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O RELaTO BIoGRAFICO COMO FOnrTE PARA A HISTORIA Marly da Silva Motta* historiografia contempordnea registra a crescente valorizagdo das fontes qualitativas em reacdo & hegemonia das quantitativas, bem como o significative espago que os relatos biogrdficos e as historias de vida vém ocupando nos estudos situados no campo da historia po- litica. Nesse Gmbito, impée-se o recurso @ historia oral. O livro Depoi- mento, de Carlos Lacerda, apresenta-se como caso exemplar do uso da entrevista de histéria de vida como fonte histérica relevante para se entender a maneira pela qual a meméria do passado constréi as pon- tes para o presente e o futuro. * Pesquisadora do Centro de Pesquisas e Documentag4o em Histéria Contempora- nea do Brasil (CPDOC) da Fundago Getilio Vargas (RJ). Jutho/Dezembro 2000 101 © RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA Queda e ascensio da biografia A espiritos justamente preocupados com as técnicas e os movimentos sociais, parece arbitrério extrair dessa multi- dio de homens que fizeram a Histéria uma personalidade escolhida e interrogar uma época através de suas rea- es. Arbitrério e perigoso, pois o historiador acaba por assumir os sentimentos de seu heréi. Dentre os métodos ditos ultrapassados de fazer historia, o mais estigma- tizado foi a biografia. Alguns dos motivos para essa execragaio estiio evidenci- ados na citagio acima. Na medida em que a historiografia privilegiava as and- lises de natureza econémica ou sociolégica, parecia “arbitrério”, e mesmo “pe- rigoso”, selecionar um individuo dentro da massa de homens que fizeram e que fazem a historia. Mais grave ainda era admitir a possibilidade de que essa hist6- ria de vida pudesse fornecer elementos de compreensao do todo social. Além disso, havia ainda o risco de o historiador se deixar envolver pelos “sentimen- tos” de seu biografado, o que Ihe retiraria a capacidade critica e o distanciamento indispensdveis ao oficio de pesquisador. Dessa maneira, 0 método biografico foi duplamente desqualificado. Em termos cientificos, foi associado a imprecisao € a subjetividade. Situada na fronteira entre a literatura e a historia, a biografia se caracterizaria pela “promiscuidade dos vulgarizadores de baixa categoria, dos escreventes de historietas”, voltada para um grande piiblico Avido por intimidades e de- satento a consisténcia cientifica. Em termos politicos, a acusag4o se voltou contra uma postura considerada elitista e conservadora, a qual, ao privilegiar o individuo ¢ nao a massa, desconheceria “as forgas profundas da historia”. Essa forte reagfo contra métodos e técnicas que reconheciam no individual e no particular uma via de acesso ao conhecimento do social nao atingiu apenas a historia. Na sociologia, as life stories entraram em franco desuso apés a Segunda Guerra. Intimamente associada 4 produgao sociolé- gica da Escola de Chicago’, a historia de vida ficou restrita ao ambito da psicologia social, uma vez que a sociologia estava agora comprometida com 0 desenvolvimento de teorias abstratas e com o rigor dos dados objetivos. * Guiral citado por Levillain, Philippe. Os protagonistas da biografia. In: REMOND, René (org.). Por uma historia politica. Rio de Janeiro : Editora UFRI, Editora FGV, 1996, p. 142. NORA, Pierre e LE GOFF, Jacques (dir). Histéria: novos problemas. Rio de Janeiro Francisco Alves, 1986, p. 14. > BECKER, Howard. Uma entrevista com Howard Becker, Estudos Histéricos. Rio de Janeiro, 3 (5): 114 136, 1989. 102 VIDYA 34 MARLY DA SILVA MOTTA Os surveys, os questionarios, as estatisticas, métodos ditos mais sofistica- dos e confidveis, garantiriam a objetividade que deveria marcar o ingresso das ciéncias sociais no novo patamar alcangado pelas ciéncias fisicas matematicas * Pode-se igualmente atribuir, em boa medida, ao desejo do “novo” historiador em alcangar “uma tecnicidade que (...) 0 eleve ao prestigio dos novos herdis cientificos da segunda metade do século XX, os que controlam ‘0 tomo, aqueles que alcangam o Prémio Nobel”,' a adogaio dos métodos quantitativos na histéria. A constituigao do fato histérico “em séries tempo- rais de unidades homogéneas e comparaveis”, definida por Pierre Chaunu como “histéria seriada”, visava a “substituir o incompreensivel ‘aconteci- mento’ da historia positivista pela repeticao regular de dados selecionados e construidos em fungdo de seu carter comparavel”.* Claro esta que a bio- grafia, por seu carater nico, individual e particular, estaria vinculada a esta “incompreensivel historia positivista”, e, portanto, fadada a desaparecer do arsenal metodolégico da “nova” historia. Essa desqualificagao do método biogrifico se inseriu em uma mu- danga mais ampla do quadro historiografico que envolveu o proprio abando- no da historia politica. Referimo-nos aqui ao ostracismo a que foram relega- dos os temas politicos no bojo da renovagao historiografica detonada com o langamento da revista Annales d'histoire économique et sociale, em ja- neiro de 1929, por iniciativa de Marc Bloch e Lucien Febvre, a qual deu origem auma “escola” de historiadores intitulada de “Ecole des Annales” Essa proposta de renovagao tinha a historia politica como modelo a ser negado. Em outras palavras, a identidade dos Annales deveria ser construida com base na contestagao da historiografia dominante desde 0 século XIX, a qual, focalizando prioritariamente o Estado e as instituigdes, as figuras ilustres e os heréis nacionais, estaria comprometida com a fungao politica de legitimar o poder, construir a nagao € fortalecer o Estado. Psicologizante, biografica, qualitativa, narrativa, factual, e, por isso mesmo, “jdeoldgica”, a histéria politica nao teria condigdes de atingir a natureza da * BECKER, Howard. Historias de vida em sociologia. In: BALAN, Jorge (org.). Las historias de vida en Ciencias Sociales : Teoria y Tecnica. Buenos Aires : Nueva Visién, 1974. NORA e LE GOFF. Op. cit. p. 14. FURET, Frangois, O quantitativo em historia, In: NORA, Pierre € LE GOFF, Jacques (dir). Historia : novos problemas. Rio de Janeiro : Francisco Alves, p. 51 7 Sobre os Annales, ver, entre outros, BURKE, Peter. 4 escola dos Annales : 1929-1989. A Revolugdo Francesa da historiografia. Sao Paulo : Unesp, 1991 ¢ DOSSE, Frangois. 