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José Barata-Moura (Universidade de Lisboa) IDENTIDADE E PATRIMONIO CULTURAL. A QUESTAO DO AJUIZAMENTO'. § 1. Predmbulo, A instiincia do propriamente juridico mora na imposigiio de formato (unificante) a uma circunstincia (miiltipla, e deveniente), Revela, desta sorte, um parentesco estreito com a razio, Nao apenas como faculdade (subjectiva) que possibilita o discorrer, mas enquanto vinculo que enlaga ¢ estrutura um diverso de manifestagdes”. A forma juridica ~ ela propria sedimentagio, e indice, de cultura — confere um regramento orginico especializado, nfo & nudez das «coisas», mas a relagdes entre seres humanos (mediadas por coisas, ao longo de processos), A matéria a que 0 juridico traz forma i ste, portanto, num mundo animado de vida que trans-cende o reduto da jus-enformagao, A forma deyém aparelho continente, porque se institui como forma de~e para— contetidos vitais em devir. * Conferéucia pronunciada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 10 de Margo de 2016. 4 desde o pensamento grego antigo, a «razion (A6yo¢, YvuN) nio denota apenas aquele dispositive humano que nos permite investgare coniecer, mas também aquela unidade esruturante que, inserila no proprio real, «administra» (8toixEU), ov agoverna» (KuPepvaa), «todas as coisas através de todas as coisan» (ndvea Buz néveo). Vejaae: HERACLITO, Fragmentos B 1, B 72, e B Al; Die Fragmente der Vorsokratiker, ed, Hermann Diels e Walther Kranz (doravante: FVS), Berlin, Weidmannsche ‘Verlagsbuchhandlung, 1956, vol. I, respectivamente, pp. 150, 167, ¢ 160. Reflectindo as mediagdes entretanto operadas neste conceito pelas correntes estéicas, Cicero dird gue ca lei € uma reo suprems, insta na Natuezay ~ lex est ratio stamina, insta in natran, Marcus Tallvs CICERO, De legis, I VI, 18. Montesquieu oferec-nos uma formula pensada que fz pensar: «li, portant, uma razio primitiva; eas leis sBo as relagBes que se encontram entre cla © os diferentes sere, e as elagdesdesses diversos seres entre eles» ~ ally a done une raison primitive; et les lois sont les rappors qui se touvent ete elle et les differents tes, et les rapports de ees divers eres enite eux), Chatles-Louis de Seconda barko de MONTESQUIEU, De I'Esprit des Los, ou du rapport aque les lois doivent avoir avec la constitution de chaque gouernement, les moeurs, le elimr, la religion fe commerce, et. (1748), I, 1; Oewres Competes, ed, Daniel Oster, Paris, Editions du Sail 1964, p 530 O pensamento juridico voltado a forma — seguindo os tramites proprios da arte, ¢ 20 oficio acrescentando tecnicidades — nao se limit , por isso, aos envencilhos de uma formalidade des-carnada. Supde, reflecte, acompanha -- e pro-jecta ao dianteiro --, todo um pensar determinado do viver. E neste solo partilhado e movente que — perscrutando a @toug humanizada para Ihe discernir os vépiou' reitores -- a ciéncia do Direito entronca, e langa amarras. Como inquérito, ¢ engendramento, de uma norma a vigorar na 6A, uma vez observado 0 dispositivo decisério ¢ executivo que na respectiva Kowwwviat se adopta. § 2. Placa giratoria. Baixemos, porém, aos rasos da minha locomogio pedestre. Como ¢ notorio — ¢, doravante, mais notado se tomard --, eu nfo sou jurista, Nem por formatura no grémio, nem por devaneio amadoristico ao luar das horas vagas. Vou tropegando, tdo-s6, numa aprendizagem do pensar, em farpelas de trazer por casa. Sem jeito, E com resultados que, até por forga do meu apelido, no vio além de uma filosofia barata. Participar, como orador convidado, neste Curso de Pés-Graduagiio em Direito do Patrimonio constitui para mim uma honra. Agradego ao Professor Jodo Martins Claro, ao Centro de Investiga io de Direito Privado, e & Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a confianga amiga com que hoje me distinguem. Desconfio néio estar & altura daquilo que de mim é esperado. Porém, quanto 20 comprimento, espero cumprir 0 horario previsto. * Para um relato sucinto da controvérsia sofistica, em que «Natureza» (pox) € lei» (w6y0¢) cram ‘enicaradas como «contririos» (Evevtia): ARISTOTELES, Refiiagdes sofisticas, 12, 173 a 7-18, Na representagio ordinéria, as leis so «os preceitos da cidaden (tie tig BAe vowve), produtos da artificialidade das «coisas acrescentadas» (E1t{Beta) e «convencionadas» (3pohoynBEvra), ‘pelo que «a maioria das coisas justas por lei se enconiram em posigio hostil Naturezay ~ «tie MOAAG Tov Kuta vopoV Suxafwv Toktufas th pdaes Keitaw. Cf. ANTIFONTE, Fragmentos, B44, A 1,¢A 2; FVS, vol. UL, respectivamente, pp. 346-347 e 347-348 . © pensamento politico-juridico diferenciado de Hipias (cf. PLATAO, Protdgoras, 337 c-e), de Calicles (cf. PLATAO, Gorgias, 482 ¢ — 486 d), ou de Trasimaco (ef PLATAO, Repiiblica, 1,337 ¢ ~ 339 a), situase, © desenvolve-se, neste mesmo horizonte problemitico, marcado por uma contrasposigao do «normative» ¢ do «natural», em cujos meandros a dialéctica do ser histérico ¢ das arquitecturas legais nao & porventura, suficientemente sopesada. * Para um entendimento da «cidade» (762tc) enquanto «comunidade politic» (nohituxh KoLvevta), vejarse, por exemplo: ARISTOTELES, Politica, I, 1, 1252 a 1-8. O uso da palavra ocupard as balizas definidas, Ilimitado ser mesmo s6 0 abuso da vossa paciéncia, A encomenda trazia no bojo um atado de pre-ocupagdes, E acabou por encontrar titulo: «ldentidade e patriménio cultural, A questo do ajuizamento». «Cultura», «identidaden, «patriménio cultural», «ajuizamento» -- identificam, na verdade, micleos tematicos de um «mobilidrio de retaguardan que trans-parece naquela literatura legislativa e convencional de que me foi dado tomar conhecimento. ‘Sem para este «corpus» remeter directamente, procurarei ensaiar uma meditagdo solta, em modo rapsédico, sobre algumas silhuetas que, desde o fundo, Ihe espreitam. Servird a minha fala mais para aclarar aquilo que vou pensando, do que para esclarecer o que na matéria me foi proposto. E, quando ao atrevimento a ignordncia se ‘yer juntar, sai da jarra um ramathete descomposto de indigéncias avulsas, No século VI, Martinho de Dume ~ nas suas campanhas de apostolado entre as populagdes tidas por rudes do nosso Noroeste peninsular ~ compés um De correetione 3 rusticorum para castigagio dos inconv: Na etapa do debate, as minhas rusticidades filosofantes nao deixario certamente de se verem corrigidas. Se é que os retalhos desta manta aguentam remendo. Passemos, entio, ao giratério da placa, § 3. Cultura. Ha muitas definigdes consagradas de Cultura, E até uns catilogos meritérios que repertoriam as espécies® ‘Mas ha também as representagdes «difusasy, Com mordente sobre as usangas no ordindrio. E sem afecto pela interrogagiio do conceito Dai, o atamancado pastiche de uma «via negationis»’ em arremedo por onde me permito debutar, * A quem queira adentrar-se por uma revisitagao dos textos, lembro uma colectanea, por vezes esquecids Ant6nio Caetano do AMARAL, Vida ¢ Opiisculos de S. Martinho Bracarense impressos pela primeira vez neste Reino por euldado e ordem do Excelentissimo ¢ Reverendissimo Senhor D. Fr, Caetano Brandio, Arcebispo Primaz, Lisboa, Tip. da Academia Real das Cigncias, 1803. © Para uma simula indicativa, veje-se, por exemplo: Alfred Louis KROEBER e Clyde KLUCKHOHN, Culture. A critical review of concepts and definitions (1952), New York, Vintage Books, 1963°. 