transigéo para o utiltarismo moderno, explorando as diferentes maneiras pelas quais os utiitaristas t8m procurado justificar 2 sua teoria a0 longo dos dois ditimos séculos, Pontos-chave para os trés u Jeremy Bentham * principio de utilidade diz aos legisladores para produzirem que maximizem a felicidade. + O prinefpio de utilidade € a Gnica base possfvel para a moralida de — qualquer outra coisa é meramente “capricho”. * O principio de utilidade deve definir todos os direitos legais. A ia de direitos naturais é um “absurdo sobre pernas de pau” John Stuart Mill * “As agSes so corretas na proporg&o em que tendem a promo- ver a felicidade, e erradas quando tendem a produzir o reverso da felicidade.” + Empirismo — todo conhecimento (incluindo a moralidade) é baseado na experiénci * O principio de utilidade é derivado da experitncia — especi mente do fato de que todos desejam a felicidade. * O juiz. competente (que experimentou ambos) prefere prazeres ‘mais elevados a inferiores. * A sociedade s6 pode interferir na liberdade de um it 48 suas ages forem um dano para os outros, iduo se 64 Pensamento Moderno * O principio de utilidade apoia a liberdade de expresséo, a de- s das mulheres. mocracia € os Henry Sidgwick + O dualismo da razio prética: - Existem dois métodos racionais de tomada de decisio: 0 smo € 0 egofsmo. = Os dois métodos so irreconcilidveis. - Nenhum dos dois métodos ¢ superior ao outro, - A menos que possamos resolver este dualism, a ética é in- coerente. mo 65,

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