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FIDELIDADE EM TRADUCAO POETICA: O CASO DONNE! Paulo Henriques Britto Na rea de Estudos da Tradugio, no Brasil, tem certa influéncia o ideario pés-estruturalista, que pode ser encarado como uma verséo contemporinea do ceticismo em sua versio mais radical — nao o ceticismo de Hume, mas 0 de Sexto Empirico. A posigéo pés-estruturalista pode ser resumida aproxima- damente como se segue: os textos néo possuem significados estaveis que correspondam a inteng6es que seus autores tivessem em mente ao escrevé-los (se & que os autores tém controle total sobre suas intengdes); s6 temos acesso a nossas préprias leituras dos textos. Assim, quando dizemos que uma dada tra- ducao ¢ fiel a0 original, estamos dizendo apenas que nossa leitura dessa traducio é fiel & nossa leitura do original; nada podemos afirmar sobre os textos em si. Entende-se, pois, que nao haja consenso absoluto a respeito dos méritos relati- vos de duas tradugGes de um dado texto; se achamos a tradugdo de um texto feita por A melhor que a feita por B, isso ocorre apenas porque nossa leitura do original se assemelha mais do tradutor A do que a de B; e nada mais haa se dizer. Analisando a polémica entre Nelson Ascher e Paulo Vizioli a respeito dos méritos relativos das tradugoes de Donne feitas, respectivamente, por Augus- to de Campos e pelo préprio Vizioli, Rosemary Arrojo (1993: 24~25) argu- menta que atradugio de um pocma ca avaliagio dessa tradusio no poderio realizar-se forade um ponto de vista, ou de uma perspectiva, ou sem a mediagao de uma “interpretagao”. Portan- to, traducio de um pocma, ou de qualquer outro texto, inevitavelmente, sré fie visio {que o tradutor tem desse poemae, também, aos objetivos de sua traducio.[... Tanto Paulo ‘Vizioli quanto Augusto de Campos sio “fcis” as suas concepgbes tebricas acerca de tradu ‘gio c acerca da poesia de Donne, ¢, nesse sentido, tanto as tradugées de um, como de ‘outro, io legitimas ¢ competentes. Inevitavelmente, as tradugies de cada um deles agra dario aos itores que, consciente ou inconscientemente, compartilharem de seus press postos, c desagradario aqueles que, como Ascher, jé foram scduzidos por pressupostos diferentes. Em Arrojo (1999: 45) a autora defende a mesma posicio: Contudo, se concluimos que toda tradusio ¢ fiel as concepgies textuaisc tedricas da comunidade interpretativa a que pertence o tradutor ¢ também aos abjetivos que se Terceira Margem Rio de Janeiro Nimero 15 pp. 239-254 « julho-dezembro/2006 « 239 Paavo Hewoues Barto ppropée, isso nao significa que czem por terra quaisquer critérios para a avaliagao de tradugSes. Inevisavelmente [..] accitaremor ecelebraremos aquelas tradugSes que julga- -mos “fis” as nossas prdprias concepgGes texcuaise tedricas, e rejeitaremos aqueles de caajos pressupostos nio compartilhamos. Assim, seria impossivel que uma traducio (ou Ieitura) de um texto fosse definitiva ¢ unanimemente aceita por todos, em qualquer gpocac em qualquerlugar As tradugées, como nds etude o que nos cerca, no podem deizarde ser mortais. Aargumentagio, num primeiro momento, parece inatacdvel: sem ditvi- da, jamais temos acesso a coisas-em-si, porém somente a nossas percepgoes delas, inevitavelmente marcadas por caracteristicas individuais nossas. Assim, 0 avaliar tradug6es, estarfamosapenas afirmando nossa maior ou menor adeséo aos pressupostos do tradutor, e nao dirfamos nadaa respeito da tradugao em sis toda e qualquer discordancia entre avaliagSes de uma mesma tradusio feita por analistas diferentes decorreria apenas do fato de que os contendores partem de pressupostos diferentes. Mashé aqui um problema: 0 argumento de Arrojo nao se aplica apenas & tradugdo. Se ele é valido, ele deveria se aplicar também aos outros campos do saber nos quais nao se tem acesso direto & essencia do real em. si—isto é, a todos eles. Recentemente, a propésito da publicacao de dois livros sobre a teoria das cordas, varios artigos (v., por exemplo, Holt, 2006) dirigidos ao piblico leigo tém abordado essa importante controvérsia no campo da fisica. Para alguns cientistas,a teoria das cordas nao ésequer uma teoria cientificas para outros, € 0 caminho que levard tao sonhada unificacio da teoria geral da relatividade com a mecanica quantica. Ora, se adotamos ponto de vista defendido por Arrojo, diremos que em fisica, como em tradugio, nao temosacesso & realida- de-em-si, porém apenasa representagées de aspectos delas assim, aqueles que adotam os pressupostos por tds da teoria das cordas—enue eles, a idéia de que o mais importante critério para se julgar um modelo cientifico é 0 estético (beleza, simplicidade) — tenderao a defender a teoria das cordas, enquanto os que “foram seduzidos por pressupostos diferentes” nao a aceitarao. Por que os fisicos nao se contentam com essa constatacao? Por que realizam experimen- tos, publicam livros e artigos, defendendo ou atacando essa ou aquela posigao? E aqui tocamos no cerne da questo. O ponto de partida de Arrojo pro- cede, mas a conclusio a que ela chega nao se sustenta. E verdade que nao temos acesso direto ao real e que todas nossas opinises sto qualificadas pelos nossos pressupostos, mas essa constatacdo no leva & conclusao de que todas as tradugoes, ou todas as