7 O dispositivo de uma «teologia negativa» procede de ambientes marcadamente neo-platénicos: A Cultura no é apenas entretém de escolares. Uma obstinagio de eruditos. Um recreio de ociosidades letradas. Uma insignia pendente na lapela das «élites». Um dedal de conversa entre coléquios em sociedade. Uma pitada de sal na insipidez dos discursos. Um «evento» que se frequenta na voz. passiva, para 14, entretanto, sermos vistos. Uma pastilha ao deitar, que nos apressa 0 sono. Um trambolho, que de certeza ao Menino Jesus nao interessa. Uma magada, em que se amassam os outros meninos. Um artigo requintado para transacgSes virias. Uma travessa requentada para chamariz, de turistas distraidos. Um niio se sabe 0 qué, de que se fala de quando em vez: ao sabor do «deus- dari» que se imagina que «esteja a darn. Em apoteose: uma supina chatice, que algum decoro envernizado obriga a fingir que se Ihe empresta relevo. A Cultura pode aparecer -- e parecer nestes registos, porque comega por ser noutro regime. Mais fundo, e menos apercebido. ‘Nos caldos da Cultura, aquilo que nos vem consolidado na calda é o testemunho ~ © a sedimentagio -- da experiéncia pensada do «outro. Dos «outros». Segundo uma ‘multiplicidade polimérfica de expresses que recobrem — num espectro alargado de paisagens, € numa paleta colorida de matizes 08 vividos de uma vida que deixa rasto, Ha formas culturais onde se cultua um «monolégio» pretendido, Mas mesmo ele nunca despede a alteridade’. «© Bem [esti] para além do pensamento.» -- «énéxeva vorjoeis téya06v», PLOTINO, Enéadas, Il, 9, 9. «Todo o divino, pela {sua} unidade supra-essencial, 6, cle préprio, inefével ¢ icognoscivel para todos os [entes] secundarios» — «név 1d Ociov aizd pév b1& thy dmepovarov Evow dppntsv dort Kal dyvootov néat toic Sevtéporg», PROCLO, Elementos de Teologia, Prop. 123, Até certo ponto em alterativa ao siléneio mistico (que também tha os seus adeptos), a via da negagdom apresentou-se, pr iss0, como o modo de, com a linguagem humane, falar do Absoluto, Cf. por exeinplo, PSEUDO-DIONISIO, 0 AREOPAGITA, Das nomes divinos, I, § 5: Aurélio AGOSTINHO, De Trintae, V, 1, 1 €2: ou NICOLAU DE CUSA, De doctaignorantia, 1,26, 86-89. “Mau grado as demareagées teologicamenteinteresantes, o Aquinense nto deixa de reconhecer ue «com efeito, acerca de Deus nés no podemos captaraquilo que ele é, mas aguilo que ele nfo é» ~ «mon enim de Deo capore possums quid est, sed quid non est», TOMAS DE AQUINO, Sianma contra Gentiles, 1, XXX. Excusado seri insistir em que -- no meu entender ~ a Cultura nio verifica os atributos nem da absolutidade, nem da transcendéneia, Todavia, assinalar ~ mesmo que em cerieatura abreviada —aspectos indicativos do que eln eno é poder, de alguna sorte, conribuir, pela via do arroteamento, para que Se sla oespago @ uma eventual compreenstio de aquilo que ela sea ® At em atmosteras de idealismo rarefeito, deparamos com a observagio de que «a ipseidade do si- mesmo implica a alteridade num grau tio intimo que uma no se deixa pensar sem a outra, que uma antes ppassa it outra, como se diria em linguagem hegeliana.» -- «Vipséité du soi-méme implique 'altérité & un degré si intime que l'une ne se laisse pas penser sans l'autre, que lune passe plutdt dans autre, comme on dirait en langage hégélien.», Paul RICOEUR, Soi-méme comme un autre, Préface; Paris, Editions du Seuil, 1990, p. 14 A Cultura é um tecido de interlocugdes. Com mundo, com os outros, conosco préprios. Num momento de presenga interpelante, em que ao diflogo muitas auséncias se convocam. E 0 depésito sedimentar nfo ¢ arrecadagdo de inertes. Em galerias de Museu, ou nas prateleiras de um Tombo. Num corredor climatizado, ou em lixeiras ao ar livre. Os acervos «depositados» tem mesmo que ser feitos «falar»®, Nao por tagarelice € passatempo, mas numa conversagio que nos enriquega o agir. Porque, enfim, a Cultura nao é s6 aforro, e mirada pelo retrovisor. E uma caixa de ferramentas no con-fronto ¢ nas feiturias do fronteiro. Dai a condig&o incémoda que nos alicerga 0 edificio: niio ha cultura sem cultivo. O cultivo do ser -- ¢ da nossa «porgiion no ser -- constitui uma labuta que em comum partilhamos. Que conjuntamente empreendemos: co-operando, mas até quando divergimos, ¢ nos opomos. Que a fodos diz intrinsecamente respeito. E da escritura da histéria que a cultura fala. E na escritura da histéria que a cultura se forma. E pela escritura da historia que a cultura se justifica, Por outro lado, é também, e sempre, sobre um fundo de cultura que todo 0 viver ibilidades se se engendra e desenha. Que os seus sentidos assomam, Que as suas poss perfilam, firmam, ¢ adquirem materializagao. § 4. Identidade. Ha quem alimente um deslumbrado aprego pela histéria paralitica. Houve, no antigamente -- mas no ha mais. E ha quem apenas enxergue o «idénticon como uma reiteragiio do «igual». Deixa de haver ~ assim que alguma «diferenga» desponte. ° Trata-se de um exercicio pelo qual Platio — escritor de tantas obras — parecia no nutrir assinalavel simpatia conhecida, Efectivamente, no rasto da socrdtica predilecgio pela oralidade e pelo mnésico, ele considerava que aos livos» (si BxACa)ndo estariam em condigdes nem de «perguntar» Epoy), nem de «eesponder (énoxp{vw) — ef. PLATAO, Protigoras, 329 a --, limitando-se a «indicar» (onuatva) indefinidamente «sempre s6 0 mesmo» (uévov tadtov det): cf. PLATAO, Fedro, 275 d. Eo reconsituvel corte dos falsos iconoclasasilusres& comprido: Oieio os livros; eles no ensinam sendo a falar de aquilo que ndo se sabe.» ~ de has les livres; is a’apprennent qu'a parler de ce qu’on ne sat pasin, Jean-Jacques ROUSSEAU, Emile, ow De I'éducation (1762), Il; Oeuvres Complétes, ed. Berard Gagnebin e Marcel Raymond (doravante: OC), Pars, Editions GaliardBbliothéque de la Pid, 1969, vol. IV, p. 454 Como nourasinstanciagdes infelizes ~e igualmente comproviveis ~ acontece opergo real nfo provém desta radasvstosas, mas dos barbarsasverdadsto, que sob outas mascara se acobertam Todavia, a histéria prossegue — apesar das certidées de dbito extemporineas, que periodicamente lhe vao sendo passadas no cartério'”, E 0 aidéntico» somente per-dura — porque, no baloigo, ¢ capaz de aguentar, de incluir, e de des-envolver, «diversidaden'! Nem a historia tem por «téAog» a cessagio, nem 0 «idéntico» se encafua num marasmo de repetigdes. A historicidade devém ingrediente da prépria identidade. As pedras ~ até as pedras ~ no foram sempre o que hoje mostram. E identidade no é empedernimento que persiste. A fossilizagio conserva, mas apenas aquilo que tendo tido vida -- num instante catastréfico -- a perdeu, E identidade no é oficio de defuntos — com o corpo presente, ou ante o sareéfago da mémia embalsamada. Em suma, ¢ quanto ao sumo: Identidade nao é mesmidade abstracta'*, que num congelador, ou em efigie, se preserva. Identidade, no quadto e na dialéetica de um processo, 6 unidade deveniente do "Um atestado recente ~ e clamoroso -- fez as delicias de muita gente (embora o prazo de validade da peremptoria declaragdo permanera sujeito a dividas justificadas): Francis FUKUYAMA, The End of History and the Last Man, London, Penguin Books, 1992. Os intentos de perpetuagao de um existente em que se naufragou ~ muito a pressa, apelidado de ««naturalidade» reencontrada -- remontam, aliés, aos primérdios da apologética do economismo burgues: «Ao dizerem que as relagdes actuais ~ as relagdes da produgdo burguesa — so naturais, os economistas dio a entender que se trata ai de relagdes nas quais se cria a riqueza, e as forgas produtivas se desenvolvem, em conformidade com as leis da Natureza. Portanto, essas relagdes sio elas préprias leis naturais independentes da influéncia do tempo. So leis eternas que devem reger sempre a sociedade, Assim, houve histéria, mas no hé mais.» — «En disant que les rapports actuels ~ les rapports de la production bourgeoise ~ sont naturels, les économistes font entendre que ce sont Ii des rapports dans lesquels se erée la richesse et se développent les forces productives conformément aux lois de la nature. Done ces rapports sont eux-mémes des lois naturelles indépendantes de I'influence du temps. Ce sont des lois étemelles qui doivent toujours régir la société. Ainsi il ya eu de histoire, mais il n'y en a plus», Karl MARX, Misére de la Philosophie. Réponse di la Philosophie de la Miséve de M. Proudkon (1847), IL, § 1, 7; Oeuvres, ed. Maximilien Rubel, Paris, Editions Gallimard/Bibliothéque de la Pléiade, 1965, vol, 1, pp. 8-89. "" Seri oportuno referir que até um pensador a dialéeticn bem avesso vai a Hegel buscar inspiragao para 0 acertado asserto de que: ‘No igual [im Gleichen], a diversidade desaparece. No mesmo [im Selben}, a diversidade aparece (ou fenomenaliza-se,erseheint]»» ~ «lm Gleichen verschwindet die Verschiedenbet. Im Selben erscheint die Verschiedenheit», Martin HEIDEGGER, «Die onto-theo-logische Verfassung der Mataphysiko, Identiti und Differenc (1957), Pfullingen, Verlag Giinther Neske, 1986 p. 35. Para uma outra declinagdo linguistico-cliferencialy destes heideggerianizados motivos de ascendéncia hegeliana: Jacques DERRIDA, «La différancen (1968), Marges de la philosophic, Pati, Editions de Minuit, 1972, pp. 1-28. "aA identidade abstractay (die abstrakte