4 historia em migathas : dos Annales & “nova histéria”. S4o Paulo : Ensaios, Campinas Editora da Unicamp, 1992, Jutho/Dezembro 2000 103 © RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA “realidade social”, na medida em que era prisioneira de fatos superficiais ¢ atitudes individuais, de andlises estreitas e descrig6es lineares. Foi, pois, em defesa de uma “hist6ria total”, pautada pela hegemonia do econdmico e do social, que o grupo dos Annales questionou a tradicional supremacia do fato politico na produgao historiografica vigente a épocat.A preocupacdo com as estruturas de longa duragdo, com os comportamentos coletivos, com a “realidade” do mundo da produg&o e do trabalho, revelava um projeto historiografico no qual o politico “ficava de fora”, uma vez que era percebido como “a simple epiphenomenon, largely determined by a collection of economic and social conditions that cannot be modified by human will”®, O prestigio conquistado pela histéria social —a histéria do cotidiano e das mentalidades ~ engrossou 0 coro daqueles que negavam qualquer valor explicativo aos acontecimentos politicos, englobados pela longue durée, e que teriam pouco impacto na vida cotidiana do homem comum. A proliferago e a difusio de andlises de natureza marxista no s6 em livros especializados, mas nos didaticos também, acentuaram o abandono a que foram relegados os temas politicos nos anos 60 e 70. Tachada de elitista, e acusada de compactuar com uma visio amena da dominago, a histéria politica ganhou um lugar no inferno, ¢ quem a defendesse era definido, no minimo, como conservador, sendo, na maioria das vezes, acusado de conivente com a opressao a alienagao a que estavam submetidas as classes populares. Afinal, a politica, seria “mero reflexo da infra-estrutura”, e o Estado no passaria de “simples comité executivo da classe dominante”. As biografias e as autobiografias, terreno onde campeavam os creventes de historietas”, foram o alvo preferencial dos ataques & historia politica. Género historiografico por exceléncia do século XIX, vinculou-se, por um lado, a certo exercicio apologetico dos herdis nacionais, sendo con- siderado, por isso mesmo, um dos pilares do complexo processo de constru- * Para um panorama das criticas dos Annales & historia politica dita tradicional, ver, além dos dois livros citados acima, BALMAND, Pascal. Le renouveau de Vhistoire politique. In BOURDE; Guy e MARTIN, Hervé. Les écoles historiques. Paris : Seuil, 1989; REMOND, René. Uma historia presente ¢ do Politico. In : REMOND, René (org.) Por uma historia politica. Rio de Janeiro : Editora UFRI, Editora FGV, 1996; FURET, Francois. O quantitativo emhistoria. In: NORA, Pierre ¢ LE GOFF, Jacques (dir). Histdria: novos problemas. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1986; JULIARD, Jacques. A politica. In : NORA, Pierre ¢ LE GORE, Jacques (dir) Histéria: novas abordagens. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1976, ° HIMMELFARB, Gertrude. The new history and the old. Massachussets : Havard University Press, 1987 “ JULIARD, Jacques. Political history in the 1980" s. In : RABB, A. e ROTBERG, F. (org.) The new history in the 1980s and beyond. Princeton : Princeton University Press, 1982, 104 VIDYA 34 MARLY DA SILVA MOTTA do das nagdes. Ao mesmo tempo, filiou-se A concepeao da historia como “mestra da vida”, segundo a qual seria possivel, e mesmo desejavel, tomar essas biografias como modelos exemplares a serem seguidos. A cientifizagao da historia, com a adogfo de métodos documentais, mais rigorosos que buscavam tragar uma razodvel distancia do estilo literd- rio, representou o primeiro embate ao método biografico, ao mesmo tempo comprometido com a liberdade ficcional e descomprometido com o rigor da investigagao e a verdade historica. No entanto, coube aos Armales as mais poderosas criticas ao método. E, embora Febvre e Braudel tivessem toma- do figuras histéricas como marcos referenciais de suas obras, o fizeram no sentido de situar tais vidas no correr da longa duragio: Rabelais, Lutero ¢ Felipe II estariam, assim, inelutavelmente submetidos as “forcas profun- das” da histéria!! Foi a partir da década de 80 que a histéria politica, depois de um longo periodo no limbo, retomou um lugar de destaque no quadro da renovago historiogrdfica relacionada 4 chamada “crise” geral das ciéncias humanas. Crise esse que foi pautada pela faléncia dos sistemas globais de interpreta- gio e dos paradigmas dominantes fornecidos pelo marxismo ¢ pelo estrutu- ralismo, ou seja, pelo declinio radical das teorias ¢ dos saberes sobre os quais a historia havia escorado seus avangos nos anos sessenta e setenta, como bem enfatiza Roger Chartier"? No caso especifico da historia, a vitalidade que a disciplina consegui- ra gragas ao ecletismo ¢ a intensa interdisciplinaridade teria desembocado numa “infinita” pluralidade de temas e numa intensa pulverizagio de obje- tos, freqiientemente tratados com métodos superficiais e conceitos forjados de outras disciplinas, com as quais 0 historiador, com raras excegdes, nfo tinha grande intimidade. O que estava em jogo era no apenas a reniincia da historia conquista “iluséria” da totalidade, bem como a demanda por uma efetiva “especializagao” do historiador no seu métier Foi, pois, na senda aberta pela reagao a fragmentagao ~ “a historia em migalhas”, na expresso de Frangois Dosse — e pela delimitagio de um campo especifico, que a histéria politica fez a sua rentrée. Expulsos da “nova histéria/histéria social” sob a acusagao, entre outras, de estarem sub- " LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas da biografia, In : REMOND, René (org.). Por uma histéria politica. Rio de Janeiro : Editora UFRI, Editora FGV, 1996, p. 143 © CHARTIER, Roger. Le monde comme représentation. Annales ESC. Paris, (6): 1505-19. Noy, - Dée,, 1989. * NOIRIEL, Gérard. Une historie sociale et politique est-elle possible? Vingtiéme Sigcle revue d'histoire. Paris, (24) : 81-96. Oct. - Déc., 1989. Julho/Dezembro 2000 105 ‘© RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA, metidos 4 “ditadura da razio”, os temas politicos foram revalorizados no bojo de uma reagao em favor da restauragéo da razdo na historia. Afinal, Iembrava Georges Balandier, “o setor politico é um daqueles que mais so marcados pela historia, um daqueles em que melhor se aprendem as incom- patibilidades, as contradigdes e as tensdes inerentes a toda sociedade”"* ‘A clara percepgaio do espago crescentemente ocupado nas socieda- des contempordneas pela esfera politica abalou a tradicional tese de que esta se constituiria em mero reflexo da estrutura sécio-econdmica. A acen- tuada politizagaio de dominios ditos apoliticos ~a moral, a religiio, aecologia -, bem como a significativa influéncia da burocracia estatal no estabeleci- mento de politicas publicas, demonstraram que o campo politico se situava numa encruzilhada de escolhas e pressdes que nao eram imperativamente ditadas por qualquer instancia “externa”. A descoberta de um dinamismo interno e de uma consisténcia propria conferiu interesse e especificidade ao estudo do politico. O jogo de interesses, a tomada de decisdo, a conquista e a pratica do poder, tudo isto era agora colocado a luz de reflexdes que deixaram de lado 0 reducionismo e 0 determinismo de analises aprioristicas ¢ finalistas. A grande preocupagiio dos historiadores confrontados com a reto- mada do interesse da historiografia pelos temas politicos foi a questdo do proprio retour da hist6ria politica. O risco a ser enfrentado era o de que a mesma histéria que fora expulsa pela janela entrasse pela porta da frente, ouseja, de que a rentrée do politico significasse apenas uma simples volta a “historia tradicional dos homens e fatos”. O combate por uma histéria politica renovada se fez em varias fren- tes, De um lado, aqueles que se bateram por uma mudanga que, aparente- mente de cunho apenas semantic — em vez de a politica, o politico - envol- via transformagées na propria definigdo da esfera politica. Uma historia do politico estaria comprometida com a interpretagao dos fendmenos mais globais, e atenta a elaboragdo, na longa duragao, do que se convencionou chamar de cultura politica, ou seja, estruturas duradouras profundamente enraizadas nas convicgdes € nos comportamentos coletivos'*, A adesao de expoentes dos Annales, como Jacques Le Goff e Jacques Juliard, “a une histoire qu’on peut appeler politique” foi uma indicagao segura de que a \* BALANDIER, citado por JULIARD, J. A politica, In : NORA, Pierre e LE GOFF, Jacques (org). Histéria : novas abordagens. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1976, p. 192. 's BERSTEIN, Serge, L'historien et la culture politique. Vingtiéme Siécle - Revue d'histoire Paris, (35). Juil. - Sep. 1992 106 VIDYA 34 MARLY DA SILVA MOTTA “nova” histéria politica poderia ser balizada, em grande medida, pelos pardmetros da “école”"*, Tal perspectiva foi endossada por René Rémond, que partilhava a idéia de que a renovagao da histéria politica deveria ndo sé valorizar a interdisciplinaridade e lidar com dados seriais na longa durago, como ex- plorar todos os aspectos da vida social, sendo capaz de passar de uma historia “particularizada” para uma histéria “total”. A presenga do politico em todas as. esferas da atividade humana o colocaria no “‘coraga0” da realidade, tornando a histéria politica uma “science carrefour”, sem quaisquer fronteiras que pudes- sem impedir seu relacionamento com outras disciplinas'”. A agenda de debates de Noiriel sobre a possibilidade de uma “hist6- ria social do politico” foi marcada pelo distanciamento em relagdo 20 paradigma dos Annales. Nesse sentido, o historiador francés se filiou corrente que nao apenas se batia por uma “nova” histéria politica descomprometida com a pluridisciplinaridade “exagerada” e com a “ambi- 40” da historia total, como buscava estabelecer um arcabougo metodolégico e conceitual especifico para trabalhar com o politico."* De qualquer modo, pelas trilhas renovadas nos métodos, nos objetos enas problematicas, pode a historia politica ampliar seu campo de investiga- 0 num movimento entre a politica no sentido mais classico do termo — eleigdes, partidos e associagdes, idéias politicas, elites, biografias -, ¢ 0 politico em termos de cultura politica, ou seja, 0 imaginario, as representa- goes, a meméria coletiva, os mitos e as mitologias politicas." Se a crise da histéria politica produziu a queda da biografia, a volta triunfal do politico levou a sua ascensdo. Por um lado, nao ha como ignorar 0 boom de biografias no mercado editorial, ocupando os primeiros lugares na lista dos best-sellers, ¢ provocando o surgimento de segdes especializadas nas livrarias e bibliotecas. O voyeurismo e a avidez em conhecer a intimida- de de pessoas famosas justificariam, em grande parte, 0 sucesso desse tipo de literatura. A questi foi, no entanto, bem mais complexa quanto a reutilizagaio do método biografico nas ciéncias sociais e na histéria. De um modo geral, tal fato se relacionou a revalorizagao das fontes qualitativas pelas ciéncias © LE GOFF, Jacques. (dir). L Etat et les powvoirs. Paris : Seuil, 1989. ' REMOND, René. Uma historia presente e do politico. In : REMOND, R. (org.). Por uma histéria politica. Rio de Janciro : Editora UFRI, Editora FGV, 1996. ™ NORIEL, Gérard. Une histoire sociale du politique est-elle possible? Vingtiéme Sigcle ~ Revue d'histoire. Patis, (24) : 81-96, Oct. - Déc., 1989. " BALMAND, Pascal. Le renouveau de histoire politique. In ; BOURDIE, Guy e MARTIN, Hervé, Les écoles historiques. Paris : Seuil, 1989. Julho/Dezembro 2000 107 (© RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA sociais “humanistas”, em franca reago a “excessiva” tendéncia a quantificago, caracteristica dos métodos estatisticos. O antropélogo norte- americano Howard Becker, por exemplo, procurou demonstrar a importan- cia da historia de vida como método que “permite compreender el aspecto subjetivo de los muy estudiados procesos institucionales, acerca de los quales a menudo se hacen también suposiciones no verificadas.”*® O que Becker pretendia comprovar era que a aproximagdio com determinados objetos ~ a delingiiéncia, por exemplo — ou o acesso a certos dados ~ como a pessoa explica seu comportamento “delingiiente” — sé seriam possiveis, em larga medida, gragas ao emprego do método biografico, associado, em geral, a0 depoimento oral. A relago da histéria com o método biografico foi bem mais delicada. Na resenha que fez da biografia do marqués de Pombal, o historiador Fran- cisco Falcén tocou em dois pontos particularmente sensiveis. Em primeiro lugar, a supervalorizagao do individuo como fator explicativo de uma época. Depois, a tradicional diviso entre a literatura, a quem é concedida a “liber- dade ficcional”, ea histéria, comprometida com a “verdade” e o “rigor do- cumental”. Ou seja, de um lado, o “romancista”, a “arte”; do outro, 0 “histo- riador”, a “ciéncia.”! Enfrentando resisténcias e dividas, a recuperagio do método biogré fico no quadro historiografico a partir dos anos 80 se deu através de uma dupla via, De um lado, as biografias produzidas no século XIX —apologéticas, descritivas, exemplares ~ passaram a ser entendidas da mesma maneira que os monumentos, os arquivos, os simbolos e as comemoragdes, ou seja, como lugares onde a meméria nacional se fixou, os “lieux de mémoire”, na feliz expressio de Pierre Nora.” Dessa forma, a biografia se tornaria um material bastante util para a compreensio de um discurso historiografico intimamente articulado a um quadro mais amplo no qual o tema nacional ocupava amplo espago. Nessa perspectiva, tornou-se importante n&io como método, mas como objeto da histéria “analitica ¢ critica”, Por outro lado, era o proprio método biografico que se encontrava no centro das preocupagées da historiografia. Depois de um tempo em que se podia contar a vida de um homem abstraindo-se o quadro histérico, seguiu- sea ditadura do determinismo em que a atuagao do individuo era considera- 2° BECKER, Howard, Historias de vida en sociologia. In : BALAN, Jorge (org,). Las historias de vida en Ciencias Sociales : Teoria y Tecnica. Buenos Aires : Nueva Visién, 1974, p. 34-5. 1 Refiro-me resenha do livro Sebastido José, de Agustina Bessa-Luis, publicada no Jornal do Brasil, Caderno ldéias/Livros, 24/11/1990. » NORA, Pierre. Les liewx de mémoire, v. 1, La Republique. Paris: Gallimard, 1984. (1984) 108 VIDYA 34 MARLY DA SILVA MOTTA, da irrelevante. Na avaliago de Giovanni Levi, em artigo publicado em 1989 na revista Annales, estava-se vivendo entao uma fase intermediaria que, embora considerasse o papel da biografia, reconhecia sua ambigtiidade, ja que tanto podia se constituir em um instrumento da pesquisa historica, como ser um meio de se fugir dela. O desafio estaria em enfrentar um método cheio de armadilhas, especialmente perigoso para quem concebia a vida de um individuo como um modelo de racionalidade, que associava a uma per- sonalidade coerente, decisdes sem incerteza e agdes sem divida.