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HEITOR MEGALE & professor da Faculdade de Filosofia, Letras 6 Ciéncias Humanas da USP @ tradutor de, entre outros, A Demanda do Santo Graal Lancslote, 0 Cavaleiro da Carreta, do Chrétien de Troyes, tradugo de Ver Harvey, Séo Paulo, Francisco Alves, 1994. 190 HEITOR MEGALE Uma nova tradugao do Lancelote de Chrétien de Troyes Em trés anos o Chevalier de la Charrette, de Chrétien de Troyes, recebeu duas competentes tradugdes langadas por duas editoras de prestigio. Em margo de 1991, saiu 0 trabalho meticuloso de Rosemary Costhek Abilio, num volume que retine quatro t{tulos de Chrétien de Troyes: Erec e Enide, Cliges ou a que Fingiu de Morta; Lancelote, 0 Cavaleiro da Charrete e Ivain, 0 Cavaleiro do Ledo, pela Li- vraria Martins Fontes Editora. O texto-fonte do trabalho de Rosemary C, Abilio a edigdo de 1975 do livro Romans de la Table Ronde: le Cycle Courtois, trabalho de modernizagao do francés, em prosa, por Jean Pierre Foucher, para a Gallimard, na colegio “Le livre de poche”.Em 1994, a Editora Francisco Alves langou Lancelote, 0 Cavaleiro da Carreta, tradugao de Vera Harvey, que assina um estudo introdutério “O Cavaleiro da Carreta e seu Uni- verso”. Nao se pode escrever arespeito dos dois trabalhos, sem deixar de comen- tar a divergéncia dos titulos. Nao é de hoje que os titulos dos romances de Chrétien de Troyes apresentam divergéncias. Introduziram-se os nomes das per- sonagens centrais nos tftulos dos romances de Chrétien de Troyes, em que porventura nao figuravam, certamente por analogia com aqueles em que tais nomes constituem © titulo: Erecet Enidee Cliges. Assim, Le Chevalier au Lion tornou-se conhecido como Le Chevalier au Lion (Yvain), como est na prépria edigio critica de Mario Roques, para a colegdo “Les Classiques Francais du Moyen Age”, da Livraria Honoré Champion, de Paris, o que permite nas tradugdes e nas referéncias A obra: Iva ou O Cavaleiro do Ledo, etambém O Cavaleiro do Leao: Iva, bem como Iva, 0 Cavaleiro do Leao. Cligés, naedigao REVISTA USP, SKO PAULO (27): 190-197, SETEMERO/ NOVEMBRO 1995 : a ANY ES \ i eee REVISTA USP, SRO PAULO (27): 190-197, SETEMBRO/ NOVEMBRO 1995 critica de Alexandre Micha, para a mesma colecdo, logo tornou-se, em outras edigoes em francés moderno, Cligés ou la fausse ‘morte, que Rosemary C. Abfliotraduziupara Cliges owa que fingiu demorta. Lecontedou Graal tornou-se Le Roman de Perceval ou Le Conte du Graal, na edigio de William Roach, mas Le Conte du Graal (Perceval), na de Félix Lecoy, ambas para a mesma colecdo francesa, e na edigao alema de Alfons Hilka, Halle, Niemeyer: Der Percevalroman (Li Contes del Graal), oque permitiu nas tradugdes O Romance de Persival ou O Romance do Graal ou com inversdo de titulo e subtitulo, encontrando- se ainda Persival, simplesmente, ou mesmo na grafia francesa: Perceval, A Livraria Martins Fontes Editora tem a tradugao de Rosemary Costhek Abilo Perceval: 0 Ro- mance do Graal, do texto prosificado em francés moderno por Armand Hoog para “Folio”, da Gallimard. Le Chevalier de la Charrette mantém-se na colegio francesa referida, o que ndo impede que nas tradu- ges ocorra: Lancelote, 0 Cavaleiro da Charrete, Lancelote ou O Cavaleiro da Charrete, bem como Lancelote: 0 Cavaleiro da Charrete, podendo os dois pontos virem substitufdos por uma virgula. Isso acontece desde os primeiros apégrafose,no caso do Persival, pode ter-se agravado, apartirde suas Continuagdes,mas certamente tal hébito difundiu-se aindamais com a tradi¢o impressa, como se pode ob- servar em edigdes criticas de diferentes au- tores e, de modo mais acentuado, nas edi- des modernizadas. Mesmo diante de todo esse quadro, nao se pode deixar passar