teorias, sao igualmente “legitimas e competentes”. Pelo contrario, é precisamente porgue nao temos esse acesso direto ao real que é 240 « Terceira Margem Rio de Janeiro Nimero 15 © pp. 239-254 « julho-dezembro/2005, Fioeupape eu TRapucAo PoéTCx: 0 caso Donne necessério analisar, discutir e tentar estabelecer consensos, ainda que parciais — pois se o real se oferecesse diretamente como evidéncia inteligéncia humana, o que haveria para discutir? Assim, em princfpio nao ha motivo pelo qual a questo especifica que nos interessa aqui —a dos méritos relativos das tradug6es de Donne feitas por Campos Vizioli — nao possa ser discutida a partir da formulacao de hipéte- ses, andlise de dados concretose argumentos racionais, tanto quanto qualquer questo em outros campos do saber. Com base em conversas com varios cole- gs de profissdo, creio poder afirmar que, se fosse feita uma pesquisa de opi- niio entre os tradutores de poesia brasileiros da atualidade, uma maioria ex- pressiva diria que as tradugGes de Donne feitas por Campos sio melhores do que as assinadas por Vizioli. Nao se est negando que Vizioli tenha sido um tradutor sério, respeitado por seus pares, e que suas tradugées sejam “legitimas e competentes”. A pergunta que se coloca é: por que motivo muitos traduto- res de poesia — talvez a maioria deles— consideram as tradug6es de Campos melhores que as de Vizioli? Responder que isso se dé porque a maioria tem pressupostos em comum com Campos e ndo com Vizioli levaria a uma outra pergunta: por que os pressupostos de Campos tém mais adeptos que os de Vizioli? Neste ponto, valendo-se do foucaultianismo vulgar que se populari- zou na dtea de Letras, alguns, argumentariam: porque Campos tem mais “po- der institucional” que Viziolis por isso as solug6es por ele propostas se torna- ram “hegeménicas”. Mas essa explicacdo leva a esta outra: por que motivo Campos adquiriu mais “poder institucional” que Vizioli? Nao seria possivel arriscar a hipstese de que o respeito que ele goza entre os tradutores de poesia se deva a caracteristicas de seu trabalho de tradutor, caracteristicas essas que podemos depreender através da andlise de suas tradug6es? Afinal, podemos pressupor que o prestigio de Stephen Hawking entre os fisicos deve estarliga- do a caracteristicas de sua produgdo académica que podem ser explicadas pelos seus pares. Por que motivo nao ser possivel um critico de tradugio fazer algo andlogo na sua drea de especialidade? Para nosso estudo de caso, tomemos as tradugGes propostas por Campos e Vizioli para a famosa “Elegie XIX: Going to bed”. A escolha desse poema nao é arbitréria: trata-se de uma peca geralmente reconhecida como uma das obras- primas de John Donne. Parao tadutélogo Antoine Berman (1995: 148), “Going to bed” é “un poéme unique chez Donne, et dans la poésie occidentale’; ele dedicou um livro inteiro & andlise de tradug6es alternativas deste tinico poema parao francés, também examinando uma para o espanhol (assinada por Octavio Terceira Margem # Rio de Janeiro * Numero 15 + pp. 239-254 « julho-dezembro/2006 241 auto Henriques Brera Paz). E de se esperar, pois, que Vizioli e Campos tenham se esmerado ao méxi- ‘mo ao empreender stias tradugdes de “Going to bed”. Nos quadros abaixo, apresentamos o texto original de Donne, extraido de uma edigio respeitada (Honig & Williams 1969: 121-123), lado a lado com cada uma das duas tradugées, primeiro a de Vizioli (Donne 1985: 39— 41), depois a de Campos (Campos 1986: 55-57). ‘Come, Madam, come, al rest my powers defi, Until I labour, Lin labour lie. ‘The foc oft-times having the fe in sight, Istird with standing though he never fight. 5 Offwith that girdle, like heavens Zone glittring, Buta far fairer world incompassing. Unpin that spangled breastplate which you wear, “That thieyes of busie fooles may be stop there. Unlace your self, for that harmonious chyme, 10 Tells me from you, that now itis bed time. Off with that happy busk, which I envie, That tll can be, and sill can sand s0 nigh. ‘Your gown going off, such beautious state reveals, Aswhen from flowry meads thhills shadow steals. 15 Offwith thar wyeric Coronetand shew ‘The haiery Diademe which on you doth grow: Now off with those shooes, and then safely tread In this loves hallow'd temple, this soft bed. In such white robes, heaven's Angels usid to be 20 Receavd by men; Thou Angel bringst with thee Abicaven like Mahomets Paradise; and though Ill spirits walk in white, we easly know, By this these Angels from an evil sprite, “Those set our hairs, but theseour flesh upright. Licence my roaving hands, and let them go, Before, behind, between, above, below. (O my Americal my new-found-land, My kingdome, saeliese when with one man man, My Myne of precious stones, My Emperic, 30 How blest am I in this discovering thee! To enter in these bonds, is to be free; ‘Then where my hand is set, my sea/shall be. Full nakedness! All joyes are duc to thee, Assouls unbodied, bodies unclothid must be, 35 Totaste whole joyes. Gems which you women use Are like Adanta’ balls, cast in mens views, ‘That when a fools eye lighteth on a Gem, His earthly soul may cover theirs, not them. 25 ‘Vem, oh senhora, vem, gue dcias ndo me permito; Fico agitado toda vez que néto me agito. Quando o inimigo 