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Desfazendo a fantasia do sujeito (dangante): ‘Sail acts’ em The Last Performance de Jérdme Bel! André Lepecki™ Os pensamentos sobre still ats (atos parados) apresenta- dos neste ensaio sio as formulagdes mais recentes de uma longeva pesquisa sobre a paragem na danga. Antes de reme- ter-me ao espeticulo The Last Performance, de Jézéme Bel, gos- taria de resumir brevemente as premissas desta pesquisa e re- passar alguns pontos de meu caminho até aqui. Em um ensaio de 1999, apresentado na Fifth Performance Studies Conference, no Pais de Gales, analisei brevemente as di- iimicas historicas segundo as quais a paragem na danca céni- ca ocidental deixou de ser 0 outro da danga (como fora deli- neado pelas ideologias do balé romantico e jé anunciado por Retiado da publicagio BELDER, Steven de e TACHELET, Koen (ed). Tie Salt of che Barth an Dance, Poitier and Reali. ‘Weiings and opinions from a seminar at Klapstuk 1999, Bruxels ‘Vlaams Theater Instituut, 2001, Traducio de Thereza Rocha & sevisio de Feedesico Paredes. Ensaista ctico edramanurgo,¢ Assistane Professor no Department ‘of Performance Studies da New York University, ondelecona cursos de Mestrado ¢ Doutorado em teoria da danca, dramaturgia experimental, teora daculturne critica cultural: professor convidado do curso de pés-graduacio “Estudos Avancados em Danga ‘Contemporinea: coreografiae pesquisa” da UniverCidade. _enesdai; Vad epecké Kleist em 1810, no seu famos ; ensaio Sobre o teatro das marione. ‘©) para ganhar, com 0 advento do modemnismo na danga (Duncan, Nijiask), 0 papel de seu impulso principal, um tipo de forca tmotriz que permitia a danca tornar-se presente. As ‘itacdes sdo bem conhecidas ~ Isadora Duncan (1927-75) na busca da “origem natural da danga”: _Porhoras eu pude permanecer de pé patada; minhas duas invdos entrelagadas entre meus seios, cobrindo o plexo sola. {iu estava & procura e finalmente descobri a fonte central de todo movimento” Jacques Rivigxe (1965:165), crticando e reagindo 4 Sagrado la Primavera de Nijinski: “No corpo em repouso, ha uma infi- tnudade de vetores ocultos, todo um sistema de linhas que o inclinam para o movimento”, Mais tarde, em um mo(w) mento pés-Cage, com Magnesia ‘le Steve Paxton, a paragem era explicitamente conclamada como pertencente i danca, e mesmo articulada como dana dle fato, O inovador americano inventou uma danca chama- cla the stand. Vale citar Paxton (1977:11) extensivamente so bre the stand: : “Bem, antes de mais nada, trata-se de uma percepgio ais ou menos simples: tudo o que vocé tem que fazer é ficar de pé e relaxar ~ vocé sabe e em um determinado momento wocé percebe que relaxou tudo 0 que podia, mas ainda esta de pé e este ficar de pé é um bocado de inicromovimentos... O esqueleto sustenta voc’ nessa po- sigdo erecta malgrado vocé esteja mentalmente relaxado... [Sec LEPECKT (1999) citagio mais sinicaiva da paribola de Kleist pod sera seguinte: . Manonetes, tal como os elfos, precisam do chio apenas para toci-lo e reanimar © impulso de seus membros sobre esse obsticulo momentineo; nds tem !ecesidade dle para pousar.nos e restabelecer-nos do esfonyo da dana ‘que, evidentemente, no pertence a danga e que € necessirt ei indi, tate quanto possivel ‘Desfagenda a fantasia do seta (dangant Sill acts’ om The Last Peeformance de frie Bel Chame isto de ‘danga minima’... Este nome foi escolhido muito porque descreve bastante bem a situagio € porque enquanto vocé permanece de pé, sentindo a danga minima, voc’ esté consciente de nio a estar ‘fazendo’, entio, de algu- ma forma, vocé assiste a si mesmo agir, assiste seu corpo de- sempenhar sua fungio. E sua mente nao esta imaginando nada nem procurando por respostas, nao esta sendo usada