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Daniel Mato Coordinador Educaci6n SIU e\-11 (0) y Pueblos Indigenas y Afrodescendientes en América Latina Politicas y practicas Claire tesrole democratizacion e interculturalizacion fos ccM cM ice MMe Woe leo ect eee aaa lea lee (en og es ete AAs MA Merwe ee Caceres seo Nees ene tee Mare iota Pams| ule g-uira- Co elammm a ice. LL Per eccesent cette ete nce oes de estudios dedicados a analizar las experiencies de algunas universidades creadas y gestionadas por -eferentes de pueblos indigenas y afrodescendientes, asi como las de algunas univer- sidades interculturales creadas por los Estados y tambien las de versidades boracién con dichos pueblos. Fstos caoitulos analizan experien- clas actualmente en desarrollo en Argentina, Brasil, Colombia, foe Vale Meteo eee hha NS Ue Nea coll aol Peetu Urls ecine Mule aa ile lee Toca Ts comets (oo came om oS aC Foto ol co nt == oo Coe ah UL Coc feleeielasnelai escent ain (eL-ua CmcS cee eo) convencionales, de siete paises latinoamericanos. Algunos de ellos son integrantes de los equipos que han creado y gestio- nan universidades indigenas e interculturales, otros participan en Peo Peet en eu Secon eeu oe trabajan en colaboracién can comunidades y organizaciones de dichos pueblos, en tanto que otros son estudiantes y egresa~ Mertee neste Meteo eee ofl ure ime ces col ETM) Pee Cie Memeo ue Conte tn emo, peice arcu =e ice erect Ce Pete ieee cuter rami cre Vireo ano Oe realizado en agosto de 2016 en la cludad de Buenos Aires. initia a UNIVERSIGAD NACIONAL Loins. ='F0) Rede de saberes — permanéncia de indigenas no ensino superior, Irata-se de um programa financiado pela Fundacio Ford (articulado inicialmente pelo Laced /Museu Nacional/ UFR], no ambito do programa Trilkas do conhecimento) e que reiine uma parceria entre a UCDB, UEMS, UFGD ¢ UFMS, vigente desde 2005, 130 Educogée Intercultural ¢ 0s Poves Indigenas e de didlogo de saberes? Quando as familias enviam seus jovens filhos para as cidades, longe das suas aldeias indigenas, para estudarem nas universidades, espacos desconhecidos ¢ de hostilidade, o que eles es- peram e desejam? O que as universidades podem contribuir para os projetos de autonomia destes povos indigenas, através da valorizayao de seus conhecimentos tradicionais? Povos indigenas, territério e educacao intercultural No estado de Mato Grosso do Sul vivem atualmente ao redor de dez povos indigenas, cada um com suas particularidades historicas ¢ cul- turais. No ambito deste trabalho, colocaremos énfase na realidade dos kaiowa ¢ fiandeva. Os guarani ou kaiowa c fiandeva constituem dois povos indigenas geralmente chamados de guerani na literatura antropologica, mas que se identificam ¢ se percebem como etnias distintas em Mato Grosso do Sul e em outras partes da regiao platina. No Paraguai os kaiowa conhecidos como pai-tavytera ¢ os guarani iandeva conhecidos como 0 xiripd ou ava. Do ponto de vista historico, pode-se afirmar que a ocupacao geopo- litica da regio de fronteira seguida pela exploragao econémica, levada a cabo como politica oficial do Estado brasileiro apos a guerra entre o Paraguai e a Triplice Alianga (1864-1870), culminou no cerceamento territorial dos povos indigenas (kaiowa e guarani) no antigo sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul. Disso resultou no abalo da autonomia politica, fragmentagao das formas tradicionais de organizacao social ¢ na fragilidade econdmica presente nas comunidades atuais. A Grande Guerra contribuiu para alterar o isolamento de parte importante da atual regido da Grande Dourados. Campestrini ¢ Gui- maraes* calculam que uin total de 1,200 soldados paraguaios teria cir- culado, em 1866, pela regiio do atual Mato Grosso do Sul. Terminada a guerra, grande parte dos ex-combatentes, especialmente paraguaios, ficaram pela regido, sendo que muitos, segundo testemunho de infor- mantes indigenas, empregaram-se como mao-de-obra na Cia. Matte Larangeira, que se instalou na regifio a partir da década de 1880, para explorar os imensos ervais nativos nesta regiio. Nos ultimos anos, sobretudo a partir da década de 1990, a produgio cientifica sobre os kaiowa e guarani tem crescido significativamente, em especial se levada em consideragao a atual realidade das dezenas de comunidades indigenas € a disputa territorial em Mato Grosso do Sul, * Hllldebrando Campesttrini & AcyrV. Guimaraes, Histdria de Mato Grosso do Sul, Campo Gran- de-Brasilia, 1991. 