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Claustros vao se fazer outra vez necessarios “Moro em minha pesipra casa, Nada fetinguen E ainda ride todo meste, (Que nao riu de si também, Sobre minha porta” A Guia Giéncia “Claustros vio se fazer outra vez necessirios”, escreve Nietzsche ao amigo Erwin Rohde'. Em 1870, ele julga que a formagio s6 pode se dar inter pares; entende que a educagao pressupoe partilhar iguais valores, comungar mesmos ideais. Distante do projeto pedagégico do Tluminismo, considera que a cultura no é dada a todos. Mais afastado ainda do ideario marxista, acredita que ela cabe a uns poucos. Tornar os homens felizes nao faz parte de seu desiderato; melhorar a humanida- de nao constitui um propésito seu. Partidério da “aristocracia do espirito”, concepgao essa que aparece pela primeira vez. nas suas conferéncias Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, defende a tese de que todo esforgo cultural deve visar a engendrar homens excepcionais. Recorrente no século XIX, a importancia atribuida aos gran des homens se faz. presente nas consideragoes de Hegel, Stuart Mill e Augusto Comte. Nietzsche, porém, vem salientar a idéia de que os que se destacam da “mediocridade coletiva” tm de enriquecer-se reciprocamente, servindo de professores uns aos outros. Para tanto, entende ser necessatio salvaguardar a liber- 1. KSB 3, p. 86; carta a Erwin Rohde datada de 16 de julho de 1870. Utilizo as edigBes das obras de Nietzsche (Werke. Krutische Studienauspabe (KSA). Berlim: Walter de Gruyter & Co, 1967/ 1978) ede sua correspondéncia (Samuliche Brief. Kritische Studienausgabe (KSB). Berlim: Walter de Gruyeer & Co. 1975/ 1984) organizadas por Colli e Mentinar. Salvo indica ‘sio em contrario, éde minha responsabilidade a tradugao dos textos de Nietzsche aqui eitados, 107 |poF-se, a0 mesmo tempo, rigorosa disciplina. dade interior conduz a rebelido contra toda autorida- A liberdade int de e & revolta contra toda crenca; a dis desfazer-se de habitos, abandonar comodidades, renunciar & seguranga?, Cultivar 0 proprio espirito é nisto que consiste, a seu ver, 2 verdadeira cultura’. E preciso, pois, enfatizar o cariter impres- cindivel da formagio através dos antigos, 0 contato amplo profundo com as linguas clissicas, a pedagogia grega ancora- dda nas experincias vividas por cada individuo. Tarefa de bem poucos, 0 aprimoramento de si implica desenvolver ¢ integrar de maneira plena e harmoniosa todas as potencialidades - nao apenas para criar obras, mas para fazer-se enquanto obra. itista? Talvez. Estratégico? Sem diivida. E que se trata para 0 fildsofo de empreender uma critica radical da culeura de sua época. Para tanto, ele nao hesita em fazer tanto um exame con- ina rigorosa leva & ceitual quanto uma andlise éas instituigdes. ‘Ao encarar a cultura como cultivo do préprio espirito, Nietzsche est a empregar c termo no sentido geralmente acei- to no século XIX. Entende-se entio por cultura “o enobreci~ mento ou refinamento de todas as forgas mentais e fisicas de um homem ou de uma nagio”’. Com a palavra, abarca-se tanto 0 enobrecimento do carter através da discriminagio e supressio dos preconceitos quanto o refinamento da moral, Por mais dife~ rrentes que sejam as suas interpretaces, elas apresentam pontos Mandar Leia 108 em comum; dentre eles, 0 ce colocar-se acima das necessidades imediatas da vida, como bem ressaltava Jacob Burekhardt’, ou 6 de realizar 0 mais nobre potencial humano, como vird a en- fatizar Nietasche'. Nao é por acaso que o filésofo julga estar em condigbes de combater a praga que acredita empestear a Alemanha de sua época. Nas Consideragdes’ Extempordneas, ele afirma entio presenciar um contraste peculiar: de um lado, depara-se com uum estado de cultural e, de outro, supde-se verdadeira cultura. Mas tudo indica que a opinio piiblica de- cidiu no haver tal contras:e. “Que forca é tio poderosa para decretar que isso no existe?” — pergunta ele. “Que espécie de homens chegou ao poder ma Alemanha