Identtét) corresponde & fixagio de algo na imediatez determinada de um seu momento fenomenalizado. «A identidade conereta» (de Konkrete Mntit) come porta, ¢ resolve no seu proprio devir, «a mediaglion (die Vermiitlung) em que algo consiste. Cf, Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Enzyklopddie der philasophischen Wissenschaffen im Grundrisse (1830), § 36, Zusatz; Theorie Werkausgabe, red. Eva Moldenhauer © Karl Markus Michel (doravante: TW), Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1970, vol. 8p. 106, ‘mesmo e do outro. Nao releva do «simples», mas do complexo, onde ~ ainda por cima (ou por baixo) -- dimensdes conflituantes (¢, no limite: contraditérias) inter-agem na configuragéo dos préprios resultados imediatamente disponiveis. Por conseguinte, ¢ para eventual desmancho de alguns prazeres na arrumagiio: a identidade cultural nao ¢ um dado ja pronto. Que reverencialmente se resguarda num tabernéculo inacedido, ou que -- em acessos de inflamado proselitismo mi procura impér a reticéncia do gentio. A identidade cultural 6 um trabatho ~ intra-comunitétio, ¢ inter-comunitatio — de con-vivéncia, de des-coberta, de enriquecimento humano, pela diversificagao, ¢ pelo tenteio exploratorio, das suas potencialidades. Mais: a identidade nio é um exsudamento que da «Cultura» ao poleiro subida, e devidamente engalanada, do alto escorra até & massa ignara (e ingrata) do contingente geral dos figis. A identidade faz-se: pelo, e no, cultivo. Para um povo, a identidade cultural requer atengdes continuadas. E 0 cuidado — vivo, ¢ criador — pelo seu préprio destino e porvir. Num tabuleiro amplo ¢ solidario de abertura a0 mundo ¢ aos outros. E nfo ha «naci nalidadey que exista ~ e resista ~ fora deste embasamento, e destas viandancias. «Naturalidade» ¢ «culturalidade» niio so, pois, de encarar, no que & condigaio do ser humano diz respeito, como instancias metafisicamente contrapostas"”, E neste sentido que «a igualdade consigo mesmo» (die Sichselbstgleichheit) unicamente tem verdaden (Wahrheit) ~ e «{efectiva] realidade» (Wirklichkei) ~ enquanto «movimento» (Bewegung) da identidade» (Identiti) © da «aio-identidaden (Nichtidentitd). CE. HEGEL, Phdinomenologie des Geistes (1807), VII, C; TW, vol. 3, pp. 567-568. ‘Acerca da ineréncia da «contradigiion (Widersprucl) ao tertitério da propria «identidaden no seu desenvolvimento, veja-se, por exemplo: HEGEL, Wissenschaft der Logik (1813), Il, 1, 2, C, Anmerkung 3; TW, vol. 6, pp. 74-76. "Para um enfoque ~ aids, interessante — em que a contraposigio referida assoma como elemento-chave nas operagdes de arrumo, veja-se, por exemplo: Emst CASSIRER, Zur Logit der Kuluurwissenschafien Fiinf Suaien (1942) ~ Gesammelte Werke. Hamburger Ausgabe, ed. Birgit Recki (doravante: GW), Darmstadt, Wissenschafiliche Buchgesellschafi, 2007, vol. 24, pp. 355-486 ~, bem como Naturalistische und humanistische Begriindung der Kulturphilasophie (1939); GW, vol. 22, pp. 140-166. No entanto, a dicotomia nio surde como o itinerdrio obrigat6ri. Em contexturas temporas diferentes, e com posicionamentos resolutivos de esquadria variads, no faltam observagGes ¢ materiais que nos incitam & passagem por outros tilhos: “A natureza e a educagio [5t8axr}, um exervicio de cultura] sio algo de aproximado. Pois, com feito, a educagio transforma o homem, e wransformando faz natureza [punrorouca]}.» ~ at pborg Ket} Bidazi Rupardrjorsy gov. Kel yep r} diaxH Uetapuopot tov @porov, werapvopodaa 8 ‘gvotoroiei.», DEMOCRITO, Fragmento B33; FVS, vol. Il, p. 153 «Falamos da arte como distinta da natureza; mas a propria arte € natural ao homem. Ele é nalguma medida, 0 artifice do seu proprio quadro, assim como da sua fortuna, ¢ esta destinado, desde a primeira idade do seu ser, a inventar © a excogitar [fo contrive].» ~~ «We speak of art as distinguished from nature; but art itself is natural to man. He is in some measure the atificer of his own frame, as well as his fortune, and is destined, from the first age of his being, to invent and contrive.», Adam Cultivaveis, somos ~ por «natureza» ~ seres de cultura. E num elemento «culturalizado» que respiramos. Verdadeiramente, é por cultura que nos tornamos Awmanos'', Ainda que contra-exemplos de recaida triste num estddio «zoolgico» se fagam com intermiténcias sentir: hominizacdo ¢ humanizagiio. Acolhendo a aclarago nominal dos escolasticos — sem, com isso, perfilhar 0 contetido doutrindrio formalizante que lhe associam poderd dizer-se que a humanitas significa «aquilo pelo que o homem é homem» (hoc quo homo est homo)", FERGUSON, An Essay on the History of Civil Society (1767), 1, 15 ed. Duncan Forbes, Edinburgh, Edinburgh University Press, 1966, p. 6, «O ser humano & imediatamente ser de Natureza (Naturwesen].(...}. Porém, 0 ser humano no & apenas ser de Natureza, mas cle & ser de Natureza: tumanon ~- «Der Mensch ist unmittelbar Naturwesen. Lou}. Aber det Mensch ist nicht nur Naturwesen, sondem er ist menschli¢hes Naturwesen>, MARX, Okonomisch-philosophische Manuslripte (1844), Heft II, Erginzungen zu Heit Il, Kritik der Hegelschen Dialektik und Philosophie berhaupt; Marx-Engels Gesamiausgabe, ed. Ginter Heyden © Anatoli Jegorow (doravante: MEGA”), Berlin, Dietz Verlag, 1982, vol. 1/2, respectivamente, pp. 408 e 409. Inclino-me, por isso a pensar que ~ em termos ontolégicos ~ a culturalidade & trago constitutive dda materialidede da forma humana do ser. Posto que esta materialidade nfo € «redugion coisificante a0 rasteiro, nem «recondugao» biologista a0 animalesco, mas condigio para o desenvolvimento intrinseco de possbilidades reais, que no, ¢ pelo, trabalho da histria rompem, e que em busea de concretizagao se v0 prolongando. "Na nossa tradigao, foi neste designio que os Gregos puseram de pé, ¢ desenvolveram, 0s seus conecitos de mubeta. Cf. Wemer JAEGER, Paideia, Die Formung des griechischen Menschen (1936-1955), Berlin, Walter de Gruyter & Co., 197°. E a este proceso cultural de formagio que as Luzes europeias ~ desde os finais do século XVI ~ aludem, sob o emblema, designadamente, de um sistema educativo: ‘«Penso poder dizer que, de todos os homens com que nos encontramos, nove partes em dez so ‘aquilo que sto ~ bons ou maus, isis ou no ~ pela educagao dees. E isso que faz a grande diferenga do {género humano [mankind]. ~ ul think I may say, that, of all the men we meet wih, nine parts often are ‘what they ate, good or evil, useful or not, by their education. Iti that which makes the great difference in mankind.», John LOCKE, Sone Thougits Concerning Education (1693), § 1; Works in Nine Volumes, ed. Edmund Law, London, C. and J. Rivington [e outros), 1824, vol. VII, p. 6 «A educagao faz-nos aquilo que nds somos.» ~ «L.*éducation nous fait ce que nous sommes.», Claude-Adrien HELVETIUS, De "homme (1773), X, 1; ed. Geneviéve Moutaux e Jacques Moutaux, Paris, Librairie Arthime Fayard, 1989, vol. I, p. 881. Veja-se também: HELVETIUS, De esprit (1758), IV, 17; ed. Frangois Chatelet, Verviers, Marabout, 1973, pp. 492-501 «0 ser humano s6 se pode tomar ser huimano por educag20. Ele nfo é nada a nio ser que a educagiio dele fez. F de notar que o ser humano s6 por seres humanos € educado, por seres humanos que igualmente estio educados.» ~ «Der Mensch kann nur Mensch werden durch Erzichung, Er ist nichts, als. ‘was die Erzichung aus ihm macht. Es ist zu bemerken, da8 der Mensch nur durch Menschen erzogen wird, durch Menschen, die ebenfalls erzogen sind.», Immanuel KANT, Uber Peidagogik (1803), Einleitung; Gesammelte Schrifien, ed. Kéniglich Preussische Akademie der Wissenschaften (doravante: Ak), Berlin ~ Leipzig, Walter de Gruyter & Co,, 1923, vol. IX, p. 443. E poderiamos ainda recordar Beccaria ~ conhecedor de Helvétius e de Rousseau --, para quem «desenvolver 0s sentimentos do préprio animo é uma arte que se aprende com a educagiion (sviluppare i semimenti del proprio animo é un'arte che s’apprende colla educazione), ro pela qual «© meio mais seguro, mas mais dificil, de prevenir os delitos & aperfeigoar-se a educagdo» (il pitt sicuro ma pit dificil ‘mezzo di prevenire i debit si é di perfesionare I'educazione). Cf. Cesare BECCARIA, Dei Delite delle Pene (1764, 1766°), §§ XXVIII ¢ XLY; ed, Alberto Burgio, Milano, Giangiacomo Feltrinelli Editore, respectivamente, pp. 83 ¢ 112. '§ CL TOMAS DE AQUINO, Swwnma Theologiae, I, 4.3, 8.3 Todavia, os problemas — que ndo ficaram absolvidos, ¢ que 0 «essencialismo» abstracto nfo resolve ~ s6 a partir daqui se desdobram. Até porque, em lugar de mera individuagao de um arquétipo, o ser humano ~ lembrando expres es que Giovanni Pico della Mirandola emprega — se constitui como «modelador ¢ fazedor» (plastes et fictor)'® das formas proprias que imprime 4 «humanizagiion do seu viver. Neste sentido, a humanitas alcanga -- enquanto categoria operativa -- mais além, € mais fundo, do que as costumadas acepgdes em que aparece como um cédigo genético da fibrica trazido, a designagio retérica de um colectivo genérico, ou umas sentimentais baldeagdes com algum aditivo de misericérdia filantrépica'”. Humanidade & um afazer em feitura. 