2o inimigo espreita cescuta ‘Mais se cansa da espera que da prépria luca. ‘Tiracste cinto, cintilante anel celeste, Queem torno aum mundo mais formoso dispuseste. Desprende logo o peitoral onde lsis, Que barra os olhos dos xeresas imbecis. Despe-te, pois carrilhio sonoro chama, Dizendoamim queahora chegou de ir paraacama. Are o teu espartilho, que cu invejo em tudo: Contudo, ele te abraca;e se mantém, contudo. “Tua saia, a0 cai, revelatal primor, (Que éigual& sombraa se afastardo campo em flor. Fora coroa entrclacada de metal; Solta os cabelos, diadema natural. ‘Tiraos sapatos, , scm medo, ora teavia ‘Ao sacririo do amor, Acama tio macia. Com essas vestes cindidas, do céu amigo Osanjos vinham. Anjo meu, trazes contigo Um paraiso igual ao de Maomé; eembora aja espfritos maus também de branco, agora Sabe-se bem qual anjo é mau, eo bom qual é: Um deixaem pé os cabelos, o outro acarneem pé. ‘Concede uma licenca a minha mao errante, Parair 0 meio, encima, embaixo, ats, adiante, Oh, minha América! Oh, meu novo continente, Meu reino, asalvo porgue um homem tens ifrente. “Tenho aqui minhas minas, meu império aquis Que abengoado sou por descobrira ti! Este acorda liberta a quem ele segura; Onde coloco amio, eu deixo a asinasura. Nudez completa, da alegria o ccrnecapolpa! Comoaalma si do corpo, o corpo sai da roupa Parao prazer total A jéiada mulher E magi de Atalanta, que sua dona quer Langar aos toles, aque, vendo a gema bela, Pensem sequiosos no que é dela, ¢ nao mais nela. 242 © Terceira Margem © Rio de Janeiro * Nimero 15 + pp. 239-254 « julho-dezembro/2006 Fineuoane em TRanucAo Potmica: 0 caso Downe Like pictures, oF like books gay coverings made 40 For lay-men, are ll women thus array “Themselves are mystick books, which only wee (Whom their imputed grace will dignific) Must sce reveald. Then since that | may know; As liberally, as to 2 Midwife, shew 45 Thy selfscast all, yea, this white nen hence, “There isno pennance duc to innocence. ‘To veach thee, Lam naked first, why than ‘What nest thou have more covering then aman. ‘Come, Madam, come, allret my powers def, Until Habous, Tin labour lie. ‘The foc oft-times having the foe in sight, [stir with standing though he never fight. 5 Offwith thatgirdl, like heavens Zone glittering, Bura far fairer world incompassing. Unpin that spangled breastplate which you wear, That theyes of busie foolesmay be stopt there. ‘Unlace your self, for that harmonious chyme, 10 Tells me from you, that now itis bed time. Off with that happy busk, which I envie, ‘That still can be, and still can standso nigh. Your gown going off, such beautious state reveals, Aswhen from flowry meads tills shadow steces. 15 Off with that wyerie Coronet and shew ‘The haiery Diademe which on you doth grow: "Now offwith those shooes, and then safely tread In this loves hallow'd temple, this soft bed. In such white robes, heaven's Angels usd to be 20 Receavd by men; Thou Angel bringst with thee Abhcavea like Mahomets Paradise; and though spirits walk in white, wecasly know, By this thesc Angels from an evil sprite, ‘Those set our hairs, bu these our flesh upright. 25 Licence my roaving hands, and let them go, Before, behind, between, above, below. O my Americal my new-found-land, ‘My kingdom, sfliest when with one man masid, ‘My Myne of precious stones, My Emperic, 30 How blest am [in this discovering thee! ‘To enterin these bonds, isto be free; Then where my hand is set, my seal shall be. Full nakednese All joyes are due to thee, Assoulsunbodied, bodies uncloth’d must be, ‘Como pintura, ou capa de volume, feita Visundo aos leigos, amulher também se eniitas Mas obra mistica, es tema x explicita Somente aqucles aquea grasa nobilita, ‘Como nés, Sendo assim, que eu te conhegainteirss ‘Sem pejo vem, ¢, come diante da parteirs, ‘Mostra-te a mim. Atiralonge a vestimenta: Paraa inocéncia punigio nao scaprescnta. Que esperas? Fstou nu... cashoras sc consomem. ‘Mais cobertura tu desejas do que um homem? ‘Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz; Atéque cu lute, em luta o corpo jaz. ‘Como o inimigo diante do inimigo, ‘Canso-me de esperar se nunca brige. Soka esse cinto sideral que vela, (Céu cintilante, uma dica ainda mais bela. Desata esse corpete constelado, Feito para deter o olhar ousado, Entrega-te ao torpor que se derrama Detia mim, dizendo:horada cama. Tirao espartlho, quero descoberto O que ele guarda, quicto, tao de perto. O compo quede tuasscias sai Eum campoem flor quando a sombra seesvai. ‘Arranca essa grinalda armada edeixa ‘Que eresca odiademada madeixa. Tiraos sapatos centrasem reccio Nesse templo de amor que é0 nosso keto. Osanjos mostram-se num branco véu Aos homens. Tu, meu Anjo, é como 0 céu DeMaome.E se no branco tém contigo Semelhanga os espiritos, stings: O que meu Anjo branco pée aio é ‘O cabelo mas sim a carneem pé. Deixa quea minhamao errante adentre Atris, na frente, em cima, em baixo, entre. Minha América! Minha terra dvista, Reino de paz, se um homem s6aconquista, Minha Mina preciosa, meu Império, Feliz de quem penetre o teu mistrial Liberto-me ficando teu escravo; ‘Onde cai minha mao, meu selogravo. Nudez total! Todo o prazer provém Deum corpo (comoazima sem corpo) sem Terceira Margem # Rio de Janeiro # Nimero 15 # pp. 239-254 « julho-dezembrol2006 283 Pawo Henaques Bato 35 Totaste whole joyes. Gems which you women use | Vestes. As ias que a mulher ostenta Are like Atlanta’ balls, cast in mensviews, Sao como asbolasde our de Atalanta: ‘That when a fools eyelighteth on a Gem, O olho do tolo que uma gema inflama Hisearthly soul may covet theirs, not them. Mlude-e com ela eperdea dama. Like pictures, or like books gay coveringsmade | Como encadernagio vistosa. eita 40 Forlay-men, are all women thus array'ds Parailetrades, a mulher se enfeita; ‘Themselves are mystick books, which only wee | Masela éum livro misticn ¢ somente (Whom their imputed grace will dignifie) Aalguns (aque tal graca se consente) Must sce reveal'd. Then since that | may know; F dado lé-la. Fu sou um que sabe; Asliberally, as toa Midwife, shew Como se diante da partcira, abre~ 45. Thyself castall, yea, this white lynnen hence, | Te: tira, sim, o linho branco fora, Hereisno penance, much less innocence. Nem peniténcia nem decéncia agora. To teach thee, Lam naked first; why than Pars ensinar-te cu me desnudo antes: What needst thou have more covering thena man. | A coberta deum homem teé bastante. A forma poética adotada por Donne é 0 heroic coupler: pares de pentame- tros jambicos (versos de cinco pés, tendo cada pé duas silabas) com rimas emparelhadas. A tradugao de Vizzioli (doravante abreviada V) éem versos de doze silabas, e a de Campos (C) em decassflabos. Em termos de correspon- déncia formal,’ a maioria dos tradutores provavelmente tenderia a concordar que o decassilabo € 0 verso portugués mais préximo do pentametro jambico, por terem ambos dez silabas. Nao obstante, muitas veres observa-se que, sen- do as palavras inglesas mais curtas do que as portuguesas, pode ser vantajoso uaduzir-se o pentimetio jambico pelo dodecassflabo, para que o uradutor nao seja obrigado a fazer cortes a fim de manter o mimero de silabas no portugués. Como V adota versos de doze silabas eC, versos de dez, erade se esperar que, a0 menos no plano semantico, V fosse mais préxima do original que C. Veja- mos se isso de fato ocorre, examinando as tabelas acima. No texto original, assinalamos em negrito toda palavra ou expresso cujo significado pareca nao ter sido transposto na traducio. Tanto no original quanto nas tradug6es, marcamos em itdlico toda passagem cujo sentido tenha sido alterado de forma significativa. Nas tradugoes, sublinhamos as palavras e ex- press6es que, no plano do sentido, parecem nao corresponder a nada que conste no original. Comecemos contando as passagens assinaladas nas duas tradug6es. Para facilitar, computaremos uma tinica ver cada trecho marcado, mesmo que ele contenha dois ou mais itens contiguos; assim, o verso 12 de V eo verso 48 de C contam cada um como uma tinica ocorréncia de itlico. Temos entao 0 seguinte quadro: 244 « Terceira Margem + Rio de Janeiro * Numero 15 * pp. 239-254 « julho-dezembro/2006 Fioeuosoe eu reaoucko poéca: 0 caso Donne v negritos_| 13 | 15 itdlicos | 1 sublinhas | 15 | 2 No que diz respeito as perdas de significado e as alteragbes de elementos seminticos, as duas traduugGes se equivalem, com ligeira vantagem para V; por outro lado, V apresenta muito mais acréscimos do que C. Ou seja: a0 que parece, a adogdo de um metro mais longo em V, embora permitisse diminuir um poucoas perdas e alteracdes semanticas, teve o efeito contraproducente de obrigar o tradutor a acrescentar um grande ntimero de palavras e expresses quenio correspondem a nada que se encontre no original, a fim de preencher as doze sflabas de cada verso. Examinando a primeira tabela mais detidamente, chegamosa uma outra constatacdo importante: dos 15 acréscimos em V, nada menos que 1 1 ocorrem em posicdo final, o que parece indicar que as palavras em questo foram acrescentadas com 0 duplo objetivo de preencher espaco e também forgar uma rima. Quando verificamos que em C hd apenas um acrés- cimo em posicao final, somos levados a concluir que em C, muito mais do queem V,as rimas se dio entre termos que correspondem semanticamente a0 original, ao passo que em V, em 11 versos traduziu-seo sentido do original e em seguida acrescentaram-se uma ou mais palavras ao verso para que houvesse rima. Ou seja: em V, o metro mais longo foi a solugdo encontrada pelo tradu- tor para compensar sua dificuldade em encontrar solug6es que funcionassem ao mesmo tempo no plano do significado e no da rima. Este fato, se compro- vado, por sisé j4 constitui um forte argumento em favor da superioridade de C. Examinemos, pois, os 11 disticas em cujas tradug6es houve acréscimos na posicao final dos versos. ‘Comecemes com os versos 3-4. Aqui V acrescenta “e escuta” para conse- guir uma rima para “lua”, enquanto C rima “inimigo” com “brigo”, utilizando tradugGes literais para dois termos do original (foe e fight) que em inglés se ligam pela aliteracao, obtendo uma rima para manter a associagio entre eles — uma associagao que se perde em V. Os verbos do original estao na terceita pessoa, 0 que foi preservado por V, porém C usou primeira pessoa para obter sua rima. ‘Temos em C, pois, uma modificacio — de terceira para primeira pessoa—a qual permite que se recuperem ao mesmo tempo trés caracteristicas do original: 0 significado, a rima e a associagao fonica entre