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CAPITULO 10 HERACLITO DE EFESO Os fragmentos de Heraclito! Grupo I. Desprezo pela Falta de Compreensdo da Maioria 10.1 Cael sse Logos da-se sempre,’ mas os homens mostram- -se sempre incapazes de compreendé-lo antes de ouvi-lo e quando o ouvem pela primeira vez. Pois, embo- ra todas as coisas venham a ser [ou “ocorram”] de acordo com esse Logos, os seres humanos so como os inexperien- tes quando experimentam tais palavras e feitos tal como eu os exibo, distinguindo cada qual de acordo com sua na- tureza e afirmando como é. Porém, as outras pessoas dei- xam de observar o que fazem quando despertas do mesmo modo como esquecem 0 que fazem quando adormecidas. 1 Traduzo aqui todos os fragmentos sobre os quaish4 acordo quanto 4 autenticidade ‘exceto por DK 22B122, que consiste em uma tnica palavra sem contexto algum) e ainda alguns cuja autenticidade € disputada (os quais assinalei com um asterisco). O fraseado de alguns fragmentos é disputado, bem como seu sentido e ordem correta, Livros gerais sobre os primérdios da filosofia grega, este inclusive, na falta de maior espaco para tratar de problemas ou oferecer leituras alternativas, fazem as coisas parecer mais certas do que de fato so. Para discussio de fragmentos individuais, recomendo Kahn (1979), Marcovich (1967) e Kirk (1954), ? Os nimeros em parénteses so aqueles dos fragmentos em DK. (1) = DK22B1. > A palavra “sempre”, que ocorre apenas uma vez no grego, pode acompanhar gramaticalmente quer “dé-se”, quer “mostram-se”. Como Heréclito sustenta nio apenas que 0 Logos é eterno, mas também que as outras pessoas nio compreendem isso quando ele explica-Ihes a questo, traduzi-a duas vezes, Creio que a ambiguidade é intencional. Herdclito frequentemente explora a linguagem desse modo. Também as primeiras palavras, que traduzo como uma oracao absohuta, podem ser objeto de “incapazes de compreender”. Uma traducSo alternativa seria: “Os seres humanos sempre se mostram incapazes de compreender este Logos, que se da sempre”. 205 10.2 10.3 10.4 10.6* 10.7 10.8* 10.9* 10.10 10.11 10.12 10.13 206 “Provavelmente uma lembranga de 10.3. Marco Aurélio fornece 10.9, 10.8 € 10,235 um apés 0 outro, Ele provavelmente estivesse contando com sua meméria, e pode ter parafraseado intencionalmente. * Veja-se acima, p. 126, nota 11. HerActiro pe Ereso (2) Por essa razio é necessdrio seguir 0 que é comum. Po rém, embora 0 Logos seja comum, a maioria das pesso: vive como se tivesse entendimento préprio, (17) Pois a maioria, em verdade tudo o que se lhes oco re, eles néo compreendem tais coisas, nem quando el percebem-nas nao as compreendem, mas parecem, para mesmos . (29) Os melhores renunciam a tudo por uma unica coisa, a eterna fama dos mortais, mas a maioria se empanturi feito gado. (56) As pessoas so enganadas pelo conhecimento de coi! sas Gbvias, como Homero, que foi o mais sabio de todos 0 gregos. Pois criancas que estavam matando piolhos enga naram-no dizendo: “Tudo 0 que vimos e pegamos deixa mos para tras, mas tudo o que nem vimos, nem pegamo trazemos conosco”. (70) [Heréclito considerava que as opinides humanai eram] brincadeiras de criancas. (Contexto: Estobeu, Eclogae 2.1.1 (74) Nao devemos ser filhos de nossos pais. (72) Estao em desacordo com o Logos, com o qual, acim: de todas as coisas, esto em contato continuo, € as coisa que eles encontram lhes parecem estranhas.* (71) (...) a pessoa que esquece para que direcio conduz estrada, (86) Coisas divinas escapam ao reconhecimento por causi da descrenga. (87) Um tolo excita-se com qualquer palavra (logos). (97) Caes latem para todos aqueles a quem nao conhecem, (104) Que entendimento (noos) ou inteligéncia (phrén)! possuem? Depositam sua confianga em bardos populares A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... —— e tomam a plebe por mestre, sem saber que a maioria das pessoas é mé e que uns poucos sao bons. 10.14 (108) De todos aqueles cujas explicagées (logoi, plural de logos) tenho ouvido, nem um unico alcanga a questao de reconhecer que o que é sabio é distinto de todos.® 10.15 (11) Toda besta é conduzida ao pasto a golpes. Também 10.20, 10.22. Grupo II. Desprezo pelos Predecessores (40) Muita erudic¢ao [“polymathy”] nao ensina insight. Fosse diferente, haveria ensinado Hesiodo e Pitagoras, e ainda mais Xendfanes e Hecateu. (129) Pitagoras, filho de Mnesarco, praticava a investigacao [historie] mais que todos os outros homens, e fazendo uma selecio desses escritos construiu sua propria sabedoria, erudi¢ao, impostura. (42) Heraclito afirma que Homero merece ser expulso de discuss6es e acoitado, e assim também Arquiloco. 9.2 9.3 10.16, 10.17 (28) O conhecimento das pessoas mais famosas, que eles preservam, nao sao senfo opiniao. A justiga ira condenar aqueles que fabricam falsidades e dara testemunho contra eles. (39) Em Priene nasceu Bias, filho de Teutame, cujo valor (logos) € maior do que os outros. 10.18 Também 10.5, 10.71. Grupo III. Método A. Mau USO DOs SENTIDOS 10.19* (46) [Afirma que] a soberba é uma doenca sagrada’ [e que] a visio diz coisas falsas. © Gramaticalmente, “todos, todas” pode significar ou “todos os seres humanos”, ou “todas as coisas”. ’ Uma referéncia a epilepsia, que era chamada de a doenca sagrada. Herdcuito pe Lreso 10.20 (19) [Reprovando alguns por sua incredulidade, Heraclito afirma] Nao sabem nem como ouvir, nem como falar. 10.21 (107) Olhos e ouvidos sao mas testemunhas para as pesso- as se possuem almas barbaras.® 10.22 (34) Nao compreendendo quando ouviram, sao como 0 sur- do. O ditado os descreve: embora presentes, esto ausentes, B. SONO E MORTE 10.23* (73) Nao se deve agir nem falar como a gente adormecida. 10.24 (89) Para os que estao despertos h4 um mundo comum, porém, quando adormecidos, cada qual volta-se para um mundo proprio. 10.25 (26) Um homem na noite acende uma luz para si mesmo quando sua visio se extingue; vivendo, toca? os mortos quando adormece, quando acorda, toca o adormecido. 10.26* (75) Os adormecidos sfo trabalhadores e seus companhei- ros no que sucede no mundo!” 10.27 (21) O que vemos quando despertos é a morte; 0 que ve- mos quando adormecidos é 0 sono. Também 10.1, 10.74, 10.76, 10,89, 10.90, 10.103, 10.106, 10.107, 10,108, 10.109, 10.110, 10.112. C, SABEDORIA E INSIGHT 10.28 (78) A natureza humana nfo possui insight, mas a natureza divina sim, 10.29 (79) Um homem € tido por crianga por uma divindade como uma crianga o é por um homem. 10.30 (32) O sabio é um apenas; é relutante e nao relutante em ser chamado pelo nome de Zeus. [ou: “O sdbio é um; apenas ele é relutante (...)’; ou: “Uma coisa, 0 tinico sabio (...)"]. ® Um barbaros era, originalmente, qualquer individuo que nao falasse grego. Talvez durante a época em que viveu Heréclito o termo tenha comecado a carregar as conotacdes negativas de “barbaro” [i.e., primitivo, incivil, selvagem). Heréclito empre- gaa palavra aqui provavelmente para referir-se Aqueles que nao compreendem o Logos. * A palavra grega para “acender/despertar” e “tocar” éa mesma. ‘© Na melhor das hipéteses, essa é uma parafrase das reais palavras de Herdclito. A FILOSOFIA ANTES DE SOcRATES,.. 10.31 (113) Pensar é comum a todos. !! 10.32 (116) Pertence a todas as pessoas conhecer a si mesmas € pensar retamente. Também 10.14, 10.44, 10.46. D. Experrancia E INVESTIGAGAO 10.33 (101) Busquei a mim mesmo. 10.34 (35) Os homens que s&o amantes da sabedoria devem in- vestigar muitas coisas, com efeito. Também 9.2. E. Os sENTIDOSs 10.35 (55) Tudo o que pode ser visto, ouvido, experienciado — eis o que prefiro. 10.36 (101a) Os olhos sao testemunhas mais acuradas que os ou- vidos. 10.37 (7) Se todas as coisas fossem fumaga, as narinas as distin- guiriam. 10.38 (98) As almas tém cheiro [no sentido de usar 0 sentido do olfato] no Hades. FE, Diricupabe po TEMA 10.39 (18) A menos que ele espere o inesperado, nao 0 encontra- ra, pois ele é dificil de ser buscado e intransitavel.!2 10.40 (22) Aqueles que buscam ouro cavam muita terra, mas | pouco encontram, 10.41 (84b) B cansativo trabalhar nas mesmas coisas e estar comecando [ou: “E cansativo trabalhar para os | mesmos e ser governado”]. 10.42 (123) A natureza ama ocultar, 10.43 (93) O Senhor, cujo ordculo esté em Delfos, nao fala, tam- | pouco oculta, antes da um sinal. | ™ Veja-se acima, p. 207, nota 6, | © Aporon (“sem um caminho”), relacionado & aporia (“perplexidade”), 208 209 HprAcuito pe Bees G. O opjETIvo 10.44 10.45 10.46 (41) A sabedoria é uma Unica coisa, ter maestria no pen- samento verdadeiro, como todas as coisas sf0 conduzidas. através de todas as coisas. (47) Nao fagamos conjecturas aleatérias acerca das gran- des questées. (112) A reta raz&o é a maior virtude, e sabedoria é falar a verdade e agir de acordo com a natureza, prestando-lhe atencao. Grupo IV. O Logos 10.1, 10.2, 10.8 10.47 10.48 10.49 10.50 10.51 (50) Ouvindo nao a mim, mas ao Logos, sabio é aceitar que todas as coisas sao uma 86. (10) As coisas tomadas em conjunto sao todo e nao todo, reunido e separado, em harmonia e em de- sarmonia; de todas as coisas a unidade vem a ser, e da uni- dade, todas as coisas. (51) N&o entendem como, embora em desacordo consi- go mesmo, est em acordo consigo mesmo [ou: “como por estar em desacordo consigo mesmo esta em acordo consigo mesmo”; mais literalmente: “como (por) estan- do apartado é reunido”]. B um contrario retesar [ou: “con- trario tender”]!? harménico, tal como o do arco e da lira. (54) Uma harmonia oculta é mais forte do que uma evi- dente. (114) Aqueles que falam com entendimento (noos) devem confiar firmemente no que é comum a todos,'* assim como a cidade deve confiar em [sua] lei, ¢ muito mais fir- memente. Pois todas as leis humanas sao alimentadas por uma lei, a lei divina; pois dispde de tanto poder quanto deseja e é suficiente para todos’ e ainda sobra. 13 Palintropos ou palintonos. As fontes divergem aqui, e no hd consenso entre os especialistas acerca da palavra empregada por Heraclito. 14 Veja-sc acima, p. 207, nota 6. 15 Gramaticalmente, “todos/ todas”, pode significar ou “todos os seres humanos”, ou “todas as coisas”, ou ainda “todas as leis humanas”. A BILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... ———1 10.52 (8) O que é contrario converge; a mais bela harmonia é composta de coisas contraditérias, e tudo vem a ser [ou: “ocorre”] de acordo com a discérdia. Grupo V. Fragmentos sobre Oposigéo A. X TEM PROPRIEDADES DIFERENTES A PARTIR DE DIFERENTES PONTOS DE VISTA 10.53 10.54 10.55 10.56 10.57 10.58 10.59 10.60 (61) O mar é a agua mais pura e a mais poluida; para os peixes, potdvel e salutar; para os seres humanos, impotavel e mortal. (13) Os porcos regozijam-se na lama mais do que na 4gua pura. (9) Os asnos escolheriam antes lixo do que ouro. (4) Dirfamos que o boi é feliz quando encontra o marroio para comer. (37) Os porcos lavam-se na lama; os passaros, no pé ou nas cinzas. (82) O mais belo dos simios é feio se comparado a raca humana.!¢ (83) O mais sdbio dos homens sera semelhante a um simio em comparagiio a um deus em matéria de sabedoria, bele- za ¢ todas as outras coisas. (124) O mais belo kosmos 6 uma pilha de coisas lancadas ao acaso, Também 10.88. B. X TEM PROPRIEDADES CONTRARIAS PARA O MESMO OBSERVADOR, SIMULTANEAMENTE, SOB DIFERENTES ASPECTOS 10.61 (58) Médicos que cortam e queimam reclamam que nao recebem justa paga, embora facam esse tipo de coisa.!7 +6 Alguns consideram esse fragmento espiirio. "7 O texto do fragmento é problemético, Outra versio (demasiado distante da leitura dos manuscritos) é: “Médicos (...) requerem pagamento, mas nada merecem”. De todo modo, o ponto é que os médicos curam dolorosas enfermidades infligindo dor ¢ consideram certo ser pago em virtude de aliviarem as dores das enfermidades fisicas (que so més para os pacientes) infligindo mais dor (que é, nesse caso, boa para o paciente). 