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RENE F ESUS A CAPITULO I O ACESSO HISTORICO A JESUS primeiro momento da credibilidade cristé die respeito a historia e & hermenéutica. A historia primeiramente: uma vez que Jesus foi homem verdadeiro, de cuja existéncia nao se poderia seriamente duvi- dar, ' segue-se que Seus dicta e gesta, apés terem sido durante sua vida objeto de cigncia experimental, tornaram-se depois de sua morte objeto de ciéncia historica. A pesquisa a seu respeito tem pois todo 0 direito de ser colocada nos mesmos termos que para qualquer personagem do passado. No entanto, na realidade, logo se reconhece que 0 enfoque histérico no presente caso vem acompanhado de um problema herme~ néutico. Ora, se concebemos o problema hermenéutico como 0 dos niveis de realidade aos quais podemos ter acesso na leitura de um documento, podemos dizer que o problema do ueesso & realidade de Jesus, pela mediagéio dos Evangelhos, & 0 primeiro ¢ 0 mais grave problema de hermenéutica colocado pelo cristianismo. I, UM VERDADEIRO PROBLEMA, Nés no conhecemos Jesus diretamente, por seus escritos, mas através do movimento que ele suscitou no primeiro século de nossa era. (0 ponto de partida de nosso conhecimento de Jesus ¢ a primeira comu- 1. A esse respeito, Bultmann escreve com razio: "0 fate de duvidar que Jesus tenha realmente existido néo fer furdamento algum ¢ ndo merece sequer ser refutado. indiscutivel que Jesus esté na origem do movimento hstonco culo primero estagio tangivel é representado pela comunidade palestina primitive” (R, BULTMANN, Jé- Sus Mythologie et demythologisation, Paris, 1968, . 18). 16 JESUS BXISTIU? nidade crista, testemunha do que Jesus disse e fez. Ora, o discurso dessa comunidade é um discurso de crentes, e os evangelistas, que 0 mem bros dela, tém uma finalidade religiosa: testemunham o evento da salva- go em Jesus Cristo. Atestam, com toda a igreja primitiva, que Jesus de Nazaré é Messias, Senhor, Filho de Deus e, por conseguiate, objeto de f, deculto, de adoragio. Nao ha duvida alguma que os Evangelhos no so nem crénicas, nem biografias, mas documentos de fé. O tinico Jesus ue atingimos por meio deles é um Jesus professado, confessado como Cristo e Senhor. Portanto, s6 nos resta um exame hist6rico-critico, no contexto da intengio de fé dos Evangelhos, como ponto de partida para conhecer o Jesus terrestre. Ora, quando visualizamos a imagem do Cristo segundo os Evange- thos, temos aimpressio — sobretudo em Joao, mas também em Mateus € Marcos — de uma hieratizacdo considerdvel a respeito do que foi 0 Jesus terrestre. A f& no Cristo desenvolveu-se no sentido da transcen- déncia. O Cristo é to divino que sua carreira terrestre parece uma espécie de entreato entre sua descida entre os homens e sua volta para 0 mundo celeste. Assim sendo, deveremos concluir que a imagem original de Jesus se acha de algum modo velada para nés, ou que Jesus foi. tal ponto “transfigurado" pelo Cristo da confissio de fé que os contornos hist6ricos de sua vida e de sua pessoa esmaeceram sob a fulgurante luz da Paiscoa? Sera ainda possivel ter acesso a realidade de sua passagem ‘entre os homens? Sabemos, além disso, que os Evangelhos, tais como se apresentam atualmente, so o resultado de longo processo de reflexao iniciados pela Igreja apés Pentecostes. A matéria dos Evangelhos, durante muitas décadas, servi para a catequese, para o culto, para a polémica, para a missio e, por conseguinte, vem marcada pela atualizacio e interpreta. sao da Igreja primitiva. Sabemos por fim que os evangelistas, embora tenham assumido a tradi¢ao anterior, nao se limitaram simplesmente ‘eproduzi-la, mas a repensarame reescreveram segundo as perspectivas teol6gicas e literdrias proprias de cada um deles. E novamente surge a interrogagio: podemos estar certos que a interpretagdo dos apéstolos, depois a da Igreia, ¢ finalmente a dos evangelistas, nao alterou ou deformou a figura e a mensagem de Jesus? Serd ainda possivel descobrir, sob as miiltiplas estratificacGes da inter- Pretagdo primitiva, gestos auténticos, fatos “realmente acontecidos”,¢ ouvir a mensagem de Jesus em frescor original? E tao grande a dife- renga, por exemplo, entre a linguagem de Jesus nos Sindticos e no Evangetho de Jodo! A liberdade dos evangelistas parece uma espécie de desenvoltura diante do real. Nessas condigdes, haverd ainda esperanca de se chegar, sendo as “ipissima verba Jesu" (sonho ha tanto tempo abandonado), pelo menos a0 contetido essencial de seu ensinamento, a esse nticleo que alimentou a reflexao ulterior, ¢ a0 bloco granitic de ‘suas mais importantes ages? Poderemos finalmente estabelecer crité- 2. A. DESCAMPS, "“Portée christologique de la recherche historique sur Jésus” in J. DUPONT, org. Jésus aur onigines dela chrstolopie, Gentbleux, 1975, pp. 39, © ACESSO HISTORICO A JESUS "7 rips precisos ¢ rigorosos que nos déem a certeza de conhecer 0 Rabi itinerante que perturbou a Palestina ¢ transtornou a hist6ria da humani- dade? F 0 questionamento fundamental dirigido ao cristianismo: qual é sua relagéo com a realidade terrestre de Jesus? Qual é 0 laco entre historia e quérigma? Entre o texto © o acontecimento? A teologia nfo pode se dispensar de refletir sobre esta relagao da fé coma historia, porque se Jesus nao existiu, ou se ele foi tal que nao possa fundamentar a interpretagdo que a fé Ihe dea, mas sim outra muito diferente, e até completamente diferente, 0 cristianismo naufraga na primeira de suas pretensoes. A f€ crista implice relacéo de continuidade entre 0 fendmeno Jesus e a interpretagdo que Ihe deu a Igreja primitiva, pois foi na vida terrestre de Jesus que Deus se manifestou, sendo ela que autoriza a interpretacao crista dessa vida como a tinica auténtica € verdadeira, Se os apéstolos puderam confessar Jesus como Cristo e Senhor, é preciso que ele tenha executado atos, adotado comportamen- tos, atitudes e linguagem que autorizem tal interpretagio, A tcologia deve portanto poder estabelecer, pelos Evangelhos ¢ nos Evangelhos, aquilo que justifica a interpretacao crista do fendmene Jesus, em sua condigao terrestre. II, AS RESPOSTAS DA CRITICA AAs respostas da critica ao problema da pessibilidade do acesso a Jesus pela mediago dos Evangelhos foram, como veremos, miltiplas muito variadas. Por exemplo: 1. Resposta acritica e de inteira confianga que dominou a exegese até o século XVIII. Durante muito tempo, com efeito, o problema da autenticidade histérica dos Evangelhos coincidiu com o da autentici dade de seus autores. Apoiando-se no testemunbo da tradigo, oexegeta atribui os Evangelhos a apéstolos (Mateus e Joao) ou a discfpulos de apéstolos (Marcos ¢ Lucas). Visto que os Evangelhos emanam, ime~ diata ou mediatamente, de testemunhas oculares, tudo oque relatam nos coloca em presenca do proprio Jesus. Os textos so transparentes © a autenticidade historica nao € problema, 2. Resposta do ceticismo histérico, inaugurada por Reimarus, ela- borada por Strauss, Kahler, Wrede, e radicalizada por Bultmann, Este Teconhece uma sucesso material ou cronolégica entre Jesus ¢ a prega- 40 apostélica, mas deciara que ha ruptura essencial entre Jesus de Nazaré, sobre 0 qual nao se sabe praticamente nada, ¢ 0 quérigma dos Evangelhos. Esse ceticismo hist6rico é reforgado por um prinefpio dogmatico: afé fica indiferente aos resultados da historia. Oencontro da Palavra de Deus na fé € 0 de duas subjetividades, transcende os dados ‘objetivos. Semelhante situagio pode afligir 0 bistoriador, mas néio 0 erente, nem 0 te6logo. 3. Resposta mais moderada dos discipulos de Bultmann, especial- 20 JESUS EXISTIU? A hermenéutica cristi, em sua primeira fasc, consistiu pois em decifrar, em adquirir a inteligéncia espiritual do Antigo Testamento pelo Novo, Sao Paulo e 05 primeiros Padres da Igreja (Justino, Clemente de Alexandria, Origenes, Agostinho) praticaram essa primeira forma de hermenéutica.. ‘Num segundo tempo, representado por So Paulo, por toda a exe- gese medieval ¢, mais recentemente, por Bultmann, a Escritura é consi- deradacomo chave de interpretagao da existéncia humana e, em particu lar, do agir humano. Sio Paulo, por exemplo, convida 0 cristio a decifrar 0 movimento de sua existéncia & luz da paixdo-ressurreigio do Cristo. Interpretayao da Escritura e interpretagdo da vida se esclarecem mutuamente. A Idade Média, com sua teoria dos quatro sentidos da Escritura, deu muito campo a esse tipo de hermenéutica.* No contetido global da Escritura, o intérprete discerne primeiramente uma hist6ria que fundamenta todo o resto. Mas essa historia s6 atinge o homem de hoje pelo triplice sentido que traz.em si. O sentido alegérico. ou tipico, ou cristol6gico, descobre na Escritura o mistério do Cristo preparado, anunciado, consumado ¢ finalmente prolongado na Tgreja. O sentido anagégico ou escatol6gico 18 a Escritura na perspectiva da esperanca final, Por fim, 0 sentido moral, ou tropoldgico, opera a decifracao da condicio humana e dos problemas humanos a luz da Escritura. O sentido moral nao é outta coisa sendo 0 ponto de impacto da Escritura na vida do homem, sua atualizagao na existéncia de cada dia: a palavra de Deus dirigindo-se a cada um hic et nunc, tanto quanto a Igreja,e dizendo ‘a cada um o que interessa a sua vida. final, num terceiro tempo, que corresponde ao periodo contempo- riineo, 9 processo hermenéutico tem por objetos o préprio texto do Novo Testamento e a relacao existente entre este ¢ 0 evento. Esse momento nasceu do choque da Escritura com as disciplinas modernas: criticas, filosoficas, historicas. Para os Padres da Igreja e para a Idade Média nao existia nem distancia nem tenséo entre 0 texto e 0 acontecimento. Hoje jf nfo & assim. Sabemos agora, gracas aos trabalhos da Formgeschichte e da Redaktionsgeschichte, que os Evangelhos nao so crdnicas, mas teste- ‘munhos nascidos numa comunidade de fé ¢ de culto. Sabemos igual- mente ue, entre o texto atual ¢ o ocortido, permeia um periodo de algumas décadas (de 30 a 100 anos), durante as quais a matéria dos Evangelhos foi objeto de releituras constantes ©, por conseguinte, de interpre‘agdes, atualizacées, aprofundamentos continuos. Resulta dai que 0 Novo Testamento, apés ter sido chave de interpretagao para 0 Antigo, tem ele proprio necessidade de ser interpretado. Essa necessidade de interpretagao decorre portanto do proprio cardter dos Evangelhos (confissoes de f€) e também da disténcia, mi- rnima mas real, que existe entre as palavras, os gestos de Jesus ¢ 0 texto 5. H, DE LUBAC, Exégésr médievale, vol. 1, Paris, 1959; P. GRELOT. “Que penser de Viterpetation exitetle? in EphemerdesTheoloseueLavanienses 4 196 pp. ‘© ACESSO HISTORICO A JESUS a escrito; entre a situacao hist6rica do tempo de Jesus e a situacdo da Igteja no momento em que foram redigidos os Evangelhos. Durante muito tempo, essa disténcia, com todas as suas implicagdes, passou despercebida: foi a critica moderna que a tornou manifesta. Interpretar os Evangelhos consiste portarto em discernir a relagao precisa existente entre 0 texto e o proprio evento (gestos e palavras de Jesus); determinando a contribuico respectiva de Jesus, da comuni dade primitiva, do evangelista, A hermenéutica moderna revela a situa- ‘so tnica dos Evangelhos, IV. © PROBLEMA E SUAS IMPLICACOES TEOLOGICAS Para terminar de pér em evidéncia a gravidade do problema que abordamos, indiquemos algumas de suas implicagées teol6gicas. Numa palavra, so a existéncia e a propria natureza do cristianismo que esto em causa, 1. A historicidade € 0 primeiro trago da originalidade e da especifi- cidade da revelacao crista. O cristianismo, comefeito, néo é uma gnose caida do céu de péra-quedas, nem 0 encontro tinico e vertical de Deus com 0 homem, na interioridade da fé. Procede de uma intervengao gratuita de Deus na histéria. J4 no Antigo Testamento, para dar-se a conhecer a Israel, Deus decidiu utilizar acontecimentos hist6ricos parti- culares, dos quais a palavra profética ¢ a interpretagio ¢ 0 eco. Portanto, aquele que quer ouvir a palavra de Deus deve levar a sério os acontect- ‘mentos hist6ricos dos quais dao testemumho 0s textos do Antigo Testa- mento. A propria f& que responde a essa palavra toma a forma de narrativa confessional: relato dos acontecimentos que manifestam o designio salvifico de Deus. A mesma estrutura encontra-se no Novo ‘Testamento. O quérigma apostolico € 20 mesmo tempo pregagao de um evento e de seu aleance salvifico: "o Cristo morreu (0 acontecimento da morte na cruz) por nossos pecados” (0 sentido). O Novo Testamento, ‘como o Antigo, inclui a horizontalidade do ocorrido e a verticalidade do sentido. Sintese inscrita no préprio titulo de Jesus Cristo: 0 homem de Nazaré que se declarou diante do Sanedrim como Filho do homem com © poder de julgar os homens no fim dos tempos e, por esse motivo, foi crucificado e morto, achando-se doravante identificado como Messias € Fitho de Deus. Portanto, se 0 cristianismo se apresenta como uma intervenc&o de Deus na historia e se 0 Cristo é o ponto mais denso, mais decisivo dessa intervencao, é sobejamente importante saber se, como ¢ em que medida, podemos atingir essa epifania de Deus, pelo meros em sua consisténcia histérica acessivel ao conhecimento humano. E verdade que a revelacao de Deus nao é reconhecida como tal, sendo pela fé, e nao pela ciéncia histérica; no entanto ela no 0 é sem esta. Porque 0 cristianismo tem. contetido hist6rico e sua fundagao na hist6ria faz parte de sua credibi dade. Se devéssemos estabelecer que o cristianismo nasceu apenas dafé primitiva € que 0 Cristo nao é responsavel pela mensagem a ele atri- 2 {ESUS EXISTIU? butda, que sobraria do cristianismo? Pura doutrina? Ou talvez ilusio? &, ois, essencial verificar que 0 quérigma apostélico se acha fundado sobre a vida, gestos ¢ mensagem do préprio Jesus e que a formula JESUS CRISTO exprime uma unidade e continuidade reais. Ora, repe- timos, ndo hé outro acesso a Jesus a nao ser pelos Evangelhos. 