dois termos que pertencem ao mesmo campo semantico. Aqui, a superioridade de C é clara. Terceira Margem # Rio de Janeiro * Nimero 15 # pp. 239-254 + julho-dezembro/2006 » 245 auto Hennques Barro Passemos agora a 11-12. Em V, “em tudo” é acrescentado ao final de 11 eo sentido de 12 é alterado de modo significativo para que 0 verso possa terminar com “contudo”. Também em C houve um acréscimo da expressio “quero descoberto” em posicao final; 11 ¢ 0 tinico verso em que ocorre um acréscimo nesta tradugio. Mas 0 sentido da segunda ocorréncia de stillem 12 foi mais bem reconstruido em C do que em V. Ha em Donne um jogo de palavras com os dois sentidos de srill — na primeira ocorréncia, significa “im6- vel’; na segunda, “ainda”. O sentido literal do verso é “que consegue permane- cer imével/tranqtiilo, e ainda assim permanecer to perto [do seio da mu- Iher]”. Esta idéia é expressa com maior precisto por “quieto” em C do que por “se mantém” em V. Em 17-18, a incluséo em V de “te avia” para obter rima com “macia” pode parecer uma mudanca de pouca importéncia. Porém ela aponta para ‘uma idéia que nao consta no original, a de que o homem estaria de algum modo apressando a mulher, e néo apenas convidando-a para o leito. Essa idéia é reforgada pela inclusdo de “logo” em 7 e, como veremos adiante, pelo acré 10 bem mais radical feito ao v. 47. Em 19-20, temos em V a inser¢io de “amigo” apenas para rimar com “contigo”, o que constitui uma alteracao sem maiores conseqiténcias para 0 significado do trecho. Em 21-22, oacréscimo de “agora” em C para rimar com “embora” nio se justifica do ponto de vista semantico: por que motivo a distingio entre os dois tipos de seres — “Anges” e “evil sprites” — seria mais clara agora do que antes? De novo, a rima foia tinica razao de ser do acréscimo; quanto ao senti- do, a presenca de “agora” éindesejével. Em 33-34, temos em V “o cerne e a polpa”, uma imagem redundante (pois “cerne” e “polpa” tém mais ou menos o mesmo sentido) que em nada corresponde ao original, porém ocupa quatro silabas métricas; estd claro que 0 acréscimo visa preencher o metro e proporcionar uma rima conveniente (ait da que inexata no plano fonolégico) para “roupa’. Em contraste, C rima “pro- vém” com “sem”. A rima em C é também inexata, por se dar entre uma silaba tOnica e uma étona. Mas, embora neste trecho do original a rima se dé entre duas tOnicas, em outras passagens Donne usa rimas desse tipo — ao todo, quatro vezes. Em 11-12 e 41—42, temos rimas duplamente desviantes, porse darem entre sflabas com acento primério (nigh, wee) e silabas ou com acento secundério (dignifie) ou dtona (innocence) ¢ por serem puramente visuais —as letras sdo iguais, mas o som é diferente; e em 29-30 (Emperie— thee) ¢ 45-46 (hence — innocence) temos mais uma vez ocorréncias de acento primrio numa 246 ¢ Terceira Margem # Rio de Janeiro * Nimero 15 # pp. 239-254 « julho-dezembro/2006 Foeupane eu rrapucko PotTca: 0 caso Donne rima e de secundario na outra. A ocorréncia de tais rimas em Donne justifica, a ‘meu ver, as rimasinexatas que encontramos nas duas tradugies— as quais, hd que reconhecer, sio bem mais numerosas e mais desviantes em C do que em V. Em 35-36, em V o acréscimo “ques” rima com “mulher”, mas altera 0 sentido do original: na lenda, Atalanta langa as frutas de fato, e néo apenas quer langé-las. Aqui C rima “ostenta’ com “Atalanta”, uma rima que represen- ta.um desvio & norma rimica maior do que qualquer exemplo que possamos encontrar no original. Em 37-38,em V temos “bel”, cuja funco é rimar com “nela’; C altera um pouco o sentido do original para rimar “inflama” com “dama’. Note-se, porém, que o significado de “inflama” o aproxima do sentido de a fools eye lighteth. Em 43-44, “inteira” em V serve apenas para rimar com “parteira’; C altera um pouco o sentido de shew thy self para “abre-te” e obtém uma rima incompleta com “sabe”. Aqui seria possivel criticar C por separar o pronome proclitico do verbo no corte do verso, um enjambement mais radical do que podemos encontrar em qualquer passagem do original. Observe-se, porém, que tais enjambements radicais sao com freqiiéncia utilizados por Campos em suas tradugdes de poetas de diferentes épocas, como uma espécie de marca pessoal que ele imprime conscientemente ao seu trabalho. Por fim, em 47-48 temos em V o acréscimo de “e as horas se conso- mem”, nada menos do que seis silabas métricas e um significado que, além de ndo corresponder a nada no original, parece ressaltar uma relutancia da parte da mulher e uma impaciéncia da parte do homem que também no constam no texto de Donne. Essa idéia jé foi sugerida por “te avia” em 17, eé reforcada no verso final pela substituicao de “zo reach shee” por “Que esperas?” A atri- buigdo de relutancia & mulher e impaciéncia ao homem tem o efeito de tornar mais convencional o erotismo de Donne, na medida em que tais comporta- mentos fazem parte da representagio tradicional das relagbes entre os sexos. Em Donne (e em C) o poema termina com a idéia espirituosa de que o homem se despe para fins didaticos, enquanto em V a imagem final é 0 cliché do macho ansioso por copular com uma fémea que reluta, talvez para provocé-lo.' Neste trecho C opta por mais uma rima incompleta, entre “antes” e “bastante”, po- rém