a surpresa do titulo Lancelote, o Cavaleiro da Carreta, na tradu- a0 de Vera Harvey. Talvezseja uma influ- éncia da tradugao espanhola, aliés a propria tradutora, ao concluir seu ensaio inicial, declara ter feito 0 cotejo da publicacao de Mario Roques com as do francés moderno, uma de Jean Frappiere outrade Jean Pierre Foucher, bem como com a tradugo para 0 espanholde Luiz AlbertodeCuencae Carlos Garcia Gual. Em todo o caso, vale a pena verificar que a palavra charrete, no Brasil, designa veiculo pequeno de duas rodas, puxado geralmente por eqiiino, que habitu- almente transporta pessoas, enquanto car- reta remete a vefculo maior do que o anteri- or, de tragdo animal, especificamente bovi- REVISTA USP, SAO PAULO (27) no, para transporte de carga. Oscognatos de carreta confirmam, em toda a extensio, tal significado: carreto, carreteiro, carretagem e carretama, todos ligados ao transporte de carga, mantida ou no a tragao animal. Ora, a situago de Lancelote, aproveitando a charreteconduzida por um andoparaapres- sar-se na busca de Genevra levada por Meleagante, remete a usual charrete de tra- cao eqilina para transporte de pessoas. E também o que representa o desenho de um c6dice doséculoXV que o volume reproduz numa das quatro preciosas ilustragdes nas pAginas finais. ‘Masissonao € tao grave quecomprome- taa qualidade do trabalho de Vera Harvey. Numa préxima edigdo ajusta-se 0 titulo, porque dificilmente suplantar4 o j4 difundi- do Cavaleiro da Charrete, muito usual, mes- mo anteriormente a qualquer tradugao. E claro que seré necessériondodeixar escapar nenhuma ocorrénciada palavraaolongodo texto. LeChevalier dela Charrettefoiencomen- dado a Chrétien de Troyes por Marie de Champagne, filha de Leonor de Aquitania € esposa de Henrique I de Champagne. “Puis que ma dame de Chanpaigne vialt que romans a feire anpraigne, je Vanprendrai molt volentiers” como abre-se 0 roman de Chrétien, no octossilabico de seu costume, O texto de Foucher prosifica esses versos em francés moderno: “Puisque madame de Champagne veut que j'entreprenne un roman, je Ventreprendrai volontiers ..”. Rosemary C. Abilio faz: “Minha senhora de Champagne quer que eu empreenda um romance. Por isso, de bom grado 0 farei..."; Vera Harvey: “Jd que a senhora condessa de Champagne desejaque euescrevaum romance, cuo farei de bom grado...”. Por voltade 1165, Marie de Champagne deu-lhe a matéria e o sentido, digamos, 0 assunto e a moral. E 0 que declara o préprio Chrétien, em seu prélogo: “Del Chevalier de la charrette comance Crestiens son livre; ‘matiere et san li done et livre la comtesse et il s'antremet de panser, que gueres n'i met Vota SETEMBRO/ NOVEMBRO 1995 {fors sa painne et s'antancion”. O texto Foucher pde em prosa moder- nizada:"Lacomtesse luiendonnelamatiere et le sens et il s’entremet de penser, n'y dépensant guere que son travail et son attention”. © que Rosemary C. Abflio tra- duz: “A condessa fornece a matéria e 0 sentido e ele aplica-se em pensar, nao despendendo nisso mais que trabalho atengéo”, Vera Harvey, em seu cotejo de diversas ligdes faz: “A condessa dé-Ihe 0 tema eo contetido e ele poe-se a pensar s6 despendendoneleseutrabalhoeatengao”. Trabalhar um tema e um contetido ou uma matéria e um sentido e fazer um ro- mance é mettre en roman. Metire en roman € a expressao tipica dos romances, ¢ seu significado bésico € entao meter em lin- gua vulgar. Sem diivida, o vinculo entre a historiografia e o romance evidencia-se bastante rapidamente, em conseqiléncia da proliferagdo interna do discurso roma- nesco, da insist€ncia em seu carter des- critivoeemblematico. A essa caracteri: ¢40soma-se, por volta de meio século mais tarde, ocardter cfclico das grandes summa. Numa