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fas sca Bibkobec Netiove Rose de Llhstoria | ne). Jv/ho doos SANTUZA CAMBRAIA NAVES pens F E FREDERICO OLIVEIRA COELHO Os olhos cheios de cores Explorando contrastes estéticos e propondo uma forma mais colorida de se entender o pais, o movimento tropicalista virou pelo avesso a cultura popular brasileira no final dos anos 60 Os versos'de Caetano Veloso, embalados pelas gui- tarras estridentes, sacudiam as jovens tardes de do- mingo da nascente midia eletronica no final de 1967. Nascia 0 Movimento Tropicalista, com a pro- posta de engolir tudo que se repudiava como kitsch ou rancoso, produzindo uma nova forma, muito mais colorida, de enxergar as coisas, de entender o pais, de assumi-lo ambiguamente como antigo e moderno ao mesmo tempo. Em vez do nacionalismo, sugeria pensar a cultura local em didlogo permanente com a cultura univer- sal; em vez de algo impalpdvel tratado como popu- lar, lidar com a realidade concreta das massas urba- nas e de seus meios de comunicacdo. Propunha, enfim, a contaminacio do cendrio popular pelo show business, associando-se a guitarra do rock de or entre fotos e nomes/ os olhos cheios de cores...” Jimi Hendrix e dos Beatles ao berimbau da capoei- rae a sanfona do baido de Luiz Gonzaga. E, here- sia das heresias, para a critica cultural da época, apresentarse no Programa do Chacrinha, um fcone ‘popular da televisio e do mau gosto. Pouco menos de quarenta anos antes, 0 poeta Oswald de Andrade, num tom muito semelhante, hhavia escrito o “Manifesto Antropéfago". No “Ma nifesto", Oswald propunha uma experiéncia de contaminagio com as culturas que nos cercam, 0 ‘que condiz com a estética e a prética tropicalistas. Quatro anos antes, no “Manifesto da Poesia Pau Brasil’, ele jé ensaiava essa linha de entendimento do pafs, numa visio do Brasil em cores, € no em preto-ebranco. Dizia Oswald no manifesto publi- cado pelo Correio da Manha em 1924: “Os cascbres de acafrio e de ocre nos verdes da favela, sob 0 azul cabralino, sio fatos estéticos." Quatro anos antes, no "Manifesto da Poesia Pau- Brasil", Oswald jé recusa o entendimento linear, fe- chado, para interpretar o pafs. A inspiragio da filo- sofia nietzschiana nio acaba nesse retrato do Brasil ‘em que colaboram o erudito e o popular, o eleva: Em entrevista a Augusto de Campos, Caetano Veloso sugeriu que era possivel ser criativo no circuito da comunicagao de massa, quebrando um tabu do € o carnavalesco, pois, de maneira irreverente, Oswald critica a tradigéo antiquaria e bacharelesca hd muito entranhada entre nés, como 0 “lado dou- tor, o lado citagoes, 0 lado autores conhecidos” "Rui Barbosa: uma cartola na Senegimbia”; as “fra- ses feitas";o “falar dificil” e “os homens que sabia tudo [e que] se deformaram como borrachas sopra- ico plo ira seat 4 pao formal A dent Os base cg 35 caps de frometrcos © pretence das", Oswald entio investe contra o “gabinetismo” ¢ “a prética culta da vida" propondo uma lingua- gem fragmentada e nio-erudita: “Como falamos, Como somos.” Ba alquimia tropicalista da unido de contrérios ja se encontra presente no projeto mo- dernista de Oswald, que retine o primitive ("Birba- 10s, crédulos, pitorescos ¢ meigos") e o moderno (Leitores de jornais”), “a floresta ea escola”, 0 “dor- ‘me nené que o bicho vem pega” e as “equagées" Retomando a discusslo sobre © Movimento Tro- picalista, seria interessante penié-lo a partir de sua diferenga com a bossa nova, género predominante até ento como proposta na miisica brasileira. O es- tilo bossaznova, que tinha surgido em 1958, é con- temporaneo de uma proposta desenvolvimentista para o pais, com a ascensio de Juscelino Kubitschek ea construgio de Brasilia, 0 projeto dos arquitetos Oscar Niemeyer e Liicio Costa para Brasilia vinha ao encontro de um certo consenso que havia entre artistas e intelectuais so- bre a possibilidade de se criar nessa linha um pro- jeto cultural para o pais, fato & que a linguagem moderna de Joo Gil- berto e Tom Jobim, entre outros, tina tudo a ver com o traco de Niemeyer, de busca de uma lingua gem artistica objetiva ¢ funcional, que cortasse qualquer excesso, Por