* AA riqueza da biografia residiria justamente na possibilidade de escapar das explicagdes monocausais e lineares calcadas apenas no “destino final”, ¢ de recuperar os complexos processos de elaborago e tomada de decisdes. Seria possivel, assim, através da reconstrugaio das trajet6rias de vida de deter- minados personagens, iluminar aspectos pouco esclarecidos pela documenta- go, em geral muito prédiga em destacar os atos e muito pobre em detalhar os meandros decisérios. Desatada das malhas do reducionismo e da simplificagao, a biografia permitiria nao s6 perceber as margens de liberdade e de constran; mento no interior das quais os individuos se moviam, como refletir sobre os limites da racionalidade do ator histérico.* A telaco entre a vida individual e 0 contexto hist6rico era outro ponto delicado, e em torno do qual os historiadores freqiientemente divergi- am. O método biografico teve uma importante contribuigao para essa dis- cussao, na medida em que quebrou o esquematismo simplista, ao desvendar as relagGes entre o ator individual —e seus varios graus de liberdade de agir —ea rede historica~e seus varios graus de atividade condicionante. E, sea reflexao historiografica e 0 gosto do pubblico exigiram a volta do método e do género biograficos, a redugdo da concepgio “hiperso- cializada” do homem associada a retomada do individualismo abriu uma conjuntura particularmente favordvel as historias de vida. A procura de maneiras de distinguir o homem na sociedade, o reconhecimento da liberda- de individual de escolha, e a confrontagao entre sociedade e individuo na fixagio de valores, convergiram para a necessidade da busca do “eu”. ® Levi (1989), Esse texto foi publicaclo em FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaina (org.). Usos e abusos da histdria oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996. > Para um interessante debate sobre a validade do método biografico, ver BOURDIEU, Pierre. A ilusio biogrifica, In: FERREIRA, M. deM. e AMADO, Janaina (org.). Usos ¢ abusos da histéria oral ¢ LEVI, Giovanni. Les usages de la biographie. Annales ESC, Paris, (6): 1325-336, 1989. 2 MOTTA, Marly Silva da. Em nome da independéncia, da competéncia e da neutralidade: 0s depoimentos de Octavio Gouvéa de Bulhdes ¢ Dénio Ferreira. In: FERREIA, Marieta de Moraes (org.). Enire-vistas: abordagens e usos da histéria oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1994, Julho/Dezembro 2000 109 (© RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA Conquanto a renovagao historiogrdfica dos anos 80 tivesse enfraque- cido as reagSes contrarias ao método biografico, a resistencia sé se reduzi ria efetivamente na década seguinte. O principal exemplo dessa “conver- so” foi, sem divida, a volumosa biografia de Saint Louis escrita por Le Goff, e publicada na Franga em 1996. Na Introdugao, Le Goff pode afirmar com todas as letras que O século XIII nao ¢, entretanto, 0 objeto deste estudo. ‘Vamos encontré-lo aqui, claro, porque Luis nele viveu e ele & matéria de sua vida e de sua ago. Mas este livro trata de um homem e nao fala de seu tempo a ndo ser quando isso permita esclarecé-lo (...). A biografia con- fronta hoje o historiador com os problemas essenciais — porém classicos — de seu oficio de um modo particular- mente agudo e complexo.* No Brasil, essa aproximagao hist6ria-biografia acabou resultando em beneficios para ambos os lados. De um lado, a produgao historiografica se beneficiou, entre outros empreendimentos, com o langamento da colegao “Os que fazem a histéria””, dirigida pelo historiador Francisco Falcén, 0 mesmo que, no inicio dos anos 90, chamara a atengdo para “pontos sensi- veis” do método. De outro, as biografias de corte mais tradicional —a série “Perfis Parlamentares”, publicada pela Camara dos Deputados e pelo Se- nado, é um bom exemplo — receberam um tratamento metodolégico intrin- seco pratica da histéria: posig%o de um problema, busca e critica das fontes, esforgo explicativo, entre outros.”* Também favoreceu 0 boom das biografias e das autobiografias 0 fato de terem se transformado em um tipo de fonte bastante atraente para os historiadores ¢ cientistas sociais — especialmente aqueles filiados a hist6- ria social voltada para o coletivo e 0 cotidiano —, uma vez que, através da técnica de histéria oral, puderam se revelar uma importante via de acesso a0s “despossuidos”, abrindo a perspectiva de dar voz aos figurantes mudos da hist6ria, de tornar “eu” quem era ninguém. Ou seja, através do testemu- 2 LE GOFF, Jacques (dir.). L’Etat et les conflits. Paris: Seuil, 1990. p. 19-20. 2» Foram langados, até agora, cinco titulos: MOREL, Marco. Frei Caneca. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000; MOTTA, Marly Silva da. Saudades da Guanabara: 0 campo poli- tico do Rio de Janciro (1960-75). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000; GONCALVES, Joko Felipe. Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000; RODRIGUES, Antdnio Edmilson M. Jodo do Rio. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. 2 MOTTA, Marly Silva da. Teoténio Vilela, Brasilia: Senado Federal, 1996. 110 VIDYA 34 MARLY DA SILVA MOTTA nho dessas histérias pessoais, puderam ser revelados os detalhes da vida cotidiana e dos costumes e habitos dessa populagio “silenciosa”.” Depoimento: esta ¢ a minha vida. Das autobiografias e memérias, em boa parte elaboradas ao sabor das lembrangas solitérias, passou-se aos depoimentos autobiogréficos pro- vocados a partir do didlogo entre o informante e o pesquisador, entre o entrevistado ¢ 0 entrevistador. O resultado desse empreendimento foi a pro- dugdo intencional de um determinado tipo de fonte histérica que apresenta tanto afinidades quanto especificidades em relag&o a outra espécie de do- cumentagio. A singular participagaio do pesquisador na construgao da fon- te, através do cuidadoso processo de indagar, de reconstituir, de rememorar, 0 torna parceiro do seu entrevistado. Compartilhando a narrativa e alargan- do 0 ambito do relato autobiografico, entrevistador e entrevistado envol- vem-se no objetivo de compor um discurso comum. Os riscos de distorgdes, de erros e de falhas presentes na fonte oral nao so maiores nem menores do que nas outras fontes documentais: uma carta, por exemplo, pode conter mais “mentiras” do que uma entrevista. O depoimento de histéria oral permite, sim, 0 acesso a uma verso do passado, ou seja, 4 maneira pela qual o entrevistado concebe o passado. Nao se trata, pois, de recuperar a histéria “tal como ela efetivamente ocorreu”, mas sim de reconstrui-la através das miltiplas versdes veiculadas pelos atores que viveram acontecimentos e conjunturas do