época em que a historiografia ten- de a reduzir-se ao relato de fatos ¢ a utili- dade moral imediata, 0 roman assume importantes fungdes. A posterior e progressiva dissociagao entre hist6ria e romance provém também de um outro fator. Surge de modo quase repentino, no horizonte do século XII, uma velha cultura folcl6rica, até entao alijada do discurso escrito pelas tradigdes da origem antiga pelas superestruturas linglisticas que o primeiro modelo feudal impunha. Tal cultura invade, j4notempodos mais antigos romances, em termos de Idade Média, as formas comuns da sensibilidade e da imagi- nagdo. Trazem seubojoumanti-humanismo difuso, uma brutal afirmagao de energias naturais que, talvez nao se percebesse facil- mente, poem em questdo a supremacia do intelecto humano. Em larga medida, o ro- mance aparece como um meio de defesa contra o tumultuar das perspectivas ¢ como uma tentativa de reintroduzir neste caos a razio. Mas, a0 mesmo tempo, ele participa deste movimento, donde as contradigdes de seu discurso e a tentagao incessante do fan- tstico. Ha unanimidade em se reconhecer que, REVISTA USP, SAO PAULO (27): 190-197 se a forma do romance emancipa-se ¢ defi- ne-se, num lapso de tempo relativamente breve, isso deve-se a Chrétien de Troyes. Durante meio século, sua obra fornece um modelo que logo apaga as lembrangas das tentativas anteriores. Dos romances de Chrétien de Troyes partem desdobramen- tos do género no século XIII, dificilmente explicdveis sem referéncia, em particular, a0 seu Chevalier de la Charrette e a0 seu Conte du Graal. Chrétien de Troyes vincula definitiva- mente o discurso romanesco as formasmais elaboradas do discurso erdtico de queo fine amors dos trovadores buscava a primeira formulacdo. O modelo do fine amors e a ética amorosa esteticizante em que ele im- plica constituem um fato de civilizagao na obra de Chrétien de Troyes. Na verdade, tantoomodelodofineamors, quantoaética amorosa inspiram-se em grupos aristocréti- cos ¢ letrados, a cuja demanda responde o romance, com diferengas em relago a can- ao de gestae com semelhangas em relagéo A historiografia. O leitor ter4 oportunidade de avaliar como o fine amors realiza-se em Lancelote, 0 Cavaleiro da Charrete. Mais do que uma representagao do real ou de uma ficgdo social, a configuragao do amor em Chrétien de Troyes e sucessores, até 0 infcio da época moderna, estabelece no discurso um vinculo indissocidvel com 0 combate: sofrimento cavaleiresco e prazer erdtico, homem e mulher, de tal modo que, de um ao outro tempo da narrativa, o amor €sempre diferido, ocupando o desejo todo o intervalo entre um e outro tempo. Sao as molas mestras, amor e combate, Amor eagioguerreiraconstituem como que a dupla fonte de luz que banhao univer- soromanesco, sob cujaclaridade as estrutu- ras narrativas organizam-se. Essas estrutu- ras desdobram-se por isso sobre dois planos metonimicamente unidos, episédio com episddio, de modo que resulta menos uma alternancia do que um conjunto complexo de ages, de imagens desdobradas, inces- santemente projetadas na tela da Historia. O sistema comporta dois modos de rea- lizago, dependendo de o amor e ocomba- te, em paralelo ou num entrelagamento, permanecerem distintos ouse confundirem sobrepondo-se, com maior ou menor interag4o. De qualquer maneira, motivam- se um ao outro, sem se distinguirem nem se SETEMBRO/ NOVEMBRO 1995 confundirem totalmente. Mesmo nos ro- mances centrados em torno do Graal, nos quais 0 erotismo tende a sublimar-se em exaltagomistica, areferéncia ao fineamors ‘ou Aquilo em que ele implica pode perma- necer subjacente, mas nunca desaparece. Uma questao que volta sempre é a da existencia de estruturas formais genéricas, Tetdricas ou