431 Educaci6n Superior y Pueblos indigenas y Afrodescendientes en América Latina sobretudo na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, Esta situacao tem sido analisada por diferentes autores, especialmente nos trabalhos de Brand,* Ferreira,® Melia,” Mura, Pacheco,’ Pereira," Vietta"! e outros. O territério é fundamental, pois os indigenas desenvolvem profun- da relacao fisica, afetiva e simbélica com a terra, entendida aqui como territorio, espaco proprio de constituigao e vivéncia identitaria. Esta relacao é chamada pelos préprios indigenas de fande reko,’ quer dizer, “nosso jeito de ser”. Neste sentido, a aldeia representa 0 centro de seu territério tradicional, conhecido como jiande red, o “nosso territé- rio”, isto é, 0 espaco para a continuidade de seu modo de ser ¢ estar no mundo. Tendo em vista a situagao historica dos kaiowa ¢ guarani no sul do estado de Mato Grosso do Sul, caracterizada por significativa perda do territério tradicional, com a consequente fragmentagio das relagdes sociais e com o ambiente, a realidade dos acampamentos indigenas As margens de rodovias, é uma das tentativas de resisténcia e superacio da imposi¢io histérica do confinamento. Esta é uma realidade por si so pro- visdria e, de certo modo, ainda muito pouco aprofundada em estudos antropologicos. Na realidade, existem muitas formas de assentamentos kaiow4 e guarani, dentre os quais est@o os chamados aqui de situagao de acampamento, localizados em margens de estradas ¢ rodovias ¢ com pouca visibilidade politica. S Antonio Brand, 0 impacto. .., ob. cit,, 1997, “Eva M. Laiz Ferreira, participogio das fadios Kaiowd e Guarani como trebalhadores na Companhia Matte Laangeira. Dissertacao de Mestrado em Historia — UPGD, Dourados, 2007. * Bartomeu Melia, [1976] El Guarani conquistado y redacido: ensayos de etnohistorta, Asuncion: Centro de Eetudios Antropolégicos/Universidad Catélica “Nuestra Sefiora de la Asuncion”, 1986. * Fabio Mura, d procura do“bom viver" Territério, tradigGo de conhecimente e ecologia doméstica entre os Kaiowd, Tese de Doutorado em Antropologia Social — Museu Nacional /UFRJ, Rio de Janeiro, 2006, ° Rosely A. §. Pacheco, Mobilizagio Guarani Kaiowd ¢ Nandeva ¢ a (re)construgio de terzitérios (1978-2003): novas perspectivas para o Direito Indigena, Dissertagao de Mestrado em Historia -— UFMS, Dourados, 2004, ® Levi Marques Pereira, Imagens Kaiowé do sistema social ¢ seu entorno, Tese de Doutorado em Ciéncias/ Antropologia Social — USP, So Paulo, 2004. " Katya Vietta, Historia sobre terras e xamis kaiowd: territorialidade e organtzegdo soctal na perspectiva dos Katowd de Panambizinho (Dourados-MS) apds 170 anes de exploracio ¢ poroamento nao indigena nna faina de fronteira entre 0 Brasil ¢ Puraguai, Tese de Doutorado em Ciéncias/Antropologia Secial — USP, So Paulo, 2007. Nende reko coloca em relevo este aspecto de diferenciacéo cultural, que inclui um tipo espe- cial de organizagio social, uma lingua ¢ uma linguagem propria (com suas formas peculiares de “pensamento” ¢ de “simbolizagao”), uma religiao tradicional, uma economia caracteristi- ca, uma lingua prépria, [...] O Sande reko faz com que 0 Pat considere, se sinta, se pense © se diga diferente (Melid et al., 2008, p. 105). 