para proibir sentimen- t0s tao fortes e simples ou, 10 menos, impedir a sua expressio? Essa forga, essa espécie de homens, vou chamé-la pelo nome: Sto 0s filistens da cultura”. Em diversas passagens, Nietzsche reclama a autoria da ex- pressio “filisteu da cultura” (Bildungsphilister), que se torna- 4 no século XVIII stir a ra de uso corrente na époc se empregava o termo' corria-se a ele para designar os estritos cumpridores das leis ¢ dedicados executores dos deveres, que repudiavam a liberdade dos estudantes. Brentano e Heine, dentre outros, analisaram a figura do filisteu ¢ nela descobriram a baixeza do espirito bur- gués, sempre apegado aos bens materiais. Crédulo na ordem natural das coisas e inculto em questbes est de bom senso langava mao do mesmo rac as riquezas rmundanas e os bens cult ppesava em sua balanea de quzijos 0 prop: (© fato é que, desde os seus primeiros textos, 0 fildsofo elege essa figura como alvo privilegiado de ataque. E a ela dara trata mento similar em varios de seus escritos. Em 1873, cle combate ofilisteismo encarnado por David Strauss. Assim se serve dese pensador, formado pelo pensamento de Hegel e Schleierma~ cher, como lente de aumento para tornar visivel a situagio de pentria cultural da Alemanha. Tanto é que, muitos anos de~ pois, 20 fazer um balango da propria vida e obra, vird esclarecer 0s prinefpios de sua “prética de guerra”, ilustrando-os com as stias Consideragdes Extempordneas: “Desse modo, ataquel Da- vid Strauss, ou mais precisamente o sucesso de um livro senil junto a ‘cultura’ alema — azanhei essa cultura em flagrante.. Desse modo, ataquei Wagner, ou mais precisamente a falsidade, a bastardia de instintos de nossa ‘cultura’, que confunde os refi- nSdos com os ricos, os epigonos com os grandes’ ‘Na Primeira Consideragio Extempordnea, Nietzsche ob- serva que, nos meios que freqiientam, 0s filisteus da cultura sempre encontram necessidades e opinides uniformes. E nem poderia ser de outro modo, uma vez que em suas miios esto a arte ea educagao, as instituigdes artisticas c os estabclecimentos de ensino, E esta uniformidade que lhes da a impressio de se- rem homens cultos; é ela que os leva a crer existir na Alemanha a verdadeira cultura. Ora, cultura pressupde unidade de estilo © tunidade de estilo no se coafunde com uniformidade de neces~ sidades e opinides. Portanto, “o filistefsmo sistematico que se tornou dominante ainda no € cultura, pelo fato de ter sistema, nem mesmo ma cultura e sim o seu contrério, ov seja, barba- reo ar 1958, 1.50 srcincaa pons Pai 4 GLANDLER, Charis. Nis gucsou 0 bi, $7 To KSA Gp 274-275 Exe He 110 rie duradouramente estabelecida”". Trazendo em si a marca do negativo, € por oposigio Acultura que ele ganha existéncia. Na Terceirs Consideracio Extemporiinea, 0 filésafo faz. ver que, por obra do filisteisrro, a cultura se tomou venal, Obje- to de relagdes comerciais, ea se submeteu as leis que regem a compra ea venda, Produto aser consumido, deve teretiqueta epre- so. Transformada em mercacoria, converte-se em mscara, engodo. B de acordo com o critério das “necessidades do consumi: dor” que se passa a aval, Esta € a pergunta que se impae: quo numeroso € o pablico que vai as salas de concerto, a te aos espeticulos de teatio, compra os “clissicos” da tura alema, enfim, “quem e quantos consomem”? Ora, avaliar 2 cultura segundo normas qu as implica preocupar-se com 0 lucro obtido com 0 comércio dos bens cultu plica ainda preocupar-se com a quantidade dos bens culturais postos & venda e o mtimero dos que podem ter acesso a cles. A inflagao quantitativa dos bens culturais ¢ a tendéncia & massifi- cago da cultura so fendmenos que caminham de mios dadas. Se uma esconde o vazio dz criagio cultural, a outra mascara a mediocridadea que se “Ser eultivado”, afirma ‘significa agore ndo deixar ver até que ponto se € ravel, feroz.na ambigao, insaciavel no lucro, egoista e desavergonhado no prazer’ Para combater o filistefsmo cultural, Nietzsche toma como ponto de partida