210 211 Herdctiro DE BrEso A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES. i 10.62 (59) A linha da escrita [ou: “o caminho da carda” 18] é reto C. QUALIDADES OPOSTAS QUE OCORREM SUCESSIVAMENTE | e tortuoso. 10.63 (60) O caminho para cima e o caminho para baixo sao um, eomesmo, 10.64 (12) Sobre aqueles que entram no mesmo rio correm Aguas sempre diferentes. Ie 10.65 (91) [Nao é possivel entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se € outra vez é reunido, avanca e retrocede. 10.66* (49a) Entramos e nao entramos nos mesmos rios. Somos e nao somos. 10.67 (103) O principio e o fim sao comuns na circunferéncia de um circulo. 10.68 (48) © nome do arco [bids] é vida [bios], mas sua obra € morte.”! ‘Também 10.47, 10.48, 10.49, 10.52, 10.78. 18 Alguns editores corrigem a leitura do manuscrito gnapheién (“cada”) para grapheién (“escrita”). 19 4 primeira oracio de 10.65 contradiz 10.64, que nao vé dificuldades quanto a entrar no “mesmo” rio. Seguindo KRS, penso que a primeira oracao de 10.65 segue a interpretagio de Plato (veja-se abaixo, p. 239-241). (KRS edita 10.64 juntamente com 10,65 exceto por sua primeira oraco como um tinico fragmento.) Uma ver que 10.66 € provavelmente uma paréfrase de ideias heraclitianas, ¢ nao uma citacho direta (veja-se Khan [1979: 288]), 10.64 & provavelmente o tmico fragmento autén: tico sobre o rio. Uma decisio quanto ao ponto depende grandemente do carter genufno ou néo da primeira oracio de 10,65, jé que 10.64 € a melhor evidéncia para a doutrina fundamental de Heraclito segundo a qual a identidade € preservada pela mudanga. Para a visio segundo a qual todos os trés ftagmentos so genufnos ¢ re presentam uma sucesso de reflexes sobre a natureza de um rio, bem como para @ proposta de se ler Herclito como fazendo nao apenas pronunciamentos obscuros, mas argumentando dialeticamente, veja-se Mackenzie (1988). 20 Veja-se nota anterior. 21 © fragmento explora a promiincia idéntica das palavras gregas para “arco” (bids) e “vida” (bios); elas diferem quanto as silabas acentuadas, mas, na época de Heraclita, ‘os acentos ainda nfo eram escritos. Além disso, o fragmento nfo contém a palavra bids, valendo-se antes da palavra mais comum toxon, exigindo assim de seus leitores (ou ouvintes) que fizessem a associagao essencial eles mesmos. 10.69 (126) Coisas frias tornam-se quentes; uma coisa quente, fria; uma coisa timida, seca; uma coisa 4rida, tumida. 10.70 (88) A mesma coisa é”* viva e morta, e acordada e adorme- cida, e jovem e velha; pois estas coisas, transformadas, sio aquelas, e aquelas, transformadas novamente, sao estas, 10.71 (57) Hesiodo € mestre de muitos homens. Esto certos de que sabia muitas coisas — um homem que nfo reconhece- tia dia e noite, pois sio uma tinica coisa.2+ ‘Também 10.86, 10.89. D. OPOSTOS CONTRASTADOS ENTRE SI; CADA QUAL & NECESSARIO PARA 0 RECONHECIMENTO DO OUTRO 10.72 (23) As pessoas nao conheceriam o nome da justica se tais coisas [coisas injustas] ndo existissem. 10.73 (111) A doenga torna a satide aprazivel e boa; a fome [faz o mesmo pela] saciedade; a fadiga [pelo cansaco]. E. TRANSMUTAGAO DOS ELEMENTOS 10.74 (36) Para as almas, o tornar-se Agua é a morte; para a agua, o tornar-se terra; porém, da terra, a 4gua vem a ser, e dela, aalma. 10.75 (31) As mudangas do fogo: primeiro, mar; e do mar, meta- de é terra e metade tromba d’4gua chamejante (...). A terra mana em oceano, e é medida segundo a mesma proporcao (logos) de antes de ser terra. 10.76* (76) O fogo vive a morte da terra e o aér vive a morte do fogo; a 4gua vive a morte do aér, ea terra aquela da Agua. 10.77 (30) O kosmos, um unico para todos, nem deus, nem ho- mem o fez, mas sempre foi e devera ser sempre: um fogo sempre existente sendo aceso em medidas e sendo extinto em medidas. * A palavra traduzida por “é” mais frequentemente significa “esté em”. Herdclito talvez queica dizer “a mesma coisa esta em nés tanto viva e morta”. ® Os verbos traduzidos por “esto certos", “sabia” e “reconheceria” sio pratica- mente sinénimos e poderia ser todos traduzidos por “saber”, uma tradugio que en- fatizaria a sugesto paradoxal do fragmento. Mackenzie (1988) enfatiza os paradoxos. 212 213 -——— Hericurto ve ErEso Grupo VI. Principios Cosmoldgicos: O Logos em Agdo 214 Grupo VI. A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... Cosmologia: Detalhes Todos os fragmentos do Grupo V.E. 10.91 (3 + 94) O sol, por sua natureza, é da largura de um pé 10.78 (84a) Mudando [ou: “por mudar”], esta em repouso. humano, nao excedente em tamanho os limites de sua lar- 10.79 (125) Mesmo a pocao* se separa se nao é mexida. gura.”° Do contrario, as Erinias, sacerdotisas da justica, o 10.80 (90) Todas as coisas esto em troca por fogo, e o fogo 0 encontrarao. esté em troca por todas as coisas, como os bens por ouro 10.92 (6) O sol é novo a cada dia. e ouro por bens [ou: “como o dinheiro por ouro € 0 ouro, 10.93 (99) Se n’o houvesse sol, no que concerne as demais por dinheiro”]. estrelas,”’ seria noite. 10.81 (64) O raio a tudo conduz. 10.94 (100) EstagGes que trazem todas as coisas (...). 10.82 (53) A guerra é pai de tudo e rei de tudo, e faz de alguns 10.95 (120) Os limites do amanhecer e do anoitecer sao a Ursa e 10.83 deuses, de outros, humanos; de alguns faz escravos, de ou- tros, livres. (80) E necessdrio saber que a guerra 6 comum, e que a justica é discérdia, e que todas as coisas ocorrem segundo a Ursa oposta,”* limite do resplandecente Zeus. Também 10.71. Grupo VIII. Religiéio a discordia e a necessidade. 10.96 (5) Em vo purificam-se com sangue, quando com ele 10.84* (66) Pois 0 fogo avancaré e julgara e condenaré a todas as aviltam, como se um homem que tivesse entrado na lama coisas. com lama fosse se lavar. Seria tomado por louco se fosse 10.85 (65) O fogo é a escassez e a saciedade. visto assim procedendo. 10.86 (67) Deus é dia e noite, inverno e verao, guerra e paz, sa- 10.97 (15) Nao fosse por Dionisio que fazem procisses e cantam ciedade e fome, mas se altera , quando mistu- hinos as partes intimas [phalli], seria o mais desavergonha- rado a perfumes, é chamado segundo 0 aroma de cada um. do dos atos; mas Hades e Dionisio sf0 0 mesmo, em cuja 10.87 (33) H lei,2° também, obedecer a recomendacio de um. honra enlouquecem e celebram o rito baquico. 10.88 (102) Para Deus, todas as coisas s&o belas e boas e justas, 10.98 (14) notivagos, magos, bacantes, ménades e iniciados. [He- 10.89 10.90 mas os seres humanos tomam algumas por injustas e ou- tras por justas. (62) Imortais mortais, mortais imortais [ou: “imortais sao mortais, mortais so imortais”], vivendo a morte dos ou- tros e morrendo suas vidas. (20) Quando nascem, querem viver suas vidas e ter seus destinos, e deixam no caminho filhos que se tornam seus destinos, Também 10.70, 10.103. raclito ameaga essas pessoas com 0 que ocorre apds a mor- te...] Pois os ritos secretos praticados pelos seres humanos sio celebrados de um modo impio. (Contexto: Clemente, Protrepticus 22) 10.99* (69) [Postulo duas espécies de sacrificios: aqueles feitos por pessoas que esto completamente purificadas, que podem ocorrer] raramente, no caso de um tinico homem [como Adoto 0 texto presente no papiro de Derveni, coluna IV, Veja-se abaixo, p. 748. 27 A oracdo “tao distante (...) estrelas” € omitida em uma das fontes ¢ pode nao ser auténtica. 28 A Ursa é a constelagao Ursa Maior, ¢ “Ursa oposta” refere-se a estrela Arcturus, que era utilizada como um indicador das estagdes. 24 Kukedn, uma posao feita de cevada, queijo ralado, vinho e, por vezes, mel, 5 Noms, “lei”, “costume”. 215 HErACLITO DE ErEso afirma Heraclito], ou de tao poucos que podem facilmente ser contados. ?? 10.100 (92) A Sibila de boca delirante, emitindo melancdlicas [fray ses, sem enfeites e sem perfume, alcanga mil anos com sua voz em virtude do deus].7° (Contexto: Plutarco, Sobre os Ordculos de Delfos 397A) 10.101 (68) [Coisas vistas e coisas ouvidas em ritos sagrados sao -nos introduzidas em nossas almas para conter os males que o nascimento fez com que nela crescessem, para liber- tar-nos e livrar-nos de amarras. Dai que Heraclito corre- tamente as chamasse de curas [por tentarem curar nossas atribulagées e desastres presentes desde a geracao].”! (Contexto: Jamblico, Sobre os mistérios 1.11) Também 10.43. Grupo IX, A Alma 10.102*(67a) Como uma aranha no meio de sua teia percebe tio logo uma mosca rompe um de seus fios e rapidamente para lA se move, como que pesarosa pelo acontecido, as- sim a alma de um homem, quando alguma parte de seu corpo sofre algum mal, para la se dirige como se incapaz de suportar os males do corpo, aos quais se junta firme e proporcionalmente. 10.103 (77) Para as almas, o tornar-se timido é a morte. 10.104 (118) Um brilho de luz € uma alma seca, mais sabia e melhor. 10.105 (117) Um homem, quando embriagado, é conduzido por um menino, trépego e sem saber para onde vai, uma vez que sua alma esta molhada. 10.106* (136) As almas mortas na guerra sio mais puras que aque- las que perecem de doengas. 29 Este suposto fragmento € tido por muitos como sendo uma reminiscéncia de 10.117. 30 © material entre parénteses pode conter ideias heraclitianas, embora a disposic&o da frase provavelmente nao seja auténtica. 31 Bste & um testemunho contendo apenas uma palavra de Heréclito, 216 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... 10.107 (24) Deuses e homens honram aqueles que morrem em combate. 10.108 (25) Grandes almas recebem grandes destinos. 10.109 (27) Coisas inesperadas e jamais concebidas aguardam os homens quando eles morrem. 10.110 (63) Emergem e tornam-se guardises vigilantes dos vivos e dos mortos. 10.111 (16) Como é possiyel nao ser visto por aquilo que jamais se poe? 10.112 (96) & mais adequado livrar-se de cadaveres do que de es- terco. 10.113 (45) N&o encontraras os limites da alma mesmo percor- tendo todas as estradas: tao profundo é o Logos que ela possui. 10.114*(115) A alma possui um Logos autocrescente. Também 10.21, 10.74, 10.124. Grupo X. Politica 10.115 (121) Todos os efésios deveriam se enforcar e deixar a cida- de aos meninos; pois banitam Hermodorus, o melhor ho- mem entre eles, dizendo “que ninguém seja melhor, pois se o for, que o seja alhures e em meio a outros”. 10.116 (125a) Que a riqueza nunca os abandone, Hfésios, para que sua maldade no seja revelada. 10.117 (49) Um tinico homem vale dez mil, para mim, se for o melhor. 10.118 (52) A vida inteira [ou: “4 eternidade”] é uma crianga jo- gando damas; 0 reino pertence a uma crian¢a. 10.119 (44) As pessoas devem lutar pela lei 2? como se pelos mu- ros da cidade. Grupo XI. Pensamento Moral 10.120 (43) A violéncia deliberada [hubris] deve ser extinguida mais que um fogo. 32 Nomas, “lei”, “costume”. 217 Herdctito Dz Breso 10.121 (119) O carater de um homem [ou: “individualidade”| & sua divindade [ou: “espirito guardiao”). 10.122 (110) Nao é melhor para os homens alcangar tudo o qué querem. 10.123 (95) B melhor ocultar a ignorancia. 