como um instrumento ativo, mas sim como uma lente que foca de- terminadas percepgdes.” Em um ensaio mais recente, observagiio de Paxton de que the stand requer um deslocamento petceptivo no corpo do bailarino (Lepecki 2000), Paxton es. clareceu que, fenomenologicamente, 0 parado em he stand no cera aquele das estituas, mas derivava de uma redistribuigio da abrangéncia do movimento significante na danga assim como de uma reinvengio das expectativas em relacio 4 fluidez como caracteristica definidora da danga. Para Paxton, ¢he sland engen- dea 0 que José Gil (1996) chamou de “‘pequena percepcio” Sendo assim, investiguei como uma fenomenologia da para- gem (que nomeei, a partir de Gil, de “microscopia da percep- a0”) podia derivar desse corpo de pé. Enquanto eu procurava por exemple paragem na danga, um dos aspectos que chamou a minha atencio foi o fato de ela emergit em momentos de ansieda- de histrica e poder ser vista como a resposta do corpo a esses momentos. Essa formulagio derivou da observacio de certas coincidéncias na pritica dos coredgrafos do inicio. dos anos noventa: Yochiko Chuma de pé na igreja de Saint Mark em 1992 dizendo que a situacio do mundo eta tal que cla nao estava disposta a dangar (veredicto de Rodney King, guerra do Golfo, Bosnia). No outro lado do oceano, em Pa perseguio caminho aberto pela dessa tremulante ris, alguns coredgrafos se encontraram para uma residéncia intensiva de um més ¢ produziram, independentemente, ‘© mesmo tipo de afirmacio tanto verbal quanto fisicamente. O interessante é que essa busca pela interrupcio nao era uma ‘negagio do medium danga, mas um momento em que havia uma profunda sondagem formal respeito dos limiares expressivos © perceptivos da danca enquanto medium, devido as crcunstin- cias sociopoliticas. Essa conclamagio da paragem escapa dos campos das consideragses cinestésica ou de composigio que Costumavam ser o seu territ6rio para tomar-se uma ago cheia de forca. Fssa forca da parada é 0 que eu chamo de stil act (ato parado) na danea, para o qual eu gostaria de me voltar agora, um ato tio poderoso, perturbador, como Huberman, que pode ser denominado tesistente. screve Didi- PARAGEALE RESISTENCIA, AAS qualidades simbdlicas e expressivas da paragemd clareiam a natureza fenomenoldgica desse (resistente) ato de interrupgao. Fla ni é sindnimo de congelamento. Antes, o que a paragem fiz é iniciar 0 sujeito em uma outra relagio com a temporalidade. A Paragem opera no nivel do desejo do sujeito de inverter uma certa relagao com o tempo e com alguns ritmos corporais (preestabdlecidos). Engajar-se no parado significa, entio, engajar- se em novas experiéncias da percepgio de sua propria presenga. Essa éa perspicaz nogio de stil a da antropéloga e critica da cultura Nadia Seremetakis. Para Seremetakis (1996), sil ats sto aqueles momentos de pausa einterrupgio nos quais 0 sujcito a0 introcuzir fisicamente uma disjuncio no fluxo da temporalidade— interpela a “pocira hist6rica”:’ “Contra o fluxo do presente”, Refio-me i primera edgio de SKITE, orgmizada pelo c z on clo cetico programador francés Jean Maec Adolphe. Vera Mantero, Meg Stuact, Paul Gazzola, Santiago Sempere so alguns dos coredgrafos preseates que prctziram traballan cin tomo de imobildade, lento, para, Ver Seremetakis, 1996, Desfendo a fantasia do vjeta (dangant) Sull ets em The Last Perloemance de fenine Be cesereve Seremetakis, “hd uma parada na matéria cultural da repre historicidade; coisas como espagos, gestos ¢ contos qu ccntam a capacidade perceptiva de criagio historica elementar \ paracla €o momento em que osepultado,odescartadoeoes- Qual é a versio fo «quecido eseapam para a super- licie social da consciéneia tal comooxigtnio vial Tmtasedo M4¢Fativas da danca momento de tirar a