passado.”” As entrevistas de histérias de vida com membros da elite politica envol- vem algumas especificidades inerentes ao proprio objeto de estudo."" Seme- lhante as duas faces de uma mesma moeda, na frente, o politico oferece a indispensavel desenvoltura de expor oralmente as suas idéias, principal arma na atividade a qual se dedica. Exposto a opiniao e A critica pablicas, exerce cotidi- anamente a tarefa de fazer perguntas e articular respostas. No verso, no entan- to, tem-se um discurso “fechado”, onde a livre expressdo fica tolhida pelos interesses do entrevistado no jogo politico. Dai o depoimento excessivamente cuidadoso, os “esquecimentos” e os siléncios ao lado das énfases e dos desta- ques, tudo medido e avaliado pelo impacto que poderd causar a sua propria imagem e & posig’io que ocupa na arena de poder. Tais caracteristicas da elite politica tornariam, pois, seu depoimento uma fonte historica falha e redundante. Falha, porque o discurso do politico 2 THOMPSON, Paul. Vozes do passado: histéria oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. >” Ver, entre outros, FRANK, Robert. La mémoire et la histoire. Les cahiers de 1” HTP. Paris, (21). 1992. Julho/Dezembro 2000 mM (0 RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA seria sempre tendencioso e ambiguo, menos “verdadeiro”, portanto, do que aquele do homem comum. Redundante, porque a elite, principalmente a politica, faria ouvir sua voz a qualquer hora em qualquer canto. Para que ento gastar fita e papel com pessoas que sempre tém esses recursos disposigao para falar o que quiser, quando quiser? Sobre a validade do depoimento oral do politico como fonte historica, alguns pontos devem ser esclarecidos. Em primeiro lugar, como bem desta- ca Christophe Charle, as elites sao, em grande parte, “des inconnues de Vhistoire”,” muito embora seus nomes estejam nas ruas € seus retratos nos jornais. Era preciso, pois, sair das generalidades sobre a elite politica, estas sim bem divulgadas, e apurar a andlise no sentido de entender nao sé suas origens ¢ socializago, aliangas que a sustentam, estratégias e instrumentos de controle e de manutengao do poder, bem como identificar papéis, fun- Ges, interesses e valores que compartilham. Ou seja, através das préprias declaragdes dos atores compreender padrées de acesso a posigdes politi- cas, significado das redes de inter-relagdes pessoais, critérios de solidarie- dade e de clivagem interna, fatores de coesao e de cisdo, articulago com grupos de interesse, e controle dos processos de elaboragdo de politicas governamentais, Revelar, enfim, a maneira pela qual o individuo— 0 politico se inseriu no proceso histérico, a possibilidade de opgdes frente ao leque de alternativas, ¢ 0 impacto sobre a sua atuagao das correntes de opiniao e dos interesses em conflito. O livro Depoimento, de Carlos Lacerda, publicado em 1978, resultou da edigdo de uma entrevista por ele concedida a jornalistas do Jornal da Tarde, ao longo de trés fins de semana — 19 e 20, 26 e 27 de marco e 16 de abril de 1977 —, um més antes da sua morte ocorrida a 27 de maio. Nesse sentido, o livro deve ser entendido como o balango final de vida desse poli- tico que durante duas décadas tinha sido um dos principais pélos da vida nacional, e que agora se preparava para novamente voltar a sé-lo. Afinal, dentro de dois anos, em 1979, acabaria o prazo da cassagaio de seus direitos politicos, e, como ele proprio reconhecia, ainda ndo estava “na idade de sair da politica”. Sua morte subita contrariou as previsdes e destruiu as aspira- des de quem, como ele, tinha se “preparado a vida inteira para uma deter- minada coisa”, para a presidéncia da Repiblica, é claro.” CAMARGO, Aspésia. The actor and the system: trajectory of the Brazilian political elites. In: BERTEAUX, Daniel (edit.). Biography and society: the life approach in the Social Sciences. California: Sage Publications, 1981 ¢ Os usos da hist6ria oral e da historia de vida: trabalhando com elites politicas. Dados ~ Revista de Ciéncias Sociais. Rio de Janeiro, 27 (1): 5-28, 1984. % CHARLE, Christophe. Les élites de la République — 1880-1900. Paris: Fayard, 1987. 8 LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. p. 408. 112 VIDYA 34 MARLY DA SILVA MOTTA Na definigao de seus editores, Depoimento era um “documento histori- co de grande valor”, na medida em que “nem palavras nem fatos foram ensai- ados ou medidos”. Documento “apaixonado”, marcado pelo tom “emociona- do” do depoente, Depoimento nao era isento da “paixao partidaria”, o que aliés caracterizaria os documentos por si mesmos, reflexos que eram do “espirito do tempo.” Em outras palavras, Depoimento seria a versio de Lacerda, a sua interpretagao — parcial e comprometida — de uma época de nossa histéria. Um breve histérico da concepedo e realizagdo de Depoimento se faz necessario, Conta Ruy Mesquita, diretor do Jornal da Tarde, que num “dia qualquer de outubro de 1976”, o redator do jornal the propés a forma- gao de uma espécie de “banco de informagées historicas” destinadas a quem, no futuro, pretendesse estudar a vida politica brasileira das dltimas quatro décadas. A proposta era de levantar os nomes dos principais perso- nagens do “drama politico brasileiro” e gravar seus depoimentos, com 0 compromisso de que os mesmos nao seriam divulgados enquanto vivessem os depoentes. A justificativa para tal empreendimento ligava-se, sem divi da, 4 percepgdo de que o rigor da censura e 0 cerceamento da vida politico- institucional determinados pelo regime militar haviam provocado uma “des- preocupagdo” com a histéria recente do pais, quase que monopolizada pelos brazilianistas.* Tal preocupacao - evitar que a lembranga do passado recente do pais se perdesse através da gravagdo dos depoimentos dos principais atores que entdo ocuparam a cena politica — era compartilhada por outros segmen- tos da intelectualidade brasileira, empenhados em produzir fontes histéricas para o estudo das diltimas décadas da historia nacional. A criag&o do Centro de Pesquisa ¢ Documentagao em Histéria Contemporanea do Brasil (CPDOC), da Fundagao Getulio Vargas, em 1973, se inseriu nesse movi- mento, conforme o depoimento de Aspasia Camargo: Naquele momento em que se iniciava um processo de aber- tura politica, esses contatos criaram um estimulo a mais para compreendermos 0 nosso passado recente, ainda envolto em brumas (...). Confirmaram, acima de tudo, a nossa crenga na necessidade de consolidar um poder vile democratico.” > LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 10. °5 Ibidem. p. M1. >* CAMARGO, A. Apresentacao. In: ALBERT, Verena. Histéria oral: a experiéncia do CPDOC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1990. p. VIIL Julho/Dezembro. 