utiliza apenas material semAntico retirado do original, mantendo a idéia de que o homem se desnuda antes para ensinar a mulher a fazé-lo; por outro lado, afasta-se do original na medida em que fecha o poema com uma afirma- tiva enquanto Donne (es6 nesse ponto V é mais fiel) termina com uma per- gunta retérica. Pesados os ganhos e perdas das duas tradugbes do distico final, fica evidente a superioridade de C. Terceira Margem # Rio de Janeiro # Nimero 15 # pp. 239-254 + julho-dezembro!2006 « 247 auto Henriques Brera ‘Vejamos as demais alteracoes de significado que encontramos nas duas tradugbes. Jé observamos que nesse quesito, do ponte de vista quantitative, C eV praticamente se equivalem, com ligeira vantagem para V; resta examinar 0 aspecto qualitativo. Das 11 ocorréncias em V e das 13 em C, podemos deixar de lado algumas que parecem relativamente triviais. Em 20, por exemplo, V transforma “received by men” em “vinham”, e em 28 a idéia de seguranca é trocada em C pela de paz; em 35, tanto em V quanto em C temos “a mulher” em lugar de “you women”. Ignoremos mudangas de pouca monta como essas ¢ examinemos apenas algumas das alteracdes mais drasticas. Comecemos como par 1-2. “Until I labour, Lin labour lie” é glosado na Norton anthology como “Labor in the sense of ‘get to work’ and in the sense of “distress” (Abrams er. al., 1200 n.), um jogo de palavras de dificil tradugao que poderia ser vertido literalmente como “até que comece a trabalhar, eu jazo em sofrimento”. Em C houve uma recuperagao parcial desse significado e do jogo de palavras: como em 1 se fala em desafiar a paz, pode-se entender que “Jutar” em 2 representa o ato sexual, e o convite ao sexo aparece metaforizado como um desafio a uma luta— uma imagem que nao esté no original, mas que substitui a idéia de trabalho como metéfora do ato sexual. Mas V, ao falar em “6cio” e “ficar agitado”, nao cria nenhuma imagem que possa ser vista como representacao da copula, e a passagem fica um tanto obscura. Em 6-7, “spangled breastplate”, vertido de modo razoavelmente fiel em C como “corpete constelado” — “constelado” remete a “constelacio” e por con- seguinte a “estrela”, sendo um dos sentidos de spangle “um ponto de luz relu- zente” ( Webster’) — aparece em V como “o peitoral onde lusis”. Aqui houve um deslocamento de sujeito: €a mulher e nao o peitoral que luz, 0 que é de pouca relevancia. O problema, porém, é que V adota a segunda pessoa do singular ao longo de todo o texto (“vem, oh senhora”, “tira este cinto”, “tu desejas”, etc.), e “luzis” é forma da segunda pessoal do plural. Nada, a nao ser a necessidade de rima, justifica esta stibita mudanga de ntimero. Igualmente questionavel a escolha de “xeretas imbecis” para traduzir “busy fools”. “Xere- ta’, embora corresponda a acepcéo de busy aqui — ‘intrometido” — é termo fortemente coloquial do século XX, e portanto duplamente impréprio para aparecer numa traducio de um poema do século XVI cuja linguagem nao comporta nenhum coloquialismo. A impropriedade do termo se acentua quan- do levamos em conta que Vizioli, segundo Arrojo (1993: 25), acredita que “um poeta do século XVI deve ser apresentado aos leitores do século XX como um poeta do século XVI, sua traducio deve trazer a marca do ‘original’, deve ‘soar’ antiga’. Além disso, “imbecis” é termo muito mais agressivo do que 248 # Terceira Margem # Rio de Janeiro * Nimero 15 + pp. 239-254 « julho-dezembro/2006 Fioeupade em reaDucAo Poemica: 0 caso Done _fools. Acrescente-se que essas impropriedades seminticas, cujo efeito é 0 de baixar o registro de modo considerével, ocorrem logo apés o uso (incoereate, como jé vimos) de uma segunda pessoa do plural, que tem o efeito inevitével de subir o registro. O resultado é um choque entre elevado e baixo que nao corresponde a nada que se possa depreender no original. Em C, temos aqui “o olhar ousado”, uma alteracao do sentido de “busy foo” em que a nocéo de “ousadia” substiui as de “intrometido” e de “tolo”. As duas tradugées, portan- to, sto pouco figis ao original, ade C mais que a de V. Porém, ao misturar pessoas (singular com plural), introduzir um termo excessivamente moderno e coloquial e uma expresso agressiva demais, e criar um choque entre registro elevado e registro baixo, a solucéo de V é muito inferior a de C: a meu ver, esses dois versos constituem a passagem menos feliz de todo 0 texto V. Em 9, V traduz “harmonious chyme” por “carrilhéo sonore”, uma versio bem mais préxima do sentido do original do que o “torpor” de C. Por outro lado, V perde o sentido de “from you”, recuperado por C. Nesta passagem,em que nada de muito importante esta em jogo, V é mais fiel do que C. Ja discutimos a parelha 11-12. Passemos, pois, a27—28. “My new-found land” é vertido de modo mais proximo ao original em V do que em C (cuja solugio, “terra vista’, embora nao literal, é, no entanto, perfeitamente apro- priada ao contexto de descobertas maritimas). Em 28, 0 sentido do verso é “meu reino, mais seguro quando é povoado por um tinico homem”, havendo aqui um jogo de palavras entre substantivo man (“homem”) ¢ 0 verbo to man (“povoar”, uma acepgfo hoje obsoleta) que nao foi recriado nem em V nem em C. Aqui Donne usao numeral one e nao o artigo indefinido a, para deixar claro que o