poeita his- modernidade? tonica” (Buck-Morss 1995:95). \ utilizagao feita por Seremetakis da expressio “pocira lust6rica”’ vem de sua leitura de Walter Benjamin. Susan Buck Mors (1995:95), na sua andlise critica do Projeto Arvades dle Henjamin, explica como, para ele, “a historia permanece ta0 parida que adquire poeira” (Buck-Morss 1995:95). Nessa pa rayem da histéria podemos entender a utilizacio da expres pocira histérica” por parte de Seremetakis. Para cla, a pocira representa os meios através dos quais o assentamento imperceptivel dos eventos histéricos anestesia os sentidos em uum pacifico processo coletivo de repressio sensorial na for centamento e sedimentagio perceptivos. Seguindo a -ia adicionar que a ssilizada fantasia do sujeito made Jogica benjaminiana, entretanto, poder-s historia também prodwz poeira para simular um conturbado culo de progresso, uma encenagio do avancar. f! den: tre essas dobras empoeiradas de agitagio em nome do pro- resso que o engajamento da danca nos atos parados pode ser entendido como resisténcia. Permanecendo parado contra uum fundo de agitacZo historica (uma agitacio no obstante para da), 0 dangarino nao trai a danga, mas antes propde uma outrt danca, uma na qual o tempo se estende imensamente despertans Orias descartadas para inundé-la, permitindo que gestos, pensamentos, sentimentos, pontos de vista necessirios,ainda que sedimentados, possam emergir novamente na superficie social espet dom 15 ada nas. na André Lepecki \o nos engajarmos na paragem, autorizamos aqueles “perturbadotes atos de meméria” que Didi-Huberman iden- tificou no act imobite. Na parada, suspendemos a anestesia his t6tica e sensorial, Tue: Las Pervormance Eu gostaria de pensar, mais explicitamente agora, a res- Peito do que pode vir 4 tona uma vez que a danga emirja de sua propria pocirenta sedimentacio histérica, para desafiar ttosso aparato sensorial e cognitivo por meio da paragem, Esse € 0 momento em que o histérico, 0 fenomenoligico ¢ © politico convergem para criar uma confrontacio ontol6gica. Para fugit da metafisica, vou concentrar-me em uma pesa do coreégrafo francés Jérsme Bel. A obra de Bel como um todo tem sido, até aqui, uma em que os atos pa- tados abundam. Na peca Jériive Bel, criada em 1995, a pa- ragem —encenada como uma habilidade, consciente de e: tar diante dos espectadores— interpela diretamente a pla- ‘éia. A platéia é chamada a percorter conjuntamente esse tetrit6rio inexplorado de pacifica expressividade, no qual 0s corpos rendem-se a forga de suas presencas. Ao conted tio de ver o parado como o negativo da danea, Jérome Bel mostra como a danca pode sempre reinventar corporalidade, subjetividade, sensorialidade, ao recobrar atitudes corporais que setiam de outro modo descartadas como in/significantes, Mas € com The Last Performance que a paragem sopra as camadas mais sedimentadas da poeira que cobte um dos pre ceitos ideolégicos mais basicos da danca — isto é, sua itreprimivel ligacdo a (ao que eu chamo de) “fantasia dtica do sujcito”. Eu uso o termo “fantasia dtica do sujeito” do que Louis Althu no seni et (1994) desenvolve na “form(ulacio Desf Suill acts? om The | condo ua fantavi do ajeita(dangante mn Pertoemance de forime Bel espontinea do sujeito como estrutura em espelho” sustenta «ha por um “sujeito Unico ou Absoluto” que interpreta a si mesmo como tal através de um proceso de naturalizacio ¢ rcificagao (cujo nome ¢ ideologia) das condigdes de sua per- pctua teproducio. F precisamente esta fantasia que s ae ‘ontologia da danga na modernidade, ¢ é esta fantasia que 7 1 ast Performance desafia através de um continuo coreografar dle atos . ore es apos assistit a The Last Performance pela primeira ver, troquei emails com Bel a respeito de alguns dctalhes