isso, esses intérpretes e com- positores recusavam os estilos musicais da geracio anterior, ligados, principalmente, & Radio Nacional, considerados exagerados, operisticos e melodrams- tics. Nio por acaso a gravadora Elenco, uma das mais modernas da época, contrata o designer César Vilella para introduzir nas capas de discos uma ou- ‘tra concepgio de design, usando desenhos geométri ose fotografias em alto contraste em pretoe-bran- co, em contraposigio as fotos coloridas e formais dos intérpretes, Tudo muito afinado com o estilo contido dos cantores ¢ com o desempenho discreto no pal co & base de banquinho e violso. © advento do Movimento Tropicalista reintro- uz estrategicamente no cena a rejeigSo a0 que J tinha sido recusado dez anos antes pela bossa nova, 0 que se entendia como sendo uma estética excessiva, borrada de tnta pelo ith, Nio 36 isso: sugere a ambigiidade, juntando 0 jeito dean de Jodo Gilberto a0 “sujo" de Vicente Celestino; 0 in- timismo da vor limpa de Nara Leo com a extro- versio do Chacrinha; 0 fino da poesia concreta 20 Dbrega dos boleros; o purismo nacionalista dos sons regionais nordestinos as informacSes trazidas de fora pelo rock. Os artistas baianos redescobriram Oswald e um pais rico de contrastes. Essa sensibi lidade se manifesta no filme Tera em Transe, de Glauber Rocha, na pega 0 Rei da Vela, do Grupo Of- cina, na atuaglo desafiadora do artista plistico Helio Oiticica e no desempenho, nas cancées € nos figurinos, do que & época se chamou de Grupo Baia, virando pelo avesso o que se entendia por cultura popular brasileira. Caetano, em entrevista ao poeta Augusto de Cam- pos, em abril de 1968, sugere ser possivel a criaco € a inventividade no cireuito de comunicacio de ‘massa, verdadeiro tabu naquele momento, O cantor compositor argumenta que o artista de sua época tem duas escothas possives: ou adere aos meios de comunicagio ou se dedica & pesquisa “pura”, no contaminada pelos interesses vulgares da miia. Se a primeira opcio, raiocinava Caetano, envok veria um compromisso do artista para com 0 patro- cinador, 0 gosto do pablico e outros entraves & sua liberdade de experimentacio musical, ela solucio naria, por outro lado, 0 risco dese car, justamente em decorréncia de um excesso de resguardo, numa espécie de ostracismo no cenario cultural. f a par tir dessa reflexio que Caetano assume radicalmen- te 05 novos meios de comunicagéo, pois, embora atuassem como “fieio", se constituiriam em via ptivilegiada, no mundo contemporaneo, para o exercicio de inovagées musicas. -Apesar dos entraves postos no camino do riisico, os novos meios de comunicagdo no seriam mais perniciosos do que 0 ex cesso de seriedade ~ atitude assumida, se- undo Caetano, pelos criadores da bossa no: -va‘ao longo da década de 60. ‘Assim, numa tomada de posicSo contra 0 cexcesso de austeridade, Caetano procura con- ciliar Jodo Cabral e Oswald de Andrade, o rigor ea alegria, a experimentagio e 0 deboche, a “informagio” e a “redundincia", ou, como lembra ‘Augusto de Campos, “o fino e o grosso". Nessa en: ‘revista, Caetano define o tropicalismo como um “neo-antropofagismo", Hélio Oiticica fez. coro com os miisicos baianos 0 adotar radicalmente a perspectiva estética de Oswald de Andrade na busca de uma nova imagem para a cultura brasileira. Sua formagio se inicia co- ‘mo artista plistico ligado aos projetos construtivis- tas, dando com as idéias de contencio e equilé brio presentes no neoconcretismo, movimento carioca das artes plisticas de que participou no fi nal da década de 50. A partir de 1964, Oiticica re- volucionou sua vida e obra através de sua experién- cia com os casebres “nos verdes das favelas", que, como Oswald, eram vistos por ele como “fatos es- téticos”. E foi naquele ano que ele conheceu o mor- ro da Mangueira, seus moradores, sua escola de samba e seu carnaval. Tornandose freqientador do morro e passista da escola, Oiticica procurou en- ‘xergar a favela e sua populacdo com “olhos livres” Os barracos e as manifestagSes culturais dos mora dores do morro eram vistos por ele para além de seus aspectos folcl6ricos na cultura popular brasi- leira, pois foi a partir da