uma concepeio de cultura que encontra suas raizes ¢ sua mais clara formulagZo nos neo-humanistas". Con- sideram eles a cultura ¢ a sivilizagio gregas a realizagio mais perfeita e acabada do género humano; nio ¢ por acaso que suas is: obras guardaram, através dos tempos, valor universal. Preten- dendo retomar antigos ideas, procedem a identificagio entre 0 espirito grego ¢ 0 alemio. Se afirmam a originalidade do génio alemio, nao é por razdes nacionalistas, mas para combater a imitagio das letras ¢ costumes estrangeiros. A imagem da Gré- cia veiculada pela Franga eontrapéem a Grécia Antiga e 4 obra de um Corneille ou Racine por exemplo, as tragédias gregas. Contra a tradigao latina e francesa, querem resgatar os pensa- dores e poetas originais. ‘© conhecimento pritico da vida cotidiana, os eventuais pro- sgressos na esfera da técnica e as mudangas na organizagao social € politica sio problemas insignificantes a0 lado das questoes fundamentais colocadas pela condigo humana, A melhor ma- neira de servir & humanidade é entregar-se ao trabalho rduo penoso de cultivar o proprio espfrito. Portanto, o ensino deve ser puro, desvinculado de qualquer objetivo pritico e a cultura, criagio desinteressada, dssligada de qualquer intuito utilité- rio No entender de Fritz Ringer, “os grandes poctas alemies, 05 neo-humanistas ¢ os fildsofos idealistas do final do século XVIII envolveram-se prcfundamente com essas idéias. ‘Talvez nenhum outro grupo de homens jamais tenha afirmado 0 va~ lor da cultura pessoal com mais fervor do que alguns idealistas como Wilhelm von Humpoldt e Friedrich von Schiller”, ¥ partindo de tais concepgdes que Nietzsche vem denunciar 6 vazio que julga constatar em sua época. De fato, a Alemanha em que vive é palco de profundas transformagdes. No século TX, ocorrem importantes mudangas econdmicas e sécio-po- ‘cas: a implantagao tardia da industria, o aparecimento de no- vvas camadas sociais, a unificagio dos Estados alemies em torno 19 A propia dee movinento«f/TURNER, RS. Professions, 25010 840" Te BOLLACK, M. © eminetqueen Desi Going ISRINGER, Ft. The dln f Oe Ge Fos por O decides mandarin alee Tad Dia de Novea Azevedo. Sia aie Batep 2600. iim, Kit and the Prsian mz da Prissia. E mudangas de igual importancia também ocorrem na esfera da cultura e da educacio, Nio seria desmedido langar mio aqui dos estudos histéticos. ‘Ainda que sucinta, uma recapitulagio vird situar 0 momento em que Nietzsche se encontra, a cena que presencia, a armosfe- ra cultural em que vive. Perseguirs, pois, um duplo objetivor de uum lado, caracterizar as transformagdes contra as quais ele se posiciona; de outro, concorrer para inscrever concepgdes suas numa tradi¢io de pensamento que remonta ao século XVIII A Alemanha que surge com a Reforma protestante é par- ticularista, patrarcalista, com forte hierarquia social. O terri tério, onde iré constituir-se a nasio alemi,acha-se no século XVII esfacelado em mais ce trezentos Estados independentes ¢autOnomos. O poder esti nas mos dos principes que regem jvremente a politica territorial e os negécios strangeiros; cada cidadio tem uma fungio determinada e, sem tomar iniciativas, desempenka suas tarefas com cega obediéncia + Nio encontrando espago num contexto de tais coergbes ¢ res- twigdes, os intelectuaisalemies cruzam as fronteiras de cada Es- tado epassam a atuar para dm dos limites teritoriais impostos Como bem mostra Jacques Dro, “(a ineligentsia aetna) soube eriar essa cultura humanist, de que se orgufhou a Alemanha do século XVII. Mas essa cultura desenvolveu-se fora do Estado territorial, onde ela nada tina a fazer Fé por sso que se perfez a disjunco entre cultura e politica, que €a chave de toda a hist6- sia da Alemanha moderna, Os esptitos superiores mostram-se indiferentes 8 politica nacional, abandonando inteiramente soa diregio aos organismos com>etentes econsagrando-se’ reflexio sobre problesnas de ordem universal e cosmopoliez"™ Com a Filosofia das Luzes, os pensadores alemies, ingle~ ses