6 um horizonte em realizagio, uma tomada a cargo, um compromisso com a qualidade da vida, que vamos conjuntamente pondo de Pé, esculpindo, e enriquecendo, pelo nosso trabalho quotidiano da historia, Por esta, ¢ nesta, lavranca continuada do acontecer ~ que a Cultura repercute, questiona, medeia, estimula, e pe em perspectiva — se desempenham em concreto os humanos daquela que, porventura, é a sua destinagdo incontorndvel: inscrever no corpo das realidades em devir -- enquanto ingredientes, ¢ agentes, do ser -~ a marca, 0 cunho, o selo, da sua humanidade. '® CE Giovanni PICO DELLA MIRANDOLA, De hominis dignitate (1486); ed. Vittore Branca, Milano, Silvio Berlusconi Editore, 1995, p, 90, "” Observe-se que, ja no século II, um celebrado compilador romano de «arqueolégicas» curiosidades se insurgia contra a inferpretagio que © «vulgo (uolgus) dava ao vocabulo whumanidade» (iumanitas), convertendo-o em sindnimo de «filantropia» (gthavOpemta) ou de cbenevoléncian (beneuolentia) no {rato indiscriminado com os humanos, e descurando, assim, aquele vector que, segundo ele, caracterizaria, na sua genuinidade, o conceito: a «educagaon ou a «cultura (ronbeta), entendida como «adestramenton (eruditio) & «instrugao» (insttutio) «nas boas artes» (in bonas artes). Cf. Aulus GELLIUS, Noctes ‘aiticae, XU, 17, 1 Recordemos ainda que ~ antes, ou pelo menos talvez. independentemente, de Feuerbach e das suas invocagbes do «ser genéricon (Gaitungswesen) do homem — Pierre Leroux, niio sem resvalamento para as orquestragdes do amor universal, compreendia «a humanidaden (Uhumanité) como «a natureza humana em nés, quer dizer: a natureza genérica do homem contida virtualmente em nés em toda a sua infinidede, e realizada parcialmente de uma certa moneira que constitui, ao mesmo tempo, a nossa particulatidade e a nossa vida presente» ~- «la nature humaine en nous, c’est-i-dire la nature générique de Phomme contenue virtuellement en nous dans toute son infinité, et réalisée particllement d'une certaine fagon constituant & la fois notre particularité et notre vie présente», Pierre LEROUX, De I’humanité (1840), Doctrine, V, 8; ed. Miguel Abensour e Patrice Vermeren, Paris, Librairie Arthéme Fayard, 1985, p. 195, ‘Também para Feuerbach, «aquilo que constitui a natureza do ser humano» (was die Natur des Menschen konstituiert) & «a esséncia do género» (das Wesen der Gattung), a qual se apresenta como «a esséncia absoluta do individuo» (das absolute Wessen des Individuums). Cf. Ludwig FEUERBACH, Das Wesen des Christentums (1841), Einleitung, Das Wesen des Menschen im allgemeinen; Gesammelte Werke, ed. Wemer Schuffenhauer (doravante: GW), Berlin, Akademie-Verlag, 1984, vol. 5, p. 38. esbogo de perspectiva para que agui procuro apontar, reportando-me & «humanidaden, no se inclu ~ desde logo, pelo apelo a uma historicidade praticada ~ no tabuleiro destas derivas, 9 Na ordem dos desideratos e da arquitectura dos valores, é a esta luz que podem ter Ieitura ~ para conhecerem tradugtio pritica --, designadamente, os desenvolvimentos geracionais sucessivos de uma Declaragéio Universal dos Direitos Humanos. Inconclusa € n&o coagulavel num figurino arcaizante'*.-, na justa medida em que os padrées de humanidade se aperfeigoam no seu teor, estendem com a exercitagio, ¢ reclamam para © proclamado, nfo apenas @ condig%o de um «dever-ser» idealmente regulador, mas um estatuto de efectiva realidade’. § 5. Patriménio cultural. A cultura confere espessor as vivéncias, ¢ tonalidade aos comportamentos, Mas nio é um mero «estado de almay, Uma atmosfera peitoral. Um penacho de vapores. Efeito da historicidade do ser e concregdo do vivenciado por seres, a cultura esti mediada -- a montante, € na vazante — por todo um leque (muito amplo, e variado) de objectivagées, que a condensam e densificam. Nao hé cultivo de cultura sem materializagéo em «monumento»: em obra que faz pensar no que foi feito (e que nio se restringe aos prodigios da alvenaria)””. Em suporte oral ou escrito, as «ideias» objectivam pensamento, e, por isso, sfio também produto de cultura, * © modo como, na doutrina liberalista, se tende a abordar 0 t6pico chega a ser tocante, pela candura ‘com que exibe os supostos ontolégico-concepcionais sobre que repousa, € a finalidade apologética que no seu propésito visa: «Os velhos direitos civis ¢ os novos direitos sociais e econémicos ndo podem ser realizados [achieved] ao mesmo tempo, mas sio, de facto, incompativeis; os novos direitos nio poderiam ser impostos [enforced] por lei sem, ao mesmo tempo, destruirem aquela ordem liberal que os velhos direitos civis almejam»» ~ athe old civil rights and the new social and economic rights cannot be achieved at the same time but are in fact incompatible; the new rights could not be enforced by law without at the same time destroying that liberal order at which the old civil rights aim.» Friedrich August von HAYEK, Law, Legislation and Liberty. A new statement of the liberal principles of justice and political economy, 9, Appendix; London ~ Henley, Routledge & Kegan Paul, 1976, vol. 2, p. 103, "Ante 0 recrudescimento de certos entusiasmos «eticistas» serddios ~ de remota, mas vaga, inspiragio kantiana e fichteana --, seria, porventura, de meditar em alguns dos reparos que o idealista Hegel dirige contra as formalidades desprovidas de conteiido real efective que se agregam ¢ reflectem na entronizagao do peregrino © «perenal dever-ser» (perennierendes Sollen). Veja-se, por exemplo, HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, oder Nawurrecht und Staatswissenschaft im Grandrisse (1821), § 135; TW, vol. 7, pp. 252-254. 2” F neste sentido que, como numa famosa enciclopédia do século VII se pode ler «As histéras so dita também monumentos [monumental, porque cousagram a meméria das coisas [que foram] felts.» ~ «éistorine autem ideo monumenta dictntur, 0 quod memoriam tribuant rerum gestarum.», ISIDORO DE. SEVILHA, Enmologiarum libri X,1, 41. 10 No determinado das compleigdes a que no seu acto aporta, e mesmo na relativa indeterminago prévia dos seus piblicos e das modalidades de acolhimento, a cultura constitui, assim, um patriménio, Que & expresstio depositada do trabalho das realidades que entretanto empreendeu, termo de referéncia para subsequentes interlocugées, legado testemunhal a um por vir que se constr6i. Na perspectiva abarcante de um tabuleiro societal, a cultura engendra um erério uno. Chamarn-lhe, por vezes, tradigéo, Mas, em rigor, ela nfo se dectina no singular. E do interior de cadeias ageis de relacionamentos culturais que se compactam, escandem, e conflituam: tradigées. Nem a cultura que se pro-duz 6 «monolitica», nem aquela iradigio que se herda 6 «unilinear. De entre os multiplos vectores em tensio (e torgiio) que na complexidade de um patriménio se perfilam, as iradied ganham contomo como linhagens que se in-vocam, € con-vocam, em respaldo e sinalizagdo de traject6rias procuradas. No afazer tribulo das ctapas didirias ¢ dos momentos histéricos. Percebidas, e apercebidas, desde a esplanada de diferentes miradoiros. ‘A tradigio no é um genoma cultural Ginico, As tradigdes também se «escolhem» ¢ seleccionam”!, no sentido de que configuram genealogias re-criadas, ¢ -- nao raro -- contrastantes. © fenémeno da selectiva «evocagio dos mortos» (Todtenbeschwarung) que se declara pertencerem & estimpe nao deixou, aliés, de merecer nota, sobretuco, em conjunturas de vincado rompimento, ao qual importa assegurar uma drvore genealégica conveniente. Do mesmo passo, alguma luz foi trazida também 20 condicionalismo em que os processos de «substituigio» cultural se operam, ‘A citagdo é longa, mas nio se queda pelo descritivo. Dé conta de estruturas de funcionamento {que possibilitam e preparam uma compreensao, «A tradigdo de todas as geragdes mortas pesa, como um pesadelo, sobre o cércbro dos vivos. E ‘mesmo para aqueles que parecem precisamente ocupados em revolucionar-se a si e ds coisas, em eriar algo de ainda nfo existido [Dagewesenes], ¢ precisamente nessas Epocas de crise revolucionstia que eles aansiosamente evocam para 0 seu servigo os espiritos do passado, tomam deles de empréstimo: nomes, palavras de combate, vestimentas [Kostiime], para, com este disfarce [Verkleidung] arqui-venerando & ‘com esta linguagem emprestada, representarem [no sentido teatral] a nova cena da histéria mundial Assim, Lutero mascarou-se de apéstolo Paulo, a Revolugio de 1789-1814 drapejou-se, sucessivamente, como Repiiblica Romana e como Império Romano, ¢ a Revolugio de 1848 [em Franga] no soube fazer melhor do que parodiar: agui, 1789; ali, o legado revolucionério de 1793-95. [..]