2..A questo proposta mostra-se particularmente grave quando entramos diretamente no campo da cristologia. A pesquisa dogmstica, com efeito, no poderia fazer abstracao dos dados seguros que temos sobre Jesus. Quem é Jesus? Qual foi o seu discurso? Em que termos falou de si mesmo ¢ de sua missio? De sua relagio com Deus? Josus tem uma teologia? Essa teologia é verdadeiramente acessivel e se distingue da teologia da Igreja sobre Jesus? Hustremos isso com um exemplo. ‘Um dos problemas mais discutidos da pesquisa contempornea € 0 da consciéncia de Jesus. Antigamente se dizia: a fé dos discipulos repousa sobre a consciéncia de Jesus. Ora, Jesus sabia que era Filho de Deus: ele o revelou a seus diseipulos e o provou ressuscitando. Por- tanto, da consciéncia de Jesus & f€ dos cristaos, a passagem é feita pelas declarazdes dos Evangelhos nas quais Jesus esclarece sobre sua pessoa ¢suaobra, Ora, eis que certa critica (a critica radical pelo menos) duvida que Jesis tenha tido consciéncia de ser Filho de Deus ou mais simples mente Messias. Seffor verdade, segundo as tentativas, fracassadas, da Escola libe- ral, queé impossivel elaborar uma vida de Jesus a partir dos Evangelhos (por néo ser essa a preocupacio dos evangelistas), sera igualmente ‘Verdadeiro que nio possamos atingir a consciéncia de Jesus, pelo menos como consciéncia viva, em sua expresso espontinea, isto é, em suas atitudes, seu comportamento, seu estilo de acdo ¢ de expresso oral, seu modo de agite de reagir diante dos valores do meio (religifo, autoridade, instituig6es), suas relagdes interpessoais com Deus, com os grupos sociais, coms individuos, nos titulos que ele reivindicou ou pelo menos aceitou? Se no soubermos nada sobre, todos esses pontos, 0 ser de Jesus nos escapa, sua identidade evapora-se. E verdade que 0 mistério de sua pessoa 86,01 plenamente desvendado pela ressurreico. Mas, por outro lado, se nada na a¢do ou na linguagem de Jesus permitiu que 0 tema de sua messianidade e de sua filiagao divina germinasse, amadure- cesse ¢ frutificasse na £8 pds-Pascal e nos titulos cristologicos que 0 exprimem, essa mesma fé esté ameacada ¢ arrisca nio passar de uma ilusao. 3. O problema da possibilidade de acesso a Jesus pelos Evangelhos manifesta, finalmente, sta importéncia no campo daexegese. De fato, 0 trabalho exegético se apresenta de modo bem diferente conforme a resposta & pergumta colocada seja negativa ou positiva. ‘Adotando-se a posigdo de Bultmann, a exegese consiste em procu- rar na narrativa atual a pureza do quérigma primitivo, sem se preocupar com a realidade hist6rica subjacente ao relato, e em descobrir o sentido ‘© ACESSO HISTORICO A JESUS 2B gue ele tem para a compreensio de nossa condicéo humana de pecado- res perdoados. Pode-se, pelo contrario, numa perspectiva de posit vismo hist6rico, procurar reconstruir 0 acontecimento passado em sua pura materialidade, sem levar em conta a interpretagao que recebeu desde a origem, nem suas repercussdes em todo o desenrolar da tradi- go. A exegese, por fim, pode buscar atingir o fato ocorrido, porém na tnidade que tem com o sentido recebido de Jesus eda tradicdo primitiva. Portanto, uma exegese que se propée ser total néo separa o evento de sua interpretacao, mesmo se chega a distinguios. Nenhum destes dois polos — evento e interpretacdo — poderia ser negligenciado. E igual- mente grave menosprezar 0 evento e s6 levar em conta o sentido, ¢ deixar-se hipnotizar pelo evento sacrificando-he 0 sentido. No Novo tanto quanto no Antigo Testamento; o texto, precisamente por ser testemunho, jamais suplanta 0 acontecimento, e sim 0 supde porque 0 sentido atestado € 0 do fato acontecido. Antes de elaborar os argumentos que permitem dar ao problema colocado uma resposta qualificada, dois trabalhos prévios se impoem. O primeiro consiste em examinar a evolugéo da critica evangélica nestes, dois tiltimos séculos; 0 segundo, de ordem metodolégica, consiste em definir as realidades constantemente implicadas na discusséo: 0 géncro literdrio “‘Evangelho™, assim como a natureza, 0 objetivo e limites da pesquisa hist6rica. conjunto do trabalho se desenvolve portanto em ‘és tempos: um de histéria, um de método ¢ outro de demonstracao propriamente dita. - A demonstragao se aplica antes de tudo acs Evangelhos sinéticos. Vale também para 0 conjunto da tradi¢ao joanina, levando em conta no entanto condigdes particulares de sa formagao e de sua redacao. O Evangelho da Infancia constitui um caso especial que exige tratamento proprio. 4 JESUS EXISTIU? NOTA BIBLIOGRAFICA Aqui nos limitamos @ mencionar certo ndmero de artigos ¢ obras que colocam ¢ formulam explicitamente o problema tratado. Encontrar-se-4 uma lista mais completa na bibliografia geral. BORNKAMM G., Qui est Jésus de Nazareth?, Patis, 1973. pp. 19-33. BOUTTIER M., Du Christ de I’histoire au Jésus des Evangiles, Paris, 1969. CABA I., De los evangelios al Jesis histérico, Madsi, 1970, DELORME J., Des Evangiles a Jésus, Paris, 1972. DESCAMPS A... “Portée christologique de la recherche historique sur Jésus"*in J. DUPONT, org., Jésus aux origines de la christologie, Gemabloux, 1975, pp. 23-4 GRECHP., "Jesus Christ in History and Dogma” in A New Catholic Commen- tary on Holy Scripture, Londres, 1969 pp. 822-837. KERTELGE K., org., Riickfrage nach Jesus, “Quaestiones disputatae"* 63, Friburgo, 1974. LAMBIASI F.. L'ausenticita storica dei Vangell, Bolonha, 1976. LEON-DUFOUR X., Les Evangiles et Vhistoire de Jésus, Patis, 1963, MALEVEZ L., “Jésus de histoire et interprétation du kérygme", in Nouvelle ‘Revue théologique 91, (1969) pp. 786-808. POTTERIE I. DE LA, org., De Jésus aux Evangiles, Paris, 1967; “Come impostare il problema del Gesi storico?", in La Civilta Cattolica 120, 1969, pp. 447-463. RICOEUR P.,“Préface" aR. BULTMANN, Jésus. Mythologie et démytholo- gisation, Paris, 1968, pp. 9-28, RISTOW H. ¢ MATTHIAE K.. org., Der historische Jesus und der Keryema- tische Christus, Berlin, 1961. Contribuigdes de: J. JEREMIAS, pp. 12-25; R. MARLE, pp. 26-38; W. G. KUMMEL, pp. 39-53; 1. DE FRATNE, pp. 121-135; H. DIEM, pp. 219-232; R. BULTMANN, pp. 233-235; 0. CULLMANN, pp. 266-280; G. BORNKAMM, pp. 281-288; H. RIE. SENFELD, pp. 331-341; H. SCHURMANN, pp. 342-370. Colegio im- pportante, nao apenas por causa do valor das contribuigdes, mas também ‘no vasto leque das posigées que representa. SCHILLEBEECKX E., L'approccio a Gesi di Nazaret, Bréscia, 1972. TRILLING W., Fragen zur Geschichelichkeit Jesu, Dusseldorf, 1966, Tradngao francesa: Jésus devant l'histoire, Paris, 1968. WEBER. J., “Les Eevangiles méritent-ils notre confiance?” in WEBER J.J. SCHMITT J., org., Oil en sont les études bibliques, Paris, 1968 pp. 185-212, ZAHRNT H., Es begann mit Jesus von Nazareth, Stuttgart-Berlim, 5.* ed., 1964, ZEDDAS., I Vangeli la critica oggi, Ul: Il Gest della storia, Treviso, 1970. PRIMEIRA PARTE, A EVOLUGAO DA CRITICA A EVOLUCAO DA CRITICA Retragar a histéria da critica evangélica ainda no € trazer uma resposta definitiva ao problema colocado. E, no entanto, orientar a pes- quisa num clima de confianca ou de diivida. Com efeito, néo € sem importancia que a critica, depois de um periodo de ceticismo radical, do qual Bultmann é 0 principal representante, tenha-se tornado mais mode- rada, e caracterizada por atitude de confianga arespeito dos Evangelhos como fonte de conhecimento de Jesus ¢ de sua historia. Tampouco é indiferente sublinhar que essa volta & confianza operou-se a partir de pesquisas efetuadas em diferentes niveis: nivel literdrio, com os méto- dos da Escola das formas e da Redaktionsgeschichte; nivel teoldeico, com os representantes da ‘Nova Hermenéutica” (Robinson, Fuchs, Ebeling) e entre os homens da presente geracao (Pannenberg, Molt- ‘mann); e nivel propriamente histdrico com os autores preocupados em estabelecer critérios validos para chegar até Jesus de Nazaré (Kase~ mann, Jeremias, Schirmann, Perrin, Lehmann, Calvert, McArthur, Cerfaix, de la Potterie, Lambiasietc.). Todos esses trabalhos chegaram ‘a uma mesma conclusio: 0 acesso a Jesus pelos Evangelhos, julgado durante muito tempo impossivel pelo positivisms histérico e pelos adep- tos da teologia do quérigma, é atualmente reconhecido como empreen- dimento necessério © possivel Tal conclusio, fruto de dois séculos de buscas, constitui sendo a propria prova, pelo menos sdlida presunco em favor da posigéo que representa. Se tantos estudiosos, entre os quais certo nimero figurou anteriormente entre os mestres da duivida, dao crédito aos Evangelhos 2B AEVOLUCAO DA CRITICA como via de acesso a Jesus, pode-se crer legitimamente que a verdade vai nesse sentido. Sem divida, seré necessério, antes de dar pleno assentimento as conclusées da critica, provar a solidez dos argumentos pels invoca. No entanto, esse argumento de autoridade, ele proprio sobre a critica interna 4 fundado sobre acrica interna dos Evangelos, jé cont pesa consi Esta hist6ria da critica, mesmo nos parecendo sinuosa e lenta em seu andamento, tem, no entanto, seus aspectos positivos: além de nos familiarizar com os dados do problema e suas implicagdes, jé vai fa zendo 0 inventirio da maioria dos argumentos que reencontraremos a seguir. Mostra-nos também como 0 acesso histdtico a Jesus pelos Evan- gethos foi sendo cada vez mais percebido como problema de hermengu- tica e de linguagem. O certo € que, sem 0 conhecimento dessa historia, as aluais obras sobre os Evangelhos permanecem fontes seladas. Final- mene, la limp o tere de certo niméro de bjogSes sm consist . O lugar fica assim livre para abordar as verdadeiras dit cis Og pat as verdadeiras dificuldades e CAPITULO IL FASE DE RADICALIZACAO |Até o século XVIII; 0 problema da autenticidade histériea dos Evangelhos nao foi ventilado. Protestantes e catélicos consideravam nossos Evangelhos merecedores de plena confianga, propondo-nos de Jesus uma imagem fiel e auténtica. A exegese explicava o contetido dos Evangelhos sem muito preocupar-se com seu género literirio © menos ainda como processo de sua formacao. A idéia de uma oposi¢ao entre 0 Jesus da histéria e 0 Cristo dos Evangelhos era totalmente estranha & ‘mentalidade patristica e medieval. As dificuldades encontradas diziam menos respeito & historicidade do que & harmonizacao dos quatro tex- tos. Preocupagao que vem tona no Diatessaron de Taciano (no século I1), no De consensu evangelistarum libri quattuor de Agostinho (cerca de 400), que procura estabelecer que av contradigGes dos Evangelhos so apenas aparentes, ¢ na obra medieval de Gerson, 0 Monotessaron, {que apresenta um tinico Evangetho através de quatro formas. ‘Hoje em dia, néo se pode falar do problemada relagao dos Evange- Ihos com Jesus de Nazaré sem evocar imediatanente'o nome ¢ o traba- tho de Bultmann. Entretanto, na realidade, o problema do Jesus da hist6ria foi objeto de discussdes que comegaram ha mais de um séculoe meio antes de Bultmann. Com efeito, a atitude “critica diante dos Evangelhos data do século XVIII, quando nos meios dominados pelo racionalismo e pelo protestantismo liberal, a inspiragao é praticamente rejeitada e a propria Escritura dessacralizada. Nao cabe aqui fazer inventario de todos 05 nomes que compéem ‘essa historia da critica, mas trata-se antes de discernir (em relagao a0 30 AEVOLUCAO DA CRITICA problema que nos ocupa) os tempos fortes dessa hist6riae de mencionar 08 seus corifeus. No periodo pré-Bultmann, assinalaremos quatro nomes mais importantes: os de Reimarus, Strauss, Kahler, Wrede. Veremos como todos 0s elementos da posigao de Bultmann tém seu antecedente historico nesses autores. I. OS PRE-BULTMANNIANOS 1. H, S. REIMARUS (1694-1768) representa a atitude do raciona- lismo radical diante dos Evangelhos. Professor de linguas orientais em Hamburgo, Reimarus havia redigido um manuscrito de quatro mil pagi- nas: uma espécie de apologia da religiao natural, na linha e espirito do deismo inglés. G. E. Lessing descobriu o manuscrito e 0 publicou em sete fascfculos (de 1774 a 1778). Reimarus se revela nessa obra como 0 promotor de uma religido natural efiloséfica. Distingue nos Evangelhos oprojeto de Jesus e a expectativade seus apéstolos. Quanto a Jesus, nio uis fundar uma nova religiéo; néo fez milagres; nao falou nem de sua morte nem de sua ressurreigio. Foi um Mesias politico que sonhou estabelecer um reino temporal libertar os judeus do jugo estrangeiro. Infelizmente, seu empreendimento fracassou. Decepcionados, os disc- ulos criaram a figura do Jesus transmitida pelos Evangelhos. Inventa- Tam & mensagem da ressurreigdo ¢ apresentaram Jesus como 0 Mesias apocaliptico de Daniel. Reimarus introduziu assim a distingao entre 0 ensinamento de Jesus ¢ 0 dos apéstolos. Nao elimina os Evangelhos, mas os esvazia de seu contetido sobrenatural e histérico. 