e franceses partem dos mesmos principios, mas se atém a questbes diferentes. Na Earopa do século XVIII, consideram, todos cles, a eapacidade racional algo que o homem adquire ¢ desenvolve ao exercé-la, de sorte que nio pode submeter-se a nenhuma autoridade. Enquanto os iluministas se batem na Inglaterra pela reforma econdmica ¢ atacam na Franga os priv i, na Alemanha eles se interessam pelas questdes culturais, Marcados pela disjungio de cultura e politica, nfo se preocupam com as rivalidades entre os diferentes Estados nem Com as dispotas entre as diversas ordens sociais no interior de ‘um mesmo Estado. © que almejam é realizar um tipo superior de humanidade. Nao é por acaso que Madame de Staél vir a escrever: “Nao existe interesse nem objeto de atividade para os homens que nao se colocam altura as mais vastas concepsdes. Quem nao se ocupa com o universo na Alemanha, nada tem a fazer”. Nos Estados alemies, 0 aparecimento das manufaturas, de modo geral, no é obra dos burgueses ¢ sim dos principes. Fre qitentemente, so eles que fundam, ao redor de suas cortes, pe- quenas fabricas de tecidos e porcelanas, tio caricaturais quanto seus diminutos exércitos. Seus caprichos ~ a mudanga de resi- dencia, a supressio de um monopilio, o fechamento de uma alfandega—afetam toda a vida econdmica e mantém a burguesia fem constante inseguranea. Os chefes das corporacées, que se dedicam 3 criagio de pequenas fabricas, ainda esto presos 20 IL Recelci o crescimento da produgéo € 0 au- merem a concorréncia, resistem 4 idéia de que é vantajoso fabricar mais ¢ vender mais barato. Nao querendo correr riscos nem dispondo de capital significativo, a burguesia limita-se a seguir as diretrizes dos 17 STARL| 14 principes. Resta-lhe, entio, louvar as préprias qualidades mo- tais, a honestidade e a capacidade de trabalho, contrapondo-as a0 caréter dissoluto e indolente dos nobres. Mas, em vex. de Jutar pela emancipacio politica, reconhece os direitos da no- breza, acreditando ser a tnica ordem social capaz de frear as eventuais tentativas de despotismo por parte des principes. do século XVII, encarna o mode- Ihanga dos outros Estados alemies, o mercantilismo impée-se como sistema econdmico, mas aqui todos os setores da eco- nomia se acham submetidos ao dirigismo estatal. A Filosofia das Luzes faz 0 elogio da razao; € preciso, pois, racionalizar 0 Estado. Percebendo que o absolutismo monérquico s6 poderia lagao de novas idéias, Frederico I com- bate a idéia da origem divina do poder real, proibe a tortura dos acusados, funda escolas primrias e promove a indiistria ¢ a agricultura. Empenha-se em aprimorar a estrutura buroct tica e militar, centralizar a administragio e delimitar as atribui- des do governo. Converte-se assim na principal figura dentre os “déspotas esclarecidos”, ganhando a estima dos fil6sofos, Consideram-no maior que os maiores imperadores romanos — por amar a filosofia eas letras, acolher intelectuais perseguidos, Jutar contra a superstigo ea teocracia, trazer a prosperidade a seu povo e preparar a felicidade das futuras geracdes. Os intelectuais alemies, porém, continuam no século XVIII que a cultura se faz para além das fronteiras limites E 2 nobreza alemi entende de outro modo o ideal de cosmopolitismo que defendem. Ela valoriza exclusivamente a arte, a literatura e 0 teatro francés; adota os hibitos, os gostos ¢ até a moral sexual francesa. Contrata 08 servigos de artesios, co- Zinhciros, alfaiates, modistas, peruqueiros, professores de danga ¢ de boas maneiras do pais vizinho. Convida seus comedi bailarinos, miisicos e artistas de toda espécie. Acredita que Paris €a escola de refinamento par excellence: ai se pode aprender a arte de bem comer, bem vestir-se, bem falar, bem viver. Enquan- to as pequenas cortes alemés, caricaturas de Versalhes, tomam a sociedade parisiense por modelo, na Prissia, Frederico I quer fazer de Berlim uma cidade semelhante & capital francesa. Percebendo que os diferentes Estados absorvem sua manei~ aa Filosofia