da pega. Invariavelmente, em todos os e-mails que recebi de Bel, sua assinatura desestabilizaria mais do que slirmaria sua identidade: “Um abraco. Assinado Jérdme Wel/ André Agassi.” Aqueles que assistiram a The Lust Vjrmance sabem que 0 que esta em jogo aqui, nessa ass satura dupla, também ¢ muito relevantemente, é uma pia «da, mas sobretudo, e ainda mais relevantemente ainda, 140 uma piada. The Last Performance comeca com um dos in \erpretes, Frédéric Seguette, anunciando para a platéia: “Ku sou Jérdme Bel.” Depois de alguns segundos, esse Jérdme Biel sai de cena e a pessoa a quem 0 nome Jérdme Bel foi Jo pela familia e certifcado pelos regstros (esta tais) franceses entra vestido como o tenista André Agas: de, através do uso lidico do ato de fala, coloca The Last Performance como uma peca que se desdobra em torno de um trocadilho continuo sobre relagde: corpo, sujeito, identidade e os caminh cles so reificados ¢ & 0) como imagem. \ peca se desenrola em uma consta io das relagdes de propriedade entre corpo, desestabiliza individu, ide a platéia, um homem afirma: “Eu sou Hamlet.” into, apos tuna pausa, a esperada citacZo, menos de Shakespeare que dos arquivos da meméria coletiva: “Ser. Ele para. Ele, entio, sai de cena andando para as coxias. Depois de breve pausa, ouvimos, como nao ser”. Pausa. O homem caminha de volta cena. Chegando ao microfo- ne localizado no centro exato do proscénio, pronuncia: “. cis a questio”. Depois de André Agassi, Hamlet —soltando a famosa fala do ato 1, cena II do classico de Shakespeare. f! importante notar a relevincia funcional do cliché, da reminiscéncia, da citagio, como dispositive mneménico para operagio do performatico’ © cliché mergutha fando. O que Hamlet / Carallo representa quando esta dizendo a sua fala? Ele anun ciaa presenca como destilagio da meméria. E anuncia a ques {ao do ser como lastro histérico de um discurso que inventa a fantasia do sujeito monadirio enquanto entidade auto-su- ficiente, capturado em um corpo singular sempre percebido como imagem. Por reforcar seu discurso com um esvaziamento literal do paleo, a pesada qu tio do ser — torn: viesse de muito longe, “ou to que Hamlet arrasta — a qu ¢ saturada pelas implicagées mnemédnicas e dticas da presenga. Essa saturagio da pre- senga é muito importante do ponto de vista contextual, pois cla precede nao somente o momento em que a danca finalmente irrompe em The Last Performance, mas precede The Last Pajarmansy prope uma tensio entre 08 atos de fala performiticos ras suas relagdes coma citacionaid lee a Lee a frfirmanecomo um espase de subversio Particu resto de “quer mente importante neska tensho & Desfagendo a fantasia do vyjeta(dangante Stil acts” em The Last Performance de Jérime Bel \ primeira irrupgao da danga na totalidade do trabalho corcogrifico de Bel.” | lamlet/ Antonio Carallo exerce uma dupla fangio na pega. Irancis Baker notou como 0: Hamlet de Shakespeare arti- culou, pela primeira vex de uma maneira clara, os confli {os que circundam o nascimen- to do sujeito moderno - um ujeito que vai langara proble- J danga eo dangarino niio sio. mais uma entidade singular, auténoma, integral, auto- suficiente, eternamente sujeita ao “fuga relance” ¢ a0 som mnitica do ser como uma po- da mtisica. dlerosa fora que redesenhara totalmente o continuum social. Para Baker (1995), 0 Hamlet de Shakespeare anuncia a invencio do sujeito monadatio, um s jeito centrado em redor de um individuo, contido nos limit «lo. corpo, isomérfico ao corpo tomado como propriedade privada, portador de uma biografia, recipiente de segredos jessoais ¢ fantasmas tinicos, aut6nomo diante do Estado, es- iritamente binomial em termos de género ¢ domesticado pela canalizagio dos desejos® Esse sujeito monadario, que