2. David Friedrich STRAUSS (1808-1874) publicou em 1837 sua vidade Jesus (Das Leben Jesu), O elemento-chave para compreender os Evangelhos, segundo ele, € a categoria do mito: termo que é preciso definir imediatamente. O mito neotestamentario, no pensamento de Strauss, outra coisa néo € senio a transposi¢éo e representacao, em termos de hist6ria, do ideal religioso dos primeiros cristaos. Essa repre- Sentagdo nasceu sob a pressio criadora da lenda ¢ se concretizou na personagem histérica de Jesus. O Cristo dos Evangelhos, confessado pelos cristios como 0 Deus encarnado, é um Jesus “mitizado”, a partir de elementos tirados do judaismo, do helenismo da experiéneia crista. ‘Tudo o que precede o batismo de Jesus pertence ao mito. A teofania do batismo, a tentagdo no deserto, a transfiguracdo, os milagres, 0s exor- cismos, a ressurreigio sio também casos exemplares do processo de “‘mitizaéo™. Nem por isso se pode negara existéncia, nos Evangelhos, de um substrato histérico, Entretanto subsiste um hiato intransponivel entre Jesus de Nazaré ¢ 0 Cristo dos Evangelhos, em conseqiiéncia da ago avassaladora do mito. Uma vida de Jesus é portanto empreendi- ‘mento irrealizével. O valor dos relatos evangélicos é antes de tudo de ordem teol6gica, no sentido de nos darem acesso a fé crista. A posicao de Strauss confrontada com a de Bultmann & de surpreendente seme- nga. 3. Oposta a de Strauss, a Escola liberal da Leben-Jesu-Forschung FASE DE RADICALIZACAO 31 (pesquisa sobre a vida de Jesus), representada por H. J. Holtzman, K. H. Weistcker, K. Hase, B. Weiss, D. Schenkel, A. Harnack, E, Renan (Coutros), esté convencida de que 6 possivel, apartir de fontes “histori- camente puras™, isto 6, do Evangetho de Marcos ¢ da Quelle (teoria das duas fontes proposta por Ch. H. Weisse e Ch. G. Wilke), escrever uma vida de Jesus e até retragar seu itinerério psicolégico. Fundamental- mente, tal estudo tinha por finalidade libertar a imagem do Jesus hist6- rico dos retoques vindos dos dogmas cristol6gicos e, anteriormente, do quérigma da Igreja primitiva. ' Crerfamos nao mais no Cristo dos dog- mas, mas no Jesus da Galiléia que se venerava. Tratava-se portanto de descobrir 0 homem Jesus, tal como foi real e originalmente, sua vida e sua religido devendo ter uma significagdo exemplar para os cristaos do presente tempo. Em 1906, Albert Schweitzer? mostrou que essa tenta- tiva, a mais considerével, sem divida, da critica histérica do século XIX, acabava num total fracasso. E isso por muitos motivos. Primeiramente porque se pedia aos Evangelhos aquilo que manilfes- tamente néo queriam propor, a saber, uma vida de Jesus (embora sejam ricos em dados histéricos). Além disso, o Jesus objetivamente procu- ado refletia de modo perturbador o ideal humanitério, social religioso dos mesmos que pretendiam reconstituir fielmente seus tragos e car- reira. Esse Jesus ora era um mestre do século éas Luzes, muito conhe- cedor de Deus, da virtude e da imortalidade; ora um génio religioso do romantismo; ofa um amigo dos pobres ¢ um campedo das idéias sociais. Numa palavra, a Escola liberal desviou-se de seu projeto inicial. Rejei- touas interpretagdes dogiméticas de Jesus, mas substituindo-as por seus pressupostos filosoficos e sociolégicos. Por fim, a Escola esbarrou com dificuldades insuperaveis relativas as proprias fontes. Onde via fontes “historicamente puras” (especialmente Marcos), descobriu que se tra- tava ainda de testemunhos de fé. Foi justa acritica que se fez da Escola liberal. Permanece valida, no centanto, sua primeira intuigo, a saber, que a pessoa hist6rica de Jesus € 6 fundamento do crstianismo ¢ que nfo poderia haver acessoa Jesus, do ponto de vista hermenéutico e apologético, a nao ser por via da historia, A ctistologia tem de enfrentar 0 problema inevitével da pesquisa e do método hist6ricos; sendo na incredulidade ou no fideismo. O erro da Escola liberal foi de trocar a tutela dogmatica pela filoséfica e de reduzir ‘© Cristo uo homem Jesus, tipo acabado do homem religioso a imagem de um ideal que ela propria se forjara. 1. HJ. HOLTZMAN, emDie onoprischen Evangelten hr Ursprang und hr geschich- ticker Charakter, Leipdg, 1863, Tormulow com propredade 0 objetivo da Leben- SJesisForsching: "Para nos, dizee, atasestmplesmente de saber se ainda ¢possivel Zeconstrura figura histrica de quem ctitanismo tra ado apenes nome cexsténciay ts cuja pessoa tornou-seo canto de vis religiosa bem earacterstica do mundo, de ‘od que satisfac toda justas exiginciasdaeriica hstorca. Trataae de saber se € possivel ou nfo Conhecer claramente quem foi de fao-o fondador do crstanismo, a Partrde todos os meios eptimos da citicahistérica.” Citado por W. G. KUMMEL, Day Nee Totoment chee de Porcine seer Probleme, Manian, 1938, 81 A tradugio do texto francés do ator 2.4. SCHWEITZER, Geschichte der Leben-Jesu-Forschang, Munique, 196. 32 AEVOLUGAO DA CRITICA 4, Na mesma época, Martin KAHLER reage contra as pretensdes da Leben-Jesu-Forschung. Em seu opiisculo sobre 0“ pretenso Jesus da historia” e o Cristo da Biblia,? publicado em 1892, procura mostrar que © Jesus historico dos escrifores modemnos nos esconde o Cristo vivo da Biblia. Ora, o dnico Jesus real € 0 Cristo da pregacio e da fé, e no 0 Jesusdo pasado, Ele introduz assim uma distingao que sera bem aceita, entre o Jesus da histéria ¢ 0 Cristo do quérigma.O que nos interessa € 0 Cristo da pregacéo apostélica, confessado na fé, € nao o da historia, sobre o qual aliés sabemos bem pouco, pelo menos com certeza cienti- fica. Kahler no nega a existéncia de um substrato histérico minimo nos Evangethos, mas considera vi e fitil a pesquisa da Escola liberal sobre a vida de Jesus. 5. Actescentemos aos nomes de Reimarus, Strauss, Kiihler 0 de Wilhelm WREDE que pos um ponto final as ilusées da Leber-Jesu- Forschung pela publicagéo, em 1901, de sua tese sobre o segredo mes- sidnico no Evangelho de Marcos.’ Wrede é de opinio que o Evangelho de Marcos, sobre o qual a Escola liberal fundamenta sua reconstrucéo da historia de Jesus, nao ¢ livro de histéria, mas relato elaborado sob a influéncia de motivos teol6gicos. Marcos nao é historiador, mas te6- logo. Assim, segundo Wrede, o tema do segredo messifinico no passa de uma criago da Tgreja primitiva. Durante sua vida publica, Jesus nao teve consciéncia de ser o Messias ¢ nunca exprimiu tal pretenstio. Foram 8 apéstolos ¢ a Igreja primitiva que, para explicar a distincia entre a vida teal de Jesus e 0 culto prestado ao Senhor ressuscitado, imaginaram a idéia de um “segredo" que Jesus teria escondido durante sua vida iiblicz. Se Jesus ndo falou de sua dignidade de Messias durante seu ministério, foi porque queria protelar essa divulgagéio até o dia da Fessurreigo.&““Considerado em seu conjunto, diz Wrede, o Evangelho de Marcos no fornece imagem historica da vida real de Jesus. Apenas alguns pélidos vestigios ficaram retidos em sua narracéo, que reflete ‘uma concep¢do metarhistérica, teol6gica de Jesus. Nesse sentido, 0 Evangelho de Marcos pertence & historia do dogma.""” Conseqiiente- mente, o Evangelho de Marcos, considerado até entéo como o mais fiel testemunho de Jesus, revela-se ele também como documento de fé. A comunidade primitiva imaginon, na vida de Jesus, algo que nela nio se 3.M. KAHLER, Der sogenannte historische Jesus und der geschicilche, biblische Christos, 188 4: A Histria & « materialidade dos fatos, acesivel pelas técnica ¢ pelos métodos da historia; a Geschichte s80 os falos comoreendidos como acontecimentos humanos ¢ signifesivos para a vida da humanidade. Jesus, paca Kahler, designa o homem de Nazaré, podendo assim propor uma biografia de Jesus. O Cristo 44 implica 48 no Salvador proclamado pela Igreia. Z1storich significa os fatos maternis do passado: _geschichilich detne 0 sentido desses fas, 5. W. WREDE, Das Messiasgeheimnis in den Evangelin, zugleich ein Beitrag zum Verstindnis des Markusevangelums, Gotingen, 190, 6. G, MINETTE DE TILLESSE, Le secret mestianique dans Evangile de Marc, Pats, 1968, p12, 7. W. WREDE, Das Messiasgeheimnls... p13. FASE DE RADICALIZACAG 3 encontrava. Essa “forga criadora" da comunidade primitiva tornou-se por diante, na Escola das formas, um axioma indiscutivel. 6. Se agruparmos os elementos recolhidos até agora, constatamos ‘que a maioria das posicdes assumidas por Bultmann jé existiam em seus predecessores ou haviam sido preparadas por eles, a saber: a) aimpos- sibilidade de atingir o Jesus da histéria e de conhecer sua vida ¢ sua personalidade (Strauss, Kabler); b) a categoria do mito para explicar boa parte do material evangélico (Strauss); c) a distingo entre o Jesus da historia ¢ 0 Cristo do quérigma (Kahler); d) « importancia do papel criador da comunidade primitiva (Reimarus, Wrede); ¢) a depreciagéo do elemento histérico como fundamento da fé crista (Kahler). 7. A critica do século XX, doravante consciente de que nossos Evangelhos sao 0 termo de um proceso complexo de formagio, que se estende por um periodo de mais de trinta anos, procura retragar as ctapas dessa formacao, Em tal empreendimento, podem-se distinguir, em nivel exegético, dois grandes movimentos: o primeiro, que se situa entre as duas guerras mundiais, de 1920 a 1945 (a Formgeschichte); 0 segundo, que data do apés-guerra (a Redaktionsgeschichte). Esses dois, movimentos concretizam as duas orcas que contribuiram para a forma- cio da tradigéo evangélica. A Formgeschichte reconheceu & tradigéo ‘oral uma fungao negligenciada pela critica das fontes escritas; enquanto que a Redaktionsgeschichte, reagindo contra os excessos da Escola das formas, reconheceu aos redatores, aos evangelistas, uma importancia que a Formgeschichte Ihes recusava. A figura que domina a primeira época é a de Rudolf BULTMANN. II. BULTMANN E A TEOLOGIA DO QUERIGMA. Bultmann assumiu as posicdes de Strauss, Kahler e Wrede, mas radicatizando-as. Para Bultmann, com efeito, o cristianismo comegou com o Cristo-pregado, isto é, com o quérigma da igreja primitiva. Esse quérigma supde sem divida a existéncia historica de Jesus, mas nao manifesta interesse algum pela crdnica dessa vida. O que o interessa €0 préprio fato (0 Dass, the tharness) da cxisténcia de Jesus, como lugar da resposta eficaz de Deus & questio do homem sobre o sentido de sua cexisténcia. Basta para a fé cristd que Jesus tenha nascido, que ele tenha vivido, tenha sido crucificado e morto: a “facticidade” € 0 tinico subs- trato histérico necessério para o evento da salvagio. O Was, isto é, a personalidade moral de Jesus, ¢ 0 Wie, isto é, seu ensinamento, sua Mensagem, sua ago, no apresentam nenhum interesse teoldgico. “O que se passou no coragéo de Jesus, diz Bultmann, eu néo sei nem quero saber."* Bultmann certamente nao nega uma continuidade material, crono- logica, entre Jesus de Nazaré e o Cristo do quérigma, mas denuncia uma 8. R, BULTMANN, Glauber und Verstehen, 1, Tabingen, 1953, pp 101 e251. 4 AEVOLUGAO DA CRITICA verdadeira ruptura, uma descontinuidade teoldgica essencial entre Jesus € 0 Cristo da fé. Vé os sinais dessa ruptura nos seguintes fatos: a) em lugar de Jesus, o quérigma prope a figura mitica do Filho de ‘Deus; b) enquanto a pregagao de Jesus proclama a vinda iminente do Reino, a Igreja primitiva prega 0 Cristo morto por nossos pecados ¢ ressuscitado: o pregador € agora pregado; c) enquanto Jesus fala da ‘obediéncia incondicional ao Pai, 0 quérigma fala agora da obediéncia & Iareja. Para Bultmann, Jesus pertence ainda ao judafsmo, Assim sendo, ‘que lago existe entre Jesus e a Tgreja? Bultmann julga que 0 quérigma ‘no nasceu da vida de Jesus nem ao menos se apdia sobre essa vida. Os Sinsticos nao procuram legitimar o quérigma pela historia, mas sim {egitimar a historia pelo quérigma: é este que tudo esclarece e a tudo da sentido, A fé crista comeca com o quérigma que se substitui ao Jesus da historia, Comega quando aquele que pregava anunciado como a ago cescatolégica de Deus. Sao Paulo néo edificou sua teologia sem referir-se a0 concreto da historia de Jesus? No fracasso do profeta de Nazaré, 0 quérigma vé a resposta de Deus & questéo do homem: no crucificado, Deus pronuncia um julgamento de condenacéo sobre a auto-suficiéncia do homem e proclama sua vontade de perdio e de vida auténtica para todo aquele que aceite morrer a si mesmo.? Esquematizando, pode-se dizer que 0 trabalho de Bultmann sobre Jesus se articula em dois tempos: primeiramente, uma critica radical, declarando que uma pesquisa historiogréfica sobre Jesus € empreendi ‘mento impossivel e até ilegitimo; em seguida, um momento de intengao ositiva e criadora, procurando substituir a historiografia por uma teo- logia e hermenéutica do quérigma. 1. Para Bultmann, é utopia querer escrever uma vida de Jesus: no aperas porque Jesus nada escreveu, mas sobretudo porque os Evange- Thos sao primeiramente contissdes de fé. Muito mais, a imagem que eles propdem de Jesus foi em grande parte “mitizada” pela comunidade primitiva. Bultmann exprimiu seu ceticismo em 1926, em seu Jesus. Que Jesus tenha existido, esta fora de diivida: ele exerceu seu ministério de tabino e foi morto sob Péncio Pilatos. Mas os Evangethos misturam de modo tao inextrincavel elementos histéricos e miticos que se torna impessivel encontrar um nécleo consistente de verdade historica e uma sucessio fiel dos acontecimentos, Os Sinsticos nos apresentam o Cristo como Filho de Deus através da imagem da divindade grega. “‘Penso, diz Bultmann, que praticamente nao podemos saber nada sobre a vida e a 9. Sobre s posto de Bultmann quanto ti relagio entre o Cristo de quérigma eo Jesus da historia, € preciso reportarse a0 texto fundamental de R. BULTMANN, Das Verhal nis der urehriilichen Chrstusbotechaf! cum historscken Jeaus, Heidelberg, 1960 ‘Texo publicado posteriotmente em E. DINKLER, org, Frege Aufsatze 7ur Enfrschung des Neven Testaments, Tubingen. 1967, pp. 445-469. Breve resumoem H. RISTOW e K. MATTHIAE, org. Der historsche Jesus und der korygmatische Che. ts, pp. 283-235, FASE DE RADICALIZACAO 35 personalidade de Jesus, porque as fontes cristas que possuimos, muito fragmentdrias e invadidas pela lenda, nao manifestaram interesse algum or esse ponto,"""” E mais adiante: “Se sabemos s6 pouca coisa sobre a vida ¢ a personalidade de Jesus, estamos suficientemente informados a respeito de sua pregacio para fazermos dela uma imagem coerente. Mas, aqui também, o cardter de nossas fontes obriga & maxima prudéncia. As fontes nos oferecem primeiramente a pregacio da comunidade, que certamente atribui a maior parte dela a Jesus. F claro que isso nao quer dizer que todas as palavras que ela coloca na boca de Jesus tenham sido verdadeiramente pronunciadas por ele. Em muitos casos até se pode provar que elas provém unicamente da comunidade; em outros que a comunidade as retrabalhou”’.'' A possibilidade d: se conhecer a prega- do de Jesus é pois maior, mas “’com um coeficierte de certeza bastante relativo”’ Em suma, os Evangelhos nasceram da fé ¢ tém sentido para a f€. Sao um quérigma, ndo uma cronica. 