10.124 (85) B dificil lutar contra a célera, pois o que quer que queira, compra ao prego da alma. Também 10.4, 10.13, 10.32, 10.46, 10.51, 10.87. Heraclito, Datas e Vida Heraclito nasceu, conforme nos é relatado, em c. 540 e viv veul por sessenta anos — datas consistentes com suas referéncias a Xen6fanes, Pitagoras e Hecateu de Mileto (c. 500 a.C.).? Ele pertencia a uma familia aristocratica de Bfeso e recebeu 0 direito de manter uma posicao hereditaria de “monarca”, possivelmente honorifica em larga medida, 4 qual ele renunciou em favor de seu irmao. Xen6fanes e Pitagoras haviam ambos deixado a J6nia, o ptimeiro provavelmente antes do nascimento de Herdaclito, 0 segundo ainda durante a infancia deste, de modo que, sendo o unico filésofo pré-socratico conhecido na regido da Jénia duran- te sua época, Heraclito parece ter sido uma figura isolada, fato este aus pode estar relacionado a suas idiossincrasias e evidente arrogancia. Muitas anedotas biograficas sobre Heraclito foram preser- vadas, porém praticamente todas elas sdo espurias ou baseadas em seus proprios fragmentos. Por exemplo, a historia segundo a qual ele teria morrido num monte de estrume de vaca, no qual haveria deitado por estar sofrendo de hidropsia, na crenga de que o calor do estrume faria com que a doenga evaporasse de seu corpo, € baseada em sua afirmacao “para as almas, 0 tornar-se umido é a morte” (10.103) e em sua doutrina das exalagdes ou evaporacées pelas quais a 4gua torna-se fogo (10.75). 3.9.2, cf. 10.16 € 10.18. 218 ‘A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... ———! Material de fonte Assim como os demais pré-socraticos, Herdclito nos € co- nhecido através de relatos de sua filosofia e de fragmentos preser- vados em fontes posteriores. Embora seu livro, do qual o inicio foi preservado (10.1) e que o proprio Heraclito depositou no tem- plo de Artemis em Bifeso, nao tenha sobrevivido como um todo, mais de cem fragmentos o fizeram. Encontramo-nos, portanto, em posi¢ao mais favoravel para aborda-lo por meio de suas pré- prias palavras e em seus préprios termos do que no caso de seus predecessores. Trata-se de um feliz acaso, uma vez que os rela- tos das ideias de Herdclito nos autores da Antiguidade diferem grandemente de um para outro. Platao (no Teeteto e no Cratilo) encontrou em Heraclito a doutrina segundo a qual “tudo flui” (am enunciado que nio se encontra em nenhum dos fragmentos genuinos de Heraclito, embora relacionado a dois fragmentos im- portantes), interpretada por ele como querendo dizer que todas as coisas esto sempre mudando em todos os aspectos — 0 mundo esta em fluxo continuo e nao ha estabilidade ou permanéncia al- guma nele. Aristoteles, seguido por Teofrasto, situou-o na tradi- cSo dos teéricos jénios, tendo o fogo como sua substancia basica. Os estoicos viram-no como um precursor de sua prépria filosofia, na qual o fogo é o elemento primario, 0 universo € governado pelo Logos e, em algum sentido, fogo, Logos e deus sao idénticos, tendo assim o interpretado com base em seu proprio sistema, atribuindo-lhe suas préprias teses. No terceiro século de nossa era, Hipélito, Bispo de Roma, encontrou em Heraclito certas doutrinas que tomou como sendo a origem de uma heresia crista. Os fragmentos preservados deixam claro como Heraclito pode ser interpretado de diversas maneiras, todas elas com uma base no original, mas todas igualmente representando uma visio parcial, influenciada por interesses e crencas de seus autores. A maior parte dos fragmentos ¢ curta, equilibrada, expressa com vigor. Soam como profecias, enigmas, similes e metaforas que valem por si e que requerem cuidadosa aten¢o, quer individu- 219 HerAcuito DE Erzso almente, quer nas suas inter-relagdes. Muitos dos fragmentos podem ser compreendidos tanto no sentido metaférico quanto no sentido literal, ou ainda como versando sobre mais de um topico (10.74 trata da mudanga; fala também da alma humana). Em muitos casos, palavras ¢ imagens ecoam vividamente de um fragmento a outro. Os fragmentos clamam por ser avaliados uns a luz dos outros, e o significado que assim emerge é maior do que os significados de cada um deles tomados separadamente. Em geral, nao dio a impressao de se tratar de uma continua ex- posicdo em prosa, antes tendo muito em comum com os ditos dos Sete Sabios e outras maximas que sobreviveram em abun- dancia na literatura do periodo arcaico (embora os fragmentos de Heraclito exibam maior unidade e inquiram com maior pro- fundidade do que é comum em tais casos), Um livro com os es- critos de Heraclito divididos em trés secées (O Universo, Politi- ca, Teologia) circulou durante a Antiguidade tardia,*4 mas pode ter sido uma compilacao tardia de materiais heracliteanos, e nao o livro original do filésofo. Em todo caso, as divis6es parecem arbitrarias®’ e nao so fiéis a Heraclito, cujo profundo insight foi em parte que todas as coisas eram uma, o que implica que tais divisdes sao fundamentalmente incorretas. Nessas circunstancias, alguns decidiram basear suas interpre- tacdes apenas (ou virtualmente apenas) nos fragmentos, ignoran- do os testemunhos antigos ou considerando-os culpados até prova em contrario. Trata-se de uma abordagem falha. Em primeiro lu- gar, muitos dos fragmentos que sao considerados genuinos estao preservados nos mesmos relatos antigos que sao considerados du- bios. Porém, os autores de tais relatos dispunham do livro de He- raclito (ou, ao menos, de mais informagao do que nés possuimos), de modo que rejeitar o testemunho equivale a supor que nds compreendemos HerAclito melhor do que os antigos o fizeram, mesmo reconhecendo que temos menos informagées do que eles +4 Didgenes Laércio, “Vidas dos Fildsofos” 9.5 = DK 22A1. 35 Como seriam classificados, por exemplo, os fragmentos 10.51 € 10.86? 220 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... ———+ tinham, e que podemos rejeitar suas interpretagdes com base na evidéncia por eles mesmos selecionada para lhes dar apoio. Em segundo lugar, se os testemunhos antigos sdo enganosos a res- peito de Herclito, o que dizer de nosso conhecimento dos pré- socraticos anteriores a ele, conhecimento este que, na auséncia de abundantes fragmentos, depende como que inteiramente dos mesmos autores? Ademais, os fragmentos ocorrem em contextos determinados pelos interesses dos autores que os preservaram. ‘Tomé-los fora de contexto e traté-los como entidades independen- tes a serem manipuladas por si mesmas faz com que se arrisque perder valiosas pistas acerca de seu contexto e significado origi- nais, além de pressupor que os contextos em que se encontram preservados sao de tal modo enganosos que é melhor ignoré-los.* Heraclito mostra-se distinto para virtualmente todos aque- les que se debrugaram sobre ele, e os problemas tnicos e formi- daveis associados a seus fragmentos e as maneiras pelas quais eles foram preservados no nos encorajam a ter esperangas quanto a possibilidade de que se venha a ter algum consenso acerca do modo como se dever apresentar o material, que dira acerca de seu sentido.*” Escolhi publicar os fragmentos, na maioria dos casos, sem 0 contexto, e dispd-los segundo os tépicos que me proponho a discutir, sem nenhuma pretensio de que estejam de qualquer modo como na ordem original. Tal disposic’o favore- ce a brevidade e foca a atencdo em Heraclito, mas nao substitui o exame detalhado das fontes materiais.?* Além disso, embora 36 Os contextos dos testemunhos e dos fragmentos foram coletados por Mouravicv como parte de sua obra monumental sobre Heraclito (Mouraviev [1999-]). 3” Para citar trés abordagens: DK abandona toda esperanca de recuperar a disposicao original e apresenta os fragmentos na ordem alfabética dos nomes dos autores que os citaram; Kahn acredita que os fragmentos “foram originalmente dispostos em uma ordem significativa” e que “é tarefa do intérprete apresentar esses fragmentos incompletos ¢ dispersos numa ordem mais significativa que ele possa encontrar” (Kahn [1979:8]); Osborne argumenta em favor da leitura dos fragmentos no contexto em que estao preservados (Osborne [1987b]). 8 Osborne (1978b) traduz muito de Hipélito. Boa parte do contexto antigo é fornecido no capitulo sobre Herdclito em Barnes (2001). 221 | »——— HerACLITo DE BrEso problemas relativos ao texto e ao sentido venham 4 tona em boa parte dos fragmentos, uma abordagem desse escopo nao pode pretender menciona-los todos, menos ainda examind-los por completo. A discussdo que segue pretende ser meramente suges: tiva, ndo exaustiva ou definitiva. Postura em relac4o aos outros Herdclito expressa amitide a baixa opiniao que tem acerca de seus semelhantes (Grupo I). Ele se queixa que as pessoas nao so capazes de compreendé-lo (10.1) e talvez que sejam hostis a suas ideias pouco familiares (10.12), e também que se importam mais com seu proprio umbigo do que com a verdade (10.4). Nao usam nem seus sentidos (10.1, 10.3, 10.20, 10,22, 10.13), nem sua inteligéncia (10.3, 10,13) corretamente; de maneira irrefletida e inconsistente (10.1, 10.11), dio ouvidos tradigao, a autoridade e uns aos outros (10.13), e no fim acabam todos por chegar a con: clus6es por si mesmos, satisfeitos com seus préprios pensamen- tos (10.2, 10,3), 0 que, na maior parte das vezes, revela-se inttil (10.6, 10.20), em vez de reconhecer que uma tnica verdade faz-se presente em toda parte (10.1, 10.8), a tudo sendo comum (10.2), HerAclito ataca igualmente figuras intelectuais notaveis por sua ignorancia (Grupo II). Uma excegio em meio a tais abusos é Bias de Priene, um dos Sete Sabios (10.18), talvez por haver declarado que “a maioria das pessoas é ma” (10.13). Fato interes- sante —e talvez significativo — € que (nos fragmentos que sobrevi- yeram) Heraclito nao ataca os filésofos de Mileto, aos quais, em verdade, devia muitas de suas teses (10.2). Observacées sobre método Como 10.1 esclarece, Heraclito alega ter feito uma desco- berta de importancia colossal — nada menos que a descoberta para entender todas as coisas. Sua nocao de “todas as coisas” ul- trapassa aquela dos jénios, uma vez que envolve, em acréscimo 222 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... ————+ ao mundo fisico, o mundo pratico da ética e da politica, a reli- gido, assim como alguns dominios mais estritamente filos6ficos. Ele chama essa descoberta fundamental de o Logos, e acredita que compreender 0 Logos éa coisa mais importante que alguém. pode fazer. A principal tarefa deste capitulo sera determinar 0 que ele entendia por Logos e como ele julgava-o capaz de expli- car todos os fendmenos. Antes de passar a essas questGes, sera proveitoso considerar suas observages sobre como aprender 0 Logos, que constitui a mais extensa reflexZo sobre método sobre- vivente até sua época.”” A maioria das pessoas age como se adormecida (10.1, 10.23), cada qual com um mundo onitico privado, diferente do mundo comum, publico, em que vivemos (10.24). Embora cer- cado por uma parte do mundo real, que € comum a todos (0 Logos é comum [10.2]), eles nao o apreendem (10.3, 10.2, 10.1, 10.8, 10.10) ou 0 compreendem (10.1, 10.3, 10.13). Heraclito sugere que podemos escapar de tal estado. Pois ele contrasta © sono e o mundo onirico com 0 despertar ¢ 0 mundo real, contraste esse que sugere, por sua vez, que podemos acordar: a questao é como. Em contraste com 0 estado normal de ignorancia e descren- cada humanidade, o divino tem conhecimento e insight (10.28), sendo o Unico ser verdadeiramente sAbio (10.30). Nem essa ale- gac4o nem a observacdo segundo a qual somos como bebés em comparacdo com deus (10.29) significam que devemos perma- necer inteiramente ignorantes, assim como a tese segundo a qual o entendimento & comum a todos (10.31) nao significa que possuimos todos 0 exato insight que Herdclito nega que possui- mos (10.28). Antes, tal qual a crianga que cresce e torna-se ma- dura, podemos nés crescer em insight. Nosso objetivo ultimo é€ 39 Os fragmentos & testemunhos sobre os filésofos de Mileto nada oferecem sobre esse topico. Os comentarios de Xenéfanes relativos & métodos sio discutidos acima, p. 134-136. As teses dos pitagéricos devem ser inferidas a partir dos (frequentemente hostis) testemunhos, tais como 9.35. 