molda nossa experiéncia ocidental de subjetividade na modernidade, G tio familiar quanto Hamlet, cujo cariter transcende a hist6- ria do teatro somente para tornar-se realizado em todos nds. | amlet /Carallo divulga a questio do set como um cliché que hos lembra de nossa propria subjetividade. £ essa famifiarida- decom Hamlet ¢ com sua questio (cliché) do ser que teforga a ‘Chiepo conclusio de que a premissanfo-declarada deste ensaio (¢ss0 informa 1 respeito de meu trabalho em geral)& que faco uma clara distincio entre dancae voreonraia, Uma no € autre somente por contingénciashistrics eas foram fieadas conjuntamente. Acredito que vivemos em um momento em que as estejam mais tenses e os conflitos entre essas duss entidades artist tientemente presentes nointeiorde umacerta vanguarda. Fstaé umaddscussio inteicamente diferente, ¢ eu a deixarei para wm futuro ensa Ver Baker, 1995 André apo necessidade da presenga de Hamlet na pega de Bel. 0 mo- ‘mento em que Hamlet entra em The Last Performance nio é um momento qualquer. Ele aparece entre uma primeira cena so- bre indeterminagoes a respeito do nome do sujeito — que é também 0 nome do coredgrafo — e uma cena de danca. Mas ‘lo sera o surgimento desse sujeito-em-auto-suficiéncia- imagética, este sujeito como pessoa monaditia interior a um corpo, que autoriza 0 advento da moderna danca cénica oci- dental? Uma danga que, como sabemos, nasceu da encarnagao do Estado coreografado pelo dancarino régio, manifestando- se como expressio totalitiria de um corpo misteriosamente auténomo e em movimento, Pode-se ainda dizer que, sem 0 ujeito monadirio capturado em uma imagem corporal vivi- da como esséncia e arrastando a questio do ser enquanto pre senga ¢ auséncia, o que equivale a di ito teria existida. yer sem Hamlet, a danga A INVENGAO PA DANGA Dessa forma, quando Hamlet /Carallo entra em cena em The Las Performance sua enteega e sua presenga no so afirmacées de/sobre teatro, mas sim afirmaries extremamente provocantes def em face da dana. E. no & por acaso que, assim que Hamlet / Carallo sai de cena depois de despir tio efetivamente o ser da presenga, a danga entre —encamada na dangarina Claire Haine. Haine danga um fragmento da coreografia Wandlung (1978) de Suzanne Linke para A Dongeda ea Morte,de Franz Schubert. Nao seniio depois da invocagio de Hamlet em Bel que a danga, tal como nés a teconhecemos, sob sua definicio corrente de movi- ‘mento harmonioso do corpo ao som de uma miisica, pode acon- tecer pela primeita vez em sua obra coreogrifica. Voltando-me agora para as particularidades ¢ pecubiaridades dessa dan nos esquegamos do contexto imediato de seu surgimento, Desfazend a fantasia do veto (danpante) still acts "ea The Last Performance de fenime Bel Houve um grande alivio no ‘Theatre am Hallescher Uffer, ‘fa Berlim deagosto de 1999, quando vi pela primeira e diltima ver The Last Performance ¢ em que a platéia, até a danga de Haine, esteve a beira do levante. Movimento, até que enfim! Final- mente alguém segue a misica segundo padrdes reconheciveis daquilo que chamamos “danga”! Fluxo, misica, corpo, pre- senca, mulher, feminilidade, mobilidade ininterrupta, belo vestido branco — finalmente adentra-se o territério do conhe- Giulo e relaxa-se com o familiar. Entio, 0 curto fragmento ter- ‘ina ¢ Susanne/Claire deixa palco. familiaridade é logo esbofeteada na cara. Calmamente, Susanne Linke entra novamente no corpo denominado Jérdme Bal. Fle/Ela diz: “Ich bin Susanne Linke.” Ea danga assim como a misica se iniciam nova- ados com iente, as mesmas Notas € os mesmos Passos Uclicada preciséo. Delicadeza aqui é de importincia crucial. \ miisica, o andamento, os gestos, sob 0 justo controle do dancarino, operam como intensificadores da presenga - pre- senca