2. Para Bultmann, a fé nio tem outra justificapdo sendo ela prépria. © que importa € o sentido da existéncia de Jesus, notificado pelo qué- rigma, a saber, que pela sua entrega total a Deus nsf, homem é salvo. © que esté antes ou depois do quérigma pouco importa. E assim que Bultmann se declara pessoalmente convencido d> que Jesus ndo tinha consciéncia de ser o Messias. Mas logo acrescente que, para seu prop6- ‘0, 0 problema é sem importincia, porque o reconhecimento de Jesus ‘como aquele em quem a Palavra de Deus se realiza de mancira decisiva, € um puro ato de fé independente da resposta que se der ao problema historico de saber se Jesus se considerou como o Messias. Somente @ historiador pode responder a essa questo, 4 medida que é possivel uma resposta; © a fé, como decisio pessoal, néo pede depender de seu trabalho. A fé, como engajamento da pessoa toda, deve-se libertar da precariedade da pesquisa histérica, 3.0 historiador ¢ 0 te6logo, em Bultmann, parecem pois coexistire se ignorar. Por um lado, de fato, Bultmann, em seu Jesus € em sta Histéria da Tradigao sindtica, estudn a pregagho de Jesus ¢ se esforca por reconstitui-la; e, por outro lado, o tedlogo parece fazer abstracao de suas pesquisas histéricas. Como explicar essa espécie de dualismo metodolégico? A critica historica nao teria outra finalidade além de mostrar a impossibilidade de se fundamentar historicamente o quérigma € de libertar assim a fé de qualquer apoio humano? A indiferenga de Bultmann para com a histétia de Jesus deve ser atribuida, segundo nos parece, mais & sua teologia da fé do que a seu ceticismo histérico, Com efeito, o interesse histético pelo Jesus pré- 10. R. BULTMANN, Jésus... Paris, 1968, p. 35, 1 Ibi., p37 Tid. 538 36 A EVOLUGAO DA CRITICA pascal néo é condendvel em si. Prova disso é que o préprio Bultmann obedeceu a esse motivo, Mas esse interesse deve permanecer estrita- mente em sua ordem, isto é, histérica. Desde 0 momento em que se mescla ai um interesse feol6gico, a saber, o desejo de legitimar 0 qué- rigma e a f& por meio de motivos histéricos, a pesquisa logo se torna suspeita. Tal preocupacdo de legitimar a fé, anuia a fé. Quaiquer pesquisa histérica sobre o quérigma, qualquer indagagdo sobre 0 Jesus do pasado, quando inspirada por ocupacéo apologética, nao pode deixar de ser estéril e de merecer a reprovagao do crente. O que pdeafé em perigo éacerteza historica que podemos adquirir sobre o que Jesus disse ¢ fez. Uma vez adquirida, somos tentados a invocé-iae nela nos apoiar. A fé auténtica ndo precisa de nossos conhecimentos histér cos, certos ou provaveis. O quérigma traz em si mesmo sua inteligibili- dade: basta que nos seja dirigido para que a possibilidade da fé nos fique garantida, E, portanto, principalmente em nome do quérigma e da fé que Bultmann nega o interesse pelo Jesus histrico. A salvacdo nio vem do saber objetivante, cientifico, como se pudéssemos nos apropriar de Deus, mas s6 da fé. A teologia de Bultmann portanto se define exata- mente como uma teologia do quérigma. Todo acontecimento da revela- go se concentra no quérigma e na decisio de fé no Deus que nos interpela. 4, O quérigma tem a primazia. Mas ¢ preciso acrescentar imediata- mente: com a condigio de que ele seja também submetido a um rigoroso processo de interpretac4o, porque o mundo do Novo Testamento ¢ um universo mitico. Demitizacdo e problema de Jesus se acham, portanto, intimamente ligados. A demitizacdo traz o problema dos dados da lin guagem do Novo Testamento relativamente ao quérigma que se exprime através desses dados, enquanto que o problema do Jesus historico € 0 problema dos dados hist6ricos referentes a Jesus com relaco 20 Cristo confessado na fé como o evento escatolégico da salvagao. 0 mito, no sentido bultmanniano, fala do mundo sobrenatural, ivino, transcendente, nos termos de nosso mundo espacial e temporal: ele descreve a ago de Deus em termos de causalidade hist6rica, cosmo- I6gica, psicol6gica. Bultmann esclarece que entende o mito no sentido que tem na histéria das religides: ¢ mito toda representagao na qual 0 1ndo-eésmico aparece como césmico, o divino aparece como humano, € © préprio Deus aparece como um longinguo espacial. Essa nogao de mito evidentemente nao deve ser confundida com o sentido moderno de pura ideologia, Para Bultmann, fica evidente que o Novo Testamento € um uni- verso mitico, povoado de personagens divinos ou demoniacos, pelo qual transitam forgas misteriosas, dividido em setores espaciais e temporais. Ele descreve 0 Cristo como ser preexistente, como o Filho de Deus, encarnado no seio da Virgem Maria. Quando 0 Novo Testamento fala dos milagres de Jesus, da transfiguracao, da ressurreicao, de Pentecos- FASE DE RADICALIZACAO. 37 tes, recorre & linguagem mitica, Tal modo de falar, explica Bultmann, trai a influéncia do helenismo, do gnosticismo e do judaismo. Devemos celiminar esse modo de falar, como fizeram os racionalistas; mas sobre tudo devemos reinterpretar e reexprimir os relatos evangélicos em ter- mos adaptados ao homem moderno, especialmente nos termos da filoso- fia existencial de Heidegger. A esse respeito o que importa no quérigma séo os elementos relativos a nossa existéncia ¢ a nossa relacéo interpes- soal com Deus. Tudo 0 mais € mito Jesus tem sobretudo um valor indicativo da salvagio que nos vem pela fé. Ele é um grande profeta, mas nao é 0 Salvador: é antes o lugar escolhide por Deus para nos notificar a salvacéo. Dessa forma, o relato da ressurreigéo nao se refere ao evento historico de verdadeira ressur- reigdo corporal, mas declara o sentido do acontecimento histérico da cruz. A cruz significa ojulgamento, acondenacdodo mundo, enquantoa ressurreigao significa a possibilidade de vida auténtica conferida a0 homem pela obediéncia da f&. A ressurreigao faz, portanto, parte do quérigma, nao a titulo de evento histérico, verdadziramente acontecido, como acruz, mas como antincio de nossa salvagao. ‘'Falar da ressurrei- a0 do Cristo, diz Bultmann, poderia ser outra coisa senao exprimir 0 significado da cruz’ A ressurreigao nao diz outra coisa sendo exata- ‘mente isto: Nao ter diante dos olhos a morte de Jesus na cruz como simples morte humana; ela ¢ julgamento de Deus sobre o mundo... A cruz.e a ressurreigao sao uma s6 coisa, porque eles sao juntas um tinico acontecimento césmico, pelo qual o mundo foi julgado ¢ foi-nos dada a possibilidade de vida auténtica... A ressurreicdo de Jesus nio pode ser um milagre base de fé, a partir do qual, aqueles que buscam poderiam acreditar com toda seguranga no Cristo.""" Portanto, 0 ato salvifico de Deus nao passa através da liberdade de Jesus. Deus utiliza a triste aventura do profeta de Nazaré ¢ sua morte na cruz para institui-la como o simbolo eficaz. da salvacio: a intengao de Jesus niio entra em jogo. A salvacdo s6 acontece devido a um evento vertical inclinando-se sobre nossas vidas. Esse evento absoluto foi-nos definitivamente notificado no evento hist6rico de Jesus de Nazar Notificacao que se apresentou primeiramente na pregagao de Jesus, mas que 56 assumiu sua forma definitiva no quérigma apustilivo. Esse qué rigma permanece sempre atual gracas & pregacao da Igreja. O quérigma anuncie-nos 0 mistério de Deus que, na cruz, nos abre os olhos para nossa condigao pecadora, mas ao mesmo tempo nos revela sua graga que perdoa, oferecendo-nos doravante a possibilidade de viver dele © nele. Jesus é, assim, o instrumento de Deus, de certa forma, sem 0 querer, Fora do sentido que Ihe confere o quérigma, a vidae aexisténcia ferrestre de Jesus nio oferecem interesse algum. * 13, R. BULTMANN, “Nouveau Testament et mythologie” in O. LAFFOUCRIERE, org.,R. Bulemann. "interpretation du Nouveau Testament Pati; 1985, pp. 177-178 14, L-MALEVEZ, "Fésus de histo et interpretation du kérigme’” in Nouvelle Revue Théologique 91, (1968) pp. 792-793. Retornaremos b posicso de Bultmann no capitulo {erceira, a fespeito de sua discusséo com Kasemann,e no capitulo quarto, a reepeito da Nova Hermenéutiea” e reus predocessore 38 A EVOLUGAO DA CRITICA NOTA BIBLIOGRAFICA BOUTTIER M.. Du Christ de histoire au Jésus des Evangiles, Pasi, 1969. BULTMANN R., Jésus. Paris 1988: 1D. Das Verhélinis der urchrstichen Christusbotschaft zum historischen Jesus, Heidelberg, 1960: L'interpré- tation du Nouveau Testament, colegio de contribuigdes de R. Bultmann, tradusio de O. LAFFOUCRIERE, org., Pati, 19553 1D. Die Geschichie der synoptischen Tradition, 5.*ed., Gotinga, 1961. FLORKOWSKI J,, La théologie de la fot chez Bultmann, Pati, 1971 GRECHP., “Jesus Christin History and Dogma’*ina New Catholic Commen- tary on Holy Seripture, Londres, 196) pp. 822-837. HOFFMANN I. G. H., Les vies de Jésus et Phistoire de Jésus, Paris, 1947 HOLTZMAN H. J,, Die synoptischen Evangelion. Ihr Ursprung und ihr | geschichilicher Charakter, Leipzig, 1863 KOMMEL W. G., Das Neue Testament. Geschichte der Erforschung seiner Probleme, Munigue, 1958. Tradueio inglesa: The New Testament: The History of the Investigation ofits Problems, Nove Torque, 1970. MALET A.. La pensée de R. Bultmann, Mythos et Logos, Genebra, 1982. MALEVEZ L., “Jesus de Ihistoire et interprétation da kérygme", in Nouvelle revue théologique 91, (1969) pp. 785-808; ID. Le message chrétien et le iythe. La théotogie de R. Bulrmann, Bruxelas, 1954. MARLER., Buitmann et! interprétation du Nouveau Testament,2.8e4., Pati, 1966 NEIL, S., The Interpretation of the New Testament (1861-1961), Nova Torque ‘Toronto, 1966. SCHWEITZER A., Geschichte der LebensJesu-Forschung, Munique, 1906, SLENCZKA R., Gesehicilichkeit und Personsein Jesu Christ. Studlen tur christologischen Problemaik der historischen Jesusfrage, Gotinga, 1967. CAPITULO Il PER{ODO DE REACAO. Era de se esperar. Aé posigdes radicais de Bultmann provocaram vivas reagdes de todos os lados: da esquerda, da direita, do centro, com intensidades no entanto variaveis. Sao numerosos os autores que continuam a depositar nos Evange- Ihos uma confianca inabalavel, Por exemplo, exegetas ingleses, como ‘Taylore Dodd, permanecem convencidos de que é possivel atingir Jesus € ouvir sua mensagem. Taylor, por sua vez, julga inadmissivel essa espécie de “ paralisia intelectual” que acomete alguns quando se trata do Jesus da historia. Os catdlicos, de modo geral, acham que a tradicao sinética é substancialmente fiel & realidade histérica de Jesus, embora reconhecendo que os Evangelhas sia testemumhos de fé « que a Tgrejne ‘os evangelistas interpretaram e atualizaram os éados primitivos. No mundo protestante, a reacdo contra Bultmann se deu em trés vagas sucessivas: a primeira, representada por Jeremias, Kasemann € Bornkamm; a segunda, pela "Nova Hermenéutica’’,-com Robinson, Fuchs, Ebeling; a terceira, finalmente, no campo da cristologia, pela atual getacdo de tedlogos tais como Pannenberg e Moltmann. 1. JOACHIM JEREMIAS Os conservadores protestantes, como Stauffer, Kiinneth, Jeremias, am Bultmann de haver praticado um trabalho de destruigio, mi- nando a fé crista. Nessa primeira fase, foi sem divida J. JEREMLAS quem mais vigorosamente alertou a critica contra os excessos de Bult- 0 A EVOLUCAO DA CRITICA mann. Seu opiisculo sobre o problema hist6rico de Jesus, aparecido em 1960," € como que o programa da ala direita na discussio aberta por Bultmann sobre o Jesus historico e o Cristo do quérigma. Os trabalhos de Jeremias sobre a lingua aramaica e o meio judaico, Sobre as parébolas e as palavras da instituicdo eucaristica, manifestam um mestre da critica literdria, especialmente da critica das formas, cujos melhores elementos assimilou." Jeremias reconhece que Bultmann teve ‘omérito de chamar a atencao para a importincia do quérigma e para a gratuidade da salvagdo. Acusa-o, no entanto, por haver esvaziado do ctistianismo o fato primordial que é a Encarnacéo e haver substituido Jesus por Paulo. Bultmann depreciou a iniciativa do Deus salvador e substituiu a pessoa de Jesus pela idéia do Cristo, voltando dessa forma a uma espécie de docetismo. Jeremias é de opiniéo que devemos voltar a0 Jesus da historia e da pregacao, e isso para ficarmos fiéis As fontes ¢ a0 proprio quérigma. “Primeiramente so as fontes que impedem de limitarmo-nos ao guérigma da Igreja primitiva, e sem cessar nos obrigam a colocar 0 problema do Jesus histérico e de sua mensagem. Cada versiculo do Evangetho nos atesta: realmente, a fonte do cristianismo no é nem quérigma nem a experiéncia pascal dos discfpulos, nem um Cristo ideal; a entrada em cena do homem Jesus de Nazaré, ctucificado sob Péncio Pilatos ¢ sua mensagem, cis a verdadeira fonte do cristianismo.""? Sem davida nenhuma, as pesquisas sobre o Jesus da histéria sao empreendi- ‘meato complexo, mas permanecem possiveis gracas ao instrumental da critica moderna. Conhecemos a lingua de Jesus, 0 meio cultural e relizioso de seu tempo. Além disso, gragas a Escola das formas, dispo- ‘mos de método preciso para decifrar 0s textos e estabelecer sua génese. Devemos voltar 20 Jesus da histéria, no apenas para sermos figis as fontes, mas também ao proprio quérigma que proclama haver Deus salvo @ humanidade por um evento da histéria. Com efeito, a afirmagio central do quérigma: “‘morto por nossos pecados segundo as Escritu- ras”, € a interpretarao de um acontecimento histérico. Ora, importa “saber se essa interpretacio da morte de Jesus na cruz foi aplicada arbitrariamente aos fatos ou, pelo contrario, se nos préprios eventos existe algo que dé margem a essa interpretagao. Com outras palavras, devemos nos perguntar: seré que Jesus falou de sua morte iminente, ¢ ue sentido Ihe deu?""