132 Educacao Intercultural e os Povos Indigenas A partir deste contexto é que o presente texto coloca em cena a al- ternativa politica de demanda dos indigenas pela educacdo formal e, em especial, pela educacio superior. O fato dos indios chegarem 3 univer- sidade dando visibilidade 4 sua cultura, ao seu modo de ser no mundo, provoca uma inquietacai epistemoldgica, tensdes que desconstroem a nogao de cultura como algo fixo ¢ naturalizado e exige entender que as populagdes indigenas se deslocam em diferentes espagos, nos quais suas particularidades se reafirmam e as diferencas se apresentam com suas presengas ¢ significados. Nesta direcio a demanda para o ensino superior tem se caracteri- zado como novo elemento na luta por autonomia e construgao de po- Iiticas de sustentabilidade dos povos indigenas de Mato Grosso do Sul, na contemporaneidede, A universidade passa a ser entendida, pelos in- digenas, como um espago a mais de didlogo intercultural e negociagso entre légicas ¢ formas distintas de entender o ser humano e suas rela- ges com a natureza. Dessa forma, chegar & universidade significa para 05 indigenas apropriar-se de ferramentas que permitam protagonizar a reescrita de suas histérias, até entdo nao alcangadas pelos cinones esco- lares/académicos bem como inverter 0 ponto de partida para a busca de alternativas de solug3o para os problemas contemporaneos. Cresce, com isso, também, a preocupagao com as condicSes que es- sas IFS tem para formar profissionais que atendam as demandas de suas comunidades. Qual o papel dos conhecimentos indigenas na formagao desses indigenas? Como as universidades poderiam potencializar o di- dlogo com esses outros conhecimentos, historicamente subalternizados ¢ delegados como nie cientificos? Estes tém sido temas transversais que orientam as agSes do Programa Rede de Saberes que acompanha a maioria dos indigenas que ingressam nas universidades do Estado de Mato Grosso do Sul ha mais de dez anos. Auniversidade e a presenca de indigenas Entendemos que as universidades nao s6 podem superar o papel atual, de meros espagos de reproducao da exclusio e do preconceite con- tra os povos indigenas, mas, a0 contrério, podem vir a ser espagos privilegiados para o didlogo ¢ 0 encontro de culturas. Sob 0 ponto de vista epistemologico e politico seria assumir “as diferengas como constitutivas da democracia e [serem] capazes de construir novas re- lagdes”.!? Novas relagdes que poderiam ser traduzidas como intercul- turalidade para todos. Neste sentido, o acesso ao ensino superior aos Vere Maria Candau (org), Educapio Intercultunal na América Latina: entre concepsdes, vensies € propastas, Rio de Janeiro: TLetras, 2009, p. 9 133) Fetucacién Superior y Pueblos Indigenas y fradescendientesen América Latina indigenas pode servir como ferramenta para rcorientar as tendéncias do Estado brasileiro para o monoculturalismo homogeneizador vi- sando, assim, incentivar processos de autonomia regional e politicas de sustentabilidade. Historicamente, os indigenas foram tidos como uma situacao de po- vos “passegeiros” ou “transitérios”, cujo destino era integrar-se através da negago de sua identificagao étnica, objetivando, intencionalmente, a construgio de um “brasileiro genérico”. Foram construidos, discursi- vamente, como “seres inferiores”, frente a qual a unica op¢ao possivel era impor 6 progresso, como alternativa para atingirem “o estadio su- premo do desenvolvimento, a civilizagao ocidental”.* ‘Tomados como seres desprovidos “de saber € cultura”!S ¢ como “an- tecedentes” e companheiros indesejaveis, Toram € sio, ainda, em muitos casos, vistos como sujeitos que demandam “processos de evangelizagio ou aculturagao”,"* ou, em outros termos, sujeitos que devem integrar- se na mesma sociedade que usurpou seus territérios suas riqnezas.” Seus saberes foram “silenciados”, “desqualificados” e “subalternizados” como manifestacdes de “superstigio”, estiticos, exéticos, ou, na melhor das hipéteses, como saberes priticos e locais.'