teméticas, de que toda realiza- g4o romanesca seria a manifestagdo. Por 6bvia que seja, a existéncia dessas estrutu- ras € também problemética. Entre as diver- sas descrigdes conhecidas, trazemos aqui a de E. Dorfmann que, num alto grau de abs- tragdo, imaginou distinguir um esquema fundamental que desse conta de toda a es- trutura romanesca e o constituiu na suces- séo de quatro narremas: 1. Conflito entre amantes; 2. Insultos; 3. Ousadia; 4, Recompensa. Salvo pelo elemento erético que, alids, Dorfmann pressupde, esse esquema ndo difere muito daquele que, por sua vez, satis- faz plenamente na descrigao da estrutura géstica. Obviamente, a aplicagéo dos narremas de E. Dorfman implica no conhecimento de romance a romance, de autor a autor ¢,é claro, das variagdes discursivas. Asequénciae a diversidadedanarrativa provém da natureza e do niimero de desafi- 0s com que se defronta o herdi, J4 que a maneira como responde varia pouco, hé necessidade de diversificar 0 modelo. Em seus tiltimos romances, e nao apenas no Chevalier de la Charrette, Chrétien deTroyes, introduz diversas demandas simultaneas no. ‘mesmo temponarrativo,cabendoao discur- so elaborar sua exposigao, o que gerou um processo conhecido como entrelagamento. Noséculo XII, tal recurso torna-se pratica- mente uma regra, mesmo porque hé raz6es de outra natureza, como a da organizagio de um texto com fontes de variada proveni- éncia. ‘Mas tanto quanto a busca de um objeto,a demanda & muitas vezes a busca de um signi- ficado. O her6i decifra, através do emaranha- dodasaventuras, um significado ocultoquese revela, pouco a pouco, ao leitor e semantiza globalmente o significado do romance. REVISTA USP, SRO PAULO (27) Muito freqilentemente o narrador ou usualmente, também, uma personagem a que se atribui quase exclusivamente tal fun- ‘¢40, constréi uma figuracdo alegérica des- crevendo, em termos os mais freqiientemente fixos no discurso do fine ‘amors, 08 movimentos e as motivagdes do heréi ou de outra personagem, despersonalizando-os, istoé,interpretando- 08, pelo menos virtualmente. Em consequéncia natural desse dltimo procedimento, dentro do tecido narrativo, constréi-se uma cadeia de qualificagdes e motivagdes, que justapde-se ou sobrepde- se A trama dos acontecimentos da demanda que, em situagao de littera, implica por isso no duplo sentido literal e moral. Oserfticos tém valorizadonos romances de Chrétien de Troyes uma ordem de estru- tura profunda tragando um esquema de narrativa moral latente na narragdo factual, objeto da busca é, sucessivamente, o he- 16icomoindividuo, depois ele mesmoentre 08 outros, como unidade de um grupo. A cada situagao correspondem provas testan- doo heri nas tentagdes suscetfveis de rom- peroequilibriodo humanismo cavaleiresco. A Area preferida das tentagdes é a luxtiria, mas h4 também casos de avareza e orgulho. Aordem éticaé trabalhada em tais episédi- 08 € neles encontra sua justificagao. Tal é, parece, omodeloexistente em Erecet Enide, em Le Chevalier au Lion, no préprio Chevalier de la Charrette, talvez ainda no Conte du Graal que, em sua incompletude, 86 permite avaliagio parcial. Fazendo a ponte das estruturas de con- juntoparaasestruturasmicrotextuais,cons- tata-se que cada aventura organiza-se de acordo com regras apenas perturbadas por um jogoaque, as vezes, dedica-se o autor. E © trabalho com tentativas hiidicas de enca- dear até o absurdo os fios da intriga provo- cando 0 interesse por este paradoxo que instala-se no modelo: aproximagao-crise- nova aproximaco. Em seguida, cria-se uma situagdo feliz ¢ falsamente permanente de um primitivo grupo de aproximagao e liga- ‘¢40. Mas nova crise gera novos motivos de agéo que causam nova aproximacao. Euma