* A mesma pergunta se faz a respeito da ressurrci- $40. O Cristo ressuscitado, que os apéstolos anunciam e a comunidade invoca, tem tragos fundamentais bem conhecidos dos apdstolos: os 1.1. JEREMIAS, Das Problem des historischen Jesus, 1960. Traducto francesa: Le rebleme historique de Jésus, Paris, 1968. Ns eitamos conforme este fetta 2.1 JERBMIAS, Théologie du Noweau Testament, 1: La prédication de Jesus, Pats, 197 (Teologia do Novo Testamento, I: A pregacao de Jesus, S80 Paulo, 1977). Les Paraboles de Fésus, Paris, 1962 (As Pardbolas de lesur, Sia Paulo, 1983); La Deriore Gene. Les Paroles de Jésus, Pais, 1972; Le message central da Nouveau Teviamens, Pars, 1966 (4 mensagem central do Novo Testamento, Sao Paulo, 1977) 3.4, JEREMIAS, Te probleme historique de és, pp. 36-12 4 thie, pp. 36-43. PER{ODO DE REACAO 4 tragos que caracterizam a fisionomia e o ser do Senhor terrestre, As afirmacdes do quérigma originam-se em Jesus e foram esclarecidas pela catequese primitiva, mas jamais existiu um quérigma sem Jesus. Nossa pesquisa sobre Jesus deve se apresentar como resposta verdade da Encarnagéo. “A Encarnagao implica que a historia de Jesus se presta ao exame hist6rico e & critica hist6rica; bem mais, ela o exige. Precisamos saber quem era o Jesus da hist6ria ¢ qual foi sua pregacao. [Nao temos o direito de afastar 0 esciindalo da Encarnagéo... A Encarna- ‘sao € 0 ato pelo qual Deus se entrega, e isso ado podemos deixar de aceitar.""* No final de sua exposicio, Jeremias ressalta que a revelagao esti ligada & Palavra feita carne, a Jesus e sua mensagem, enquanto a pregacao apostdlica representaria de algum modo a resposta da Igreja revelagdo, mas nao seria a revelagao. Em suma, aos olhos de Jeremias, 0 empreendimento de Bultmann ye a ser desistoricizagdo do Novo Testamento, negacdo prética do ‘ardter hist6rico da revelacdo, sublinhado de modo constante e geral na Escritura. Ele acusa Bultmann de nao levar a sério o Verbum caro Factum com todas as suas implicagdes. Praticameate, Jesus fica reduzido ‘2 simples fato de existéncia, sem contetido. Néo é mais uma pessoa verdadeira inserida na trama da hist6ria, cujas palavras e atos tém alcance decisive. O ponto mais vulneravel da posicéo de Jeremias reduzir a sevelagio & imagem e & mensagem primitivas de Jesus de Nazaré, independentemente da interpretado apostélica. Enquanto Bultmann reduz a revelagdo somente ao quérigma, Jeremias a reduz somente ao Jesus da histéria. O testemunho cede o lugar & historia. II, ERNST KASEMANN Mas foi no proprio campo dos discépulos de Bultmann que acontro- vérsia sobre o Jesus da hist6tia se fez mais viva. Nao se trata para.les de voltar ao tipo das vidas de Jesus da Bscola liberal, mas de encontraruma via média entre a posig&o do historicismo exagerado do século XIX e a posi¢ao radical de Bultmann. Eles se interrogam a respeito da legitimi- dade e 0 sentido de uma pesquisa sobre Jesus de Nazaré, sua vida, sua mensagem. © problema é colocado pelo proprio quérigma que nos remete a Jesus. Ora, esse Jesus serd um enigma ou uma pessoa histé- rica? Eles se opéem auma separagao e até a.uma antitese entre quérigma ehistorica. Esto antes & procura de uma verdadeira continuidade entre © Jesus da historia ¢ o Cristo dos Evangelhos. Este termo "‘continui- dade” acompanhado de diferentes qualificativos, segundo as tendéncias de cada um, é sem divida o que melhor caracteriza a exegese do apés-guerra. Nés nos deteremos mais longamente na posico de KA- SEMANN, porgue foi ele quem abriu o debate na geracao dos discipulos de Bultmann ¢ também por abordar a maioria dos problemas que esta mos estudando, Kiisemann€é historiador e exegeta do Novo Testamento, Seu centro, 5. Ibid. pp. 36-42. a A BVOLUCAO DA CRITICA de interesse éa questio da relacdo entre hist6riae verdade. A indagagio de Kiisemann se desenrola contra o acento unilateral de Bultmann a respeito do quérigma ¢ da Igreja primitiva em detrimento do Jesus terrestre, sobre 2 Péscoa, em detrimento dos acontecimentos que & resederam, sobre a fides qua creditur em detrimento da ides quae creditur.® 1. Numa conferéncia sobre o problema do Jesus hist6rico,” promun- cciada em Marburgo, em 1953, e que representa uma guinada no mundo da critica protestante, Kasemann declara que nao pode, de forma al- guma, subscrever as posi¢des radicais de seu mestre. Este, com efeito, ‘io mostra nenhum interesse pela existéncia concreta do Jesus da historia: contenta-se apenas com o fato brato dessa existéncia, Separar desse modo 0 Cristo do quérigma do Jesus da hist6ria, écorrero risco de transformar o Cristo em mito, é reduzi-lo a ideologia sem forma nem corpo, A verdade € que a Igreja jamais consentiu em deixar 0 mito ocupar o lugar da histéria, nem um ser celeste substituir Jesus de Nazaré. A esse respeito & significativo que "*somente os Evangelhos apresentam a mensagem do Cristo no quadro da histéria da vida terres} tre de Jesus”’." A oposicao a Escola liberal nao é motivo para contestar aguilo que os evangelistas mantém resohitamente, a saber, que a vida historica de Jesus tem importancia decisiva para a fé. Kasemann mostra como a Igreja primitiva sempre combateu dois excessos: “Ela sabe que nao se pode compreender o Jesus terrestre a nao sera partir da Pascoa. que inversamente nao se pode alcancar adequadamente a significagio da Péscoa fazendo-se abstracdo do Jesus terrestre.? Mais adiante, ele precisa: ‘Nao podemos suprimir a identidade do Senhor elevado como Senhor terrestre sem cair no docetismo e sem nos privar da possibilidade de operar a distingao entre a fé da Péscoa da comunidade ¢ um mito. Inversamente, nem nossas fontes nem os conhecimentos adquitidos anteriormente nos autorizam a substituir 0 Jesus hist6rico pelo Senhor elevado"”."° De fato, Marcos ¢ Mateus, integrando a histéria no quérigma, sublinharam a continuidade que existe entre Jesus e 0 Cristo, e impedi- ram & figura historica de Jesus de desaparecer na abstracio. Néo é estranho que até o ‘“Evangelho de Jodo fale da presenga permanente do Senhor elevado, precisamente no quadro de uma histéria do Jesus 6. P. GISEL, “Frnst Ksemann ou la solidarité conflctuelle de bistoire et de Ja vérts™ In Budes théologiques et reliseuses 31, (976) n.° 1, pp. 21:37; Werke et Hobe. La ‘héolopie dans la moderncé: Fst Kasemann, Parise Genebva, 1977. pp. 2938. 7. E. KASEMANN, "Das Problem des historischen Jesus" in Zeitschr( fur Theologie und Kirche 51 (1954) pp. 125-153. Tradugdo francess: "Le probleme du Jésus histor que""in Exsate exégeiques, Pars, 972, pp. 145-173. Tadugho inglesa: “The Problem of tae Historical Jebus" in Eseays on Nev Testament Themes, Londres, 1964. Ctamos Conferme a traduean faces. 8. E, KASEMANN, “Le probleme du Jésus historique”, p. 151 9, Ibid p. 154, 10. tidy p 162. PERIODO DE REACAO B terrestre'"?!! Lucas, finalmente, ressalta mais que 0s outros 0 itinerario terrestre de Jesus, tornando-se assim ‘‘o primeiro historiador cristdo.. Seu Evangelho é, na verdade, a primeira vida de Jesus... A historia de Jesus torna-sc algo absolutamente passado, verdadeiramente uma His- toria, oinitium christianismi’’, a0 qual sucede ¢ histéria dos apéstolos. © evento da salvagio ¢ insepardvel deste homem de Nazaré que viveu na Palestina numa época determinada, Evidencia-se assim a gra- tuidade da salvagao como ato de Deus existente antes de nds. “Foi por haver feito a experiéncia de Jesus como Kairos que a cristandade primi- tiva escreven os Evangelhos, e depois da Péscoa, simplesmente néo abandonou a historia de Jesus.""!?O evento pascal é fundamento para 0 quérigma e para afé, mas nao €o primeiro nem o tnico evento. A propria fé pascal confessa que Deus agiu antes que nos tomnassemos crentes e “0 ‘testa incluindo em sua pregagao a historia terrestre de Jesus” Uma pesquisa sobre Jesus ¢ teologicamente legitima, mais ainda, ¢ possivel utilizando-se 0 priprio método da Escola las formas, porque numerosos clementos da tradicdo sindtica sao incontestavelmente au- ténticos. Pode ser que Jesus nao tenha declarado abertamente ser 0 Messias, mas seu modo de agir e de falar, sua atitude perante os profetas €.as instituigdes (leis, sébado, ritos) constituem uma cristologia “impli cita”” que 0 quérigma tornou “explicita’”. Devemos, portanto, empreender uma pesquisa positiva sobre 0s Evangelhos. Sua finalidade sera verificar a continuidade real existente entre a pregacio de Jesus ¢ o quérigma apostdlico. "“A questo do Jesus hist6rico é legitimamente a da continuidade do Evangelho na desconti- nuidade dos momentos temporais ¢ na variedade do quérigma.’”'? Esse texto condensa o pensamento de Kasemann, tal como foi expresso em sua conferéncia de 1953. 2. Ele voltou a ofensiva num artigo aparecido em 1964. "Esse texto ‘ndio modifica suas teses essenciais, mas formula 0 que parece ser sua posigao definitiva. Tal posigao situa-se a igual distancia das de Jeremias, ¢ Bultmann, "” aproximando-se da de Ebeling. Numa primeira parte, Kasemann indigna-se contra Jeremias, atacando-o com furor. Julga-o exageradamente otimista ao pretender ser possivel descobrir as ipsissima verba Jesu. Jeremias afirma que 1 bid.. p. 160. 12 bid. pp. 157-138, 13. bid. p. 159. 14 id. p. 162 15. bid p. 172 iH 16, E. KASEMANN, “Sackgassen im Streit um den historischen Jesus" in Bxegetische Versuche und Besinmungen, Il, Gottingen, 1985, pp. 3-38. Traducbo ingles" Blind Alleys inthe Jesus of History Controversy” in Nev Testament Questions af Today. Londres, 1963, pp. 22-68. Citamos da edo ingles. 17, Kisemarin responds a estes dols textos: J. JEREMIAS, Le probleme historique de ‘Tests, Pati, 1958, R, BULTMANN, Das Verhdlins der welristlichen Christasbots ‘haf cum historischen Jesus, Heidelberg, 1960. “4 AEVOLUCAO DA CRITICA Jesus se encontra na origem da f crista; mas o verdadciro problema é saber como e em que medida ele se encontra na origem do cristianismo. Finalmente, Jeremias torna a fé unilateralmente dependente demais da pesquisa histérica, esperando oferecer & nossa adoracio a imagem au- éntica de Jesus. Kasemann suspeita que Jeremias esteja querendo voltar & concepgao da Leben-Jesw-Forschung. A fé, observa Kise- mann, & resposta a0 quérigma, ¢ nao as descobertas da ciéncia. Ora, na perspectiva de Jeremias, tem-se a impressio de que a histdria toma 0 lugar do quérigma apostolico. Na segunda parte, Kisemann passa ao exame da posi¢do de Bult- mann, a fim de incité-lo a autocritica. Para Kasemann, o contetido da discussao ultrapassa o de confronto pessoal: prende-se a propria com- preenséo do cristianismo primitivo. Ris algumas de suas reflexdes: ) Bultmann, comega dele, coloca premissas falsas quando ope “continuidade material’” a ““continuidade histérica”, Jesus da historia 20 Cristo do quérigma. * A continuidade, com efeito, nao poderia ser ura ‘‘contigilidade”” temporal, Toda continuidade no campo da histéria implica certas mudancas, ¢ até rupturas ou novas interpretagbes! sem 0 ue seria vao falar de historia e de processo hist6rico. Falar de historia € ‘sempre falar de continuidade no seio de certa descontinuidade, ineronte & propria historia. E, portanto, excessivo concluir-se por esse motivo ‘que exista descontinuidade “radical”. ° ») Bultmann, na trilha de Herbert Braun, pretende que a autocom reensio do crente (a saber, o sentido de sua condigéo nova, dada pela 16) € o elemento estével, permanente que liga Evangelho e quérigma, enquanto a cristologia € 0 elemento variavel. O fator de unidade e de coordenacao do Novo Testamento seria, portanto, de carter antropo- Jogico, enquanto as diversas cristologias apenas traduziriam a diversi- dade da linguagem e das situacdes eclesiais. Tal posigéo, replica Kase- mann, é falsa. Com efeito, nada é mais varidvel, de uma geragao para outra, do que a autocompreensio de si mesmo. Poder-se-ia sustentar que os filhos seguem exatamente as pegadas dos pais, enquanto as circunstiincias vao mudando completamente? Néo, continuidade e des- continuidade se acham em relacao dialética. O tnico elemento estavel, permanente do cristianismo, é a referéncia e a pertenca ao Cristo. Naa se poderia, portanto, reduzir a cristologia a quantidade “variével”. A A “Nova Pes- quisa”, sublinha ainda Robinson, ‘no pode sustentar a verdade do quérigma, segundo o qual essa pessoa viveu realmente da presenga de Deus e me abriu efetivamente o futuro de Deus em minha existéncia istorica. Pode, porém, verificar se essa inteligéncia querigmatica da existéncia de Jesus corresponde & compreenséo da existéncia implici- tamente contida na histéria de Jesus. Pois podemos recompor essa compreenséo da existéncia de Jesus por meio da historiografia mo- derna’’. O problema “ consiste em se tirar proveito das fontes acessiveis do método histdrico atual de modo que penetre até a razio pela qual Jesus agiu, até sua concepgao da existéncia, a fim de comparé-la com aquela contida no quérigma”’." Desa forma, apés haver comparado alguns fragmentos da pregagéo de Jesus (especialmente nas pardbolas) com o quérigma de Paulo, Robinson descobre, em ambos 08 casos, a ‘mesma dialética, a mesma compreensio de si, a saber, a vida na morte,a gloria na cruz, a exaltagao na humilhacdo. Uma vez verificado assim que ‘a concepeao da existéncia proposta por Jesus tal como ele é conhecido pela historia é fiel & concepeao da existéncia contida no quérigma, entéo © sentido da existéncia humana que nos € notificado pelo quérigma, se torna para nds norma de inteligéncia da existéncia, Mas surge entio a pergunta: se podemos dialogar com o “Jesus historico”, seja pelas vias do quérigma, seja pelas da histéria, por que 0 quérigma nao basta? Precisamente porque sao nmumerosos os quérigmas existentes: gnéstico, doceta, paulino. O esforgo empregado pela pes- ‘quisa tem por finalidade discernir entre os diversos quérigmas aquele que nos permite verdadeiro encontro e verdadero diélogo com Jesus. Portanto, 0 Jesus conhecido pela hist6ria nao funda o quérigma, mas 0 verifica. Enquanto Kasemann busca entre Jesus ¢ 0 quérigma uma continuidade ldgica e teoldgica (relagao do implicito com 0 explicito), Robinson busca de preferéncia uma continuidade existencial. A obra de Robinson, por mais preocupada que esteja em estabele- cor a fidelidade do quérigma ao ‘Jesus histérico”, deixa o leitor cético sobre.a possibilidade de descobrir a auténtica pessoa de Jesus ¢ de ouvir sua auténtica mensagem. De fato, em artigo posterior, Robinson jé nao acontua tio fortemente 0 acesso 2 Jesus por meio de uma historiografia de tipo existencial, mas o paralelismo, bem mais a unidade existente centre a mensagem de Jesus (ditos e gestos) e 0 quérigma primitivo. I, OS PREDECESSORES DA “NOVA HERMENEUTICA” A“*Nova Hermenéutica” prende-se a uma corrente de pensamento que procede de Schleiermacher. 