223 HerAcurro pe Eres A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... © pensamento (10.31), 0 autoconhecimento e 0 reto racioci (10.32).4° A medida que obtemos esse insight e essa sabedort transcendemos o humano, assemelhando-nos ao divino (10.28, 10.30).41 Adquirimos insight principalmente de dois modos: investi gando a nés mesmos (10.33) e investigando, através do correti uso dos sentidos (Grupo III.E), o mundo a nossa volta. Aprimeir vista, parece que os sentidos nao podem ajudar-nos na aquisiga desse conhecimento (10.19, 10.20, 10.21, 10.22, 10.1 ({proximo ao final]). Porém, observe as qualificag6es: a visdo e a audicao nao sio confidveis para aqueles de almas barbaras (10.21), alguns nao sabem ouvir ou falar (10.20). A maioria das pessoas cai nessa cas tegoria, mas Herclito acredita que uma pessoa sabia pode usar’ os sentidos para adquirir informagao acurada. Ele privilegia a ex- periéncia direta dos individuos (10.35), mas considera a audi¢ao inferior A visio (10.36), talvez porque coisas falsas nos podem set ditas mesmo por autoridades respeitadas (10.13, Grupo II). Seus comentarios sobre o sentido do olfato (10.37) indicam que deve- riamos usar qualquer que venha a ser o sentido mais apropriado em cada situacao. Se todas as coisas nao fossem senio névoa, ou estivessem no submundo (10.38), nao poderiamos ver, antes distinguindo-as pelo cheiro. Para tornarmo-nos sabios, devemos aprender a usar os sen- tidos com insight ou inteligéncia (noos).42 Devemos igualmente praticar a investigacao como os fildsofos jénios, porém de modo ainda mais amplo (10.43). Ainda assim, a simples erudicao nao é o mesmo que sabedoria e insight (9.2). Devemos conduzir nossa investigagao sistematicamente (10.45), de modo a promover 0 reto pensar, falar e agir (10.46), 0 que requer que apreendamos a unidade e a coeréncia do universo € a cooperagao entre suas partes (10.44). Investigar é dificil (Grupo IIL.F). Requer trabalho (10.34, 10.41), paciéncia (10.40) e esperanca (10.39). 10.39 pode querer dizer que a menos que se tenha uma ideia de que ha um tni- co principio que rege tudo o que ocorre, jamais se pensara em buscé-lo e, portanto, jamais sera encontrado. 10.42 e 10.43 sugerem razOes para a dificuldade. Os princt- pios da natureza como um todo ou da natureza (a constituigao basica) de cada coisa nao ébvios. Eles subjazem ou estao por tras de todos os fendmenos e devem ser apreendidos se quisermos compreender tais fendmenos, mas devemos ir além dos aspec- tos superficiais com vistas em apreendé-los. Os fendmenos sao “sinais” das importantes verdades subjacentes. Eles nao ocultam deliberadamente as verdades de modo a evitar que as descubra- mos, mas um seu correto entendimento (tal qual as respostas proverbialmente enigmaticas € oraculares dadas em Delfos) re- quer cuidadosa interpretacao. O Logos A grande descoberta de Herdclito € que todas as coisas que ocorrem ou vém a ser fazem-no de acordo com um Logos (10.1), © qual € comum (10.2) tanto porque se aplica a toda parte quanto porque é objetivo e, portanto, disponivel a todos os seres huma- nos. Isso equivale a alegar que 0 mundo é governado por um principio racional que os seres humanos podem vir a compreen- der, Podemos compreendé-lo porque somos igualmente racio- nais, e nossa racionalidade esta relacionada ao principio racional universal do Logos. Substantivo relacionado ao verbo legein, “fa- lar”, logos é um coisa dita e, portanto, uma palavra, um enuncia- do ou uma histéria. A intima conexao entre o que dizemos e 0 que escrevemos e pensamos explica a ainda mais variada gama de significados: explicagao, acordo, opinido, pensamento, argu- mento, raz4o, causa. Talvez por causa desses dois tiltimos senti- 225 40 “pensar” (phronein) © “reto raciocinio” (sdphrénein) so termos intimamente relacionados, seja etimologicamente, seja semanticamente. 4 Muitas das ideias esbogadas nesse pardgrafo tém paralelos importantes nos contemporaneos de Herdclito, Xenéfanes e Parménidles. 4 De acordo com 10.128, a percepgao € necessaria para nossa inteligéncia (nous, equiivalente a noos) para alcancar sua melhor condigao, na qual é plenamente racional. 224 ~-——— Herdcrito pe Errso dos ganhe ainda outros: relagao, proporc4o. Todos esses sentidos eram correntes no século quinto. No século seguinte, o termo também foi empregado para designar a faculdade da razao, prin- cipio geral e definicio.”” Nenhum desses sentidos descreve 0 Logos de Heraclito. B distinto daquilo que as pessoas — mesmo Heraclito — diz ou pensa (10.47), portanto nao é uma palavra, um enunciado, uma explicagdo, uma opiniao etc., mesmo uma (ou a) opiniao ver- dadeira. “Principio geral” provavelmente esta mais proximo da inteng&o de Heraclito, porém trata-se de uma nogio demasiado abstrata, pois ele associava 0 Logos com 0 fogo (compare-se 10.1 e 10.81; veja-se ainda abaixo, p. 238 enquanto a natureza ati- va do universo. Escrevo Logos com maitiscula, deixando a pa- lavra sem tradugao nos contextos em que tem seu significado heraclitiano especial (10.1, 10.2, 10.8, 10.47, 10.113, 1.114). Nas demais ocorréncias, traduzo o termo deixando “logos” entre pa- rénteses. Dada a enorme diversidade do mundo, se tudo ocorre por causa de um unico principio, tal principio deve funcionar ou ser revelado nas mais variadas formas. Deve ser totalmente geral, e, portanto, uma explicagéo de um fendmeno em termos do Logos dar-se-4 igualmente em um nivel bastante geral, conectando-o com muitos outros fendmenos. Tais explicacées nao serdo fami- liares para a grande maioria das pessoas, pouco habituadas a pen- sar nesses termos. Se Heraclito “distingue cada [coisa] de acordo com sua natureza” e “diz como ela é” (10.1), nao € surpreenden- te que ninguém o entenda. As palavras supracitadas sugerem que Heraclito acreditava que, quando empregada apropriadamente, a linguagem repre- senta (ou reapresenta) a realidade no sentido em que uma cor- reta descrigéo ou explicagao de qualquer coisa concorda com a natureza da coisa e diz como a coisa em questo é, uma vez que “8 Guthrie discute os significados de logos com mais vagar (Guthrie [1962:420-24]). 226 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... -——— a explicacdo ela mesma reflete a natureza da coisa. (Como exem- plo, veja-se 10.68 acima, bem como a p. 212, nota 21). Essa crenga explicaria a expressdo enigmatica e paradoxal de Heraclito: esse € 0 tnico modo de expressar de maneira acurada as surpreen- dentes e complexas naturezas das coisas e suas inter-relages. “A natureza ama ocultar” (10.42), e explicagdes demasiado comple- tas nao capturam esse traco essencial da realidade. ‘Tal qual a propria realidade (e qual o ordculo délfico), uma explicagao cor- reta da realidade precisa ser interpretada (10.43). O Uno € 0 Multiplo Herdclito resume sua descoberta no sugestivo slogan “todas as coisas sao uma” (10.47), 0 qual ele amplia: “de todas as coisas, surge uma unidade, e de uma unidade, todas as coisas” (10.48). Trata-se de dois principios gerais, importa admitir, e sujeitos a interpretacdes tremendamente diferentes. Para ver 0 que He- raclito quer dizer, precisamos olhar adiante, primeiramente ao restante de 10.48, que introduz trés outros modos de considerar os fendmenos. A oposic&o entre “uno” e “todas as coisas”, acres- centa-se “todo” e “nao todo”, “reunidos” e “apartados”, “em harmonia” e “sem harmonia”. Todos os quatro pares de opostos descrevem “coisas tomadas conjuntamente”. A real natureza do mundo € simultanea e igualmente uma unidade e uma plurali- dade. Podemos compreender a alegacao epistemologicamente: © mundo pode ser considerado quer como composto de mui- tas coisas distintas, quer como um todo. Uma coisa individual parte do mundo; 0 mundo como um todo é constituido de partes que possuem suas proprias identidades. Nossa tendéncia é tal que concebe as coisas e os processos complexos separada- mente, sem prestar atengao a suas inter-relagdes € ao todo de que sao partes. ‘Trata-se de um sério equivoco. O modo corre- to de concebé-las passa por compreender o todo e reconhecer 48 partes que o constituem. Isso nfo nega sua individualidade; = 227 Herdcurro pg Breso podemos, porém, apreciar melhor a individualidade de umi coisa quando sabemos como ela se relaciona com outras coisas, Do mesmo modo, podemos apreciar melhor a individualida: de de um processo quando compreendemos os estagios que 0 constituem. Em ambos os casos, tal conhecimento é parte de uma compreensao de que todas as coisas sio uma. Igualmente, compreender um todo requer conhecimento de como suas part tes funcionam, como elas possuem e ndo possuem identidade a titulo préprio (“todo[s] e nao todo|s]”), como elas se combi: nam e nao se combinam (“combinado e apartado”), e como elas operam e nao operam conjuntamente (“em harmonia” e “sem harmonia”). Herdclito enfatiza a unidade na diversidade mais do que a diversidade na unidade, pois aquilo com que somos cons- tantemente confrontados é a diversidade, e nossa primeira tarefa € apreender a unidade subjacente. Tal tarefa é também a mais di- ficil, pois requer que aprendamos novos modos de perceber e de pensar, Uma vez isso alcangado, podemos nos valer das mesmas ferramentas para desmembrar a unidade, compreendendo como. a diversidade existe e opera em seu seio. 10.48 afirma que “as coisas tomadas combinadamente” tem qualidades opostas. Uma qualidade oposta é devida a outra: nao houvesse elementos distintos, nao haveria harmonia, pois a har- monia é uma relacio entre coisas distintas. Do mesmo modo, 0 conflito, que concebemos como algo destrutivo, é responsavel pela geragéo das coisas (10.5). 10.49 e 10.78 podem ser tomados em ambos 0s sentidos: ou coisas possuem qualidades opostas, ou possuem uma qualidade porque possuem seu oposto. A segunda leitura desses fragmentos é que faz a alegacao mais forte e de longe a mais interessante, e encontra apoio nas imagens do arco e da lira. Devemos imaginar um arco ou uma lira esticados que nao estejam sendo utilizados. O arco consiste em uma corda e em um pedaco de madeira curvado. Enquanto o observamos, pare- ce estavel e desprovido de vida. O que deixamos de perceber € a conexao (10.50), a tensdo que o torna um arco, e nao apenas um 228 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... —— jpedago de madeira e uma corda. Ademais, a tenséo é um avolvat se para tras” ou “estreitar-se para tras”. A corda ea madeira es- Lilo sob igual pressio em diregdes opostas, a corda sendo esticada pela madeira e as extremidades da madeira presas pela corda. A inidade do arco, bem como sua habilidade para funcionar, de- pendem da tens&o entre a madeira e a corda (“de muitos, um”), ainda que a tensao nao possa existir sem a corda e sem ainidabings Além disso, uma vez que compreendamos como funcionam os arcos, nos sairemos melhores no preparo de arcos e na escolha dos tipos de madeiras e de cordas que devem ser empregados, de acordo com suas qualidades individuais (“de um, muitos”). O caso da lira é similar. O arco e a lira séo paradigmaticos do modo como o mundo funciona e de como devemos compreendé-lo. A moral pode ser aplicada a todos os processos e coisas complexos, nos quais o todo funciona em virtude da relagdo de suas partes, © as partes contribuem para o funcionamento do todo por causa de suas proprias naturezas particulares. Porém, como demonstra HerAclito, o Logos ea doutrina da unidade e da diversidade operam de modos surpreendentes, fazendo-se presentes em uma gama muito mais ampla de fendmenos do que poderiamos esperar. A oposicgao O Logos garante que todas as coisas sao uma, e que uma coi- sa € todas. Herdclito expressa tal insight de forma paradoxal, nos termos do par de opostos absolutos “um’ e “todo”. Seu interesse na oposigo é tremendo, ¢ os tipos de oposig6es que aborda ilus- tram como 0 Logos funciona em diversos contextos. Se No primeiro tipo de oposic&o (Grupo V.A), um tinico suck to tem propriedades opostas com respeito a ou em compara¢ao com diferentes tipos de entes. 