nova ligagéoconstitui orestabelecimentoda situagdo perturbada em que, ao contrério, as vezes, ou até ao mesmo tempo, a passa- gem para um outro nfvel vai tornar-se logo criticanovamente. Talconstrugdolinear, que 190-197, SETEMBRO/ NOVEMBRO 1995 prevalece, por exemplo, na primeira parte do Chevalierau Lion, podeser entrecortada porelementosrepetitivosouoperarum gran- de atraso na narrativa, como na segunda parte desse mesmo romance. Em relagio & consciéncia da fungao de autor, é a primeira vez que, em matéria de narrativa ocidental, romance confunde-se com 0 modo como se realiza, e isto é uma afirmagaoimplicita da propria dignidadeda escritura. Chrétien de Troyes, as vezes, a explicita. Por causadisso, umanovaidade se inicia, em que a palavra vincula de maneira indissociavel, nos termos de K. Uitti, a His- t6ria, o mito e a celebragdo. Texto, neste sentido, fundamentalmente irOnico, isto 6, a0 mesmo tempo distante de seu objeto ¢ debrugadosobreelemesmo,comosobreum, espelho, o romance, contrariamente & epo- péia, 6, ao mesmo tempo fechado, por sua forma, ¢ aberto, por suas potencialidades seménticas. Algo aparentemente proximo doque se passana literatura moderna atual, em que hist6ria e estéria voltam a confun- dir-se ou sobrepor-se. Um circuito se estabelece, que parte do poeta para seu auditério, a corte, por meio do texto em que, a medida que o poeta cria a propria corte, criando nela cortesia, ela nao se fecha, nem areal nem a criada; salvo se esta, a criada, ficcionada, limitar-se a ser considerada em sua perspectiva plana, mas que, aindaassim, abre-se paraasdimensoes do significado, Os autores dos romances, clérigos ou leigos, pertencem a camada letrada da po- pulagdo, gravitando em volta da corte. Sua formagao ver de um largo uso do latim ¢ seu esforgo espontdneo é transferir, na me- dida do posstvel, para alingua vulgar, a apli- cacao de técnicasaprendidasnaescolaeilus- trada pelos auctores. Tal aplicagao apresen- tapoucas dificuldades, enquantose tratade manifestag4o de conjuntos macrotextuais, muito mais na constituigao conereta do dis- curso, sem contar que 0 escriba empreende seus esforgos para nele introduzir figuras caracteristicas do estilo nobre, em particu- lar, dos tropos. Numerosos estudos foram feitos, por diferentes motivos, da imitagao virgiliana & Pratica das figurae. O vinculo néo é mais imediato entre a palavra e 0 sentido moral 0u figurado, No entanto, a palavra orienta- senumsentidolevantandoacadamomento HEVISTA USP, SkO PAULO (27) a questo. E essa questo dirige-se ao pr6- prio texto, sem relagdo evidente com o que se passa fora do texto. A ficgdo romanesca éaverdade. Ela manifesta uma nova toma- dade consciéncia dos poderes da linguagem poética. Os antepassados ou os jograis que o romancista faz questo de desprezar o ig- noravam. Seu discurso tornou-se fabula e mentira. Se hé verdade na aventura huma- na, oescriba se refere doravante ao que dela diz a Poesia, nao a Histéria, E nessa perspectiva que se deve consi- derar a oposigao estabelecida por Chrétien de Troyes entre trés termos queconstituem, nosprologosdo Erecet Enideedo Chevalier dela Charrette, o germe da metalinguagem que descreve sua ago de escritor: matiére, sens, conjoinuure: A matéria € a hist6ria como vem trans- mitida, e como tal é mais ou menos invariante. O sentido, o significado, constitui a in- terpretaco proposta e possivel da matéria, sempre em evolugao. A conjuntura é 0 ajuste entre a matéria € 0 sentido, a busca do equilfbrio da arte instaurada entre ambos, a unidade interna que garante seu significado ao signo global que é a obra, nao menos que aos signos par- ciais que sao as unidades. Ea integracao de uma ordem e esta define-se em termos