. Uma vez estabelecida a formagio nova da sociedade, os colossos antediluvianos desapareceram, e, com eles, a Romanidade [Rémerdhun) ressuscitada: os Brutos, os Gracos, os Publicolas, os tribunos, os senadores, e © proprio César. A sociedade burguesa, na sua realidade sébria, tinha engendrado para si os seus verdadciros intémpretes e porta-vozes: com os Says, 0s Cousins, os Royer-Collards, os Benjamin Constants, © os Guizots; os seus reais comandantes sentavam-se atris da secretiria do escritério, ¢ 0 cabega-de-toucinho [Speckkopf] do Luis XVIII era 0 capitao [Haupt] politico dela». O procedimento, entretanto, néo & um cexclusivo gaulés: «Assim, num outro estédio de desenvolvimento, um século mais cedo, Cromwell ¢ 0 povo inglés, para a revolugao burguesa deles, tomaram de empréstimo ao Velho Testamento: linguagem, paixdes, c ilusdes. Quando a meta [efectivamente] real foi atingida, quando a reconfiguragao burguesa da sociedade inglesa foi completada, Locke desalojou Habacuc.» -- «Die Tradition aller todten Geschlechter iL O terreiro das lutas nao é estranho nem a produgao de cultura, nem as tradigdes culturais ~ perdurantes, ou repescadas, Em todo 0 caso, porém, a sradig fio jamais se confina a uma espécie de servigos de bengaleiro, onde se consignam, e recolhem a vez: casacdes, malas, embrulhos, ¢ ‘outras bagagens (de pordo, ou de cabega). A tradi € sempre um acidentado processo de trans-porte. Em que as cargas oriundas do passado sfio postas a uso num presente que Ihes opera re-significagdes, para ~ transformadamente, ¢ com acréscimos ~ serem aos vindouros entregues, no leque re- elaborado de possiveis que se desdobram, como material plistico das respectivas tarefas 2 E por isso que, nas lidas com o pat }énio — mesmo quando em causa esteja a tutela da sua salvaguarda, funcionamento, e vitalizagdo — se torna imprescindivel ter em conta, ¢ néo banir dos horizontes, a dindmica prdpria da Cultura. E esta dinamia fica indelevelmente maltratada, de cada vez que, para «resolver» as questdes, se crige em absoluto uma das unilateralidades que, nos lugares de hortaliga a praga dos «remédios», disputam para si a exclusividade dos favores da freguesia, lastet wie cin Alp dem Gehime der Lebenden, Und wenn sie eben damit beschiftgt scheinen, sich und die Dinge umzuwallzen, noch nicht Dagewesenes zu schaffen, gerade in solchen Epochen revolutiondier Krise beschwéren sie angstlich die Geister der Vergangenheit zu ihrem Dienste herauf, entlehnen ihnen Namen, Schlachtparole, Kosttime, um in dieser altehrwirdigen Verkleidung und mit dieser erborgien Sprache die neve Weltgeschichtsszene aufzufiren. So maskirte sich Luther als Apostel Paulus, die Revolution von 1789-1814 drappirte sich abwechselnd als rOmische Republik und als romisches Kaiserthum, und die Revolution von 1848 wuflte nichts Besseres zu thun, als hier 1789, dort die revolutiondie Ueberlieferung von 1793-95 zu parodiren. [...]. Die neue Gesellschafisformation einmal hergestellt, verschwanden die vorsiindfluthlichen Kolosse und mit ihnen das wieder auferstandene Rémerthum ~ die Brutusse, Gracchusse, Publicola’s, die Tribunen, die Senatoren und Cisar selbst, Die biirgerliche Gesellschaft in ihrer niichtermen Wirklichkeit hatte ‘sich ihre walven Dollmetscher und Sprachfihrer erzeugt in den Say's, Cousin’s, Royer-Collard’s, Benjamin Constant's und Guizot’s, ihre wirklichen Heerfithrer saflen hinter dem Comptoirtisch und der Speckkopf Ludwigs XVII, war ihr politisches Haupt, [..}. So hatten auf einer ander Entwicklungsstufe, ein Jahrhundert friher, Cromwell tund das englische Volk dem alten Testamente Sprache, Leidenschaften und Illusionen flr ihre birgerliche Revolution entlehnt. Als das wirkliche Ziel erreicht, als die birgerliche Umgestaltung der englischen Gesellschaft vollbracht war, verdrangte Locke den Habakuk.», MARX, Der achtzehie Brumaire des Louis Bonaparte (1852), I; MEGA*, vol. 1/11, respectivamente, pp. 97 98, * Esta dialéetica inerente ao processo da cultura é particularmente posta em destague por Hegel. ‘«Pattiménion (Besitz)e eheranga» (Erbschaft) sio «o resultado do traballo de todas as geragdes, antepassadas» (das Resultat ler Arbeit aller vorhergegangenen Generationen): «Esta tradigio, porém, ndo é apenas uma dona-de-casa que apenas guarda fielmente 0 recebido ¢ © transmite assim intransformadamente [unverdinderi] aos sucessores. Ela nfo é uma estitua de pedra imovida, mas esta viva ¢ dilata-se como uma corrente poderosa, que engrossa quanto mais para longe avangou da sua origem.» ~- «Diese Tradition ist aber nicht nur eine Haushilterin, die nur Empfangenes ‘eu verwahrt und es so den Nachkommen unverdindert Uberliefert. Sie ist nicht ein unbewegtes Steinbild, sondem lebendig und schwillt als ein machtiger Strom, der sich vergraBert, je weiter er von seinem ‘Ursprung aus vorgedrungen ist», HEGEL, Vorlesungen iiber die Geschichte der Philosophie, Einleitung, A; TW, vol. 18, p21. Carieaturemos, ¢ em trago grosseiro, umas quantas «receitas» que se encontram disponiveis entre o bragado das tentagées © conservacionismo passadista quer manter tudo -- mas comega por ficcionar «o passado» que julga digno de preservagiio em conserva, © visionarismo compulsivo mostra-se futurante ~ mas tende a fazer tébua rasa dos escadotes de onde mira ao longinquo. © cosmopolitismo viajado (mesmo se s6 pelo folhear de revistas, ou por ouvir dizer) pela-se pelas «iltimas novidades» mas converte 0 macaqueio do que «de fora» venha em assegurado carimbo de originalidade O casticismo de campansirio esgravata o pormenor das raizes ~ mas aleandora os alvorogos da pardquia em «redescoberto» umbigo do mundo, O restauracionismo das tragas primitivas (que, muitas vezes, nunca existiram) bate-se pela «restituigiion - mas destroga com desembarago as aportagdes de um viver que entretanto prosseguiu. Eo lengol das «panaceias» em antincio poderia estender-se. Para amostragem de atropelos, porém, basta, No inflamado destas bulha icendem-se por certo algumas mechas de interesse, Mas fica apagada a luz ao esclarecimento das obscurecidas pendéncias, Que reflectem contradigées reais, a que uma desastrada — quando nao: desastrosa — absolutizagao de enfoques parcelares nao dé sumigo. Pode haver respostas redondas para problemas bicudos. Mas o tertitério do complexo nao se desbrava com expedigdes simples. A dialéctica faz falta. E nao € porque ela seja um habilidoso exercicio ginistico de paralelas concordantistas (de compensagdes, e de harmonismos)”’, ou um ensopado heteréclito onde a relatividade materialmente fundada se confunda com o «relativismo» desmaterializado em que vale tudo e tudo se equivale™. * A medular incompreensio proudhonista da dialéctica, por exemplo, encontra-se. superiormente norteada pelas sonotidades cientifico-ret6ricas de um wharménio» das «conciliagdesy: «Todo 0 antagonismo, scja na Natureza, seja nas ideias, se resolve num facto mais geral, ou uma formula complexa, que pde os opositores de acordo ao absorvé-los, por assim dizer, a um ¢ a0 outro.» ~ «Tout antagonisme, soit dans la nature, soit dans les idées, se résout en un fait plus général, ow fen une formule complexe, qui met les opposants d’accord en les absorbant, pour