10.53 é o caso mais claro. porque potavel e saudavel mais puro para peixes mar mais polufdo para humanos porque impotavel e mortal 229 HerAcr.tto pe BrRSO “Puro” e “poluido” sao caracteristicas opostas que o mar tem em um grau superlativo. Uma compreensao plena da agua maritima envolve saber tanto que é mais pura quanto que é mais poluida (e que tudo aquilo que nfo satisfizer essa dupla condi¢do simultaneamente no pode ser 4gua maritima), mas nao é suficiente apenas afirmar que a 4gua do mar possui tais qualidades opostas; precisamos explicar a assercao, chamando atengdo para o fato de que a 4gua maritima possui essas ca- racteristicas diferentes para diferentes espécies de coisas, expli- cando por que é assim. Quando estamos em posi¢io de poder fazer isso, sabemos, entéo, coisas importantes acerca da Agua maritima, mas também acerca dos seres humanos e dos peixes, Os demais fragmentos no Grupo V.A podem ser interpretados de maneira semelhante. Os porcos, os asnos e os bois possuem preferéncias distintas daquelas que caracterizam os seres hu- manos, de modo que, em cada caso, algo possui atributos con- trarios. A lama é, a um s6 tempo, mais e menos desejavel do que a Agua pura: mais desejavel para os porcos, menos para os seres humanos. No Grupo V.B, uma coisa possui propriedades opostas em circunstancias diferentes. Trata-se, aqui, de uma questao de con- siderag6es objetivas, e nao de preferéncias subjetivas, ou de ju- izes com diferentes constituicées. 10.61 tem em vista um caso em que uma doenga e 0 tratamento que a cura (cirurgia ou cau- terizagao) causam o mesmo tipo de dor. Na maioria dos casos, as coisas que causam dor sao mas para nés, e por isso mesmo as evitamos; porém, em algumas circunstancias, escolhemos passar por algo que causa dor em fungao de outros efeitos seus, estes sim desejaveis. mas, evitadas quando causadas por doenca dores de cortes e queimaduras (aversao em todos }) boas, buscadas oscasos) } por cirurgia, que cura a doenca quando causadas A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... — Semelhantemente, a linha de uma escritura move-se retili- neamente ao longo da pagina, mas em vista da forma de cada letra individual, é, igualmente, tortuosa (10.62).44 Ambos sao aspectos essenciais da escrita. Dois fragmentos incluidos nesta segdo podem ser interpretados de modo diferente, mas fazem sentido se analisados em conjunto com o que aqui vai. A estra- da para cima da colina, digamos a Via Panatenaica, que leva ao topo da Acrépole, é a mesma que desce a colina (10.63). Uma estrada que vai de X para Y também vai de Y para X. Ambas as descrigées sAio corretas, porém incompletas. Finalmente, 10.64 contrasta 0 mesmo rio com diferentes aguas. Se entro no mes- mo rio em diferentes momentos no tempo (presumivelmente no mesmo lugar), a 4gua que molha meus pés é diferente a cada vez. Isso € consequéncia da natureza dos rios: sao 4gua em mo- vimento. No Grupo V.C, uma tinica coisa possui caracteristicas opos- tas em diferentes momentos no tempo. 10.69 pode afirmar uma leiinevitavel da natureza: o que quer que seja frio deve, emalgum momento, tornar-se quente. Alternativamente, pode ser que 0 fragmento esteja estabelecendo um ponto conceitual, a saber, que as tinicas coisas que podem se tornar quentes sdo as frias. Pode ser, igualmente, que esteja descrevendo o funcionamento {isico do mundo (quente e¢ frio eram principios proeminentes na filosofia jonia e desempenham certo papel na cosmologia de Herdclito [10.77]). Também pode ser visto como estabele- cendo pontos correspondentes acerca de processos reciprocos, tais como o aquecer € 0 esftiar. 10.70 contém algumas dificul- dades, mas seu ponto geral é semelhante ao de 10.69. Come- ¢a com um paradoxo: uma tnica coisa possui caracteristicas 44 Na Jeitura do manuscrito (veja-se acima, p. 212, nota 18), 10.62 estabelece um ponto similar acerca das méquinas de cardar, embora no saibamos o suficiente acerca \Jesses aparelhos antigos de modo a compreender como o fragmento descreve-o. A cardagio é um proceso de desenredar 14, parte da preparacao de fios a serem tilizados para coser. 231 HerAcuiro pg Ereso distintas; e, a seguir, resolve o paradoxo esclarecendo que as caracteristicas contrastantes pertencem a coisa em diferentes tempos, pois ela muda. As dificuldades emergem ao se adequar a explicacao aos pares de opostos dados.*” No Grupo V.C, até agora, vimos casos em que determinado sujeito possui ora uma caracteristica, ora a caracteristica oposta. A unidade dos opostos consiste no seu pertencimento sucessivo ao mesmo sujeito. 10.71 expande essa ideia. Dia e noite sio opostos que se alternam, mas aqui nao ha sujeito algum que passe por uma mudanga. Nesse caso, a alternancia regular entre estados opos- tos € tudo o que se precisa para unificar os opostos. (Veja-se também o Grupo V.E). O Grupo V.D estabelece um ponto epistemoldgico. Se nés todos fossemos 0 tempo inteiro saudaveis, nao o saberia- mos, antes dando por certa tal condi¢éo em nossa ignorancia de qualquer alternativa. Sequer disporiamos de uma palavra para satide, j4 que o propésito das palavras é distinguir coisas, assinala-las dentre outras. Se todas as coisas partilham de uma qualidade comum, aquela qualidade nao tera um nome. O pon- to aqui consiste no seguinte: ser capaz de conceber, compreen- der e ayaliar corretamente qualquer dos pares de opostos requer ser capaz de fazer o mesmo em relagao ao outro, igualmente.*° O Grupo V.E contém fragmentos importantes seja para a abordagem da oposicao, seja para a da cosmologia. 10.74 é me- nos complicado e apresenta a seguinte imagem. A alma morre,*” cessa de ser, quando se torna Agua; a 4gua cessa de ser quando se torna terra; mas ha igualmente processos nos quais a terra se torna agua e a agua se torna alma. alma <> agua <> terra “ Para uma sugestao, veja-se abaixo, p. 236-237. 46. © contemporaneo de Herdclito, Xen6fanes, estabelece o mesmo tipo de ponto em 7.30, 4” A morte, aqui, nio é simplesmente uma metafora para a mudanga. Heréclito sustenta que a alma morre quando sua natureza ignea (literalmente) se apaga. Veja-st 10.104 ¢ abaixo, p. 245. 232 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... 10.75 afirma a mesma coisa de modo mais obscuro, com o fogo tomando o lugar da alma, e o mar tomando o lugar da agua. fogo <> mar > terra ‘A tromba d’4gua ignea (um furacio na forma de funil ilu- | minado por relampagos) € 0 meio através do qual a 4gua do mar | transmuta-se em fogo. 10.75 enfatiza a ideia de medida na mudanga. Metade do mar transforma-se em fogo e outra metade transforma-se em | terra. Quando a terra se transforma em mar, um principio de conservacdo esta operando: por exemplo, duas partes do mar | tornam-se uma parte da terra, e, de modo similar, uma parte da terra torna-se duas partes do mar. 10.77 sublinha igualmente a nocao de mudanca medida e a eternidade e a estabilidade da situagdio como um todo. Uma vez que 0 fogo, o mar e€ a ter- ra estdo continuamente transformando-se uns nos outros, cada um deles esta sempre vindo a ser (“iluminado-se”) e perecendo (“extinguindo-se”). Todos os trés principais componentes do kos- mos existem em estado continuo. A atual estrutura do mundo é do modo como sempre foi e sempre seré. Consequentemente, o mundo e sua ordem nfo possuem uma origem. Nossa tarefa é entendé-lo tal como é agora. O Grupo VE difere dos demais grupos ja discutidos, uma yez que considera uma tinica oposigao, nao um tipo de oposigaéo encontrado em diversos contextos,** e que apresenta nao dois, mas trés estados em contraste, cada um deles com sua propria identidade e papel tinico.” Assim como em 10.71 nao se pode identificar um sujeito que assuma diferentes qualidades e sobre- viva a mudanga. Com efeito, uma vez que as mudancas ocorrem entre as formas basicas da matéria, nao pode haver um sujeito que persista A mudanga. Quando o fogo se torna 4gua, aquilo 48 para essa identificacao entre fogo e alma, veja-se abaixo p. 236-237. “9 Bm principio, poderia haver qualquer namero, nao apenas trés. Se Heréclito livesse adotado o sistema de Anaximenes, ele poderia ter falado em sete (veja-se acima, p 112-113. 233 HerAciiro pe Ereso que era fogo é agora 4gua, mas nem o fogo nem a Agua estao presentes ao longo de toda a mudanga. Nao ha como descrever “o que era fogo”, a nao ser em termos do que é em tempos di- ferentes. Trés fatores desempenham um papel na anilise de tais mudangas: (a) os diferentes estagios da mudanga (fogo, agua, ter- ra), (b) os mecanismos ou processos de mudanga (por exemplo, chuva, tromba d’4gua chamejante), (c) a regularidade, a ordeme a medida da mudanga. Para Herdclito, os opostos ilustram o principio do Logos, “De todas as coisas gera-se uma unidade, e da unidade, todas as coisas” (10.48). Uma vez que caracteristicas opostas séo, em geral, consideradas como distintas, separadas, o mais apartadas possivel, elas parecem trazer a maior dificuldade para sua teoria. Porém, se mesmo os opostos mostrarem-se como sendo “um”, a teoria tera sobrevivido a um desafio especialmente dificil. Além disso, como muitos opostos sfio extremos que admitem toda uma gama de intermediarios, se os opostos se mostrarem “um”, entao, a fortiori, todos os intermedidrios seraéo também unifica- dos. Se quente e frio so “um’,, assim também o tépido, o morno etc. Heraclito considera muitas espécies de oposigao, algumas fisicas (Grupo V.E), outras conceituais (Grupo V.D), algumas dependendo do termo de comparagao (Grupo V.A) ou relativa- mente a o que (Grupo V.B) ou em que tempo (Grupo V.C) uma coisa é considerada. Seu alcance é mais amplo que o dos filésofos jénios, cujo interesse principal residia no mundo natural. Ade- mais, nfo ha um modo unico para identificar ou analisar todas as espécies de oposi¢ao de que ele trata. Eis por que sua empreitada é tao dificil. Compreender como o Logos opera requer que se en- contre e que se analise todos os casos de unidade na pluralidade e de pluralidade na unidade — ¢ isso se da nos cenarios mais ines- perados. Dai a necessidade de investigar um vasto nimero de coisas (10.34), de prestar cuidadosa atengao (10.46) e de adquirir a habilidade de pensar corretamente (10.46, 10.44). Essa também é a raz4o pela qual aprender muitas coisas por si mesmo nao é suficiente (9.2): é igualmente importante conhecer “o uno”, Por 234 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES. fim, devemos manter em mente 0 espirito paradoxal que perpas- sa esses fragmentos. Heraclito pretende resolver as dificuldades que encontra, mas também se compraz nas miultiplas comple- xidades do kosmos € nos maravilhosos modos que a linguagem encontra para comunicé-los. Principios cosmoldgicos: 0 Logos em funcionamento Duas importantes caracteristicas do kosmos de Heraclito sao as seguintes: ele é eterno (10.77) e seus principais constituintes materiais so 0 fogo, a gua e a terra, os quais sistematica e re- gularmente transformam-se uns nos outros (10,75). Paradoxal- mente, “mudando, esta em repouso” (10.78): a regularidade da mudanca garante a estabilidade. Dito de outro modo, a mudanga é aquilo que é estavel. Tal qual o que se dava com 0 rio (10.64), a sobrevivéncia e a prépria identidade do kosmos depende dessa mudanga. Se a 4gua parasse de fluir, nao mais se trataria de um tio, mas de um grande e estreito lago. Se as formas basicas da matéria parassem de mudar, o estavel, ordenado e regulado kos- mos cessaria de existir. Do mesmo modo, uma “pogao” decanta- -se em seus constituintes se nao for mexida (10.79). A menos que seja mantida em movimento constante, isto é, mudando, perde sua identidade estavel. HerAclito chama a Agua de “mar” (10.75), pensando nas massas principais que constituem o kosmos. A agua é encontrada majoritariamente no mar. A terra € encontrada majoritariamen- te na imensa massa sob nossos pés, a que chamamos “a terra”. O fogo encontra-se mormente (€ em sua forma mais pura) nos céus; mesmo as pequenas parcelas de fogo que vemos em nosso entorno elevam-se em um esforco para alcangar tal lugar. As- sim, tal como os jénios,*° Herdclito escolhe materiais familiares 50 Anaximandro é uma excec&o a essa generalizagio, mas, mesmo no caso dele, uma vez que o kosmos € gerado, seus constituintes principais so substancias familiares: 0 fogo (especialmente nos céus), aér (sob a forma de nuvens), gua (especialmente no mar) e terra. 