tornada hiperbolica pela repeticio € pela inversio de género sob 0 alvo vestido. O que esta sendo proposto nessa citagao acumulativa, assim que Bel/Linke sai, Carallo/ Linke entra para executar novamente a mesma danga sob tico vestido somente para ser substituido a seguir por livédéric/Linke, que reinicia todo o procedimento: “Ich bin Susanne Linke” /posicio/misica/danga? O que esta sen- do alegado no tepetitivo prefaciar de cada nova danga pelo ato de fala proferido por cada novo dancarino “Ich bin Susanne Linke”? O que esta em questio nessa danga fixada ha sua continua repeticio como que reconfigurando os movimentos lineares ¢ teleoldgicos do tempo? Estamos em face daqueles momentos que Seremetakis chama de stil acts, ide “ia sou Susanne Linke.” (Nota da teadutora) André Lapecki uma suspensio do fluxo continuo da temporalidade pela in- sergio de um “gesto (..) que expressa a capacidade perceptiva para criagio histérica elementar”. E 0 que esta sendo criado nnesse momento sao as condigdes dé remogio em nossos olhos nublados, capturados pelo regime visual da fantasia do ser, de todas as camadas de sedimentagio histérica sob as quais a versio coreogrifica da fantasia do sujeito encontrou seu lugar de descanso ¢ fossilizagio {Qual 6a versio fossilizada da fan- tasia do sujeito nas narrativas da danga na modernidade? A versio que fixa 0 ser da danga como isomérfico presenca sempre movente do bailarinoy Tai que os atos patados de The Last Performance —ao confundie a légica do olhar e do tempo, do movimento e da identidade, assim como dos atos de fala — nos oferecem uma danca para além do lastro de Hamlet e de uma modernidade exausta e obcecada pelo movimento. Nada fixou mais vivida e rigidamente a relacio entre encarnagio ¢ danga (danga como manifestacio privilegiada de um sujeito encarnado e monadirio) que os tio citados ver- sos de W. B. Yeats que encerram seu poema Among School Children, Deixe-me refrescar sua meméria com minha propria citagio cliché: “O body swayed to music, O brightening glance. How can we know the dancer from the dance?” Esses dois versos tiveram tanto peso na captura do isomorfismo entre corpo e danca, movimento e sujeito, que Peggy Phelan (1995) qualificou seu efeito como “incontornavel”, Actedito que uma das razdes pelas quais esses versos séo incontomveis é que eles constrangem a danga na fundacio axiomitica da fantasia do sujeito. Os versos teificam as frontei- 12s do isomorfismo corpo-sujeito, para verter a danca para nossas crencas ontolégicas mais profundamente arraigadas — danca uum corpo sendo observado movendo-se ao som de uma misi- ca; 0 dangarino é um sujeito que se move dentro do campo de visio enquanto habita um corpo. Deixe-me citar o comentitio Desfasendo a fantasia do seta (dangante: om The Vast Pertormance de ferme Bel inteiro de Phelan (1995) aos versos de Yeats, de seu ensaio Thirteen wuys of looking at chorcegraphing histary. Va escreve “O fato dea danga ocidental modema ser sempre remeti da de volta ao bailarino é mais do que prova légica do cari- ter incontornavel da ecoante pergunta de Yeats, e ainda um sintoma do desejo de se ver 0 corpo do outro como um e: pelho e uma tela para seu pro- prio corpo re/lance(#ante."” Lim The Last Performance, 0 cspelho/tela faz uma aparigio explicita — 0 espelho literal- mente danga no [ntretanto, trata-se de um es- ‘A danga é moldada enquanto des-encarnada, pronta para ser ocupada por qualquer corpo como um local, a0 contririe de “expressada” como impulso interno de um sujcito hermeticamente encerrado, capturado em um corpo que projeta sua imagem no campo espelhado da contemplaci. pelho trocista, um espalho que iio reflete, uma tela que é negra, tragadora de luz, um espe Tho que opera pela recusa de retornar o