ainsi dire, I'un et Pautre.», Pierre-Joseph PROUDHON, Systeme des contradictions économiques, ou Philosophie de la Misére (1847), 1, § 1; Oeuvres Complétes, Paris - Bruxelles, Librairie Internationale ~ A. Lacroix, ‘Verboeckhoven et C*, 1872, vol. IV, p. 42. ® Para uma conhecida apotogia do principio do «vale tudo» (anything goes), em ambiente de anarquismo ‘metodoldgico liofilizado, por desidratagao completa de qualquer materialidade ontol6gico-dialéetica: Paul 13 § 6. Ajuizamento. ‘As colectividades humanas entretecem de cultura os vinculos que as estruturam, © as modalidades em que o respectivo viver se processa. Mas nem sempre a cultura ¢ objecto social de atengao ¢ de escrutinio, Niio ha cultura sem criagio de patriménio. No entanto, da marcha labirintica das culturas nfo estiio de todo exclufdos: nem © esquecimento, nem a destruigdo, de patriménios. Pela usura do tempo, ¢ por temporais entre usuarios. A cultura do poder manifesta, de resto, uma assinalavel prevaléncia sobre 0 poder da Cultura Era praxe no Egipto Antigo que um fara ordenasse a martelagem sistematica das inscrigées votivas em honra do antecessor. A Santa Sofia dos bizantinos virou templo de culto islamico, ¢ a Mesquita de Cérdova foi pela Cristandade reciclada em sé catedral Contrabando de reliquias contrafeitas, e tréfico clandestino de iluminuras, eram um expediente que dispOe de volumoso cadastro medieval. Queimas de livros, ¢ interditos censérios, terGo preservado as conseiéncias do descaminho, mas ~ a par da churrascaria festiva com os autores ~ aceleraram a escassez dos espdlios. Alguns incéndios de arquivos consumiram a inconveniéneia de certos assentos, ¢ esfumaram o vestigio de algumas dividas. Hodiernos Museus de referéncia devem boa parte das suas colecgdes a despojos de guerra, ¢ a migragdes forgadas de pegas (e até de conjuntos monumentais). Em contrapartida ~ e por eruel que possa soar --, caso tudo se mantivesse, ¢ nada se olvidasse, o proprio viver (individual, ¢ colectivo) se nos tornaria impo: sivel FEYERABEND, Against Method. Outline of an anarchistie theory of knowledge (1975), London ~ New York, Verso, 1993). ® Nao obstante a visio «religioniriay anti-huguenote ¢ anti-jacobina que preside aos enquadramentos, ‘em certamente interesse documenta, e de alerta, desde logo, no que a Franga toca, um estudo, de alguma maneira, «pioneiron: Louis REAU, Histoire du Vandalisme. Les monuments détruits de l'drt Frangais (1958); ed. aumentada Michel Fleury e Guy-Michel Leproux, Paris, Editions Robert Laffont, 1994. 4 que, obviamente, nao pode servir de norma habilitante para 0 reaquecimento frenético de um criacionismo ex nihilo’® em subjectivagio radicalista extremado”’, que funcionaria como expeditiva almofada «teérica» de conforto para os mais desvairados propésitos «culturais» de «instauragdo» neo-plistica... por arrasamento prévio dos sitios, Outras vias, entretanto, se ensaiaram. Recolha piedosa de destrogos remanescentes, e coleccionismo espordidico de pegadas avulsas, Estabelecimento de fronteiras, e fixagiio de perimetros. Foi, de algum modo, a resposta socialmente encontrada para atalhar males cometidos, ¢ para prevenir umas desgragas ameagantes, Apesar da precocidade relativa do aviso, demorou até que Dante -- na viragem do século XIII para o século XIV — emitisse a «opinio firme» (ferma opinione) de que as pedras ¢ ruinas de Roma sao «dignas de reveréncia» (degne di reverenza)", * A titulo de curiosidade marginal, refira-se que, em termos escrituristicos, a formulagio é relativamente tardia, e 0 respectivo autor foi inspirado em grego: deus fez «todas as coisas» (si névza) que esto no céu e na terra «aio a partir de entes» (obx && Svtiov). «A partir de nada» (ex nihilo) corresponde a versio da Vulgata, Cf. Livro dos Macabeus H,7, 28 Na metatisica do idealismo modemo, a matriz. remonta, de algum modo, a tese fichteana, segundo qual: «© Eu assim como Nao-Fu sio ambos produtos de acres originérias do Eu, ¢ a prépria consciéncia ¢ um tal produto da primeira acgdo origindria do Eu, do pér{-se] do Eu através de si proprio.» = «Das Ich sowohl, als das ch sind beides Producte urspriinglicher Handlungen des Ich, und das Bewulitseyn selbst ist ein solches Product der ersten urspriinglichen Handlung des Ich, des Setzens des Ich durch sich selbst», Johann Gottlieb FICHTE, Grundiage der gesammien Wissenschafsiehre als Handschvift fir seine Zuhirer (1794), 1, § 3, B; Werke, ed, Immanuel Hermann Fiche, reprod. Berlin, Walter de Gruyter & Co, 1971, vol. 1, p. 107 A podtica do romantismo frequentou estas salas de leitura. «Todo 0 real eriado a partir de nada (alles aus Nichts erschafine Reale) é declarado possuir «um parentesco maravillioso» (eine wunderbare Verwandtschafi) com «um mundo postico» (eine poétische Welt). Cf. NOVALIS, Das allgemeine Brouillon 1798/99, Ill, n, 898; Werke, Tagebiicher und Briefe Friedrich von Hardenbergs, ed. Hans- Joachim Mil ¢ Richard Samuel, Darmstadt, Wissenschafiliche Buchgesellschaft, 1999°, vo. 2, p. 682. A condugio principial até aos extremos da «unicidade» sobrevém num dos emblemas do seu patriarca: «Eu sou [...] 0 nada criador, o nada a partir do qual Bu préprio, como criador, exio tudo.» = ‘alch bin [..] das schépferische Nichts, das Nichts, aus welchom Ich selbst als Schépfer Alles schaffe.», Max STIRNER, Der Einzige und sein Eigentum (1845), Ich hab" Mein Sach’ auf Nichts gestellt; ed Bemd Kast, Freiburg ~ Minchen, Verlag Kael Alber, 2009, p, 15. Dos arquivos da familia, com diversficados ramos na descendEncia, podia igualmente consiar & nietzscheana concepgio do «niilismo activon (activer Nikilismus) entendido «como sinal do empinado poder do espirito» (als Zeichen der gesteigerten Macht des Geistes). Cf. Friedrich NIETZSCHE, Aus dem Nachlaf derdchtzigerjahre; Werke, ed. Karl Schlechta, Darmstadt, Wissenschafiliche Buchgesellschaf, 1973", vo. Il, p. 557 ® © aprego ~ efectivo e, em larga medida, precursor ~ alega uma justificagdo teolégico-providencialista, Deus acompanhou, nas suas vicissitudes € atribulagdes, o destino de Roma desde a origem. Dai, o bem fundado da copinido firme de que as pedras que nos seus muros estdo sejam dignas de reveréncia» — «forma opinione, che le pietre che nelle mura sue stanno siano degne di reverenzian, Dante ALIGHIERI, UI Convito (1297-1314), IV, V; Opere Minor, ed. Pietro Fraticelli, Roma, G. Barbéra Editore, 1900, vol. UL, p. 264. 15 Mostraram-se «novos mundos a0 mundo», mas 0 reconhecimento das culturas do «outro» tardou. Até porque -- como j Montaigne censurava -- cada um carimba logo de «barbarie» aquilo a que nao esta habituado™’, Muito se destruiu, muita coisa andou perdida, Dando definitivo cumprimento a sentenga que o velho Cato reclamara’', Cartago veio mesmo a baixo. E Machu Picchu - ~ bas que os Incas haviam abandonado perante a investida dos «onquistadores» —- 86 foi reencontrada, e comegada a escavar, em 1911”, ‘A convocatéria formal ¢ regular do Direito para estas manobras de rescaldo, e salvatério, data, porventura, dos finais do século XVIII. Por exemplo, durante a Revoluedo Francesa, a fim de evitar as exorbitancias do zelo ¢ os subterfiigios da delonga, por um Decreto da Convengio Nacional em 1793, passa a ser proibido «retirat, destruir, mutilar, e alterar de alguma maneiray -- a pretexto de um apagamento dos «sinais de feudalidade ou de realeza» -- todo um conjunto de «objectos», sediados em lugares publicos ou em mio privada detidos, «que interessem as artes, a histéria, ¢ a instrugdon™, Cf. Luis Vaz de CAMOES, Os Lusiadas (1572), Canto 11, XLV; Obras, Porto, Lello & Inmiio Editores, 1970, p. 1159, ® Cada um chama barbitie aquilo que nio é costume seu.» ~- «Chacun appelle barbarie ce qui n'est pas de son usage.», Michel Eyquem de MONTAIGNE, Essais (1580), I, 31; Oeuvres Completes, ed. Robert Barral, Paris, Editions du Seuil, 1967, p. 99. ™ Cf, por exemplo, CICERO, Cato Maior de senectute, VI, 18. © Cf. Hiram BINGHAM, Lost City ofthe Incas. The Story of Machu Picchu and its Builders (1952): ed. Hugh Thomson, New York, Phoenix/PeruBook, 20037. ® Como «curiosidade» juridico-cultural ~e até porque nem sempre aparecem devidamente citados —-, ‘ransctevo os primeiros trés artigos de um Decreto (que conta dez), publicado em 26 de Outubro de 1793, onde igualmente se espelham as