235 HerAcriro pe BrEso e abundantes para sua forma basica da matéria. Nao é de todo claro por que raz4o o ar nao aparece ao lado dos outros trés.°! Embora o kosmos como um todo exista sempre (10.77), pat- celas individuais de fogo, de agua e de terra vém a ser e cessam de existir, nascem e morrem (10.74).”* Pode ser esse 0 ponto dos obscuros fragmentos 10.89, 10.90 e 10.27, bem como das estra- nhas afirmac6es segundo as quais os mortos tornam-se vivos, e os velhos, jovens (10.70). ‘Tal sistema nao oferece razdo alguma para conferir priori- dade a nenhuma das principais formas da matéria. Porém, em circunstancias similares, Anaximenes chamou o ar de material basico, e agora Herdclito afirma que o fogo é primario: o kos- mos é um fogo sempre existente (10.77) e todas as outras coisas so uma permuta por fogo (10.80). As duas tradugées oferecidas para 10.80 implicam diferentes relacées entre o fogo e as outras coisas. Na primeira, 0 ponto consiste em que as outras coisas podem ser avaliadas em termos de ouro, e a permuta é de duas mos. Tanto de ouro yale tanto de alguma outra coisa. Desse modo, 0 fogo pode tornar-se outras coisas, mas elas, por sua vez, podem tornar-se fogo novamente. Tanto de fogo torna-se tanto de Agua, e vice-versa. A segunda tradugao evoca a antiga pratica da cunhagem em que uma moeda de ouro era uma peca de ouro marcada para indicar seu peso; seu peso determinava seu valor. Segundo essa leitura, o ponto de comparagio é persisténcia do ouro nas moedas: as moedas sao ouro. Do mesmo modo, sugere- -se que outros objetos (nao igneos) nao sejam distintos do fogo, mas em verdade constituidos por ele. Eles sao “cunhados” pelo 51 Dada a proeminéncia do ar em Anaximenes, bem como na estrutura evidente do kosmos, surpreende que Herdclito o omita. Kahn (1979, p. 143-45) acredita que o ar é a quarta forma basica da matéria para Herdclito, porém é dificil encontrar tal doutrina nos fragmentos (A excegio do diibio fragmento 10.76, sobre o qual se veja a nota seguinte). 5 10.76 refletc ideias heraclitianas, embora a mengo ao ar seja suspeita, € 0 ciclo da mmdanga ali descrito (terra —> fogo —> ar > 4gua — terra) seja incompativel com aquele encontrado em 10.74 e 10.75 236 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... fogo quando o fogo assume diferentes formas, e serao novamen- te “permutados” por fogo quando o processo regular de mudan- ¢a os trouxer uma vez mais a sua fase ignea. Contra a primeira das traducGes, pode-se alegar que todas as coisas foram e serio fogo, mas que ninguém que compre, com ouro, algo que nao seja de ouro, pensa que o que adquiriu foi ou sera ouro. Contra a segunda, o fogo nao persiste ao longo de suas transformac¢ées em Agua e em terra; uma moeda de determinado valor, entretan- to, costumava ser um pedaco de ouro pesando 0 mesmo. De todo modo, como quer que interpretemos essa identi- dade com as demais coisas, o fogo assume uma prioridade entre os materiais basicos, quica porque o kosmos é eterno (10.77). Ao contrario da 4gua e da terra, 0 fogo possui um papel ativo e regulador no kosmos ([10.81]: 0 raio € 0 trovdo sao uma forma pura e altamente ativa de fogo). Pode-se toma-lo como simbéli- co da mudanga necessaria para manter 0 mundo em movimen- to. Essa concepg¢io do fogo conecta-o estreitamente a caracte- risticas centrais da filosofia de Heraclito. No individuo, a alma, que nos torna vivos e nos comanda, € ignea (“fogo” e “alma” séo empregados de maneira intercambiavel em 10.74 e 10.75). Ademais, 0 fogo como aquilo que tudo controla (10.81) é, de algum modo, associado ao Logos, de acordo com o qual tudo se da (10.81). A natureza ativa do universo é guerra e conflito (10.82, 10.83) (oposig&o e mudanga), que, segundo Heraclito, equiva- lem a justica, corrigindo a opiniao de Anaximandro segundo a qual interacao dos opostos que prevalece no mundo equivale 4 injustica (5.20). Eventos no kosmos, inclusive as transformagbes de uma substancia em outra e as mudangas entre opostos, cons- tituem uma necessaria e universal guerra, uma luta necessaria para manter 0 kosmos em uma condicao estavel. O que quer que venha a se dar em caso particular — vitoria ou derrota — é parte do processo como um todo que rege o universo com justicga. He- raclito identifica a justi¢a e, portanto, a discérdia e a guerra no universo, com 0 fogo (10.84). 237 HerAcLiro DE Ereso O fogo é igualmente associado a Deus (10.85, 10.86). Am- bos assumem diferentes aparéncias em diferentes situagdes, mas preservam suas prOprias naturezas. Em um sentido, 0 fogo é © uno por traés do miltiplo, a unidade em toda a diversidade do kosmos. Se 10.87 for corretamente incorporado a presente discussao, entao também a lei faz parte do mesmo ramo de con- ceitos. Vimos que Heraclito associa Logos, fogo, alma, guerra, jus- tiga, Deus e talvez lei. Logos € associado igualmente 4 medida, uma vez que ele enfatiza a importancia da medida nas mudangas ordenadas que ocorrem no mundo (10.75, 10.77, 10.91). Em cer- to sentido, todos esses itens sio o mesmo, o elemento que rege o universo, mas em que sentido precisamente eles sio 0 mesmo é algo que nao é claro. Quando acendo um fésforo e fago algum fogo, certamente nao estou dando ser ao Logos eterno ou a Deus. De nada adiantara exigir estritas condig6es de identidade nesse contexto, assim como néo adiantaria fazé-lo quando Heraclito afirma que o dia e a noite sao um (10.71). Em cenarios diferentes, tais conceitos — Logos, fogo, alma etc. — assumem uma varieda- de de relagées uns com os outros, sendo por vezes virtualmente idénticos, noutras, como que inteiramente diferentes. Por exem- plo, o fésforo ardendo nao é Deus, mas esta relacionado ao fogo césmico (como uma parte? por semelhanga? como uma instan- cia imperfeita? como uma cépia?) e na sua diminuta area de exis- téncia ativa realiza fungdes que a um s6 tempo simbolizam a e so uma parte da guerra e da justiga que regem o mundo. HerAclito, assim como os pitagéricos, nao dispunha do ins- trumental conceitual e das técnicas analiticas para analisar tais assercoes.*? AfirmagGes gerais de identidade eram faceis de fazer e dificeis de contestar. Esse estado da filosofia e da lingua grega serviu aos propdésitos de Herdclito: sua abordagem da unidade do kosmos por meio do Logos exigia associar ideias, e nao analisa- 53 Veja acima, p. 199-201. A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... -las ou separd-las. Ele precisava compé-las, antes de decompé-las uma vez mais. Algumas caracteristicas sao preferidas em detrimento de seus opostos. A guerra e€ a discOrdia (10.83) tém na paz e na har- monia seus opostos, e pode parecer que 0 kosmos € caracterizado tanto pela paz quanto pela guerra (compare-se com 10.86). Do mesmo modo, desde a perspectiva de Deus, que é superior 4 hu- mana (10.28, 10.29, 10.30), todas as coisas sao belas, boas e justas, ao passo que os mortais creem que algumas coisas possuem as qualidades opostas, negativas (10.88). A implicagao clara é que é errado conceber o que quer que seja como feio, mau ou injusto, ao menos quando adquirimos a correta concepgio das coisas. (Esse € um modo de evitar conflito com 10.72). Porém, por que razo Deus pensa que todas as coisas sao justas, em vez de injus- tas, ou mesmo que algumas sao justas, outras, injustas? Uma res- posta possivel a essa séria questao é que a ordem no kosmos nao & moral ou esteticamente neutra, mas boa e bela. A palavra kos- mos carrega essas conotagoes positivas. Um mundo estatico bem como um mundo randémico seriam o seu oposto. Do mesmo modo, a palavra “logos” possui conotacdes de racionalidade, nao de irracionalidade, e esta conectada a outros conceitos de valor positivo, notadamente a justiga, mas também a lei (que guardam as coisas da anarquia) ¢ a alma (que € responsavel pela vida, uma condigSo de valor positivo). Pela interpretacao aqui privilegiada, Heraclito pde o mes- mo peso na mudanga e na estabilidade, na pluralidade e na uni- dade, na diferenca e na identidade: a estabilidade é garantida pela mudanga; a mudanga é estavel; coisas individuais diversas formam uma unidade; a identidade é preservada pela diferenga. Outras leituras sio possiveis. Particularmente, Heraclito é fre- quentemente associado a doutrina da mudanga radical ou “fluxo heraclitiano”. Essa interpretagéo remonta a Platao,** que a de- 54 plato, por sua vez, refere-se (jocosamente?) a um vigoroso movimento na Jonia (Platio, Teeteto 179d-180c [no em DK). Aristételes também relata que Plato, “quando 239 »——— HerActto pe Breso senvolve em seus didlogos Teeteto e Cratilo com base no fragmen- to do rio (10.64), que é citado por ele da seguinte maneira: 10.125 Todas as coisas se movem ec todas as coisas permanecem, ligando as coisas existentes ao fluxo de um rio, ele afirma que nao se pode entrar duas vezes no mesmo rio. (Plato, Cratilo 402a = DK 22A6) Para o Heraclito de Plato, todas as coisas estéo sempre mu- dando sob todos os aspectos. 10.126 Nao ha nada que em si mesmo seja apenas uma coisa: nada que vocé pudesse corretamente chamar de o que quer que seja, ou qualquer espécie de coisa. Se vocé chamar uma coisa de grande, se revelara pequena, e se vocé chamar de pesada, é suscetivel de parecer leve, e assim para to- das as coisas, pois nada é alguma coisa ou alguma espé- cie de coisa. O que é realmente verdadeiro é o seguinte: as coisas acerca das quais nés naturalmente dizemos que “sfio” estao em processo de vir a ser, como 0 resultado do movimento e da mudanga, misturando-se umas as outras. Equivocamo-nos quando dizemos que elas “sao”, antes, tudo esta vindo a ser, (Plato, Teeteto, 152-e [nao em DK]) De acordo com o tratamento que Platao da a essa teoria, mostra-se que tal tem por consequéncia uma instabilidade de tal modo radical nas coisas que elas sequer podem ser descritas. jovem, trayou contato com Cratilo e com as doutrinas heraclitianas segundo as quais todas as coisas sensiveis estao em permanente fluxo (passam pelo fluxo heraclitiano), e delas nao se pode ter conhecimento” (Metafisica 1.6 987a32-34 = DK 65A3). Em outras passagens, Aristételes fala da “extrema doutrina daqueles que se dizem seguidores de Herdclito [Aristételes aqui cunha um verbo, “heraclitizar”}, defendidas por Cratilo, que acabou pensando que nada mais deveria dizer, mas apenas mover seu dedo, condenando Heréclito por ter dito que é impossivel banhar-se no mesmo rio duas vezes, pois pensava que nio era possivel fazé-lo uma tnica vez sequer” (Metafisica 4.5 1010a10-15 = DK 654). No que segue, contesto a tese segundo a qual Heraclito era um heraclitiano nesse sentido. Esses heraclitianos extremados parecem ter construido suas filosofias por meio de certas interpretacdes 4s doutrinas de Herdclito, levando-as ao extremo. 