* Por isso, a anunciada integragao se daria pela margem, sem questionar ou romper o projeto de hegemonia monocultural dos Estados Nacionais, sendo a escola ¢ a uniyersidade ferramentas deste processo. Embora essa visio persista ainda hoje em parcelas importantes das nossas elites, ela est, legalmente, superada pela Constituicéo brasileira de 1988, que garante aos povos indigenas, em seu artigo 231, além des terras de ocupacao tradicional, 0 reconhecimento (e respeito) de sua organizacao social, de seus costumes, linguas ¢ crengas, assim como 0 direito a seus “processos proprios de aprendizagem”, conforme Lei de Diretrizes e Bases da Educasao no Brasil (Lei n° 9394/96) Ao ampliar ¢ fortalecer a presenga dos académicos indigenas em cada instituicdo universitaria, estimulando a sua participagao em todas as atividades académicas e de extensao desenvolvidas no ambito das mesmas instituicdes, estes projetos ¢ agdes abrem brechas importantes, especialmente na perspectiva do didlogo de saberes, superando e indo 7 Poaventura de Sousa Santos (org), Semear ouiras solugies. Os caminhos da biodiversidade e dos couhectiweneosrivat, Rio de Janeiro: CivilizagGo Brasileira e Ministério da Cultura, 2005, p. 28 8 Thid, p.29. \ Thid, p. 26. 1 Antonia Brand, “Muudangas e continuismos na politica indigenista pis-1988", em: Antdnio Carlos de Souza Lima e Maria Barroso-Hoffimann (orgs.), Estado e Poros Indienas, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Laed, 2002. "Veja Boaventura de Sousa Santos (org,), ob. cf Be Educacdo Intercultural e es Povos Indigenas além, inclusive, da limitada, embora socialmente relevante perspectiva da inclusio, sinalizada pelas politicas de cotas. Pode-se ressaltar, inclusive, como aspecto relevante para as aspira- ges dos povos indigenas, 0 fortalecimento da presenga de seus jovens nas universidades mediante politicas publicas adequadas, a articulagdo crescente entre as universidades, os académicos indigenas ¢ as suas res- pectivas comunidades, através da participagao direta de suas liderancas. Nao se trata apenas de universaliza¢ao da escolarizagao genericamente para cumprimento do direito prescrito pela legislacao ou pelos acordos internacionais, mas da formagao de indigenas qualificados e comprome- tidos com a defesa dos seus direitos, em especial com a promogao da qualidade de vida das suas comunidades de origem, que inclui a gestao dos territérios ¢ o fortalecimento de suas organizacées, Didlogo intercultural como direito dos indigenas nas IES Quando consideramos os tempos atuais —o avango dos interesses mer- cadolégicos, megaprojetos impulsionades pelo suposto aumento da de- manda energética, globalizacao das tecnologias, dentre outros—consta- tamos que os povos indigenas se encontram em algumas encruzilhadas. Una delas é a necessidade dinémica de preservar valores c identidades culturais, reafirmar a posse ¢ gesto de seus territérios tradicionais,!” ao mesmo tempo em que desejam ter acesso as novas tecnologias e acesso a alguns bens manufaturados. Por outro lado, como afirmado anteriormente, os povos indigenas no Brasil constatam um retrocesso na garantia de seus direitos, em especial aqueles conquistados com a Constituigio Federal de 1988. Nas entrelinhas e ambivaléncias presentes neste contexto, a insercio © permanéncia de indigenas no ensino superior, etapa posterior ao que chamamos de “Educacao Bésica”, adquire dimensio estratégica, sendo uma delas a de preparar quadros com “ferramentas” titeis para o diélo- go presente c future destas comunidades com seu entorno e o Estado Nacional; uma forma de contribuir para sua autonomia. Como ressaltado por Aguilera Urquiza ¢ Nascimento,” as politicas de Educagdo Indigena avangaram significativamente no Brasil, sobre- tudo apés 0 novo ordenamento juridico conquistade com a Constitui- so Federal de 1988, mas a educagio superior indigena tem sido um tema colocado 4 margem desse processo. Somente nos ultimos anos, Assumimos aqui que a identidade nio & algo dado, mas é uma constragio relacional, afieme- da exatamente nas fronteiras da alteridade, conforme Fredrik Barth (2000). ® Antonio I, Aguilera Urquiza & A. C. Nascimento, Rede de Seberes ~ Politicas de agi afirmativa no Ensino Superior pare Indigenas no Mato Grossa do Sul, Rio de Janeiro: Flacso, 2013. 