olhar que se deita sobre ele ¢ pela eliminagio da facil identificacéo da presenca com a visio." Se o espelho é uma maquina mimética, que, mente coma invencao do sujeito monadario, é central na localizagio € na criac&o do corpo do dangarino na historia da espelho fara danga ocidental, entao em The Last Performance 0 sua aparigio como parédia absurda. Um pedago de tecido negro retangular é carregado por dois bailarinos. Atris dele, sabemos que outro bailarino executa, uma ver mais, 0s p cotcografados de Suzanne Linke. Retirando o bailarino da visio do espectador, esse espelho tanto oblitera quanto desfi » dtica da danga A presentifica pura, Ble arruina a ligaga » original. Nota da tradutora) Anare Lapecks fisica do bailarino, Danga-jgual-a-dancarino nao é mais um ‘te- lance resplandecente’. Danca e dancarino acontecem para além © para tras do campo de visio. Mas enquanto o dancarino etmanece invisivel,a danga se mantém forcosamenteno nosso campo perceptivo—nés podemos ouvi-la, sentir sua presenca farfalhante atrés da tela, seguir seus indicios nas contrapartidas de movimento do tecido negro, testemunhar sua influéncias Cinesféricas nos movimentos que os dois dangarinos visiveis, segurando a tela, tém de fazer para manter a danca escondi- da. Mais importante: a relativa paragem do retangulo negro forca nossa lembranca, podemos re-constituir 0 corpo que danga em nés mesmos (esse é 0 processo de ensaio). Trata-se de um “evento discreto, mas perturbador da meméria”, para citar Didi-Huberman quando cle escreve: Fd estd um ato imé- ‘el (lento foi imobilizado, nd, ele fra sempre, essemcialnente imivel), evento diserto, mas perturbador da meméria.. 0 momento no qual, pela recordacio, ¢ por no vermos, tornamo-nos/dancamos Susanne Linke. O corpo que dana, em sua auséncia, & introjetado. Mas 0 apagamento da figura do bailarino, seu “niio-ser”, em nada apaga a danca como exigitia a identifica- io de Yeats. A utilizacio desse espelho/tela em negativo des- faz a mimese pela intensificacio da meméria. Todas as vezes em que Wandlung é dancada, através de seu looping obses- sivo, da temporalidade circular de sua repeti¢ao, teste- munhamos um momento em que a “incontorndvel” iden- tificacao entre dangarino e danga é definitivamente sub- vertida. A danca é moldada enquanto des-encarnada, pron- ta para ser ocupada por qualquer corpo como um local, 20 contratio de “expressada” como impulso interno de um su- jeito hermeticamente encerrado, capturado em um corpo que Projeta sua imagem no campo espelhado da contemplacio. A danca e 0 dancatino nao sio mais uma entidade sing, auténoma, integral, auto-suficiente, eternamente suje 24 Desfaemdo a fantasia de vito (dang Sul ets'em The Last Pestormance de én Bel fugay relance” © ao som da misica. Por despir a danga do dangarino, este pode ser habitado por outros passos nav pré/codificados. Nao mais um relance fugaz, o dan Garino pode reivindicar outros modos de lidar com 0 vi sivel. Nao mais sujeito 4 misica, pode procurar profun dJamente por subtons, Nao mais sujeito 4 mobilidade con- Je pode enlagar 0 ato parado como movimento de resisténcia. HinttocRarta, \LTHUSSER, Louis. “Ideology and Ideological State Apparatuses (Notes towards an investigation)”, In: ZIZEK, S. (Org), Londtes e Nova York: Verso, 1994. BAKER, Francis. The Trenulous Private Body, Ann Arbor, Michigan University Press, 1995. IBUCK-MORSS, Susan. “The Dialectics of Seeing”. In: Waller Benjamin and the Arcades Project, Cambridge, Mass. e Lon. dres: The MIT Press, 1995. DUNCAN, Isadora. My if. Nova York: Boni and Liveright, 1927. GIL, José. A imagen nua eas pequenas perepgbes. Lisboa: Relégio Agua, 1996, KI, Andeé, Stillness and the microscopy of perception. 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