contradigdes a que se procurava atender: «Art P. E proibido retirar, destruir, mutilar,e alterar de alguma maneira, sob o pretexto de fazer esaparever 08 sinais de feudalidade ou de realeza, nas bibliotecas, nas colecsdes, gabinetes, museus piiblicos ou particulares ~nio menos do que em casa dos artistas, operirios, lvreiros, ou negociantes 6s livros impressos ou manuseritos, as gravuras ¢ desenhos, os quadros, baixos-relevos, estitues, medals, vasos, antiguidades, mapas geograficos, planos, releves, modelos, miquinas, instrumentos, ¢ ‘outros objectos que interessem as artes, a hiséria, © a instrugdo.» -- «Art. I I est défendu d'enlever, de <éiruite, mutiler ni altérer en aucune manigre, sous prétexte de faire disparoite les signes de féodalité ou 4ée royauté dans les bibliothéques, les collections, cabinets, musées publics ou partculirs, non plus que chez, les artistes, ouvriers, libraies ou marchands, les livres imprimés ou manuserits, les gravures et dessins, les tableaux, bas-relief, statues, médaille, vases, antiquités, cartes géographiques, plans, reliefs, modeles, machines, instrumens et autres objets intéressant les rts 'hstoire et Minsiruction.. «il, Os monumentos pablicos transportéveis,interessando as aries ou & historia, que tragam alguns dos sinais proscritos, que nao se poderia fazer desaparecer sem Ihes eausar um dano real, serio transferidos para o museu mais vizinho, para ai serem conservados para a instrugdo nacional.» ~ «fl. Les rmonumens publics transportables, intéressant les arts et V'hstoire, qui portent quelques-uns des signes proserits, qu’on ne pourrait faire disparoitre sens leur causer un dommage rél, seront transférés dans le rmusée le plus voisin, pour y ere conservés pour Pinstruction nationale.» 16 Em qualquer caso ~ ¢, sobremaneira, nos contextos em que a actualidade se move, ajuizamento juridico sobre 0 pairiménio cultural corresponde a um momento superior de consciéneia comunitéria relativamente ao interesse fempestivo de concertar uma intervengao regrada nesse dominio, Trata-se de mais um indicio de como a jus-normativagdo ~ relevando de uma universalidade conerefa, que no & empiria ageneralizaday, nem intocado principio de origem «transcendental» ~- reflecte, acompanha, e perspectiva, um viver materialmente conereto em desenvolvimento™. A realidade cultural da habitagdo humana do mundo ~ por um garrido feixe contraditério de razes, que me dispenso aqui de aduzir ~ amadurece ao ponto de ela se tomar objecto de um cuidado politico. Como em qualquer campo sobre que se debruce, 0 Direito legal ¢ validamente expresso confere forma juridica a politicas. Nao Ihe compete, enquanto tal, definir a politica. Néo obstante, pode contribuir para aclarar a sua elaboragiio, ¢ sofre ele proprio —na sua faina especifica — os influxos materiais e ideolégicos da con-juntura (e do co- relacionamento social das forgas) em que se impée legiferar. E, neste capitulo — em que discriminagées e recortes tém que ser operados nas formulagdes que se adoptam pio. - gostaria de deixar trés notas telegrificas ¢ um desiderato Primeira nota de enquadramento. Como Hélderlin noutra contextura assinalou"’, «o juizo» (der Urteil), enquanto cenunciado #ético, instaura uma partigao origindria: € Ur-teilung. No positivo que nele se alll, Os proprietérios de méveis ou utensilios de uso didrio sto responsiveis por fazer desaparecer deles todos os sinais proscritos, sob pena de confisco. Os objectos deste género que sio postos a venda estio exceptuados, sem que a venda possa (por isso] ser retardada.» -- «lll. Les propriétaires de meubles ou ustensiles d’un usage journalier sont tenus den faire disparofire fous les signes proscrits, sous peine de confiscation. Les objets de ce genre qui sont mis en vente sont excepts, sans que la vente puisse étre retardée.», CE: Journal des Débats et des Décrets, Paris, 403 (1793),p. 79. ™ E por estes intersticios esgueiram-se aspectos que nos devem fazer reflectr. Ho direito a respirar. Nao hi ~ e espero eu que nio seja apenas por enquanto ~ um Direito da rrespiragiio, onde nos venha preserito o nimero de inspiragdes e expiragdes por minulo impostas, ou cconsentidas, Mas hi um Direito que regula a qualidade do ar, as emissbes de gases para a atmosfera, os usos do espaco aéreo, e outros procedimentas congéneres. A questio do mbito e dos limites da qiridificagio» ¢ delicada, mas inteiramente pertinente. E requer lucidez -- pensada -- no manuseio. Uma exigéncia elementar para a qual, todavia, certos «justicialismos» de revindicta escandalizada tendem apressadamente a manifestar fraco atendimento. % Cf, Friedrich HOLDERLIN, Uriheil und Sey (1795); Materialen zu Schellings philosophischen Anfingen, ed. Manfred Frank ¢ Gerhard Kurz, Frankfurt am Main, Subrkamp Verlag, 1975, pp. 108-109. 17 adianta, trans-parece, do mesmo passo, uma negagao, em que as aguas -- do retido, ¢ do imediatamente abandonado -- se dividem”®, Todo 0 juizo ¢ uma tomada de posigdo, & enquanto tal sindicavel. Segunda nota. Haverd quem imagine que a senha de pertenga a um patriménio cultural é uma causa que 0 «gosto» idiossincrésico decide™”. Na eventualidade de se enveredar por este desembaragado soluto em sede de «patrimonializagdes», ficariamos entregues a uma subordina dio do ajuizamento cultural comunitério -- j4 que, também aqui, importa nfo confundir a volonté générale com a volonté de tous** -- ao juizo estético do apreciador de servigo: sofisticadamente «genial», ou, por estatelada desgraga: burgesso. % «A determinagio é uma negagdo» -- cdeterminatio negatio est», Benedictus de SPINOZA, Bpistolae, L (carta a Jarigh Jelles, de 2 de Junho de 1674); Opera quotquot reperta sunt, ed. Johannes Van Vioten © Jan Pieter Nicolas Land, Den Haag, Martinus Nijhoff, 1914°, vol. I, p. 173, Para uma compreensio e desenvolvimento deste filosofema em contexto dialéetico, veja-se, por exemplo: HEGEL, Wissenschaft der Logik (1812), 1, 11,2, A, b, Anmerkung; TW, vol. 5, pp. 119-122. ‘A diferenciagio do «positivo» © do «negativon nio corresponde, deste modo, a uma antinomia metafisicamente fixada; opera-se, sim, no interior da totalidade diafécrica de um processo que integra dimensdes contrastantes. No que toca i Filosofia da Arte, e com implicagdes para os temas da apreciagao judicativa, mum mbito em que a «alteridaden nao pode ser liminarmente excluida, deparamos com um rebatimento desta linha hegelianizante, por exemplo, quando Rosenkranz, ao arrepio da tradigio consagrada, defende que « feio» (das Hiipliche) também constitui «um momento integrante da Estética» (ein integrierendes Moment der Aesthetik), na medida em que «seria uma concepeao superficial da Ideia se ela se quisesse restringit a0 simplesmente belo» -- wes wire eine oberflichliche Auffassung der Idee, wollte sie sich auf das cinfach Schéne beschranken», Karl ROSENKRANZ, destherik des Héplichen, Einleitung, Das KunsthiBliche; Kinigsberg, Verlag der Gebriider Borntriger, 1853, p. 29, Pata uma elucidativa recolha documental sobre o t6pico na nossa tradigio artistica: Umberto ECO, Storia della Brutezza, Milano, Bompiani, 2007. 