2135 Educacién Superior y Pueblos Indigenas y Afrodescendientes en América Latina no contexto das lutas por politicas de agdes afirmativas” ¢ que os po- vos indigenas passaram a ter reconhecidos seus direitos de acesso ¢ permanéncia na educagio superior ¢, em muitos casos, de maneira apenas secundéria. Nesse contexto, a UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), em 2003, foi a primeira a apresentar uma proposta de politica de aco afirmativa contemplando os poves indigenas, com areserva de 10% de suas vagas para este seguimento. Mesmo assim, temos constatado que, apesar dos recentes avangos com relagio As politicas de ingresso de negros e indios, a conhecida Lei de Cotas (lei 12.711/2012), poucos indigenas conseguem entrar nas Instituigdes de Ensino Superior e me- nos ainda de permanecerem, pois sao necessarias outras agdes, como mais informagao nas aldeias acerca dos processos seletivos (ENEM, por exemplo), foco nos processes de acompanhamento destes estudantes nas IES. A frase mais ouvida nos Ultimos debates acerca deste tema tem sido: “ndo bastam as cotas € bolsas de estudo”, pois sabemos que ¢ ne- cessério muito mais, inclusive mexer no curriculo universitario, A partir destas considerages, centro a atencao em outro elemento fondamental para a permanéncia de indigenas no ensino superior, que éa tematica do didlogo de saberes, ou mesmo uma reconsideragao dos atuais paradigmas dos conhecimentos, sempre a partir dos dez anos de experiéncia com o Programa Rede de Saberes, o qual, a partir do pio- neirismo da UEMS e da UCDB, iniciou suas atividades no final de 2005 Para inicio de conversa, podemos dizer que a maior parte dos pro- fessores das universidades nao esto preparados para dialogar com a di- versidade em suas salas de aula. O educador ou educadora teriam que buscar conhecer melhor a realidade de seus alunos/as, a dinamica de aprendizagem, para ajuda-los a encontrar melhor os caminhos do de- senvolvimento de suas potencialidades. Temos casos que foram relatados por estudantes indigenas, de professores que em sala de aula disseram: “lugar de indio é na aldeia, aqui na universidade nao é lugar de vocés. Volta para casa”. Sio manifestagdes declaradamente racistas e preconcei- tuosas, de quem nao admite a presenga do “outro”, do diferente. Outros ainda relatam as dificuldades em acompanhar os contetidos herméticos ea falta de sensib idade dos professores no didlogo em sala de aula, o que poderia facilitar o processo de apropria¢ao destes contcudos. As politicas de ages atirmativas sio medidas especizis e temporirias, tomadas ou determi- nics pelo estado ¢/ou pela iniciativa privada, espontinea ou compulsoriamente, com @ objetivo de eliminar desigualdades historicamente acurnuladas, garantindo a ignaldade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pele discrimina- cdo ¢ marginalizagao, decorrentes de motives raciais, étnicos, religiosos, de pénero e outros (Kaufmann, 2007). 1355 Educacao Intercultural e as Povos indigenes Nesse sentido, torna-se urgente defendermos a necessidade de revermos alguns conceitos estabelecidos nas escolas ¢ universidades, como é 0 caso do proprio curriculo, Este est distante da realidade dos estudantes, em especial dos estudantes indigenas, pois desconsideram seus saberes, nao favorecem a valorizacéo de cada um e suas especifi- cidades. De certo modo 0s curriculos concebem modelos padrées de contetidos e de alunos, ao invés de abrirem-se para o didlogo de saberes ¢ reconhecimento das trajetorias destes estudantes, Paulo Freire com sua proposta de “palavra geradora”” ja havia alertado para a necessidade do curriculo ter como ponto de partida para a experiéncia do conhe- cimento, os saberes locais dos sujeitos da educagao. Para Coraggio,”’ a universidade precisa criar situa es em que todos os professores ¢ altmos percebam no cotidiano os conilitos, as contra- dices e as ambiguidades presents. Para cle, é preciso dar voz & voz, mas