2000 13. © RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA Portanto, além da vontade manifesta de preservar a meméria do pas- sado, hd que se levar em conta que a segunda metade da década de 1970 inaugurou-se com o aniincio da abertura lenta e gradual do regime. Vislum- brou-se, assim, a perspectiva da volta dos cassados em 1964 ao mundo politico e, principalmente, o retorno A normalidade institucional. Isso impli- cava uma ampliagao da esfera da atuag3o dos politicos, vistos até entio com desconfianga pelos militares, e mantidos a uma razoavel distancia dos centros decisdrios de poder. Se a vez dos politicos estava chegando, era preciso Ihes dar voz. A afirmagao de Ruy Mesquita quanto & “obviedade” da escolha do nome de Carlos Lacerda para encabegar a lista dos depoentes justificava- se, em boa medida, pela indubitavel presenga do Ifder udenista nos eventos politicos mais marcantes do pais ocorridos nos ultimos tempos. A Lacerda caberia aproveitar essa oportunidade para se reinserir na politica, recons- truindo o lugar que Ihe caberia neste momento de transico. Por isso mes- mo, ao final da longa entrevista nao deixaria ditvida sobre a brevidade de sua volta 4 atividade politica, tao logo vencessem os dez anos de cassagao de seus direitos politicos: © miimero de pessoas que nao sabe que fui cassado é muito maior talvez do que o mimero de pessoas que sabe (..). Acho que tenho obrigagao de dizer isso um pouco, para ver se calha de algumas pessoas verem e dizerem: “Nao, olha aqui, Ele esta dizendo ai que nao traiu, nem abandonou nao. E que ele foi proibido de fazer.” Balango do passado, Depoimento buscou construir pontes com o presente ¢ o futuro. De um lado, estava o presente, emoldurado pela anistia, em torno da qual a recordaco ¢ o esquecimento jogavam um papel decisi- vo: se esquecer era a regra primeira do perdio, lembrar era a forma de garantir espago no novo concerto politico. De outro, era 0 futuro, balizado por um projeto cuja consisténcia dependia da meméria do passado.”” > LACERDA, C. Op. cit. p. 408. °* LAPIERRE, Nicole. Dialectique de la mémorie et de "oubli. Communications. Paris, (49): 5-10, 1989. » VELHO, Gilberto. Meméria, identidade © projeto. Tempo brasileiro, Rio de Janeiro, (95): 119-26, Out-Dez, 1988 14 VIDYA 34 MARLY DA SILVA MOTTA No passado, a chave para o presente e para o futuro” Composto de 34 capitulos, Depoimento se inicia pela formagao poli- tica de Lacerda, onde sao ressaltados no sé as raizes de sua familia na politica carioca e nacional, bem como o “efervescente” ambiente da ex- capital federal. A atividade jornalistica, o ingresso na vida partidaria apés 1945, a carreira parlamentar, as articulagdes politicas, os perfis dos aliados e rivais, a eleicdo para o governo da Guanabara, o movimento de 1964 eo posterior ostracismo politico, so narrados com detalhes. Apesar disso, ou melhor, por isso mesmo, Depoimento nao foi reconhecido por cientistas politicos ¢ historiadores como uma fonte relevante para a historia contem- poranea brasileira. A seletividade da memoria— Lacerda nao relataria “toda” a historia — € o interesse consciente em registrar determinadas agdes com vistas a uma futura utiliza¢o— Lacerda construiria uma auto-imagem “fal- sa” — seriam fatores decisivos da debilidade dessa fonte, que nao suporta- ria uma analise critica mais “rigorosa”. Paradoxalmente, serdo esses mesmos fatores que propiciardo a va~ lorizagiio desse tipo de fonte. De um lado, verificou-se a importancia de se entender que percepgao o lider politico tem de si mesmo e dos outros, como ele justifica as agdes significativas de sua vida, e de que modo organiza as idéias acerca do seu passado. Como enfatiza Wilkie, as elites politicas tm um conjunto de crengas sobre si mesmas ¢ sobre a histéria de seu pais, a partir das quais tomam decisGes de conseqiléncias importantes; devemos, pois, “tener en cuenta el hecho’ de que lo que la gente piensa que ocurre en la historia puede ser tan importante como lo que realmente ocurre.”*! Dessa maneira, a seletividade da memiria, longe de ser um obstaculo ao conhecimento, revela-se, ao contrario, um importante meio de acesso a determinadas “informagées”, impossiveis de serem coletadas em fontes mais “rigorosas”. Afinal, em vez de se imaginar uma simples oposigao en- tre meméria e esquecimento, deve-se valorizar, sim, a relagao que ambos mantém entre si. De outro lado, deu-se o desenvolvimento de uma corrente de estu- dos na area da historia e da antropologia que enfatiza a importancia da memoria como elemento fundamental da relagao entre 0 individuo e a soci- +” Sobre a construgdo da imagem de Carlos Lacerda, ver MOTTA, Marly Silva da. Carlos Lacerda: de demolidor de presidentes a condutor de estados. In : BOM MEHY, José Carlos Sebe (org.). (Re) introduzindo a histéria oral do Brasil. Sa0 Paulo: Xam@, 1996. *! WILKIE, James W. Elietore, In; BALAN, Jorge (org.) Las historias de vida en Ciencias Sociales: Teoria y Tecnica. Buenos Aires: Nueva Visién, 1974. p. 104. VELHO, Gilberto. Meméria, identidade ¢ projeto. Tempo Brasileiro, (95) : 119-26. Out. - Dez. 1988. Jutho/Dezembro 2000 1s © RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA edade, a mémoire collective” Funcionando como um depésito onde o individuo busca elementos que Ihe permitem identificar-se social ¢ histori camente, a meméria coletiva funda-se nao apenas na comunhio de simbo- los e significados compartilhados com a sociedade, como se atualiza nas vivéncias individuais e particulares. Ou seja, se, por um lado, 0 individuo sé pode ter meméria do seu passado como um ser social, por outro, hd que se levar em conta 0 aspecto individual dessa meméria. Como disse Lyndon Johnson em sua autobiografia, “um presidente vé as coisas de uma perspec- tiva Gnica.”® A intersegao entre meméria individual ¢ social esta presente em De- poimento. Abrindo a entrevista com a afirmagao de que “fui criado num meio politico; ouvi falar de potitica em casa desde que me entendo por gen- te”, Carlos Lacerda buscou construir um dos pilares da sua identidade, qual seja, a vocacio “natural” para a arte da politica inscrita na sua biografia individual. Seu av6, Sebastido Lacerda, fora deputado federal, ministro da Industria, Viagdo e Obras Pablicas (1896) e ministro do Supremo Tribunal Federal (1912); seu pai, Mauricio de Lacerda, vereador e deputado federal pela cidade do Rio de Janeiro a partir da década de 1910, tivera destacada atuagao na luta pelos direitos dos operarios, Dessa maneira, como Lacerda fez questo de frisar, “a politica era um assunto de todo dia”, justificativa, inclusive, para matar aula e assistir aos debates na Camara Municipal, onde seu pai era vereador.* Mas no era apenas da politica tradicional que se nutria a formagao de Lacerda. Seus tios Fernando Paulo eram lideres do Partido Comunis- ta Brasileiro, e, aos 12 anos, iniciaram-no na leitura de obras comunistas. Assim, se 0 contato com as idéias comunistas é uma caracteristica geracional relevante nas décadas de 30 ¢ 40, no caso de Lacerda ¢ um dado familiar, inserido na sua trajetoria de vida individual, o que, de certo modo, singulari- 2a seu rompimento com o PCB, ja que ele teria conhecido o Partidao “de dentro”, ‘Ao organizar passado em busca de uma explicagao para a sua vocagao politica “inata”, Lacerda destacou ainda o ter vivido e feito politica na sempre “efervescente” capital federal, bem como ter pertencido a “uma gerago politizada desde cedo, exatamente por que criada dentro da idéia de kitar contra a ditadura que entdo se prenunciava.