das Luzes ¢ 0s nobres se apropriam a seu modo do ideal cosmopolita, 0s intelectuais alemaes compreendem que, para emanciparem-se, tém de combater a imitagao das letras ¢ rostumes franceses. E neste contexto que surge 0 movimento Tempestade e Assalto (Sturin und Drang), Seus adeptos querem, tempestuosamente, tomar de assalto 0 piblico. Notam que, en- quanto na Franga ha um mimero doze vezes maior de leitores, 08 franceses, esses “espiritos hermafroditas” incapazes de grandeza, vyém ainda disputar sua minguada clientela. Suscetiveis is influéncias do pensamento mistico, os eserito- res do movimento reagem contra o espirito universal ¢ cosmo- polita da Filosofia das Luzes. Buscando tenovar a sensibilidade, privilegiam o sentimento ts expensas da razdo, defendem a re belido do individuo contra os valores convencionais. Escrevem com elogiténcia e paixdo, opdem-se a todas as restrigdes, valo- rizam as vis0es fulgurantes da ineuigio, Conscientes da prépria individualidade, julgam-se seres excepcionais: acreditam que o génio se manifesta quando transgride leis e regras existentes € se coloca acima das coergies. Situado num momenté da tendéncia irracionalista que atra- vyessa 0 século XVIII, 0 movimento Tempestade ¢ Assalto nao 6 propriamente uma nova corrente de pensamento. Ele reflete apenas uma crise momentanea gerada pelo mal-estar social que comeca a se esbogar. A medida que obtém os postos e favores {que julgam merecer, seus adeptos mais fervorosos nao hesitam em deserté-lo. E seus representantes mais ilustres, rapidamen- te, acabam por abandoné-lo. 16 F ainda na disjungio de cultura e politica que aparecem, por volta de 1790, os neo-humanistas. Suas idéias chegam a inspi- rar, no comeco do século XIX, uma reforma no ensino secun- dario, iniciada por Friecrich August Wolf. E culminam, em 1810, com a fundagio da Universidade de Berlim, levada a bom termo por Wilhelm von Humboldt'*. A filologia constitui-se, entao, como “ciéncia da Antigiiida- de” (Altertumswissenscheft). Gozando de um estatuto privile- giado nas universidades alemas, ela permite que se ensine aos jovens as linguas clissicas e ao mesmo tempo a eles se propo- nha um modelo estético ¢ moral inspirado na antiga Grécia, O filélogo desempenha entio um duplo papel: 0 de modelo de “cientificidade” e 0 de promotor de um programa pedagé co. Mas, a partir de 1830, o ideatio dos neo-humanistas deixa de ser levado em conta pela Prissia; fora infrurifera a tentativa de concretizé-lo ao nivel dos estabelecimentos de ensino, Por volta de 1870, Niewsche viré a lamentar o sucedido. Fi- lélogo de formagio, ele constata que a empresa fracassou, Do ponto de vista “cientifico”, a filologia sofreu uma involugio deixando-se impregnar pelo espirito positivista. Com isso, ela se transformou, com 2 proliferagio de ramos anexos, num vas~ to empreendimento de ecigbes e comentitios de textos, assim como de pesquisa de fontes. Do ponto de vista pedagégico, 0 idedrio neo-humanista se revelou inadequado ao espirito da épo- a, em particular no momento da fundacio do Império alemio, De fato, liderando as guerras de libertacio contea as invasbes dos exércitos de Napoleio, a Prissia concorre para consolidar a passagem do cosmopolitsmo ao nacionalismo, As idéias ro- manticas popularizam-se: procuram substituir 0 humanismo universal, em yoga no século XVIII, pela nacionalidade, Dei= E,W on Hemboleand die Reform des ildangice- ee CREPON, ae Mache Fd Eins de ake SNe 7 xando de ter caréter puramente cultural, essa nogio passa a re meter a um conjunto de individuos ligados pelas mesmas ori- gens, costumes, crengas e tradigdes. Diz respeito as nagoes que existem historicamente ¢, também, as que poderdo vir a existr. Mas no encontra eco junto 4 populagio dos diferentes Estados alemaes, sendo aceita apenas em pequenos efrculos literarios. Com as guerras de libertagae, porém, ganha fore a nogio de Volkstum, a germanicidade que comungam os individuos da ‘mesma raga e da mesma lingua. A diferenga do que se