nao somente 4 voz, como também ao corpo, ao géncro, a geracao, raga, as diferentes etnias. Dessa forma, a universidade devera ter as portas abertas para nio somente acolher jovens indigenas, mas estar dis- posta ao dialogo intercultural, melhor denominado de didlogo de saberes, onde um dos cixos é 0 redimensionamento curricular, para acolher a diversidade, os saberes outros, aqueles que vém da subalternidade, dos seguimentos subrepresentados. Voltamos aqui, uma vez, mais, a0 tema dos estudos pds-coloniais, referentes a estes saberes subalternos, os quais ainda nao encontram es- pacos na educacao superior. Quando a academia estrutura seu curriculo em um modelo hegeménico, fruto das relagdes de colonialidade, con- comitantemente ela provoca a subordinacao dos saberes indigenas, ani- quila as possibilidades de reconhecimento destes conhecimentos como socialmente efetivos ¢ elimina a possibilidade de produgio auténoma de conhecimento desses povos. Para Quijano™ é necessario superar a perspectiva colonialista de produgdo de conhecimento © questionar a colonialidade em todas as suas dimensées, promovendo a desconstrugio do discurso, das praticas hegemdnicas ¢ das concepgdes eurocéntricas. Dessa forma, podemos entender que 0 modelo de wniversidade ¢ 0 processo de formagéo pautado na colonialidade excluem outros sa- beres que nao aqueles baseados no modelo disciplinar hegeménico na 2 Veja Paulo Freire, Pedagogiz do oprimide, 4°. ed., Rio de Janeiro: Paz ¢'Terra, 1977. 3 Juan Coraggio, “Propostas do Banco Mundial para a educagio: sentido oculto ou problemas de concepcio?”, em: Livia de Tommasi, Jorge M. Warde & Sérgio Haddad (orgs.), 0 Banco Mundial ¢ as politicas educacienais, 4 ed., Sio Paulo: Cortez, 2003. * Anibal Quijano, “Colonialidade do poder, eurocentrismo ¢ América Latina”, em: F, Lander (org), A colontalidade do saber: eurocentrisme e citnctas soctats, Buenos Aires: Consejo Latinoa mericano de Ciéncias Sociales — Clacso, 2005. “37 Educacién Superior y Pueblos Indigenas y Airodescendientes en América Latina sociedade moderna. Quando a universidade e seus docentes assumem que o curriculo nao prevé a diversidade e que o nimero de indigenas irrisério, eles estao ratificando o modelo colonial de ciéncia, € declarando-o 0 unico conhecimento possivel de ser adotado. O desafio que ainda nao foi assumido ¢ 0 de descolonizar o saber disciplinar e pos- sibilitar 0 convivio ¢ o didlogo intercultural interdisciplinar, ou seja, os miltiplos saberes existentes nas culturas ¢ nas sociedades. Neste sentido, o Programa Rede de Saberes procura atuar cm uni- versidades que chamamos de “tradicionais”, ou seja, no so indigenas, ainda é muito menos interculturais, mas apresentam espacos, por onde é possi- vel atuar a favor dos povos ind{genas, tornando a experiéncia do ensino superior menos traumatica. O Programa Rede de Saberes, nestes mais de dez anos, tem contri- buido decisivamente para 0 sucesso de muitos indigenas na universida- de, a partir de prdticas de formacao dos professores para a diversidade, agdes de tutoria e monitoria dos estudantes indigenas, didlogo efetivo com suas comunidades ¢ liderangas, favorecendo participagio em even- tos académicos e pesquisa de temas relacionados 4 cultura e conheci- mentos tradicionais de seus povos. Sao experiéncias que, mesmo timi- das, conseguem contribuir a favor dos indigenas e de suas comunidades, no contexto de universidades que ainda precisam de muita mudanga, para virem a acolher os povos indigonas ¢ suas formas de conhecimento. Consideracées finais A educacao superior indigena é, certamente, um projeto social e politico que se insere numa perspectiva de constru¢io e sedimentacao da busca dos povos indios por reconhecimento de sua especificidade cultural. No entanto, isso so sera possivel se houver o devido respeito ao principio da autonomia, previsto na legislacao, ¢ uma busca constante por uma edu- cago especifica, de qualidade e intercultural nio sé para as atuais, mas para as futuras