3. did, p86. ibid p38. 5, JAMES M. ROBINSON, "The Recent Debate on the New Quest” inJournal of Bible ‘and Religion 30, (1962) pp. 198-208. Esse texto constitul uma das tr contribuicbes de ‘Um simpésio sobre a obra de Robinson. Os dois outees textos sao de M.S, ENSLIN, ‘Tae Meaning of tie Historical Jesus for Faith ia JBR 30, (1960) pp. 219-223; ede S. M. OGDEN, "Bultmann and the New Quest" in JBR 3¢, (1962) pp. 209-218. 2 ABVOLUCAO Da cRITICA A hermenéutica é a ciéncia da interpretagao dos textos que perten- cem a uma época longingua e diferente da nossa. Quando leio um Tomance que acabou de ser publicado, eu o compreendo imediatamente Porque a lingua e o meio do autor so conaturais para mim: pertencemos ‘a0 mesmo universo. O mesmo nao se da quando se trata de um texto babildnico. As dificuldades encontradas nesse caso ndo se referem apenas a traducdo, porém mais ainda ao sentido intimo das palavras ¢ a realidade do meio cultural que elas veiculam ¢ velam ao mesmo tempo. Por isso que, hd muito tempo, a exegese elaborou certo nimero de regras de interpretacdo, sempre validas. Bultmann reduz a cinco essas regras: a) deve-se analisar uma obra literdria de acordo com o estilo e a estrutura do conjunto, onde o todo esclarece as partes eas partes todo; 'b) nos textos escritos em lingua estrangeira, a gramatica ¢ a sintaxe merecem atenco especial; c) cada palavra tem o sentido de que ela se Teveste para 0 autor: sentido que se descobre pela andlise da obra inteira; d) compreendemos tanto mais uma obra, quanto mais conhe- cermos a personalidade e a cultura do seu autor; e) todo documento é 0 reflexo de seu meio ¢ de sua época. Por conseguinte, quanto melhor se conhecer a ambos, melhor se compreende o documento. Mesmo apés haver aplicado rigorosamente essas regras, nio pode- famos pretender que, em todos os casos, o texto se torne transparente para n6s. Tudo depende, com efeito, daquilo que entendemos por “compreender"” um texto. No comeco do século XVIII, quando o método das ciéncias exatas dominava qualquer forma de saber, pensava-se poder aplicar & historia e as letras os mesmos prinefpios de pesquisa, correntes no mundo das ciéncias naturais. Dessa forma nao haveria diferenga, ao nivel da objetividade e de certeza dos resultados, entrea andlise quimica de uma substancia e a interpretagao de um texto de Homero ou de Plato. Questo de método. 1, O primeiro a reagir contra esse despotismo das ciéncias naturais foi SCHLEIERMACHER que, desde 0 comeco do século XIX, em suas, ligoes sobre a hermenéutica, demonstrou que a interpretagéo de um texto nfo poderia fazer abstragio do leitor, que aborda o texto ativa- mente, com sua formacso e conhecimentos. Compreender um texto consiste em passar do texto ao autor, fazentto, 20 inverso, 0 itinerario do autor até o texto, a fim de descobrir sua intuicdo. Interpretagao e ato criador se correspondem como dois momentos anilogos. O espirito do leitor, por uma espécie de “‘adivinhagao", capta no momento da inter- retagao o que se deu no momento criador. A teoria “psicol6gica”” de ‘Schleiermacher tenta situar-se no interior do proceso criadlor do autor ara em segnida progredir no sentido da compreensao de sua obra ¢, Finalmente, da unidade de sua vida e do conjunto de suas obras. Nessa 6. P. GRECH, “Le Nuova Eemencutica: Fuchs ed Fbeting" in ‘Ait della XXI Sottimana biblica dell’Associazione biblic italiana, Brescia, 1872, pp 35-69:R. BULTMANN, “Das Problem der Hermeneutik’ in Glauben und Verstcher I, 198, pp. 212-213, segesied Ermeneutic, ‘ANOVA HERMENEUTICA” 53 perspectiva, nfo se poderia conceber um texto cujo sentido fosse inde- pendente do acontecimento de sua compreensio, nem um texto cuja Vida evoluisse independentemente de seu autor, e como que desligada dele, Um circulo hermenéutico se estabelece entre 0 leitor eo autor, de tal forma que 0 acesso a0 texto e ao autor passa necessariamente pelo sujeito confrontado com 0 texto e que o decifra ativamente, com 0 concurso de tudo 0 que é ¢ tudo 0 que sabe.’ 2. Wilhelm DILTHEY (1833-1911) consagrou essa posi¢ao de Schleiermacher, distinguindo explicitamente ciéncias da natureza (Na- turwissenschafien) ¢ ciéncias do espirito (Geisieswissenschaften), isto 6, as disciplinas que exprimem a vida interior do homem, como a histéria ea literatura. Nas ciéncias naturais, trata-se de explicar, enquanto nas fhumanas trata-se de comungar com uma experiéncia e compreendé-a. Dilthey denuncia a inconsisténcia epistemoldgica da escola alema da objetividade histérica absoluta. Uma abordagem dos textos que preten- desse excluir qualquer contribuigio ou interferéncia do sujeito (isto é, do leitor), seria simplesmente ilusoria e ut6pica. As categorias validas para as ciéncias naturais j4 néo 0 sao quando se penetra no mundo terior do homem. De modo particular porque as ciéncias naturais ignoram a dimenséo da historicidade. Ora, a temporalidade é um trago congénito da experiéncia humana: no se poderia compreender 0 pre- sente a nao ser no horizonte do passado e do futuro. A finalidade da hermengutica, segundo Dilthey, seria portanto descobrir um método objetivamente vilido para interpretar a vida profunda do homem, em sua totalidade de experiéncia vivida. : Hl Essa via de acesso aexperiéncia de vutra pessoa nao pode ser senio fa da experiéncia, pois a vida possui uma riqueza desconhecida pelo processo racional sozinho. Somente a vida tem acesso a vida. Para se compreender outra pessoa, é preciso de algum modo, por afinidade comunhio, transferir-se para o coracio dessa pessoa ecoincidir com sua propria experiéncia. Transferéncia que s6 € possivel em virtude de uma pré-compreensao, isto €, de uma semethanca de experincia vital exis- tente entre o leitor ¢ 0 autor. As obras literarias séo para Dilthey o lugar privilegiado da hermenéutica porque, pela medizeéo da Tinguagem, elas manifestam nao apenas a experiéncia ¢ a psicologia do autor, mas também todo set universo, a saber, a realidade hist6rico-social que se exprime nelas. Pode-se criticar a distingao estabelecida por Dilthey entre ciéncias naturais ¢ ciéncias humanas, pois em todo ato de conhecimento, ‘encontram-se em proporgdes Variveis, o explicar e o compreender. O TR. E. PALMER, Hermeneuttes. Interpretation Theory m Schleiermacher, Dilhey Heidegger and Gadamer, Evanston, 190, pp. 8497. Reseoha sobre a historia da hhermenéutica, em F, MUSSNER, "Geschichte der Hermeneutk von Schleiermachet Dis zur Gegenwart” in Handbuch der Dogmengeschichte, Eriburgo i. Br. 1970, Trad (ho francesa: “Histoire de nerméneutique™ in Hisiore des dogmes, Pars, 1972 8. RE. PALMER, Hermencuiles. Interpretation Theory mn Schieiermacher. Dilthey, Heidegger and Gadamer. pp. 9.123 54 A EVOLUCAO DA CRITICA fenémeno hist6rico, por exemplo, enquanto “fato™, entra no proceso tivo; enquanto “‘significante™, pertence & compreensio. O mo- vimento hermenéutico se desdobra nas duas direcdes. Pode-se igual- mente duvidar que seja necessério para o leitor recriar a experiéncia do autor a fim de compreender sua obra. Certo € que essas distingoes jé estio ultrapassadas. E, sobretudo, Dilthey contribuiu para alargar o horizonte da hermenéutica situando o problema da interpretagao no interior das ciéncias humanas. Daqui por diante néo € mais possivel, para apreciar 2 autenticidade histOrica dos Evangelhos, aplicar-Ihes 08 cdnones do positivisme histérico. 3. Com M. HEIDEGGER (Sein und Zeit, 1927), a hermenéutica moderna adquire influéneia mais decisiva ainda porque, por R. BULT- MANN, ela penetra no campo da critica neotestamentaria. Bultmann, com efeito, confessa haver encontrado na filosofia de Heidegger para digma vélido para tratar corretamente da exisiéneia humana e, por conseguinte, da existéncia do crente. ____ Aquestiio que a mensagem do Novo Testamento propée ao homem € a de decisio existencial que ele deve tomar diante de Deus: crer ou recusar a fé, Tal decisio € 0 alo supremo da liberdade do homem enfrentando-se com Deus em sua palavra: um ato que determina o sentido que cada homem dé a propria existéncia. AS afinidades sao visiveis entre a filosolia de Heidegger e esse ponto nevrélgico da mensa- gem do Novo Testamento. Heidegger, com efeito, nos diz que 0 pro- blemada existéncia ¢o problema central da filosofia e que o homem é um sujeito que veio & existéncia e se projeta para futuro pelas decisoes que atenteiam sua liberdade: deciséo por uma vida auténtica, aberta ao futuro pelo exercicio de uma liberdade continuamente renovada e sem cessar criadora, ou deciséo por uma vida inauténtica, que significa desisténcia ¢ naufrégio da liberdade. O homem acha-se assim constan- temen‘e confrontado com uma escolha que engaja seu futuro. .___ Ahist6ria, portanto, serd mais verdadeira & medida que penetrar no Amagodessas decisdes (ou possibilidades de existéncia escolhidas entre tantas outras) que pro-jetaram o homem para 0 futuro e tornaram sua existéncia auténtica ou inauténtica. Interrogar a historia nao significa ois recolher os acontecimentos de um passado objetivamente consti- tufdo, mas consiste em nos perguntar como o homem de outra época compreendeu sua existéncia, no seio de suas decisdes, e como por nossa vez podemos chegar & compreenséo de nossa propria existéncia. Inter- Togar um texto, sobretudo biblico, significa interrogar-se sobre o sentido que ele dé da existéncia e sobre o sentido que oferece @ existéncia. Esta devia ser, aliés, a Gnica indagacao a ser feita a um documento: como conceber a cxisténcia. Nao acontece diferentemente com o Novo Tes- tamento. __ Umtexto, porém, néo poderia constituir sentido para acxisténcia a ‘do ser que de antemao, pelo menos se suspeite algo sobre seu alcance existencial. Essa Vorverstindnis ou pré-compreensao nao & precon- A “NOVA HERMENBUTICA 55 ceilo, mas esse conhecimento prévio, elementer ¢ imperfeito de todo leitor ao interrogar um texto. Como compreender a amizade, o amor, 0 sofrimento, a solidao, se néo se possui nenhuma experiéncia dessas tealidades? Sem uma relagio com a vida vivida, como compreender a vida expressa pelo texto? Essa primeira compreensiio, sem diivida, seri corrigida e enriquecida pelo contato com o texto, embora nunca chegue a ser definitiva. Acrescentemos que, para ser verdadeira, a compreen- so deve finalizar numa decisio existencial. F. nz filosofia de Heidegger que Bultmann vai buscar essa inteligéncia prévie da existéncia que sera fem seguida esclarecida pela palavra de Deus. Portanto, fazer trabalho de hermenéutica significa interrogar um texto sobre o que diz a respeito da existéncia e pura a existéncia, sendo cesses dois pontos de vista complementares e necessérios, porque um texto nao pode ser verdadeiramente significante para a existéncia sem pré-compreensio da existéncia Bultmann adota também a linguagem de Heidegger para formular seus proprios princfpios exegéticos ¢ teol6gicos. Temos assim a inter- pretacio existencial da Escritura. O Novo Testamento pode ser interro- ado pelo leitor de diferentes pontos de vista: historico, psicol6gi teol6gico. Mas a Igreja nos diz que o tinico pon‘o de vista verdadel aqucle que atinge a inteng’o profunda da Escritura é 0 que nos conduz & decisio existencial pedida pelo Evangelho. Initil interrogar 0 Novo Testamento sobre questées que Ihe sao estranhas. © que a Palavra de Deus, no Novo Testamento, nos desvenda é estrutura de nosso ser, estirado entre dois modos de existéncia contradi trios: a existéncia inauténtica do homem pecador, desligado de Deus, € a existéncia anténtica do homem salvo pela graca. O que a filosofia nos mostra nas categorias existenciais constitutivas de nosso ser, adquire consisténcia na mensagem que o evento do Crisio encerra para nos. A tarefa do exegeta consiste em desembocar no tinico problema que tem real importancia, porque nos diz respeito ainda hoje, a saber, a com- preensio de nossa existéncia confrontada com a Palavra de Deus. Portanto, se o Novo Testamento nao fala de tudo, mas apenas do modo auténtico de compreender nossa existéncia, segue-se que a Formkritik precisa ser acompanhada de uma Sachkritik capaz de discer- nirno material oferecido pelo Novo Testamento, os tnicos elementos de alcance existencial. F aqui que intervém a demitizacéo, que nio passa de um aspecto da hermenéutica geral de Bultmann e de um meio pratico para realizar uma interpretagdo existencial da Eseritura. Demitizar nao significa afastar o elemento mitico, a maneira dos racionalistas de outrora, mas interpreté-lo e traduzi-lo numa linguagem acessivel a geragao da técnica do séoulo XX. A linguagem mitica do Novo Testamento provém de diversas fontes: semiticas, helenisticas, gnésticas, Devem ser traduzidas em categorias existenciais, a fim de que ‘0 Novo Testamento conduza o homem & opcao decisiva reclamada pelo Evangelho, hoje como nas origens da Igreja. O evento da salvagio acontece quando, em resposta ao apelo de Deus, o homem se decide 56 AEVOLUCAO DA CRITICA passar da existéncia inauténtica do pecado (condigio na qual ele quer decidir seu préprio futuro e declara-se mestre de sua existéncia) para a existéncia auténtica da fe, confessando o evento da salvagao em Jesus Cristo. Esse ato de fé & um salto no escuro, sem outro fundamentoa nao ser ele proprio: de nada the servem os argumentos de histéria ou de Tazio. E dessa forma que a pré-compreensdo da existéncia proposta por Heidegger dialogando com o Novo Testamento, conduz, na fée pela fe, 4 compreensao da existéncia auténtica. 