de textualidade, A mixagem desses trés elementos no trabalho de Chrétien de Troyes faz do Chevalier de la Charrette uma estoria que gira em torno dos amores de Genevra, mu- Iherdorei Artur,com LancelotedoLago.O cenério é a Bretanha pag, a corte do rei, campos, castelos, floresta, um espaco feito de requinte, divertimento e magia, Desen- volve-se entéo a epopéia do cavaleiro cris- to, num ambiente pagao, inteiramente ex- posto aos caprichos de sua dama, na espe- ranga de seus favores, alimentada por uma paixdo muito especial, toda feita de fine amors. Indo além de suas possiveis fontes, porventura fornecidas também por Marie de Champagne, Geoffrey of Monmouth, Historia Regum Britaniae, Marie de France, Lai de Lanval, Wace, Roman de Rou, Chrétien de Troyes logra fazer de Genevra adamade Lancelote,o que ndoacontece no Lanzelet de Ulrich von Zatzikhoven, con- fessada adaptaco de um romance francés 190-197, SETEMBRO/ NOVEMBRO 1995 196 REVISTA USP. sho Pato perdido. Tais referéncias justificam-se tao- somente em relago& matéria,comefeito,0 prépriocavaleiro Lancelote, de Chrétiende ‘Troyes, € personagem que nao comparece em Geoffrey nem em Wace. O fine amors, elevado a muito alta po- téncia, torna o cavaleiro inteiramente sub- misso & sua dama. Desde que a viu, entre- ga-Se por inteiro e progressivamente a um maravilhamentoimpensdvel, num cavalei- ro cristdo diante de um amor, para ele, até entéo desconhecido. Nao 6 que no se su- ponha capaz de domar a paixao. Tal hipé- tese nem se levanta para ele. Fica de tal modo enlevado diante de um pente com uns fios do cabelo da dama, que se esquece por completo do compromisso de uma jus- ta. Transfere para esse objeto toda a vene- Tago e todo oculto que conhece das santas reliquias. De tal modo deixa-se dominar, ou melhor, submete-se ao amor, que nao hesita em fazer-se de derrotado, de fraco, num combate, em obediéncia a dama. Se conseguisse avaliar com justeza essa atitu- de, certamente veria a mais absoluta con- tradigdo com sua condigdo de cavaleiro. Chrétien de Troyes nao terminou Chevalier de la Charrette. Incompleto, 0 romance recebeu o fecho das maos de Godefroy de Lagny. O que ndo se sabe é se foi por sugesto do proprio Chrétien de Troyes, por vontade prépria de Godefroy de Lagny ou por outra via. O certo é que a trama é devida a Chrétien de Troyes. A importancia desse romance é tal que ele foi absorvido, praticamente em sua totalidade dentro do Lancelote, em tré: volumes, que faz parte da Vulgata da Ma- téria da Bretanha, Vulgata da Matéria da Bretanha ¢ a primeira prosificagao como ciclo por que passaram os textos anteri- ormente existentes. Considerada a mais elaborada versao da matéria até entao li- terariamente desenvolvida, essa primei- a prosificago compde-se dos seguintes romances nesta seqiiéncia narrativa: 1, Estoire del Saint Graal; 2. Estoire de Merlin; 3. Lancelot (em trés livros); 4, La Queste del Saint Graal; 5. La Mort le Roi Artu. Portanto sete livros em cinco titulos Esses romances caracterizam um ciclo (27): 190-197, SETEMBRO/ NOVEMBRO 1995 porque, distribufdos nessa ordem, desen- volvem a mesma seqiéncia narrativa, pelasetapasnecessérias,domesmomodo como sao ciclicos, na literatura brasileira do século XX, os conhecidos romances dacana-de-agticar, de José Lins do Rego, ouosromancesde O Tempo eo Vento, de Erico Verissimo. Tal organicidade ciclica, porém, ndo implica em que os romances medievais, diferentemente do que ocor- re com os romances dos dois ciclos dos autores brasileiros referidos, tenham sido escritos por um mesmo escribae naquela ordem. Tampouco implica em que seus textos tenham sido mentalizados por um Ginico autor e tenham tido uma tnica for- ma desde 0 inicio. De