240 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... —— Elas nao permanecem as mesmas por tempo suficiente para que qualquer descricio se lhes aplique. Com efeito, “toda resposta, acerca de qualquer topico, é igualmente correta, tanto ‘é assim’ quanto ‘no é assim’ (...). nao se deve usar nem mesmo a palavra ‘assim’; pois este ‘assim’ nao mais estaria em movimento; tampouco ‘nao assim’, pois aqui também nao ha movimento”.> Aimportancia de Platao bem como sua proximidade hist6- rica conferem a tal interpretacdo uma impressionante linhagem, mas é justo indagar quao bem ela quadra com aquilo que sabe- mos acerca de Herdclito a partir de seus fragmentos, quao pro- vavel € que Heraclito tivesse em mente tudo aquilo que Platao atribui-lhe e se a interpretacao deve-se a alguma incompreensao ou a algum exagero da doutrina de Heraclito (seja da parte de Platao, seja da parte de Cratilo ou de outros heraclitianos). De inicio, nao ha raz4o alguma para atribuir a Heraclito as implicagdes que Platao extrai, segundo a qual a linguagem é impossivel porque nao ha suficiente estabilidade no mundo que garanta as referéncias para as palavras. Essa é uma formulagao de Plat&o € nao € exposta como tendo sido sustentada por Hera- clito ou pelos heraclitianos.** Por outro lado, a tese de Heracli- to segundo a qual ha um permanente intercambio entre os trés elementos (10.75, 10.77) sugere que nao hd estabilidade de longo prazo (exceto pela estabilidade do préprio processo de mudan- ca). A questo é, portanto, a seguinte: Herdclito acreditava que havia estabilidade de curto prazo ou pensava que todas as coisas estavam constantemente mudando? Os fragmentos nao ofere- cem uma resposta decisiva. A existéncia de mudanga constante entre os “elementos” requer que alguma porgao de agua este- ja, a todo momento, transformando-se em fogo, mas nao que toda a Agua o esteja. Tampouco a predominancia da guerra e da discérdia (10.82, 10.83) implica que todas as coisas estao sempre mudando, por mais compativel que seja com tal tese. 55 Dlatao, Teeteto 183a-b (nao em DK). 56 Plato, Teeteto 181d-e (nao em DK). 241 HerAcuito pz Ereso A resposta depende, em alguma medida, das mudangas que esto envolvidas. Nao vejo raz4o para pensar que Heraclito acre- ditasse que alguma coisa, ou grande, ou pesada, ou branca,*” passe por tao rapida mudanga que, de pronto, torna-se (ou si- multaneamente €) pequena, leve ou preta. Por outro lado, ele bem poderia ter acreditado em uma espécie mais fraca de fluxo, no qual todo objeto esta continuamente submetido a mudangas, muuitas das quais sao demasiado pequenas para que se as perceba, Nao ha nenhuma evidéncia em contrario para a hipdtese de que ele tivesse antecipado Melisso (15.10 Sec&o 3) na crenca de que o “ferro, embora duro, desgasta-se pelo contato com o dedo, e assim também o ouro e a pedra, e tudo o mais que julgamos duradouro”, Tal tese € compativel com a doutrina da mudan- ¢a universal e também com a viséo do senso comum de que ha uma boa dose de estabilidade no kosmos. O anel de ferro, embo- ra esteja sendo constantemente desgastado, dura por um longo periodo de tempo, ainda que, eventualmente, venha a deixar de existir. Tal teoria acerca da natureza das coisas é um desdobra- mento natural das teorias dos primeiros filésofos, para os quais também o kosmos era um mundo de mudanga e movimento. He- raclito nao ampliou a provincia da mudanga, tendo antes vindo a perceber o paradoxo de que a estabilidade depende da mudanga e que a mudanga é estavel. Para regressar ao fragmento do rio, vemos agora que ali, assim como em 10.78, afirma-se a identidade que persiste ao longo (ou por causa) da mudanga. O fragmento tem sido inter- pretado como um exemplo: o rio é um paradigma. Mas do qué? E facil toma-lo como um paradigma do kosmos como um todo, cuja identidade requer mudanga, primordialmente o intercam- bio entre os “elementos”. 8 dificil vé-lo como um paradigma para cada coisa individual no kosmos. O anel desgasta-se; 0 que se desgasta nao é substituido — embora por compensacao mais °7 Bsses sao os exemplos de Platao em Teeteto 152d, 182d (nao em DK). 242 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... -——— ferro possa estar sendo formado alhures. Por fim, essa interpre- tacSo atribui a Herdclito uma visao que poderia facilmente ser exagerada ou estendida de modo a se transformar na teoria do fluxo heraclitiano.** Em um sentido dbvio, 0 Rio Charles é 0 mesmo rio hoje como era ontem (ou ha um segundo), ainda que a 4gua em cada ponto do curso do rio (ou a totalidade da dgua no rio) seja diferente quando considerada em dois tempos diferentes. Em outro sentido, no entanto, nao é o mesmo rio, e é evidente que alguém como Cratilo poderia seguir Herdclito unilateralmente, defendendo que a mudanca é universal e subli- nhando as diferencas que isso acarreta, em vez da estabilidade que Heraclito encontrou. Cosmologia e religiao Sabemos poucos detalhes da cosmologia de Heraclito. A referéncia a justica em 10.91 faz como que seja provavel que ele concebesse 0 Logos operando nos movimentos dos corpos celes- tes, Suas proprias teorias astronémicas sao surpreendentemente ingénuas (10.92, 10.93). A seguinte descrigio de sua astronomia fornece um quadro melhor do que os fragmentos que chegaram até nés. 10,127 Exalacées emergem da terra como do mar; as que provém do mar sao resplandecentes e puras; as da terra, sombrias. O fogo é alimentado pelas exalagdes resplandecentes, 0 elemento tmido pelas demais. Ele nao deixa claro qual é anatureza do elemento circundante. Ele afirma, entretan- to, que ha tigelas com suas concavidades viradas em nossa direcio, nas quais as exalacées resplandecentes recolhem e produzem chamas. Estas s4o as estrelas. A chama do sol é a mais resplandecente e a mais quente; as outras estrelas s&o mais distantes da terra e por tal razio proveem 4 terra menos luz e calor. A lua, que esté mais proxima da terra, 58 Bssa interpretacdo € negada por KRS, que argumenta que Heréclito néo acreditava na mudanga constante. 243 Herdcurro pe Breso atravessa uma regiao que no é pura. O sol, contudo, mo- ve-se em uma regio clara e imperturbada, mantendo uma adequada distancia de nés. Eis por que nos prové mais ca- lor e luz. Os eclipses do sol e da lua ocorrem quando as tigelas viram-se para cima; as fases mensais da lua devem- -se ao movimento das tigelas, que giram em seu lugar pou- co a pouco, Dia e noite, meses, estagdes e anos, chuvas € ventos e outros fendmenos semelhantes s4o explicados em virtude das diversas exalacdes. Assim, a exalacfio resplan- decente, posta em chamas na érbita vazia do sol, produz o dia, A exalacao oposta, quando domina, causa a noite. 0 aumento de calor devido a exalagio resplandecente pro- duz 0 vero, ao passo que a preponderancia da umidade devida 4 exalagdo sombria traz 4 tona o inverno. Suas ex- plicagdes dos demais fendmenos estao em harmonia com isso, Ele nao fornece explicagao alguma para a natureza da terra, nem para a das tigelas.”° (Didgenes Laércio, Vidas dos Filésofos, 9.9-11 = DK 22A1), A evidéncia sugere que Herdclito nao propés explicacdes especificas para todos os fendmenos naturais que os jOnios es- tavam interessados em explicar. O que ele realmente desejava era estabelecer um quadro geral acerca de como 0 Logos opera; outros poderiam preencher os detalhes. Ele seguiu a abordagem jOnia, explicando os fendémenos em termos de processos com: preensiveis que n&o incluem as agGes deliberadas de deuses an- tropomérficos. Foi semelhante aos jonios também em nao expulsar o divi- no de seu sistema. Ele, alias, sugere que a religiao tradicional nao esta de todo equivocada, antes expressando a verdade incorreta- 5° Esse relato, no qual as exalagdes desempenham um papel importante, € pro: vavelmente baseado em Teofrasto. Heraclito, contudo, provavelmente postulou uma tinica exalacdo para explicar a mudanga da Agua em fogo (10.75). E Teofrasto equivo: cadamente assimilou tal teoria a de Aristételes, que fala em uma dupla exalago. De qualquer modo, a explicago do proprio Heréclito para a noite (10.93) contradiz uma das fungGes atribuidas a exalagéo “sombria”. 244 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... mente, e que a pratica religiosa tem alguns beneficios (10.101). J& que Deus € 0 Logos que rege 0 mundo, o Logos é andlogo a (mas nao 0 mesmo que) Zeus, rei dos deuses e pai destes e dos homens (10.30, 10.82). Certas praticas de culto sio condenadas (10.96, 10.97, 10.98, 10.99), especialmente aquelas associadas a purificagao, embora 0 oraculo enigmatico de Apolo (ao qual He- raclito pode comparar seu proprio modo enigmatico de expres- sar a verdade)™ seja tratado com respeito, assim como, talvez, a delirante Sibila (10.100). Aalma A concepgio de alma mais encontrada até agora nos pré- -socraticos tem sido a da “alma como sopro”, composta de ar € tendo a funco de dar vida ao corpo que habita. Ela parte com a morte, ou para retornar ao ar césmico ou (como querem os pita- g6ricos) para reencarnar. Herclito foi além de seus predecesso- res ao integrar sua visio da alma com sua cosmologia. A alma € fogo, como mostra a substituicéo de “alma” em 10.47 por “fogo” em 10.75. Assim como o fogo césmico “a tudo move” (10.81), assim também a alma nos dirige. Um fogo extingue-se ao tornar- se Agua, de modo que a vida termina quando a alma torna-se tmida (10.103). Se a alma torna-se imida, como quando uma pessoa estA bébada (Heraclito pode ser surpreendentemente lite- rall!), fica incapacitada de realizar sua fungSo de governar nossas ac6es (10.115) — nossa vitalidade é diminuida. Inversamente, a alma encontra-se em seu 4pice quando esta seca, em seu estado mais fgneo (10.104). Heraclito aparentemente acreditava em uma ida apdés a morte que depende do estado da alma no momento da morte (10.106, 10.107, 10.108, 10.109, 10.110). 10.106 sugere que a pu- reza da alma (graus de incandescéncia) determina o que lhe su- © Veja acima, p. 225. 245 HerAcutro DE BFEso cede depois da morte. A doenga enfraquece a alma juntamente com 0 corpo, talvez tornando-a umida e matando-a, ao passo que a alma de um soldado combatente (assim podemos supot) nao é afetada pela doenga ou pela bebida, tornando-se espe- cialmente fogosa em virtude da atividade vigorosa e da Ansia pela batalha. Herdclito parece sustentar que nossa alma ape- nas tera uma vida apés a morte se for pura quando morret- mos. Caso se torne imida, morre também. As almas em geral nao estao isentas do césmico ciclo de mudanga, e contudo He- raclito nos oferece esperanga — e um método — para a obten: ¢ao de uma boa vida apés a morte para nossas almas. Se 10.110 fizer referéncia as almas daqueles que morrem as melhores mortes, ele pode defender que elas siéo absorvidas pelo fogo césmico e, assim, desempenham um papel na regéncia do kos- mos. Por outro lado, o corpo morto é inutil (10.112), posto de lado pela alma recém-partida, decompondo-se e passando pela mudanga de elemento, porém nao mais a mudanca que acom: panha a vida e causada pela alma. A asser¢&o provocativa em 10.112, que desdenha a piedade e o respeito gregos pelo cadd- yer humano,®! mostra quao distantes das crencas comuns eram suas doutrinas. A alma é mais do que um principio da vida; possui tam- bém (¢ isto é algo novo com Hericlito) fungSes cognitivas. Em 10.21, a alma compreende; ela interpreta os relatos dos sentidos correta ou incorretamente. Ademais. 