4, Enquanto Bultmann desenvotve essas idéias a partir de Sein und Zeit, HEIDEGGER prossegue suas reflexdes, todas centralizadas, a partir de entao, na natureza da linguagem (unterwegs zur Spracke, 1959), Ora, 08 criadores da “Nova Hermenéutica” se dizem tributarios sobretudo do Heidegger desse segundo perfodo, sem por isso renunciat 4 interpretagao existencial de Bultmann. No pensamento do segundo Heidegger, a linguagem & 0 fato pri- mordial da existéncia humana, a experiéncia primeira que nasce do Contato com 0 ser, Tomada nesse sentido, a linguagem no é primeira. mente a expressio de idéias concebidas pelo espitito, depois traduzidas em palavras: isso ja é a linguagem em estado segundo. A linguagem a esséncia mesma do homem, enquanto ele é comunicagao com 0 ser € esposta ao apelo do ser. O homem & como que o alto-falante da vou silenciosa do ser, ¢ ele s6 € verdadeiramente homem quando desempe- tha essa fungio. O homem nasce da linguagem e dela vive. £ menos 0 homem quem fala do que a linguagem que fala, Existe uma linguagem auténtica e outra inauténtica que ndo passa de repetigao ou tagarelice. A linguagem auténtica é aquela que procede do encontro com o ser. Assim sendo, o poeta é o criador da linguagem, pols 60 pastor do ser: aquele que o acolhe, o recolhe e o torna presente A respoito da linguagem auténtica, dois pontos devem ser notados, Primeiramente que a linguagem é sempre mais rica do que as palavras que utliza, porgue o ser que se revela na linguagem esta prenhe de Tiqueza que 86 parcialmente ¢ expressa através das palavras. Em se- fuida, que a linguagem tem por finalidade provocar no ouvinte expe. ‘éncia andloga a que foi vivida por aquele que fala. Assim, todo gecta {raz em si uma intui¢éo que seus versos s6 traduzem impetfeitamente, Compreendé-lo é tentar descobrir essa intuicéo primordial que habita o poeta, a fim de comungar da sua experiéncia original. 5.G. GADAMER, em Wahrheit und Methode, 1960, nao partilha essa posigio, que é também a de Schleiermacher e de Dilthey. A final dade da hermenéutica, a seus olhos, nao € compreender o autor, mas o texto. Oque importa antes de tudo nao é aguele que diz as coisas, mas de fato o que é dito. A compreenséo nao é comunhiio misteriosa das almas, ‘mas procura do sentido proposto pelo texto. Uma vez redigido, o texto emancipa-se de scu autor, adquire personalidade ¢ vida propria: ade um Ssujeito que € interrogado, mas que por sua vez interroga quem o inter ANOVA HERMENEUTICA” 0 preta. O sentido de um texto no é, pots, primeiramente, o que 0 autor queria dizer, mas 0 que 0 texto diz ao leitor hic et nunc. Conseqiiente- mente, um texto nunca encontrov uma nterpretagio definitive, poraue sendo lido ¢ interpretado novamente por cada geracdo, é suscetivel receber indefinidamente acréscimo de sentido. Ill. E. FUCHS E G. EBELING Todos os elementos que acabamos de descrever exerecram sua influéncia em Fuchs e Ebeling, diretamente ou como catalisadores. Fuchs nasceu em 1903, Ebeling em 1912. Ambos professores na Universidade de Marburgo concordaram sobre certo nimero de pontos. "ej sto considerados como os pas da "Nova Hermenéutica”. Mesmo que os tabalhos de Ricoeur, Pannenberg, Lapointe consituam uma utica ainda mais recente, o termo de "Nova Hermenéuti tums esc este om gs ESS sentada por Fuchs, Ebeling aos quais se devem associar os nomes de esters Bre o i lenis Me Botnet 1111 ee “Nova Hermenéutica”” ndo € novo método de exegese ou wa et re ea porque sua atengio se fixauntes de tudo sobre a deciso existencial sobre a comunicabildade da revelagio ao homem de hoje, Sua concep- Go do homem prende-se a de Heidegger. O homem nio é um set éstitco: ele vai se construindo na medida em que se congusta si ieamo, panto futuro através daa decises qu toma, Tod uv fine pela ‘hora’, pelo “tempo”, e cada hora decisio, partiularmente pave quando seats dos sconecimentos maiores da existéncia. :m tal perspectiva, qual €0 papel da linguagem? Sobre esse ponto igualmente, lo Segundo Heiegger, "Nova Hermenéuticn” atribut 2linguagem antes de tudo, fungao de interpelago: cla deve provocar¢ conduzir a uma decisio. Para Heidegger, ser « linguagem se cham éntrosadosesurgem ao mesmo tempo, Para Bbeinge Fuchs, aconteci- mento ¢linguagem caminham juntos, Fuchs fade "acontecimento da linguagem’” (Sprachereigns) ¢ Ebeling d'‘acontesimento da palavra” Wortgeschehen), as duas expresses sendo sindnimas, Para Fuchs, a linguagem € um acontecimento, nfo no sentido banal de reaidade si tuada no espago eno tempo, mas no sentido de tomar o ser effeazmente presente no tempo: permite a0 Ser ser verdadeiremente Potanto,cha- mar alguém de “irmfo™ ¢ convalidaro lago puramente bioléyico au existe entre daas pessoas, Para Ebeling, a forge do evento da pala consist em que essa palavra € capaz de nos trinsformar quando um homem fla outro e Ine comunica algo de sua préprin existéncia, des vontade, de seu amor, de sua esperanga, de sus alegria, de seu sof mento; mas também de sua dureza, de seu édio, de sua baixeza, de sua ‘alicia, permitindo-Ihe assim a participacao”’.* A palavra € proprio 9.G, EBELING, L’eesence dela fol chvétienne, Paris, 1970 p. 216. Tradugdo de: Das Weren des christen Glaubens, TUbingen, 1959. 38 AEVOLUCAO DA CRITICA homem. “Nao se atinge a esséncia da essencia de seu conteudo. mas pesguntandose aque ates peers opera, 0 que ela gera e que futuro abre."""* A palavra do homem é fregiientemente mentirosa: no executa 0 que promete. Somente & palavra de Deus pode prometer ao homem um futuro verdadeiro, a saber, a salvago. Quando a palavra de Deus ad-vém, o mundo é trans- formado. A verdadeira linguagem, “o evento da linguagem” por exce- [eneia, € palavrada salvagao. Deese forma, a pregagao do Cristo uma ‘prachereignis, isto é,linguagem geradora de fé e de amor. Por sua vez, 2 pregacdo da Igreja é uma Sprachereignis: por ela, com efeito, s¢ constitui a Igreja ou 0 Corpo do Cristo." A palavra de Deus serve-se da tngunger comm dos homens, mas dela se dstinge ao nivel daft Conduzi via antes do que & morte ne mane se forma pte Essa concepedo da linguagem é de grave 1. Enquanto para Bultmann é a existéncia a essa intezprelagio condut i demitizagao do Novo Tevtamente, prs Fuchs ¢ Ebeling, é0 texto que interpreta a existéncia, e essa interpreta 80 deve conduzir a conversio. ‘‘O fenémeno primeiro no dominio da compreensio, sublinha Ebeling, nao & a compreensao da linguagem ‘mas a compreensio através da inguagem.""'A “Nova Hermenéutica”= € menos um esforgo para compreender o texto do que para decifrar o sentido da existéncia por meio da linguagem. Texto e intérprete cons! {dem sempre os dois pélos da hermenéutica, mas o relacionamento € lo: € 0 texto que nos interpreta, e 0 propri re acontecimento da paavra ou dalinguagem que Ihe deU rigor A nario desse novo relacionamento encontra-se na teoria de Heidegger, segundo 4 quai nfo é o homem que gera a linguagem, mas, antes, a linguagem que gera 0 homem. Ora, 0 texto é precisamente acontecimento de lingua~ gem, gerado por ela. Na perspectiva de Bultmann, ¢ o homem, em definitivo, que julga.o texto; para a “Nova Hermenéutica”, pelo contra tio, € texto sagrado que julga a existéncia humana. A relagao herme- néutica passa necessariamente pela Palavra de Deus panniers hermenéatica consiste cm transforma a pala do ado, imobilizada num texto, em palavra viv 0 cessa 4 interpelar. Ela procura encontrar o econtecimenta ‘Gs paavia on estadonativo, “em fonte"”. Deve, portanto, eliminar todos os elementos ue tornam o texto pesado ou limitam (elementos miticos, elementos Felativos a determinads época)a im de-estituir-Ihe a fungao primitiva, a de conduzir o leitor & experiéncia que 0 gerou. 3-A linguagem auténtica tem valor de interpelagao antes que de 10. bid. p. 217 11. Sprachereignis e Wortgeschehen co Sprecherlgns e Wortgeschchen correspondendo a Hellsereigns¢ Hellgeschehen 12. G, FBELING, Word and faith, Londres, PAEBELING, Word and faith, Londres, 963, p. 38, Tadugio de: Wort und Glue 9 A “NOVA HERMENEUTICA" informago. Por conseguinte, a interpretagéo de um texto ndo extrair-lhe informagées, mas descobrir a compreensio da existéncia que tle propde. Nao se poderia,, portanto, abordar um texto com indife- renga. A interpretagdo nao estar terminada enquanto 0 texto no se tiver tornado um convite a levar a sério 0 evento da linguagem que 0 suscitou e provocar decisdo que ponha em jogo proprio sentido de nossa existéncia, Se 0 texto for religioso, 0 evento da linguagem do qual se ofigina é a f6: por conseguinte, a interpretacio do texto nao estaré completa enquanto o leitor-ouvinte nao tiver reproduzido em sua vida a {6 que originou o texto. Devemos restaurar a funcio primaria da lingua- gem que € recriar a vida. Assim sendo, com que espfrito devemos abordar 0 texto dos Evan- gelhos? A pregagio de Jesus foi um “‘acontecimento de linguagem”: interpelagao convidando seus ouvintes & conversdo, isto é, a mudar sua smpreensio do mundo e da vida. Ler os Evangelhos para neles buscar informaco objetiva sobre Jesus seria, portanto, erro de perspectiva: pecado contra a linguagem auténtica. Para dialogar com os Evangelhos, é preciso abordé-los de um ponto de vista existencial, a fim de descobrir sua primeira intengao que é de levar o homem a decisao de f€. Devemos considerar os Evangelhos antes de tudo como quérigma. Trata-se de saber como Jesus compreendeu sua propria existéncia, perante Deus qualquer outra interpretagao nao existencial ¢ esteril, Bem mais, cons tui perversio do texto. ‘A decisio de fé & infportante, porque somente a Palavra de Deus exprime a verdade do homem, Somente ela confere a realidade humana sua consisténcia e a salva do absurdo, do vazio, da insignificancia na qual a precipitou 0 pecado do homem. Deixade a si mesmo, o homem ‘nao € mais do que ilusio e mentira. Somente a f¢ 0 liberta. Ora, essa fé nio & adeséo a uma soma de artigos e de proposigées; nao é um objeto novo oferecido 2 inteligéncia, mas antes uma /uz que ilumina toda realidade ¢ transforma aatitude do homem. A fé é um ser novo diante de Deus, dos homens ¢ do mundo. : ‘Nossa fé seri auténtica se for eco da fé de Jesus até a thorte. A vida de Jesus, com efeito, éa auténtica interpretacdo da existéncia. Sua fé até ‘morte 60 exemplo supremo do homem que se renuncia a/si mesmo ea seu préprio futuro para se abrir a0 futuro de Deus. Esse principio geral torna-se até o critério que permite reconhecer a autenticidade das pala~ vras de Jesus: tudo o que contradiz. esse princfpio é inauténtico. A atitude de Jesus esti expressa no hino cristol6gico de Fl 2, 6-1I: por ele ter sido obediente até a morte, Deus o exaltou. Se Jesus ndo tivesse vivido, nunca terfamos sabido o que éa verdadeira fé, nem a verdadeira vida, Compreende-se entéo melhor a posi¢ao de Fuchs ¢ de Ebeling @ respeito-do problema de Jesus. Para Bultmann, do Jesus da histéria importa somente o fato de sua existéncia e de sua morte nacruz, isto €, 0 Dass, e néo 0 Was ¢ 0 Wie. Kisemann contradiz essa tese sustentando ‘que importa também conhecer as modalidades da existéncia de Jesus. A 60 AEVOLUCAO DA CRITICA “Nova Hermenéatica’’ sustenta igualmente que o quérigma est em Coxtinuidade com a pregagio de Jesus. Este anunciou que o “tempo”, “ahora” do Reino, € ‘agora'’. O proprio Jesus faz parte desse Reino, ¢ sua atitude é exemplar. ‘Se outrora nds interpretévamos o Jesus histo- rice, escreve Fuchs, com a ajuda do quérigma cristao primitivo, hoje erpretamos esse quérigma com ajuda do Jesus historico; as’ duas diregdes da interpretagiio se completam."!) A pesquisa sobre Jesus é, Pois, nao apenas possivel, mas necessiria. Trata-se, com efeito, de descobrir a fé auténtica de Jesus purificando-a das interpretagdes ulte- riores que teriam podido contamind-la ou deformé-la. Jesus torna-se assim no somente a testemunha, mas 0 fundamento de nossa fe: crer € aceitar a f& de Jesus e reproduzi-la em nés. Ora, a fé de Jesus torma-se evento em sua linguagem. A historia de Jesus 6 a historia de sua linguagem. O dom dele mesmo aos homens é 0 dom de sua palavra. Essa linguagem de Jesus é encontrada principal. mente nas paribolas do Reino: por esse motivo chamaram a atengao de Fucks, Ebeling, Robinson. As pardbolas, no entanto, nio sao definigoes do Reino, mas um modo novo de encarar a vida. Devemos lé-las nao come espectadores, mas como atores. Cada um de nés ao lé-las deve sentir-se questionado, obrigado a uma deciséo existencial, convidado a escolher entre a visao do mundo proposta por Jesus ou aauto-suficiencia do mundo antigo. Cada qual deve decidir, luz de sua propria sitnagdo, em que medida as pardbolas Ihe dizem respeito. Se as paribolas sao escolhidas como a forma mais elevada da linguegem evangélica, os milagres, pelo contrario, sio depreciados, ja gue considerados como relatos mitolégicos. A ressurreigio, com a condigao de ser demitizada, possui, juntamente com a cruz, um alcance existencial incomparivel. A verdadeira mensagem da ressurreigao 6 a Proclamagao do escandalo da cruz, que devemos constantemente supe- rar. Todas as vezes em que, em nossas vidas, a exemplo de Jesus, Superemos esse escAndalo, a ressurreicao é proclamada. Jesus representa, pois, uma guinada decisiva na histéria da auto- compreensio humana, Nele o homem reconhece ser Deus 0 limite de Seu proprio eu e se abandona ao futuro de Deus. Ora, Jesus tornou Deus eal pata ngs em sua linguagem e em sua fé. Os apéstolos, por sua vez, ‘os trunsmitiram a f6 de Jesus através da linguagem do quérigma ¢ do texto do Novo Testamento, que nos interpela para se tornar um “evento de lingzagem” na decisio de £6 de nossas vidas. IV. CONCLUSOES 1. Com Fuchs e Ebeling, a finalidade da hermenéutica sofreu trans formagio decisiva: nao somos s6 nés que interpretamos 0 texto, é o texto que nos interpreta, isto é, esclarece e julga nossa existéncia, Sobre Outros pontos, a “Nova Hermenéutica” ainda se inspira em Bultmann: teconhecimento da filosofia existencialista, preocupagéo demitizante 13, B. PUCHS, Zar Frage nach dem historischen Jesus, 2. ed., Tubingen, 1965, p. 7. A “NOVA HERMENEUTICA” 1 i 1s milagres ¢ da ressurrei¢ao), desvaloriza- caterer pes oyna Cea ce 2. Sobre o problema do Jesus histérice, a “Nova aaa pertence & corrente antibultmanniana. Contreriamente a alee para quem a pessoa hist de Jesus nao tem bataher agate a julga que essa pessoa é a legitimagio ¢ 0 fundamento fed eet ‘Numa perspectiva cristolégica, nada se pode afirmar sot poked ndo se ache fundado sobre o proprio Jesus histérico. conn con wero sao da existéncia humana que a linguagem | de. Jesus nos revela é a ne auténtica, o quérigma ainda hoje tem necessidace de Jesus como aut tica testemunha de fé. 3. Heidegger, Fuchs, Ebeling tiveram 0 mérito de on - aspecto importante da linguagem, fregilentemente ee Rina ber, sua fungao de | LS ee eae wy utenticea linguagem que conduz a uma decisao. existencial,terfamos de concluir que toda linguagem de tipo objetivo (em filosot eee oo historia, nas conversas cotidianas) é inauténtica. Os bers 103 também a finalidade de nos informar a respeito de Jesus (vi aaa cate teat tae a eek zada, embora aad tal te aoe Hermeneatcn’ Adecisio de fé, Sobre esse for so acm Enns Sea ocr snenime do que deciso. Uma opcao religiosa ndo oderiaserfeitasema. aside. ragao prévia de grande néimero de dados objetivos, sol ok a isso implica a totalidade da vida. Sem 0 contetido da eae ps sobre 0 ato salvifico de Deus em Jesus Cristo, como poderi Sas decidir a segui-lo? A Igreja tem, rate dever de verificar a s juérigma a partir do ensinamento de Jesus. i Hee . L Outro ponto fraco da “Nova Hermenéutica”’ é a vee dos sacramentos como lugar de encontro atual, pessoal, com - i glorificado e como evento objetivo da salvagio que nele se: encontra, Na petspectiva de Fuchs ¢ de Ebeling, Jesus nos torna Deus a Ld sua linguagem. Mas parece que nossa fE se esgota nessa linguagem- teologia do sacramento: ela. Lesteer tc igrneornineaccipeor one : Saati as maar rn eam se oO levar a doutrina luterana até suas Gltimas conseqiténcias. SS a AEVOLUCAO DA CRETICA NOTA BIBLIOGRAFICA ACHTEMBIER P. J., An Inroduction o the New Hermeneutte, Fladétin, 1969. 