dere na Franga e na Inglaterra, a uni ficagio politica e a implantagao da inddstria na Alemanha s6 ocorrem a partir de meados do século XIX. Sao processos tardios, mas nem por isso deixam de obedecer a um ritmo acelerado, De uma Alemania particularista e patriarcalista, passa-se a uma Alemanha capitalista e industrial. Em poucos anos, ela se torna grande produtora de ferro, carvao, maqui- nas e tecelagens de algodao. A criacio do Zollverein, a uniio alfandegiria sob a lideranga da Prissia, em 1834, e a do Na- tionalverein, a uniio nacional que visa a superar os particula~ rismos e fundar a hegemonia prussiana, em 1859, representam passos importantes para a unificacdo politica. As insurreig&es populares de 1848 nao chegam a impedir que a nocio de na~ cionalidade se expanda e fortalega. Contudo, ainda nao ha um denominador comum entre os interesses da Prissia e os dos trinta e oito Estados alemies. Tomando em mos as rédeas do processo, entre outras menobras, ela provoca, pelo menos, ‘uma guerra. Forja o aparecimento de um inimigo externo co- mum a todos, levando a Franca a declarar-Ihe guerra. Vitorio- sa, impGe-se hegeménica sobre todo o territério e, em 1871, funda o Segundo Reich. Sio varias as passagens em que Nietzsche insiste em alertar ppara que nao se confunda o “auténtico espirito alemao” com as glérias militares dos exércites prussianos. Ataca o “irrealismo romntico”, que visa a0 progresso das “culturas nacionais, ori- 418 ginais e fechadas”. Critica 0 sentimento patriético, que se for talece ainda mais depois da guerza franco-prussiana, Combate assim 0 nacionalismo e o romantismo, Concluido 0 processo de unificagio, a Prissia vé-se obri- gada a criar novos lagos, para manter unidos em torno dela os diversos Estados. Por um lado, ela tenta uniformizara cultura e © ensino, de modo suprimir as diferengas e especificidades re- gionais. Por outro, coma implantagio da indistra, surge a ne- cessidade de ampliar 0 mercado interno e formar mao-de-obra especializada. A burguesia espera ter acesso aos bens culturais, antes apenas desfrutados pela nobreza; quer, também, que os trabalhadores das indtstrias recebam educagio apropriada para desempenkarem suas tarefas, No final do século XVIII, a cultura tinha de ser criagio de- sinteressadla, desligada de intengdes uuilitirias. Agora, ela est atrelada as exigéncias do momento, aos caprichos da moda, aos ditames da opiniao publica. Antes, o ensino devia ser puro, des- vinculado de objetivos priticos. Agora, com a prolferagio dos institutos profi «escolas técnicas e com o esfacelamen- to das universidades em cursos especializados, ele se converte ‘em ensino de classe. Como dira Nietzsche, educagio e cultura foram submetidas ao reino da quantidade. Por participar de uma tradigao de pensamento, que desde 0 século XVIII adere & disjuncio entre cultura e politica, 0 fil6- sofo sublinha um antagonismo que acredita existit na moder- nidade, Para criticar de modo radical a miséria cultural do seu tempo, ele insiste em fazer ver que Estado ¢ cultura sio, de certa forma, advers4rios; um vive as expensas do outro. Uma ver. que 0s povos, tanto quanto os individuos, 6 podem des- pender o que possuem, se concentram suas forcas em torno do Estado, debilitam necessariamente a cultura, Entre eles s6 pode haver uma relagio extrinseca: As épocas de decadéncia politica 19 correspondem épocas de giande fertilidade cultural. Impe-se, pois, trabalhar para preservar a tradigao cultural muito mais do que se deixar levar pelo ruidoso tagarelar politico dos dias que correm. Entendendo que a cultura deve ter carter cosmopolita, Nietzsche julga que a tarefa dos “grandes espiritos do pr6: século” consiste em adquisir “um conbecimento das condigdes de cultura, que ultrapasse todos os estigios atuais”™. Ele afirma aque ser bom alemio é desgojar-se do germanismo, pois pouco importa o earster nacional a quem trabalha paraa cultura. E de- nuncia o fato de a Prissia a:ribuir-se o papel de guia, supervisor ¢ vigilante