que esté em jogo éa existéncia de apenas um homem a “povoar” a mulher-territério. Porém o que lemos em V é “a salvo porque um homem tem a frente”, 0 que nao capta o sentido do original - é como sea alternativa fosse um reino sem ninguém a sua frente, desgovernado. Em C, por outro lado, lemos “Reino de paz, se um homem s6 a conquista’; aqui a idéia de seguranga foi substitufda pela de paz, mas 0 que me parece mais importante é que foi mantido 0 sentido de “one man”: a mulher é um reino que comporta um s6 homem como populacio. Em 29-30, C altera “discovering thee” para “penetre o teu mistério”, para rimar com “Império”, Neste ponto, V é mais fiel que C. Por outro lado, a imagem “mulher” = “mistério” vai aparecerabaixo, em 41; assim, C esté utili- zando material semantico que existe no original, ainda que em outro trecho. Em 31-32, temos um paradoxo tipico de Doane:’ “To enter in these bonds, is to be free.” C mantém-se bem préximo do original: “Liberto-me Terceira Margem # Rio de Janeiro # Nimero 15 + pp. 239-254 + julho-dezembro/2006 + 249 auto Henmques Barro ficando teu escravo.” A versio de V, “Este acordo liberta a quem ele segura”, nao deixa clara a oposicao entre prisio e liberdade, pois “acordo” nao sugere a idéia de servidao expressa por bonds. No verso seguinte, seal foi vertido literal- mente como “selo” em C, mas alterado para “assinatura” em V com o fim de rimar com “segura’. A imagem do selo é mais apropriada que a de assinatura, j4. que a comparagio é com o gesto de um homem que pe a mo num corpo de mulher. As solugdes de C sao aqui muito superiores as de V. Em 37-38, a oposigdo entre theirs e them foi sem diivida mais bem recuperada por V (“dela’—“nela’) do que por C (“ela” remetendo a “gema” em oposigio a “dama”). Quanto as modificages feitas por C neste trecho, como ‘vimos acima, elas utilizam material semantico que jé constava do original. Em 4546, “white linen” aparece como “vestimenta’ em V — uma mu- danga do especifico para o geral que ocorre com freqiténcia em traduséo, pode ser aceita como uma estratégia justificavel. No contexto em questo, porém, a referéncia a alvura do linho é importante, pois vem associada a idéia de inocéncia do verso seguinte. Aqui C aqui est bem mais fiel ao original. Em 46, ambas as tradug6es fazem alteragbes significativas, ainda que nao drésticas, no sentido de Donne: pennance é vertido como “punigao” em V, e innocence como “decéncia” em C. Este é 0 verso que difere nos originais usados pelos dois tadutores; cada um usou uma variante. No que diz respeito as omissdes —assinaladas em negrito nas tabelas —as duas tradug6es estio bem préximas, e a maioria dos elementos suprimidos é de pouca importancia— p. ex., tanto em V eC falta um elemento correspon- dente a “shihills” em 14, ¢ em ambas falta uma adjetivacio correspondente a “hallewed" em 18. Como jé observamos, neste quesito V leva uma pequena vantagem sobre C: em 22, 0 adjetivo il, cujo sentido é relevante no contexto, é omitido em C, porém conservado em V. Idealmente, deverfamos analisar agora 0s recursos formais do original em oposicio as duas tradugées, nas linhas do que foi feito em trabalhos anteriores (p-ex, Britto, no prelo a e 6), mas por consideracdes de espaco limitaremos nossa andlise aos aspectos semanticos, fora os comentarios acima referentes a escolhas métricas ea rimas imperfeitas. Pademos, pois, fazer um balango geral do que foi visto. A primeira diferenca que chamou a nossa atencéo num cotejo entre 0 original e as duas versbes foi o fato de que V usa dodecassilabos para traduzir 08 pentimetros jambicos do original - ou seja, versos de dez silabas — enquan- to C utiliza decassilabos. Em tese, j4 que o inglés é um idioma menos polissilabico que 0 portugués, V teria condigées de se manter mais fiel a0 250 # Terceira Margem + Rio de Janeiro » Nimero 15 + pp. 239-254 « julho-dezembro/2005 Fioeuos0e eu TRaDucAo Pogmica: 0 c4s0 Donne sentido do original do que C, por contar com duas silabas adicionais em cada verso. Verificamos, porém, que (a) as omiss6es semAnticas s40 mais ou menos equivalentes em nimero relevancia nas duas tradugées (b) V contém muito mais acréscimos de material semntico inexistente no original do que C, sendo que na maioria dos casos esses acréscimos foram feitos no final do verso. Ou seja, para muitos dos versos de Donne, encontra- mos em C solugGes que ao mesmo tempo recuperam o sentido do original e estabelecem rimas na traducdo, enquanto que em V temos uma expresso para captar o significado e outra para fazer a rima. P.ex., em 3-4 “e escuta” aparece em V apenas para rimar com “uta”, enquanto C rima “inimigo” com “brigo”; outros exemplos estdo em 11-12, 21-22, 33-34); (©) quanto & alteragao do sentido do original, na maioria dos casos as alteragdes em C sao menos drésticas ou menos relevantes do que as em V. Assim, V é mais fiel que C em 9 (“harmonious chymes”), um detalhe sem maiores conseqiiéncias, mas em 32, uma passagem em que est em jogo um paradoxo tipicamente donniano, C recupera o paradoxo e V o perde; exem- plos semelhantes estdo em 1-2 e 11-12 (d) em uma passagem (7-8), V traz uma forma de segunda pessoa do plural embora todo o resto da verso empregue a forma singular, e recorre a um termo coloquial do século XX que, além