™ * HALBWACHS, Maurice. A meméria coletiva. Rio de Janeiro: Vértice, 1990, Citado por WILKIE, James W. Elictore. In: BALAN, Jorge (org.) Las historias de vida en Ciencias Sociales: Teoria y Tecnica, Buenos Aires: Nueva Vision, 1974. “LACERDA, C. Op. eit. p. 27. 9 Ibidem. 116 VIDYA 34 MARLY DA SILVA MOTTA Acarreira de Lacerda sempre esteve intimamente ligada ao estilo de fazer politica praticado no Rio de Janeiro, entao capital federal. Especificidade ‘essa em grande parte configurada pela relag&o entre a cidade e o governo federal. A Constituigdo de 1946, nao atendendo a certas demandas autonomistas, manteve a indicagao do prefeito do Distrito Federal pelo pre- sidente da Repiblica, o que garantia uma interferéncia direta do Executivo federal na vida politica ¢ administrativa da capital. Vereador mais votado na eleig&o de 1947, com mais de 30 mil votos, Lacerda renunciou ao mandato quando 0 Senado, ao votar a Lei Organica do Distrito Federal, retirou da Camara Municipal o poder de examinar os vetos do prefeito. No entanto, como em uma via de mao dupla, o debate politico travado no Rio de Janeiro tinha uma repercussdo em todo o pais, ¢ a projegdio de politicos cariocas, em geral, ndo se restringia aos limites da cidade. Dessa forma, se por um lado, a interferéncia direta do governo federal introduzia um elemento complicador na politica local, por outro, o Rio de Janeiro tornou-se uma otima plataforma de lancamento de politicos no firmamento nacional. Lacerda encarnaria, assim, a identidade ambigua do politico carioca, sempre dividido entre as demandas do nacional e do local. Seu governo no estado da Guanabara (1960-65) alias, foi marcado por essa dupla solicita- ¢ao. De um lado, Lacerda tocava a politica local, pautada pela montagem da maquina administrativa do novo estado; de outro, jogava para o piiblico nacional, pois o Rio ainda era, de fato, a capital da Republica. E se seu possivel rival na elei¢ao de 1965, Juscelino Kubitschek, tinha Brasilia, a Novacap, como um valioso trunfo na futura disputa, o governador carioca precisava apresentar a Guanabara, a Belacap quatrocentona, como modelo de um novo tipo de administragao.* O dado geracional é relevante em Depoimento. Nascido em 1914, Lacerda é da geragao cuja memoria foi balizada por fatos — a Revolugao de 30, o Estado Novo e a posterior redemocratizagao — por figuras — Getilio Vargas ¢ Luiz Carlos Prestes talvez fossem os mais paradigmaticos -, e por idéias, como 0 comunismo ¢ 0 liberalismo. ‘A abordagem geracional tem-se revelado particularmente fecunda em estudos que tratam das elites politicas ou intelectuais."” Relativizando o “© Sobre o governo Lacerda no estado da Guanabara, ver MOTTA, M. S. da. Saudades da Guanabara: 0 campo da cidade do Rio de Janeiro (1960-75). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, “7 WINOCK, Michel. Les générations intellectuelles. Vingtiéme Siécle — Revue d’ histoire. Paris, 22: 17-39. 1989. SIRINELLI, Jean-Frangois. Génération et histoire politique. Vingtiéme Siécle ~ Revue d’ histoire. Patis, 22: 67-80. 1989. Julho/Dezembro 2000 M7 © RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA fator etario, e enfatizando o grau de envolvimento dos individuos com deter- minados acontecimentos, essa nova concepgao de geragdo se define pela “comunidade de experiéncias”, na qual a meméria comum tem um lugar fundamental, pois a ela cabe instaurar 0 papel fundador do acontecimento como marco geracional. Ao estudar o Partido Comunista Francés, Annie Kriegel,“* por exemplo, destacou como elemento fundamental na trajetéria do militante comunista a linha ideolégica que prevalecia no momento da sua entrada no partido, independentemente da idade que tivesse a época. Mais do que a idade, o que tracava a solidariedade geracional era partilhar da mesma meméria seletiva e reconhecer os mesmos cédigos de acesso ao passado. Foi, pois, a partir desse referencial geracional que Lacerda organizou © seu passado em Depoimento. Nele, a Revolugao de 30 e Getilio Vargas assumiram o lugar de divisor de aguas na historia brasileira. Sem divida, o varguismo conformou um campo de disputa e se tornou um marco de refe- réncia obrigatorio na construgao da identidade dos politicos dessa geragao. E, se Amaral Peixoto e Afonso Arinos podem ser lembrados como exem- plos relevantes dessa ambigua relagio de atragdo e rejeigao a Vargas, ne- nhum outro politico teve a sua identidade tao relacionada ao chefe do Esta- do Novo como o feroz antigetulista Carlos Lacerda. Paradoxalmente, a ima- gem do “ditador poderoso” que emergiu do longo depoimento de Lacerda foi a de “um hesitante, sempre um vacilante (...). O Getilio embarcou na- quilo (Estado Novo) porque se beneficiou, mas os outros é que tomavam a iniciativa para ele.” O debate ideolégico foi outro tema que mobilizou a geragao de Lacerda, que alids tragou um interessante painel do “clima de ebuligao revolucioné- ria” vivido nas décadas de 1930 e 1940, em longa citagao: Na faculdade, o clima era inteiramente politizado, porque grande parte dos professores ¢ alunos era dominada por duas figuras que foram realmente marcantes na Faculda- de de Direito do meu tempo: Edgard Castro Rebelo ¢ Le6nidas Rezende, ambos marxistas (...). Ns iamos con- versar na casa deles. Dai, surgiram as minhas aproxima- ges com as esquerdas comunizantes da época. Foi no tempo em que o Mario Lago fundou a Liga dos Estudan- “*KRIEGEL, Annie. Les communistes francais: essai d’ ethnographie politique. Paris, Seuil, 1970. “ LACERDA, C. Op. cit.. p. 33-34. 118 VIDYA 34 MARLY DA SILVA MOTTA, tes Ateus (...) fundou-se também a Federagio dos Estu- dantes Vermelhos (...). Nessa ocasidio, Miguel Lins e ou- tros fizeram 0 Clube da Reforma (...). Dali saiu gente para 0s lados. Para o integralismo sairam alguns poucos, para ‘© comunismo muitos, e para um vago liberalismo alguns. Tinha também o grupo do Caju, com Adriano Gallotti, San ‘Tiago Dantas, Otévio de Farias (...). Quem convivia com a gente era a turma marxista(..), eu, Chagas Freitas, Evandro Lins ¢ Silva, ficdvamos até de madrugada batendo papo e conversando sobre Marx ¢ Engels.” Se a adesao ¢ o posterior rompimento com 0 Partido Comunista Bra- sileiro foram comuns a boa parte dessa geraco de intelectuais e politicos, no caso de Lacerda, essa experiéncia, agora relembrada, assumia uma fun- go explicativa de sua futura trajetéria politica. A aproximagdo Vargas- Prestes teria selado a uniao daquilo contra o que Lacerda iria lutar durante toda a vida, ou seja, a “ditadura” ¢ 0 “populismo”.