da culeura, assegurando com isso o devotamento ¢a obedincia por parte dos cidadios. Encarando a cultura como empresa individual, 0 filésofo se empenha em combater o que chama de “cultura de Estado uniformizada”, A seu ver, nio se pode apreciar 0 valor de um individuo, tomando-o enquanto “fungio da massa gregéria””", e no se pode tampouco orientar a criagio cultural para satis- fazer as necessidades do rebanho. Do ponto de vista gregério, ‘quem se recusa a servir a coletividade é considerado “ioral”. Seu modo de agir é imprevisto, sua maneira de pensar, arbitré- ria; ele se comporta de forma inabitual. Nao h4, pois, por que tomar a utilidade coletiva como eritério de avaliagio e, menos ainda, por que admitir a venalizagio dos bens culturais. Concebendo a cultura ¢omo criagdo desinteressada, Nietesche acredita que a educagio €0 campo em que o filistefsmo se faz. sentir de forma mais aguda. Imiscuindo-se nos mais diversos dominios culturais, ele também imprime sua marca nos esta belecimentos de ensino e, de forma particular, nos estudos de filologia. Convertendo-se numa espécie de educador da nacio, 0 filélogo vem caucionar, de alguma forma, 0 parentesco cultu- 20 Cf. respectivamente KSA 2, p45 ep. 46s Human, demasiado Hamano § 24 «$25. 31 EL KSh 2p. 192: Hamann dana Hamano § 238 120 ral entre gregos e alemies. Aplicado aos liceus, 0 programa de Humbolde esvaziou-se; a0 serem postos em pritica, os ideais ‘neo-humanistas se viram desmentidos. A analise da questo educacional na Alemanha, Nietzsche se dedica jé em seus primeiros eseritos", No inicio de 1872, ele profere uma série de conferéncias Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, no quadro das atividades de divul- gacio cientifica organizadas pela “Sociedade Académica” da Basiléia. E, logo de inicio, faz questao de esclarecer o titulo ‘mesmo de suas palestras. Adverte o piiblico de que se disporéa tratar dos estabelecimentos de ensino alemaes e nao dos suicos. Por um lado, o filésofo esta a defender-se; afinal, trabalha na Universidade da Basiléia, Por outro, nao tem como nao se iden- tificar com 0 seu alvo de ataque; € na qualidade de professor de filologia clissica que fala. Contudo, é justamente por essas suas qualificagdes que sabe bem 0 que esta dizendo. Exemplo disso é 0 que declara a respeito da sua Primeira Consideragao Extemporinea, quando da reedigio de seus livros j4 publica~ dos em 1886, Entio, considera esse eserito seu o desabafo de quem esteve oprimido pela cultura filistéia. “Aquela colérica irrupgao contra © germanismo, a complacéncia, o aviltamen- to de linguagem do envelhecido David Strauss, 0 contetido da primeira Extemporanea, foram um desafogo para estados de espirito com que eu havia convivido muito antes, quando estu- dante, em meio 3 cultura e filisteismé cultural alemaes”®. Nio é apenas por prudéncia que nas conferéncias Sobre 0 {futuro dos nossos estabelecimentos de ensino Nietzsche substi- tui um pais por outro, uma localidade geogréfica por outra. A 22 Um dos prin chamar a atento para *Nicwsehe eco (HAVENSIEIN, M. Nirrce lr Ericher Bede BGM € fxprecderss com o fata de que eat ee lever Aloraenes do seule XIX" 23 KSA2;p. 369-370, Hmano, demsiado Hamano Torre Filho 11 seus olhos, a Alemanha é bem mais que um territ6rio nacional sando a um mimero cada vez maior de individuos. Num caso, a determinado; ela representa um impulso, uma tendéncia. Ela tendéncia a democratizar a cultura acabaria por converté-Ia em encarna nesse momento as transformagSes por que esto a pas- savoir faire; no outro, a tendéncia, corrente no final do século sar as préprias concepgdes de cultura ¢ educagio. XIX na Europa, a encarregar o Estado de difundir a cultura Na verdade, essa série de palestras constitui antes de mais terminaria por modeli-la. Atuando no sentido de suprimir a nada uma constatagao irretorquivel da faléncia do modelo clis- cultura, entendida enquanto cultivo do préprio espiito, tais sico. Ao ser institucionalizado, ele levou a birbarie em vez