10.21 pode conectar o pens samento e a linguagem. Para interpretar corretamente o teste: munho dos sentidos, a alma nao pode ser barbara; deve falar a linguagem correta, a “linguagem’” universal do Logos, de modo a poder interpretar os fendmenos como manifestacdes do Logos. A alma também tem alguma conexao com a célera (10.124, mas é ©! A preocupaco com o tratamento adequado do corpo morto é explicita nit Antigona de S6focles. ® Veja-se também 10.128, 246 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... ——— dificil compreender 0 sentido preciso).° Por fim, 10.114 € 10.113 descrevem a alma como contendo “um logos autocrescente” e “um tao profundo logos” que seus limites nao podem ser desco- bertos. Pode ser que esses fragmentos digam basicamente a mes- ma coisa, mas nao é claro exatamente o que. Pode ser que fagam referéncia ao problema da autoconsciéncia, segundo o qual é possivel gerar uma regress&o ao infinito ao se considerar a mente como sendo tanto 0 sujeito quanto o objeto do pensamento. Ou podem estar associando nossa alma com a imensa quantidade de fogo (ou seja, de Logos) que rege o universo, ao mesmo tempo que € parte do universo. Ou, talvez mais provavelmente, podem fazer referéncia ao elo entre nossa alma racional e a ordem racio- nal do kosmos, garantida pelo Logos, com a sugest’io de que nao ha um fim para esse duplo buscar — a unidade na pluralidade, a pluralidade na unidade — que Heraclito prescreve como o cami- nho para obter sabedoria. O testemunho seguinte oferece uma explicacio fisica da co- nexao entre a inteligéncia e o Logos: 10.128 O que nos cerca é racional [logikos, adjetivo derivado de lo- gos] e inteligente (...). De acordo com Heraclito, tornamo- -nos inteligentes adquirindo esse Logos divino através da respiracado, e embora possa ser esquecido enquanto dor- mimos, a ele tornamo-nos sensiveis novamente quando despertos. Pois, durante o sono, nossa inteligéncia (nous) € separada de seu contato natural com aquilo que nos cer- ca, uma vez que as passagens perceptivas sao obstruidas, e apenas 0 vinculo por meio da respiracao — como uma raiz — € preservado. Separada, perde a capacidade de memo- ria de que antes dispunha. Quando desperta, vem a tona gradativamente por meio das passagens perceptivas como que por janelas, e entrando em contato com aquilo nos cerca, ativa o poder de raciocinio. Tal qual o caryéo quan- ® Herdclito antecipa, assim, as duas partes mais elevadas da triparti¢go da alma 6m Platdo, Repiiblica, livro 4 —a racional ¢ a “estimulada” (a palavra grega para essa esti relacionada a palavra “cdlera”). 247 ___ HarAcriro pr Errso do posto junto ao fogo altera-se e exibe uma irradiagao rubra que se extingue quando removido de tal posi¢ao, as- sim também a porgdo daquilo que nos cerca que lida com nossos corpos como um estranho torna-se praticamente irracional por causa da separacao, porém, em virtude do contato por meio do grande ntimero de passagens, vem a se assemelhar ao todo.® (Sexto Empirico, Contra os Matemdticos 7.127, 129-30 = DK 22A16) Pensamento politico A crenga de Heraclito de que apenas ele compreendia o mecanismo de funcionamento do mundo, assim como seu des- ptezo para com seus semelhantes antecipam o viés politicamen- te antiestablishment, antidemocratico, tio proeminente em sua biografia e em seus fragmentos. Os relatos de que ele teria re- nunciado a uma “realeza” hereditaria em ifeso e desdenhado as solicitacées de seus concidadaos para que lhes escrevesse leis” reflete o desprezo pela vida politica também expresso em 10.115 € 10.116. Em 10.117, caso se trate de uma afirmagao politica, ele rejeita as bases nas quais esta fundada a democracia (veja-se tam- bém 10.87) e proclama-se um aristocrata no verdadeiro sentido (a palavra que se traduz por “melhor” é aristos). Ele no tem nin- guém em alta estima por descender de familias poderosas, antes valoriza aqueles que sao verdadeiramente “os melhores” em vis- ta de suas realizag6es pessoais, fundamentalmente seu éxito em compreender o e em agir de acordo com o Logos (10.46). 10.13 exibe ainda seu pendor antidemocratico: “a maioria da pessoas € m4; uns poucos sao bons”. 64 Embora contaminada por ideias estoicas, tais como a identificacao do logos com © ar que respiramos, essa interpretagio € seguramente fundamentada no texto de Heraclito (Sexto cita trés fragmentos em passagens imediatamente vizinhas — um em 7.126 e dois em 7.132-33, ambas DK = 22A16) e é fiel As ideias de Herdclito. © Didgenes Laércio, Vidas dos Fildsofos 9.2 = DK22A1. 248 A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... Certo numero de fragmentos faz menco 4 lei, crucialmen- te 10.51, que fala de uma tinica lei divina (o Logos) que écomum a todos. As particulas inferenciais que se traduzem por “pois” mostram que 10.51 é um argumento, mas sua estrutura nao é clara. © Logos “alimenta” as leis humanas: assim como outras ) | partes do kosmos, elas também sao manifestacdes do Logos. A ma opinido que Heraclito tem dos seres humanos e de suas praticas torna surpreendente que 10.51 e 10.119 parecam invocar pes- } soas tao fortemente, assim como, sem ironia alguma, defender } e mesmo depender das leis ou costumes humanos. Heraclito é ) um candidato improvavel a convencionalista, alguém que acre- dita que as tradigdes locais devem ser defendidas, quaisquer que sejam elas. Era de se esperar que ele sustentasse que as pessoas deveriam obedecer a alguém apenas se este for o melhor, mas em que sentido uma lei pode fazer isso (10.87)? Nao, presumivel- mente, a lei deveras da cidade; assim, a lei divina ou o Logos, ou alguma manifestagdo sua em lei ideal da cidade. Isso sugere, por sua vez, uma leitura diferente de 10.51, omitindo “sua” e toman- do a lei em questo no sentido da lei divina, As cidades devem depositar completa confianca no Logos como a fonte do melhor codigo legal possivel. Devem empenhar-se em fundar suas pr6- prias leis na lei universal do Logos. 10.119 quadra igualmente com tal interpretagao. A lei que as pessoas devem defender nfo é lei corrente da cidade, mas sim a ideal. Se essa interpretagao estiver | correta, a contribuigiio de Herdclito para o pensamento politico é de fundamental importancia. Ele baseia suas concep¢ées sobre lei e politica em sua teoria césmica (suas referéncias 4 guerra e A injustica®® podem ser lidas agora a luz dessa interpreta¢ao), com 0 escopo universal do Logos fornecendo uma base metafi- sica para a lei e a sociedade. Até onde sabemos, Heraclito foi o primeiro filésofo a ampliar o dominio de sua filosofia de modo a incluir esses topicos, ainda que o modo com o qual ele expressa suas ideias impossibilite uma anilise segura deles. 6 Veja-se 10.82, 10.83, 10.88 € 10.91. 249 ~—__— HerAcuiro pz Erzso Pensamento moral Heraclito legou-nos igualmente uma contribuicgdo funda- mental em ética. Os j6nios nao haviam mostrado maior interes- se em filosofia moral, e a reflexdo moral presente na literatura grega anterior a Heraclito nfo é filoséfica. Homero (acima de todos), Hesiodo, os poetas do perfodo arcaico (especialmente Solon, Tirteu e Tedgnis) e os Sete Sdbios tinham muito a dizer acerca da melhor forma de vida a se levar, acerca das virtudes e dos vicios, acerca das escolhas morais e de outros topicos que a ética estuda, mas pouco hé em termos de argumento, ha pou- ca atengao ao que nés chamariamos de questes teéricas, pouca andlise autoconsciente da linguagem ética. Muito do que ali vai encontra-se no registro das prescrigées, frequentemente sob a forma de maximas, relativas ao que se deve e ao que nao se deve fazer, a que espécies de objetivos deve-se ter, a que tipo de vida deve-se viver. Afora a promessa de recompensa e puni¢éo por comportamentos justos e injustos (como em Hesiodo), nao ha tentativas filoséficas de defender a moralidade contra a imora- lidade. Heraclito enuncia, ele também, maximas morais (por exemplo, 10.2, 10.4, 10.7, 10.23, 10.46, 10.120, 10.122, 10.123). Ha mais, porém., As questées fundamentais da ética grega que os filésofos do periodo classico e helenistico herdaram da tra- digSo mais antiga eram as seguintes: Qual é o melhor tipo de vida para uma pessoa? Qual € o melhor tipo de pessoa a ser? As respostas que Heraclito oferece a essas quest6es sao tipicamente diferentes daquelas encontradas em seu tempo e antes dele, es- tando associadas 4 sua doutrina do Logos. Para Homero, algumas das melhores qualidades humanas eram fisicas (forga, proeza na batalha, beleza), algumas intelectuais (aconselhar bem, ser astu- cioso), outras, ainda, materiais (riqueza). Outras tinham que ver com a posicao do individuo (linhagem nobre, poder real), e ou- tras com a protec4o e o bom trato da familia, dos seguidores e da cidade do individuo em questao. A melhor vida era aquela gasta A FILOSOFIA ANTES DE SOCRATES... ——j no exercicio ativo dessas qualidades, a obtengao de muitas das quais nao estava nas capacidades do préprio individuo, e muitas, ainda, eram consideradas uma dadiva divina. Para Heraclito, a coisa mais importante a se obter em vida era o entendimento do Logos, que as mais notaveis pessoas, de Homero a Pitagoras, foram incapazes de obter. Assim, nenhum dos heréis de Homero, assim como nenhum dos outros para- digmas de exceléncia da tradigio grega arcaica foi realmente bom ou viveu uma vida realmente boa. A exceléncia suprema € © reto pensar e¢ a sabedoria, que consiste em saber “como todas as coisas movem-se por todas as coisas” (10.44) — uma virtude fundamentalmente intelectual, mas que se manifesta em acgdes corretas. A sabedora de Heraclito nao é apenas especulativa; cla tem implicages praticas. Ademais, ninguém possui essa sabe- doria desde o nascimento, antes, o obté-la ou nao depende de nossos préprios esforgos (10.34, 10.35, 10.39, 10.40, 10.42, 10.43). A sabedoria perfeita ¢ algo ou acima do alcance humano, ou de dificil obteng¢io (10.28, 10.29, 10.30), de modo que a melhor vida humana pode ser aquela que passamos na busca da perfeita sabe- doria, investigando tanto o mundo ao nosso redor quanto a nés mesmos (10.33, 10.34). Heraclito tem um motivo para entender o Logos e justifica sua alegacdo de que a sabedoria é a melhor qualidade humana: é algo divino, de modo que, mediante a ob- tengao da sabedoria — ou o empenho por obté-la — tornamo-nos - ou nos empenhamos nisso — semelhantes aos deuses. Além disso, uma vez que para Heraclito o divino nao sao os deuses olimpicos, mas 0 préprio Logos, quanto mais perto estivermos de nos tornar semelhantes aos deuses, mais o Logos estara em nossa alma ativa, consciente e autoconscientemente. Mais: ja que He- raclito associa o Logos com o fogo césmico puro, ele sustenta que a alma mais s4bia é mais ignea (10.104), assim conquistando os beneficios — aqui e no além — das melhores almas. Por fim, o famoso fragmento 10.21 pode ser entendido de diferentes modos, mas, em qualquer leitura, ele traz uma men- sagem importante. Ele pode querer dizer: “O carater de uma 250 251 HerActiro pe Beso pessoa, em vez de uma divindade externa, é 0 que determina o que acontece com ela”, de tal modo que somos responsaveis por nossas proprias vidas (e pela vida apés a morte de nossas almas). Também pode querer dizer: “Os caracteres das pessoas so suas partes divinas e imortais”, de modo que devemos estar dispostos a grandes esforcos para desenvolver nosso carater o melhor que pudermos. Particularmente, uma vez que nossa melhor esperan- ¢a para uma boa vida eterna seja aprender 0 Logos e por ele viver, nosso objetivo mais importante deve ser desenvolver nosso ca- rater para perseguir esse objetivo. Nesse sentido, ser exitoso ou nao na busca por nos tornarmos seres divinos depende de nosso carater. 252

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