descoberta da Mangueira {que sua obra se voltou definitivamente para 0 uso inovador do corpo e para a participacio do especta- sips pa a dor nas suas instalag6es. Trabalhos como os Paran- _golés e conceitos como o Crelazer abriram novos ho- rizontes para as artes e para a cultura brasileira, lt gando-se diretamente as suas andancas pelas favelas cariocas. Sua identificagZo com a Manguel- 1a, suas vielas e barracos foi conseqtiéncia de uma trajet6ria artistica que sempre questionou padrées, académicos prédefinidos. A obra Tropiaia, de 1967, foi a sintese estética dessa revolugao. Pautados pela ambigilidade, os tropicalistas procuraram conciliar bolero e poesia concreta, rigor e alegria, experimentacdo e deboche Em textos escritos sobre o tropicalismo, Oiticica estacou 0 projeto de modemizacio da milsica po- pular de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Afirmava gue suas ages ganhavam contornos “dramticos", pois levavam para a arena da cultura de massas te- mas ligados aos "problemas universais na arte de vanguarda’, Esse era um debate que, até 0 surgi- mento dos miisicos, travavase apenas nos meios académicos ou na critica cultural especializada. Pa a Oiticica, as manifestagies de Gil, Caetano € os Mutantes ndo eram simples apresentagdes de miisi- cos. Quebrando os padres estéticos que imperavam. Saiba Mais RODRIGUES fre tt Pree Aor fae — 2 ties emp a a (cre 70. sero (Poe Graagio om Design Depart dara & Desgnes PUCK I de maga ANORADE Onsale, ane a poe pastes Oot compet Re do pci (Creag Brin, anging, ie pba no PACES Pak no show business brasileiro da época, ainda ligados 20 estilo de contencio e refinamento da bossa nova, os ‘ropicalistas no mais vestiam smoking em suas per- formances. Também dispensavam em suas apresen- tages 0 banco servindo de apoio ao violio e uma orquestra ou conjunto musical discreto no fundo do Palco. Os tropicalistas adotaram inovagSes, como 0 ‘uso de guitarras, amplificadores, cendrios e figuri ‘0s. O excesso banido pelos anos da bossa nova vol- tava a cena, fazendo parte de uma organizacio es- ‘tratégica em que tais elementos no eram apenas acessérios “aplicados sobre uma estratura musical", ‘mas sim uma sintese criativa de diferentes reas da arte, como a miisica, o teatro e as artes plisticas. Oiticica observava em varias frentes ~ shows, capas de disco, roupas ~ a existéncia de uma Tinguagem ‘visual complexa ¢ universal. No palco tropicalista, “os elementos ndo se somam como 1+1=2, mas se redimensionam mutuamente", Nos trabalhos e apresentagbes dos baianos — e no seu trabalho tam- ‘bém ~ 0 artista plastico procurou ir 20 encontro dos elementos descritos por Oswald em “Pau-Brasil": a “sintese", o “equilfbrio", a “invencio", a "surpresa", uma “nova escala” ¢ uma “nova perspectiva”. 0 tropicalismo rompeu radicalmente com o pas em preto-e-branco, contido e de smoking, e inau- gurou um pais colorido, fragmentado e universal, cctiando uma nova imagem para o Brasil. A cor lo- cal € recuperada, sem diivida, embora nio aten da a expedientes exéticos, folclorizantes. Mesmo porque 0 movimento incorpora, como prescrevia Oswald de Andrade no “Manifesto da Poesia Pat: Brasil”, “o melhor da nossa tradigio Iitica” - como as cang6es sentimentais e melodraméticas divulga- das pela Rédio Nacional -, sem deixar de contem- plar “o melhor da nossa demonstragio moderna” — como as cangBes da bossa nova interpretadas por Joo Gilberto. © topicalismo, paradoxalmente, ‘adotou uma pritica colorida e aberta o suficiente para incluir a estética cool do preto-e-branco. £ co- ‘mo se 0 receituario de Oswald, no sentido de ser mos “apenas brasileiros de nossa época", nio se completasse sem 0 modelo de desafinacio lega do pelos bossanovistas. Segundo Caetano, em “Saudosismo”, cangdo de 1968, os tropicalistas te- iam aprendido com Joio Gilberto “pra sempre a ser desafinados”. H SANTUZA CAMBRAIA NAVES € AUTORA DE 04 80554 NOVA A TROPICAUA. RIO DE JANEIRO: JORGE ZAHAR EDITOR 20. € PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA FREDERICO OLIVEIRA COELHO E DOLTORANDO LETRAS NA MESMA INSTITUICKO, AROS INTEGRAM

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