de tendéncias expressariam, no fundo, o filistefsmo cultural. conduzir a verdadeira culzura. Pois essa concepgio, identifican- ‘Adquirir cultura significaria capacitar-se para ganhar dinhei~ do-se com a idéia mesma de um processo de formagio, revelou ro ow ingressar nos quadros de funcionérios do Estado ~e por assim suas préprias contradig&es. E 0 que sugere, alias, 0 titulo isso deveria ser acessivel a todos, Teria de ser répida, para que 0 mesmo das conferéncias™. individuo pudesse ganhar logo dinheito ou servir logo ao Esta- Em sua anilise das instituigdes pedagégicas alemas, Nietzsche do, e aprofundada apenas o bastante, para que pudesse ganhar desenvolve a tese de que “duas correntes aparentemente con~ 6 suficiente ou servir de modo eficiente, Preparar bons pro- trapostas, em sua acio igualmente prejudiciais e confluentes fissionais, técnicos ou funciondrios, teria sido o objetivo das em seus resultados no firal, governam na atualidade os nossos reformas educacionais empreendidas pela Prissia. Educagio passou a equivaler a profissionalizacio; e cultura, a fazer dos estabelecimentos de ensino antes originariamente baseados em ‘bem outros fundamentos: por um lado, o impulso para a maior individuos cidadios arapliagio possivel da cultura; por outro, o impulso para a sua Em seus textos, Nietzsche nao ataca a proliferagio das esco- diminuigao e enfraquecimento”®. No decorrer do século XIX, las técnicas, que, de alguma forma, tentam atingir os objetivos ambos se fariam presentes nos estabelecimentos de ensino ale~ 4 que se propuseram, Denuncia— isto sim a deficiéneia da for- imaes, impregnando-os ros seus mais diversos niveis: desde a macio, desde que o ginésio e a universidade também se torna- escola priméria, passando pelo ginisio® e pela escola técnica, ram profissionalizantes. A educagao voltada paraa cultura no até a universidade, 6 a que permite ao individuo aspirar a um posto de funcionario ‘Apesar de parecerem opostas, a tendéncia a redugao da cul- ‘ou a um ganha pio qualquer, € que o leva ao desenvolvimento tura ea tendéncia & sua ampliagio visariam a atingir resultados integral ¢ harmonioso de todas as suas capacidades. igualmente nefastos; elas caminhariam de mios dadas como “Claustros vio se fazer outra ver. necessirios", escreve burguesia alema e o Estedo prussiano. Uma pretenderia que a tzsche a0 amigo Erwin Rohde em 1870. Lembra-se, en- cultura 6 se consagrasse’ defesa dos interesses do Estado, dei- to, da primeira sociedade literdtia, que fundara, com Gersdoft xando de lado 05 seus pr6prios propésitos. A outra esperaria € Deussen, nos tempos do colégio, Recorda como refizera a que ela fosse dispensada em cizculos cada vez mais amplos, vi~ tentativa na Universidade, reconstituindo a associagio com Rohde e Romundt. Tmagina criar uma espéeie de confraria, um 27 Tease cespectivamente ds Sociedade Literiria Germania ¢ da Sociedide sips convento moderno, de que participariam todos os seus amigos. Trabalhariam juntos, servindo de professores uns a0s outros, ¢ se dedicariam a renovar a cultura da época. Seria uma institui- cao completamente desvinculada do Estado, uma universida- de livre, uma escola para educadores. Agora, esté convencido de que é preciso isolar-se, retirar-se do mundo para continu- ar acriar, O projeto nao encontra receptividade, Retomado por Nietzsche em diversas ocasides, munca chegaré a concretizar-se. ee Ao percorrer 0 texto das conferéncias Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, proferidas por Nietzsche ha mais de cento e trinta anos, um leitor desatento poderia supor ter diante dos olhos umi livro que acaba de ser escrito. E pos- sivel que a atualidade do seu pensamento seja tributaria de seu carater extemporanco ou se deva as transformagdes tardias por que passaram nossas concepgdes de educacao ¢ cultura, Antecipando 0 que estava por vir, mal sabia ele do alcance, da extensio e das formas que a barbirie acabaria por assumir.

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