7 Esta matéria envolve ~ e suscitou — acalorados debates, que aqui ndo cabe esmiugar. E sintomitico que Kant repetidamente insista em que «0 gosto» (der Geschmack) -- matendo-se ‘embora na esfera do «subjectivon — seja, «no fundo» (in Grunde), «uma faculdade de ajuizamenton (ein Beurteilungsvermégen) acerca da «sensibilizagao de Ideias éticas» (Versinnlichung sitlicher Ideen), pelo aque, ¢ este € 0 ponto nuclear a reter, comportacultivo ou cultura (Kultur), sendo que a sua wvalidaden (Giiligket) se hé-de consolidar «para a humanidade em geral» (fr die Menschheit iberhaup, © «aio meramente para o sentimento privado de cada un» (niche blop fr eines jeden Privatgeftht). CL. KANT, Kritik der Ureilskraft (1790), § 60; Ak,, vol. V, pp. 355-356. Foi nesta esteira que ~ apontando a proa para um alargado projecto de wedueagto estéticw» dos seres humanos, onde outras dimensdes se co-envolvem ~- Schiller veio com agudeza a proclamar que «a Beleza» (lie Schinheit) € «0 caminho» (der Weg) pelo qual «se viaja até a liberdaden (man 2u der Freyheit wandert), Cf. Johann Christoph Friedrich von SCHILLER, Uber die dsthetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen (1795), lt; Werke. Nationalausgabe, ed, Lieselotte Blumenthal ¢ Benno von Wiese, Weimar, Hermann Bohlaus Nachfolger, 1962, vol. 20, p. 312. ™ «Frequentemente, hi muita diferenga entre a vontade de todos ¢ a vontade geral; esta [ltima] nio olha senio para o interesse comum, a outra olha para o interesse privado, e nfo é sendo uma soma de vontades particulates» ~ «ll y a souvent bien de la différence entre la volonté de tous et la volonté générale; celle- ci ne regarde qu’a Pintérét commun, 'autre regarde a T'intérét privé, et n’est qu'une somme de volontés particulicres», ROUSSEAU, Du Coniract Social, ou Principes du Droit Politique (1762), M, 3; OC, vol. MI, p. 371 18, Terceira nota. Haverd, por outro lado, quem recalcitre que 0 patriménio cultural ~ que como valor de uso socialmente se justifica — se determina pelas «mais-valias» que dele sejam realizadas na sua circulagio, enquanto valor de troca®®. E entroniza-se, dest’ arte, uma rapida dissolugo do ajuizamento cultural — que a homilética do «decente» manda como adjectivo conservar -- no juizo mereadorista“” do proprietari mm que curteza de vistas, ou folego estratégico, tanto podem afectar, ¢ infectar, uma titularidade privada como piiblica, Enfim, s6 berbicachos ¢ complicagdes. Desde a camariria licenga para o fecho de umas marquises na freguesia, até ao engenhoso alindamento cosmético dos balangos por contabilizagio criativa de «activos artisticos» em armazém. Dai, os meus piedosos desidérios. © De acordo com a formulag2o que se tomou «ckissica» — mas igualmente dispde da sua «génesen —, valor de uso» (valve in use) & «a utilidade de algum objecto particular» (‘he utility of some particular object), enquanto, por sua vez, «valor de troca» (value in exchange) corresponde a «o poder de adquirir outros bens que a posse desse objecto carregan (the power of purchasing other goods which the possession of that object conveys). Cf, Adam SMITH, An Inguiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations (1776), 1, 1V; ed. William Letwin, London ~ New York, J. M. Dent & Sons ~ E. P. Dutton & Co, (Everyman's Library), 1975°, vol. I, pp. 24-25. Esta diferenga era jé familiar a Aristételes. Uma esandalia» (6%65mupa) pode funcionar como «algado» que se usa (b766e01<) no pé, e como «artigo que se troca» (uetaBhneux) no quadro de uma transacgo. Cf. ARISTOTELES, Politica, I, 3, 1257 a 6-19, Para um outro enfoque famoso que esta distingo conheceu, veja-se, por exemplo: MARX, Das Kapital. Krink der politischen Okonomie. ErsterBand. Hamburg 1867, , 1, 1; MEGA”, vol. IVS, pp. 17- 22. © Os bons culturais, ¢ a propria cultura enquanto objesto, sio decento mercadoriziveis. Dai, 0 tentador espacho (mercadorisia) de os converter somente em mereadorias, secundarizando ~ e no limite: elidindo ~ a qualidade cultural que, muito agquém do rétulo e das embalagens, comega por conferir ao produto a sua determinagao intrinseca, [Numa mesina obra coexistem ~ e, por vezes, conflituam ~ dimensdes que decorrem dos planos diferenciados em que ela pode socialmente funcioner. A discriminagio cultural destesterrenos,¢ destes ‘vectores, toma-se, porém, decisiva para uma lida ~ no confusionista, nem waguabentada -- com os problemas dessa circunstincia emergentes. 'No que toca ao anedético das atitudes subjectivas ~ que forma s6 uma pequens componente do panorama, © contaste foi de hi muito notado: «Uma coisa & o merceeiro de antiguidades [der Altertumskréimer), outra coisa & 0 conhecedor de antiguidades [der Altertumskundige]. Aquele herdou os cacos, est o esprit, da Antiguidade. Aquele mal [fun] pense apenas com os seus olhos, este vé tamlbém com os seus pensamentos.» -- «Bin anderes ist der Altertumskrimer, cin anderes der Akltertumskundige. Jener hat die Scherben, dieser den Geist des AAltertums geerbet. Jener denkt nur kaum mit seinen Augen, dieser sieht auch mit seinen Gedanken.»,Gotthold Ephraim LESSING, Wie die Alten den Tod gebildet. Eine Untersuchung (1769), Untersuchung; Werke, ed. Peter-André Alt, Miinchen, Artemis & Winkler Verlag, 1995°, vol. Ip. 211. E mesmo no que & Natureza diz respeto, ela pode ser encarada «com os olhos do minevalogista entusidsticon (mit den Augen des enthusiastischen Mineralogen) em busca (no interesseira) de um conhecimento, ou o-86 «com os olhos do negociante de minerats que deita contas ao seu proveito> (mit den Augen des seinen Vorteil berechnenden Mineralienhiindlers). CE, FEUERBACH, Das Wesen des Ciristentums (1841), I, Die Bedeutung der Kreation im Judentum; GW, vol. 5, p. 210 19 Seria talvez conveniente que o exame basilar, do fundamental nestas questdes, nao nos ficasse entregue a prelatura das «preferéneias» de tumo: mascarada de cbom- senso» (inquestionado), ou remetida ao «parecer técnico» (inquestionavel) da agéncia para o efeito contratada. Gostaria, por conseguinte, que -- mais aquém da estética dos sentimentos, ¢ de uma apregoada «ética dos negécios» ~- 0 patriménio das culturas fosse tratado a luz de um intenso (polifénico, multilinear, controvertido, e certamente polémico) ajuizamento cultural, Saido de -- e protagonizado por ~ uma comunidade viva, em que a Cultura nao apenas disponha de tabuleta no portal, € poiso mumas instalagées, mas tenha verdadeira respirasao efeetiva. Um adentramento por esta abordagem levar-nos-ia para os terrenos movedigos de uma ontologia politica da cultura. Com a qual ~ descansem ~ nao vos irei aborrecer. Pela raziio primeira de que, primeiro, teria que a pensar § 7. Remate. A hora esté a bater. E altura do remate. Nao de uma conclustio em beleza. Que dispensasse outros rebates, e o suor das caminhadas. Deixo-vos, por isso, com trés pensamentos, que se destinam a fazer pensar, e que talvez nos tragam coloragiio ao agir. O primeiro destapa o movimento que se esconde sob uma aparente imutabilidade «espontinea» de origem. Consta dos Manuscritos de 1844, que Marx redigiu em Paris: «A formagéto [die Bildung] dos 5 sentidos» -- coisa sobejamente negligenciada «é um trabalho [eine Arbeit] de toda a historia mundial até aqui.»"". O segundo, de Ernst Bloch, coloca-nos perante aquela dialéctica da meméria que rasga ao futuro os horizontes do feituro: «Sb € frutuoso [fruchtbar] aquele recordar [Erinnern] que, simultaneamente, recorda aquilo que ainda esta por fazer.»**, “\ @ie Bildung der 5 Sinne ist eine Arbeit der ganzen bisherigen Weltgeschichte», MARX, Okonomisch-philosophiscke Manuskripte (1844), Heft IN, Il; MEGA’, vol. U2, p. 270. «Nur jenes Erinnem ist fruchtbar, das zugleich an das erinnert, was noch 2u tun ist», Emst BLOCH, Der Materialismusproblem, seine Geschichte und Substanz (1972), 48, Aristoteles ‘und die nicht: mechanische Materie; Gesamiausgabe, Frankfurt am Main, Subrkamp Verlag, 1977, vol. 7, p. 516, 20 O tereeiro deve-se a Hipécrates de Cés, e condensa, de modo lapidar, a condigio humana em que se processam todas as viagens que vale a pena empreender: «A vida é curta, mas a arte [é] longa, 0 momento oportuno [6 Kaipdc] fugaz, a experiéncia escorregadia, 0 ajuizamento [1} xptotc] dificil», Ouviram bem. «Ajuizamenton, no grego antigo, também se pode dizer: Kpforc, crise. Pér em questio, interrogando, Trazer os materiais na imediatez desfraldados & yaranda do exame racional. Para discernir, no bulicio das multi-determinagdes em con- fronto, a decisio de um caminho que con-cita, Cultura da critica, Porque criticar nfo jizer mal: procurar ver bem, Critica da Cultura. Porque a qualidade do cambiente» em que se respira também merece escrutinio. Cultura da critica, ¢ critica da Cultura. Ingredientes imprescindiveis em qualquer exercicio conjunto de emaneipagaio pelo cultiv A identidade — ao nivel da pessoa, tal como na esfera dos colectivos -- nao «mistérion. E ministério. E um mister (também quotidiano) que releva das apetrechadas Javouras de um patriménio de humanidade em demanda, que aponta - para aportar — a patamares de humanizagdo enriquecidos. Numa esperanga trabalhada do por vir, cuja adveniéncia nos cumpre ir tomando a cargo, Muito obrigado, pelos patriménios de paciéncia, depostos -- ¢ activados - na atengao cultivada com que me escutaram. Lisboa, Dezembro de 2015 — Fevereiro de 2016. «0 Bros Bpazts, 1 88 céxvn waKpy, 6 d& KeIpss dEGs, 1h BE netpa apar|pH, H BE KpLor aden», HIPOCRATES, Aforismos, IL mi

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