*! O golpe militar de 1964 ocupou um espaco significativo no balango que Lacerda fez da sua trajetéria pessoal e politica. Mais uma vez, 0 “derrubador de presidentes” entrou em cena. Depois de Getilio ¢ de Janio, fora a vez de Jodo Goulart, afastado por uma conspiragao, da qual, embora seja considerado um dos cabegas, ele garante nao ter participado. Ao con- trario da maioria dos seus companheiros da UDN, que integrardo as equi- pes ministeriais dos governos militares e organizarao a Arena, o partido oficial, Lacerda romperé com a “revolugo”, inconformado com a prorro- gagao do mandato do general-presidente Castelo Branco, ¢ a conseqiiente suspensio das eleiges de 1965, 0 que acabou por bloquear suas aspira- ges de chegar A presidéncia da Republica. A articulagdo da Frente Ampla com Juscelino ¢ Joao Goulart, a partir de 1966, colocou Lacerda no centro da oposigao do regime militar, e, mais uma vez, no papel de demolidor de governos. S6 que os militares resolveram exorcizar por um bom tempo o fantasma do tombeur, e Lacerda foi cassado pelo AI-5 por um periodo de dez anos. Com Depoimento, nove anos depois, Lacerda buscou garantir um espago proprio para o seu breve retorno a vida publica brasileira, da qual saira “contra a vontade”, e a qual voltava com a missdo de “cuidar do pais”: 5° LACERDA, C. Op. cit. p. 28-29. "" [bidem. cap. 2. Julho/Dezembro 2000 9 © RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA Agota dé magoa, sobretudo quando vocé sente que 0 pais est4 com pouca gente para cuidar dele (...). Se eu estivesse vendo surgir uma geragdo preparada para ocu- par os lugares que a gente tentou ocupar, cu estaria feliz ¢ tranquilo (...). Mas quando vocé pensa que o Brasil esté nesse negécio de escolher qual € o general, e que nem sequer € preciso que ele tenha uma folha de servico, tem € que saber se ele ¢ mais antigo ou mais moderno, quantos tanques ele tem...” Ao contrario dos “generais”, Lacerda teria uma longa “folha de ser- vigo”, a qual ele fez questo de apresentar, de maneira bem selecionada, em Depoimento. Seria ela que, a seu ver, poderia ¢ deveria ser capaz de Ihe assegurar um lugar-chave na condugao futura dos destinos do pais. O obje- tivo claro era dar um sentido a ago do individuo no fluxo da histéria, tecer 0s lagos entre seu passado, descontinuo e fragmentado, e seu projeto futuro, que buscava estabelecer continuidade e direcao a situagdes e fatos vividos anteriormente. Seria através dessa dinamica entre uma memoria do passa- do e um projeto para o futuro, que Lacerda buscaria (re) construir a sua identidade politica. Afinal, como alerta Gilberto Velho, A biografia (...) esta sujeita a periddicas revises ¢ reinterpretacdes. A idéia, j4 do senso comum, de que a ‘meméria é seletiva, em parte se explica por essa dinamica dos projetos e da construco de identidade, que leva as referéncias do passado a um processo permanente de (de) e (re) construgao.” Como jé ressaltamos anteriormente, a abertura “lenta” ¢ “gradual”, que se insinuava no panorama politico no inicio de 1977, oferecia a perspec- tiva de volta dos politicos — até mesmo dos cassados pelo regime militar — aos centros de poder do pais. A questo, no entanto, era: que tipo de politico, especialmente dentre estes “exilados”, poderia aspirar a volta? Que trunfos seriam valorizados e que qualidades seriam requeridas para esse retorno? Ou seja, que perfil de politico seria capaz de atender tanto as delicadas condig6es do presente, ainda pontuado pelos rigores da ditadura militar, quanto s perspectivas futuras de implantagao de uma democracia plena? ® LACERDA, C. Op. cit. p. 408, ® VELHO, Gilberto. Meméria, identidade ¢ projeto. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, (95): 119-26, Out-Dez. 1988. 120 VIDYA 34 MARLY DA SILVA MOTTA, Ora, se o passado do politico tinha naquele momento um peso rele- vante, necessério seria que se procedesse a uma “adequada” leitura desse passado. Nesse sentido, ao rememorar sua historia de vida, Lacerda procu- rou iluminar alguns aspectos que Ihe pareceram especialmente significati- vos para a composi¢o de um perfil que Ihe permitisse conquistar um lugar no reordenamento politico que se avizinhava. Em primeiro lugar, destacou a s6lida formagao politica advinda do meio familiar. Ao lado disso, 0 fato de ter atuado politicamente no Rio de Janeiro, “caixa de ressondncia do pais”, e de ter pertencido a uma geragao “politizada”, ter-Ihe-iam conferido igualmente uma estatura de “politico na- cional”, cuja presenca teria sido marcante nos eventos mais significativos do pais nas iiltimas décadas. Dessa maneira, ao invés de “tanques”, o que © capacitava era, além da sua vocagao politica “inata”, o duro exercicio da conquista do voto, através do que tinha sido eleito vereador, deputado fede- ral ¢ governador de estado. A presidéncia da Republica, esta Ihe fora “confiscada” arbitrariamente. ‘A adesio “irrestrita” aos valores democraticos era outro componen- te fundamental da identidade politica de Lacerda. A fidelidade aos principi- 0s da democracia teria sido “inequivocamente” demonstrada nao sé na luta sem trégua que moveu contra a “ditadura varguista” e o “totalitarismo co- munista”, mas principalmente pela rejeig&o ao regime militar autoritario implantado em 1964. Cassado quando buscava articular a Frente Ampla, que ele qualificou como uma “alternativa politica ao fechamento do regi- me”, podia se apresentar, nove anos depois, como a lideranga civil mais “capaz” de negociar a transi¢ao democratica. Noentanto, o maior trunfo de Lacerda, cuidadosamente cultivado para a sua rentrée na.cena politica, foi a imagem de administrador piblico competen- te, distante tanto do modelo “autoritario e centralizador da tecnocracia irrespon- sdvel”, quanto do padrao clientelista da tradicional politica do toma li, da cé. Desse modo, fama de “demolidor”, que tanto prestigio the rendera no pas do, Lacerda julgava mais proveitoso, nese momento, ade “construtor”. Resu- mindo as maiores realizagdes de sua vida, dis ‘Acho que (sto) duas coisas: uma, foi ter ajudado a derru- bar uma ditadura, ou duas e meia; a outra, muito mais gratificante porque € mais positiva (...), foi ter eriado no governo um espirito, uma mentalidade (...), a idéia de que um governo foi feito para servir e nfo para se servir (.... Vocé repare que depois do governo na Guanabara houve Julho/Dezembro 2000 121 ‘© RELATO BIOGRAFICO COMO FONTE PARA A HISTORIA uma porgo de governos ai que tentaram nos imitar (...), ‘mas esqueceram aquela coisa fundamental que era o espi- rito com que a gente fazia isso. Relato biografico, Depoimento permite uma dupla leitura. Por um lado, ligou-se a um projeto de reintegragao ao cenirio politico no final dos anos 70, diante do qual Lacerda teria de comparecer com uma identidade bem definida: na reconstrugao do passado, a chave do presente e a con- quista do futuro, que afinal néo chegaria para ele. Por outro, é uma fonte histérica importante para se entender o complexo processo de reconstrugao do passado, onde se cruzam a meméria coletiva ¢ a meméria individual. % LACERDA, C. Op. cit. p. 403. 122 VIDYA 34

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