geracdes de criancas, jovens e adultos indigenas. As demandas dos povos indigenas por ensino superior refletem as contingéncias da experiéncia historica vivid, Buscam, de um lado, através de uma maior sistematizacao, fortalecer os seus conhecimentos tradicionais, sua histéria ¢ lingua c, de outro, o necessério dominio dos assim denominados conhecimentos ditos cientificos-académicos consi- derados necessérios para uma melhor insergio no entorno regional ¢ releyantes para o seu projeto de autonomia. O risco é que as universidades, em seus projetos de ensino superior para os povos indigenas, sigam passando ao largo dos processos mais amplos de busca de autonomia das populagées indigenas e centrem sua 138 Educagio Intercultural e os Povos Indigenas preocupacao apenas em permitir 0 acesso dos indios aos seus ambien- tes académicos, o que é, certamente, muito pouco. Nao se trata de questionar o direito dos povos indigenas ao ensi- no superior, mas das universidades se perguntarem sobre o tipo de ensino que oferecem aos povos indigenas, Entendemos que o desafio est4 posto, antes de qualquer coisa, para as universidades, no sentido de repensar e construir novas concepgdes de ensino que, superando a fragmentagio ¢ questionando o saber acadernicamente sedimentado e hegeménico, que perpassa c std subjacente cm nossas priticas peda- gogicas, possam permitir o “excrcicio constante da interculturalidade” em todas as abordagens da realidade. A universidade, ao abrir espaco para o desafio de contribuir com a busca de novos caminhos de sustentabilidade desses povos, devera estar aberta, também, para essa dimensio da diyersidade de perspectivas de futuro, visualizadas pelas populacdes indigenas. Por isso, as propostas de ensino superior, a exemplo do ensino fun- damental e médio, devem caracterizar-se pela porosidade, permeabi- lidade e flexibilidade, abrindlo espago, especialmente, para a pesquisa, exigéncia para que seja possivel a interculturalidade e a “bricolagem’,* permitindo aos alunos indios esse constante “ajustar (de) peas entre si spares, reorganizando-as ¢ dando-lhes um sentido”, Tero as universidades engajadas em programas de acesso dos povos indigenas ao ensino superior disposicao e condigdes de transformar os espagos académicos em espacos de didlogo entre saberes, garantindo aos indios amplo apoio para a pesquisa, propondo novas priticas dialégicas e deixando para tras os resquicios de longos anos de regime tutelar que marcou a relage com os povos indigenas? A presenga indigena nas universidades, como formadoras de ati- tudes interculturais, parece ser o acontecimento emergente para que possamos tornar este mundo mais traduzivel, em meio as suas diferen- gas, contribuindo com as préticas académicas do compromisso de re- presentar uma sé identidade. O didlogo com os povos indigenas, seus saberes ¢ concepges de mundo, de sociedade e economia, pode abrir inéditas possibilidades para as IES e para os priprios povos indigenas no enfrentamento de velhos ¢ novos problemas pés-coloniais, que atingem a todos, indios e nao indios. As universidades, dessa forma, podem tornar-se aliadas dos povos indigenas em seus projetos de didlogo intercultural, como estratégia ® Serge Gruzinski, O pensamento mestiga, TradugGo por Resa Freire d’ Aguiar, $0 Paulo: Com- panhia das Letras, 2001, p. 110. * Ibid, p. 196. *139 Ectucacion Superior y Puebtas indigenas y Afrodescencientes en América Latina contemporanea de construgio politica de autonomia, em especial, no que diz respeito 4 gestdo de seus territérios tradicionais e ancestrais. Em outras palavras, a educagio é um elemento fundamental, mas os povos indigenas no querem mais “qualquer educagio”, e sim aquela que contribui para seus projetos de futuro. 10 Referéncias Acuuena Urquiza, A. H. & A. C, Nascimen- to, Rede de Saberes — Politicas de ago afir- mariva ne Ensino Superior para Indigencs no Mato Grosso da Sul, Rio de Janeiro: Hlacso, 2013. 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