de nao estar coerente com o resto do texto quanto ao tom, contraria a intengao manifesta do tradutor de simu- lar uma linguagem antiga; (e) ao longo do texto, trés mudancas e acréscimos feitos por V tém o efeito de tornar mais convencional a representacio do amor no poema, o que fica particularmente dbvio no distico final. ‘Vemos, pois, que é possivel argumentar que C é superior a V quanto ao quesito fidelidade, utilizando argumentos razoavelmente objetivos. Dizer que as pessoas que preferem a de Campos & de Vizioli o fazem apenas por compar- tilharem os pressupostos de Campos e nao os de Vizioli nao resolve o proble- ma até porque, como vimos, a pratica de Vizioli em ao menos um ponto (v. 8) viola seu préprio pressuposto de que a traducio deve soar téo antiga quanto o original. Atualmente, nos estudos da traducao, como na area dos estudos literdrios, é freqtiente o argumento de que, como nao podemos ter acesso direto a um significado essencial absolutamente estavel, devemos adotar um relativismo ab- soluto — todas as soluc6es sao igualmente vilidas e competentes, cada uma em Terceira Margem # Rio de Janeiro * Numero 15 « pp. 239-254 « julho-dezembro/2006 « 251 auto Henriques Barro relacio aos seus préprios pressupostos, e nada mais hé a dizer. Como nao pode haver uma avaliagao de tradugao absolutamente objetiva e universalmente acei- ta, avaliar tradug6es seria uma atividade ociosa. A alternativa que proponho é esta: ainda que nao haja um consenso absoluto, e ainda que cada um de nés faca seus julgamentos com base em seus préprios pressupostos, é possivel utilizar 0 discurso racional para fazer avaliagdes e tecer consideragdes em torno de tradu- 6es, fazendo referéncia a certas propriedades dos textos traduzidos com relacéo as quais hd um certo grau de acordo entre um bom mimero de pessoas envolvi- das nas atividade de traduzir. Dadas duas tradugées de um mesmo texto, Ae B, cotejem-se A e B com o original e uma coma outra, linhaa linha, silaba a silaba, examinando e pesando as diferencas, para se chegar a uma concluséo baseada em fatos (ndo em impress6es subjetivas e conceitos vagos, do tipo “A flui mais que B” ou “A capta melhor o espitito do original que B”) e expressa em argumentos logicos (nao, por exemplo, em trocadilhos). Sem tivida, os arguments apresentados no presente trabalho e em outros do mesmo género podem ser questionados pontualmente; nem todos concor- dao com cada uma de minhas avaliag6es, nem tirariam as mesmas conclusbes. Mas aexisténcia de divergéncias nao nos deve levar& concluséo de que o conhe- cimento é impossivel. Do fato inegivel de que ¢ impossivel haver a concordan- cia de todos em relacio a tudo ndo se segue que nao possa haver nenhuma con- cordancia em torno de nada; a auséncia de um consenso absoluto nao acarreta 0 dissenso absoluto. A atual polémica quanto a teoria das cordas nao impede que 05 fisicos estejam de acordo em relacéo a muitas coisas. Nada impede que as discusses académicas na area da traducio sigam os mesmos parametros utiliza- dos na fisica ou em qualquer outro campo do saber: a formulagio e 0 teste de hipéteses, o exame cuidadoso dos dados relevantes, aargumentacio racional. E assim —e s6 assim — que se constr6io conhecimento. Notas * O autor gostaria de agradecer as leituras atentas de Marcia A. P. Martins e Walter Carlos Costa. > Existem duas versbes para o verso 45. Vizioli opta pela que aparece em Honig & Williams (1969); {4 Campos prefere a letura “Here is no penance, much less innocence”, que é também a usada por Berman. Os sentidos do negrito, do itilico e da sublinha serdo explicitados logo adiante. Os principios fundamentais adotados aqui esto expostos em Britto (2002). A respeito dos conceitos de correspondéncia formal e correspondéncia funcional, v. Brito (no prelo, a). “ Devo esta observagao a Walter Carlos Costa. > Ver, por exemplo, o verso 13 do “Holy sonnet” de ntimero 14, “Batter my heart, three persond God.” 252 © Terceira Margem © Rio de Janeiro Nimero 15 © pp. 239-254 « julho-dezembro/2006 Fioeuoane eu rrapucho Poérca: © caso Donne Bibliografia ABRAMS, M. H., et al. (1974) The Norton anthology of English literature. Vol. 1. 3rd edition. Nova York: Norton. ARROJO, Rosemary (1993). “A que sio fidis tradutores e critics de traducio? Paulo e Nelson Ascher discutem John Donne.” In: Tradugao, desconstrugio ¢ psicandlise. Rio de Janciro: Imago. (1999). Oficina de tradugao: a teoria na pratica. 4° ed. Sao Paulo: tic, BERMAN, Antoine (1995). “Introduction.” In: Pour une oritique des raductions : Jobn Donne. Paris: Gallimard. BRITTO, Paulo H. “Para uma avalia¢ao mais objetiva das tradugoes de poesia”. In: KRAUSE, Gustavo Bemardo. As margens da tradugdo. Rio de Janeiro, Faper/Caetés/UERJ, 2002. (2004). “Augusto de Campos como tradutor”. Jn: Siissekind, Flora, ‘e Guimaries, Jtilio Castafion (orgs.). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: Fundacdo Casa de Ruy Barbosa / 7Lewas. (no prelo, @). “Correspondéncia formal e funcional em tradugio poética”. Texto apresentado no congresso “Sob o signo de Babel — literatura e poéticas da traducio”, no Programa de Pés-graduagio em Letras da Universidade Federal do Espirito Santo, em 9 de dezembro de 2005. 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