fato, sabe-se, ha muito tempo, que o Lancelote, a Deman- da do Santo Graal e a Morte do Rei Artur foram escritos primeiro, sendo ainda mais antigo entre esses o Lancelote. Estoriado Santo Graal e a Estéria de Merlim (ou a Vulgata do Merlim) foram escritos de- pois. E quando surge o propésito de aplicd-los & sequéncia narrativa deseja- da, a constituigéo do ciclo exige as cha- madas Continuagdes. Alids, nao é por acaso que essa prosificagao cfelica tem também outro nome: Ciclo do Lancelote- Graal, designagao que descreve a fusio damassa narrativa, digamos assim, doca- valeiro Lancelote, a mais antiga, com a do santo graal, posterior. Esse nome nao se aplica a segunda prosificagdo, a Post- Vulgata da Matéria da Bretanha, pelasim- ples razio de que os livros dedicados a Lancelote nao existem na Post-Vulgata. Em que pese a complexidade do tra- balho de elaborago, de que fica aqui apenas uma breve noticia, 0 ciclo da Vulgata chegou a ser atribufdo a um s6 autor, Gautier Map, o que fez com que fosse usualmente denominado Ciclo de Gautier Map. Hé muito tempo, porém, tornou-se o Pseudo-Map, dada acompro- vagdo de que esse autor era jé falecido ao tempo em que se operou a prosificacao. O escriba, que preferiu nao se identifi- car, tomou emprestado o nome de Gautier Map. Esse procedimentonaoera raro na época. Ao valer-se de um nome de prest{gio, o autor, que se escondia sob ‘© anonimato, buscava garantir a aceita- 40 e um futuro para seu texto. Elabora- doo ciclo, por volta de 1220, seguiram-se REVISTA USP, SKO PAULO (27) logo inémeras c6pias queconstituemuma riquissima tradiggo manuscrita. Quem fez a edigao critica do Lancelote foi Alexandre Micha. Logo na introdu- G40, adverte Micha que éinutil a insistén- cia em se identificar 0 Lancelote como Lancelote em Prosa, 0 que aparentemen- te objetivaria dirimir alguma ambigtida- de entre a designacao desse texto e 0 anterior, em verso, de Chrétien de Troyes, porque oromance de Chrétien de Troyes, cujo heréi € Lancelote, intitula-se Le Chevalier de la Charrette. Como se vé, 0 nome do her6i nao pode gerar confusao, pois nao comparece no titulo. Mais uma ver o problema dos tftulos dessas obras que foram copiadas e recopiadas. ‘A auséncia do nome de Lancelote no titulo no impede, porém, que o texto de Chrétien de Troyes seja uma das grandes fontes do Lancelote da Vulgata. De fato, O Cavaleiro da Charrete est mais para o Lancelote, principalmente para sua se- gunda parte, do que O Conto do Graal, para A Demanda do Santo Graal. O Ca- valeiro da Charrete é a matriz do Lancelote, se bem que este tenha se am- pliado enormemente, a ponto de consti- tuir sozinho mais da metade do ciclo da Vulgata. E certamente o Cavaleiro da Charrete esta também nas raizes de uma longa tra- digdo do romance ocidental. Nao hé de ter sido sem razdo duplamente traduzido ¢ impresso no curto espago de trés anos. interesse pelos textos medievais est exigindo uma crescente divulgagao de bom nivel como os dois trabalhos de que nos ocupamos, 0 de Rosemary Costhek Abilio eo de Vera Harvey, ao mesmo tempo que se alimenta de uma expansao da bibliografia critica da Matéria da Bretanha, Se nao se consegue ler tudo 0 que aparece a cada ano e de que dé notf- cia 0 Bibliographical Bulletin da International Arthurian Society, é im- prescindivel porém fazer circular 0 que for possivel, juntando os t{tulos especifi- cosde uma bibliografia atualizada,acada publicago, sob o risco de se marcar pas- sonum terreno em queas pesquisas avan- gam muito. Também sob esse aspecto, estdo de parabéns Rosemary Costhek Abflio e Vera Harvey e as editoras que publicaram seus trabalhos. 190-197, SETEMBRO/ NOVEMBRO 1995

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