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Bouyer e de muitos outros, Essas cistoogis levaram su autores a tomarem posicao sobre o problema do acesso histérico a Jesus pelos Evangelos, ts vezesapresentando apenss o estado da questi € as promissa,afim de situa allcreatareflextovleror,ovtos vores ém sob forma de discussio critica longamente elabora podenrsevidentemente expor © pensament de cada Om Etro ot protestantes,duas das figuras mais representativas slo as de W. Pane nenberg ¢ de J, Moltmann. Entre 0s catélicos, estudaremos mais aten- tamente as posigdes de Ch. Duquoc e de E. Schiilebeeckx, mais suscin- tamente as de W. Kasper e de Hans King. I. CRISTOLOGIA DOS PROTESTANTES 1. Ja W. PANNENBERG, em Offenbarung als Geschichte, em 1, W. PANNENBERG, R. RENDTORFF, T, RENDTORFF, U. WILCKENS, Offenba- rung als Geschichte, Gattingen, 3.2 ed. 1965 : o AEVOLUCAO DA CRITICA reago contra Bultmann, para quem a tevelagso apenas toca na hist6ria, identifica a revelacao com o desenrolar dos acontecimentos € com 6 sentido que deles emerge, porque os proprios acontecimentos tém sen. tido. A revelagéo de Deus ¢ pois indireta, isto é, através dos aconteck, ‘meatos da historia, e universal, isto é, oferecida 20s olhos de todos. No entanto, como cada acontecimento particular s6 fornece sobre Deus esclarecimento limitado, é necessério que a hist6ria se desenrole em sua totalidade para que a revelagio de Deus seja cognoscivel e conhecida de fato, Por outro lado, a ressurreigao de Jesus sendo a expresso antech, ada do termo dessa historia, é ela que permite decifrar desde jé 0 sentido da historia universal. O Cristo torna-se assim achave hermenéw. tica da historia como revelagio de Deus. Importa portanto conhecé-lo. Toda cristologia, afirma Pannenberg, deve comegar por Jesus.” E “Jesus pregado hoje nao é outro senao aquele que viveu outrora na Palestina e foi erucificado sob Pilatos, sendo © Inverso também verdadeiro”.” Depois dos trabalhos da Formses- chichte, sabemos certamente que nao é mais possivel considerar os Evangelhos como cronologia da vida de Jesus, mas isso nao resolve o Problema do conhecimento de Jesus. Continua sendo necessério expli- Car como o destino de Jesus pdde suscitar a pregagao do Cristo pelos primeiros cristaos. ““E possivel remontar ao Jesus historico passando para além do quériama apostélico. Possivel, mas também necessirio. * No contexto da renovagio da pesquisa sobre Jesus (com Kaise- mann, Fuchs, Bomkamm especialmente), ja niio se pode seguir Bult. mann, considerando como acessério que Jesus seja o verdadeiro autor da mensagem transmitida pelos Evangelhos. Reconhecemos doravante que a fé deve se apoiar em Jesus. “E se trata do Jesus como foi cescoberto por nossa pesquisa histérica." Portanto, devemos levar Sério a “legitimagio" do quérigma pelo proprio Jesus. Através dos textos, devemos remontar até Jesus, porque somente assim torna-se patente a unidade do Novo Testamento. Com efeito, a tunidads das afirmagdes das testemunhas neotestamentirias “reside unicamente em Jesus 20 qual todas se referem, e ela s6 se torna patente Se penetrarmos para além do quérigma dos apéstolos".* Unidade que se forna perceptivel quando consideramos os escritos do Novo Testa mento como “fonte historica"’ e nao apenas como “texto de pregacao” “Como fonte hist6rica, eles néo transmitem apenas aquilo em que sé acreditou outrora, mas levam a conhecer ao mesmo tempo algo da proprio Jesus, em quem o cristio acredita.’"” Se nao se pudesse demons. tar que a fé crista apéia-se sobre o proprio Jesus historico, teriamos de coneluir que a pregacio sobre Jesus € criatividade da fe 2. W. PANNENBERG, Grundzie der Chrstologie, Gitersloh, 1966. Traduio fran. See Este d'une chistologie, Pars, 1971-Ctado de acorde comacdigeo teen 3. Toit. p16. 4 tod, Bs 5. Ibid B19, 6. Pod: poi, T thi 9:20, A GERACAO DOS THOLOGOS 6s Mas de que modo 0 Jesus de outrora é 0 fundamento do quérigma? A resposta s6 pode ser fornecida pela reflexao aprofundada sobre 0 Jesus de outrora e sobre a relacao real da mensagem primitiva comele. verdade que o fundamento de nossa fé deve poder se verificar por nossa experiéncia presente da realidade, “mas ele proprio consiste inteira- mente naquilo que aconteceu outrora”.*O Novo Testamento nos ensina que, por sua exaltagio, Jesus foi arrebatado da terra e de seus disefpu- los, “‘mas é unicamente pelo que aconteceu outrora que sabemos estar Jesus vivo na gléria, © néo em virtude de nossas experiéncias atuais Ninguém tem atualmente experiéncia disso, pelo menos uma experién- cia que se possa distinguir, com seguranga, de uma ilusio... Portanto, mesmo no que diz respeito 4 certeza da vida preseate do Glorificado, nés 19s apoiamos totalmente no que aconteceu outrora... Devemos dizer 0 contririo de Althaus: 0 que interessa afé é antes de tudo o que Jesus foi. ‘Somente isso nos permite conhecer o que ele é para n6s hoje e como € possivel pregé-to hoje"? Conciuindo Pannenberg assim sua exposica0 sobre o problema Jesus: “A tarefa da cristologia consiste, portanto, em fundamentar sobre a historia de Jesus 0 verdadeiro conhecimento de seu significado”. 2.J, Moltmann, como Pannenberg, zeage contra Bultmann. Em sua recente obra, 0 Deus crucificado,"" ha um capitulo intitulado: “As ‘questées sobre Jesus”. : A cristologia, diz Moltmann, encontra-se no centro da teologia crista, Mas quem foi Jesus de Nazaré? Cristios e nao-cristios freqiien- temente fizeram para si uma imagem de Jesus comespondente aos pré- prios descjos: um mestre de moral, um resistente da Galiléia, um pro- feta. “Quem foi o proprio Jesus eo que ele mesmo significa hoje? Serd ‘que conhecemos Jesus ¢ quem é ele verdadeiramente para nds hoje? ‘Mesmo no seio do cristianismo, Jesus foi discutido. E Moltmann evo longo debate da critica moderna sobre ‘‘jesulogia”” ¢ “‘cristolo Onde se encontra Jesus em sua verdade? No Jesus terrestre que apare- ceuna Palestina na época de Tibétio e foi crucificaco sob Poncio Pilatos, ou no Cristo ressuscitado, pregado e crido na comunidade apostdl primitiva? A £6 supoe que a confissao de Jesus como Cristo é verdade e io ilusio. 1estdo central do cristianismo ¢ da cristologia € pois: “Qual é a rela da mensagem erst prmfvasobrew Cvs camo Jesus, hist6- rico? Com que direito a comunidade anunciou Jesus como o Cristo depois de sua morte piibiica na cruz?... Todo cristio deve perguntar se sua fé em Jesus Cristo é verdadeira e conforme ao proprio Jesus, ou se a tradigdo crista he deu, ou deu a simesma, uma outra coisa no lugar dele. 0 8. Mid,» . 3 9. Ibid p24 2 1 PoE Aap ete at Manu, Taso en fg RNOTECA ‘mucifié, Peis, 1974. Citado de acordo com a edigao francesa 12. Ibid, 98. 66 A BVOLUCAO DA CRITICA ‘uma idéia, um espirito ou um fantasma. O retorno autocritico da fé sobre Jesus © sua historia nasce da propria {6.13 crista dupla tarefa, Deve primeira: mente mostrar 0 verdadeiro conteido da confisséo “Tesus-Cristo". Deve esclarecer o fundamento ¢ a justificacao internos da cristologia na pessoa ¢ na hist6ria de Jesus. "Em outras palavras, Jesus e sua histéria (Vida, ensinamento, morte, ressurreigio) exigem uma cristologia? “Ea questo da verdade intrinseca da fé e da Igreja, e de seu diteito de apelar para aquele em nome de quem créem e falam. Essa questio nao vem de fora, mas da propria £6 que é avida de conhecimento e de razio."" 0 quérigma € conforme a Jesus ou coloca outra coisa em seu lugar? “A fé no Cristo provém, com uma necessidade interior, da apreensio da Pessoa e da historia de Jesus, ou entio as afirmacées a seu respeito surgem do arbitrério da fé e so julgamentos pessoais de valor?””'3 Moltmann julga que a recusa ce Bultmann pela questio da legitima- terna da mensagem do Cristo relativamente a Jesus e a sua histori rende-se a posicio nao justificada, mas determinada por uma nogao dogmatica do quérigma. Uma segunda etapa da cristologia, prossegue Moltmann, consiste em mostrar que a confisséo de Jesus manifesta sua pertinéncia para a compreensio da realidade hoje: Deus, a justiga do homem e do mundo. Com efeito, pelos titulos cristolégicos, a fé nao somente exprimiu quem era Jesus em pessoa mas abre-se para’o futuro, exprimindo seu sentido com relagio a Deus, a0s homens ¢ ao mundo. "’A primeira tarefa da cristologia ¢, portanto, a verificagio critica da { cristd em sua origem em Jesus € na historia dele. A segunda é a verificagio critica da fé cristi em suas conseqiiéncias parao presente e 0 futuro. Pode-se dar & primeira o nome de hermenéutica da origem e & segunda, o de hermenéutica dos efeitos e das conseqiiéncias."""” Ambas tarefas sao igualmente indispenséveis. Uma hermenéutica somente da origem, apesar de sua fidelidade A Escritura, permanece estéril. Uma hermenéutica que se preocupe unilateralmente com os efeitos da cristo- logia no cristianismo e na histéria do mundo perde facilmente de vista a Justifieagao e a autoridade internas da fé. Devem-se unir constante- mente os dois processos. Na confisséo do Cristo, um nome, 0 de Jesus, acha-se unido a titulos que exprimem sua dignidade ¢ suas fungdes: Cristo, Filho do homem, Senhor, Filho de Deus, Logos. Por esses titulos, af exprime 0 due Jesus é para ela, o que ela cré, confia, espera dele. '* Os titulos Yariaram com os universos lingilfsticos e culturais, mas a abertura histonca e a variabilidade dos titulos, no entanto, tém um ponto fixo © 1B. bid, p 133, 14. Bid, p97 15. Ibid, p58 16. bid, p98. 17. Bid, p98. 18. Ibid, B99. A GERACAO DOS TEOLOGOS 67 uum critério. “Sto especificadas pelo nome préprio de Jesus e por sua hist6ria com o desenlace de sua crucifixio ¢ de sua ressurreigio.” Se quisermos dizer quem é 0 Cristo, o Filho do homem, 0 Filho de Deus, 0 Logos, temos de pronunciar o nome de Jesus e contar sua historia, Esse nome nao pode ser substitufdo pelo nome de outra pessoa, nem sua hist6ria, por outra histéria. Como vemos, Pannenberg e Moltmann mantém um laco indestruti- vel entre a fé a histéria, entre Jesus e o Cristo. Trata-se da mesma pessoa, na novidade das condigées: Jesus crucificado e glorificado. Pannenberg sublinha o primado da realidade historica de Jesus de Na- zaré sobre a interpretagao que dela deriva; Moltmann une indissoluvel- mente o fato, 0 acontecimento, em sua consisténcia historica, a signif cago que 0 habita. TI, CRISTOLOGIA DOS CATOLICOS Nonhuma cristologia poderia se dispensar de certo mimero de pro- blemas a respeito das relagGes entre o cristianismo e a historia. Entre- tanto, o tratamento desses problemas nas cristologias contemporineas, como também o espago que Ihes é concedido, variam de um autor para o outro. Em alguns, trata-se de uma declaragdo prévia; em outros, de questio a ser discutida, 1, EmJesus der Christus, Walter KASPER consagra um capitulo & questio histdrica de Jesus. Depois de haver retragado as grandes linhas da historia da critica, do século XVIII até nossos dias, Kasper enfatiza 0 movimento de reagao crescente & postura bultmanniana, especialmente a partir de Kasemann, em 1963. A oposigio entre Jesus de Nazaré e 0 Cristo pregado jé nfo € valida. O objetivo da pesquisa atual € antes compreender Jesus a luz da fé eclesial¢, reciprocamente, interpretar afé cclesial luz de Jesus. Cristologia e critica historicaestao reconciliadas. O ponto de partida da cristologia é a confissio de f€ da comunidade primitiva; mas ¢ da hist6ria edo destino de Jesus que essa fé tira seu contetido e sua norma, Em conseqiiéneia, toda a cristologia de Kasper se divide em duas partes: I. Hist6ria e destino de Jests; Il. 0 mistério de Jesus Cristo. O cere da cristologia, diz ele, 6 a cruz ¢ a ressurreigao de Jesus. E, com efeito, onde se operau passagem do Jesus a histéria para o Cristo glorioso da f8, 2, Em Christ sein, Hans KUNG, ditigindo-se a vasto piblico, declara no querer entrar em explicagdes técnicas demais, Entretanto, sua posicao sobre a possibilidade de acesso ao Jesus da hist6ria pelos Evangelhos ¢ nitida e firme, Talvez mais do que nenhuma outra geragao crista, diz ele, com excegéo da primeira, temos a possibilidade de conhecer 0 auténtico Jesus da historia, gracas as pesquisas e resultados do método historico. Uma voltaa Jesus € possivel, legitimaenecesséria, 19. W. KASPER, Jesus der Chnistus, Mogtincia, 1974. 20. HKONG, Christ sein, Munique, 1974, i! eae}

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