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VISIBILIDADE SOCIAL EESTUDO DA INFANCIA Manuel Jacinto Sarmento deia; a possibilidade de encentrar a moeda sol ui para a sombra o espaco que nao atinge é altame ta. Nesta relagao, entre uma luz que aumenta a escuridao do que nao a sombra que aumentaa sua Inacessibilidade pela vi Uma area iluminada, encontramos um dos efeitos perverscs do conhecimento constituida. O que é iluminado pelaciéncia torna duplamente desconhecido tudo aquilo ie alcangar: desconhece-se 0 ivel de ser procurad achamento, mesmo qi escondida pe gcultacao INFANCIA gnyvisivet 26 historicamante_construidas sobre _as_criancas @ dos modas Como elas foram inscritas em imagens sociais_quetanto Seclarecém sobrs'ds seus produtores [o canjunto.de sistemas vestruturados de crencas, (eorlas e ideias, em diversas. epocas. Storicas) quanto ocultam a fealidade des mundos socials e culturais das crianca, na complexidade da sua exisiéncia social, Este proces so de iluminagao-ocultacao exprime-se nos saberes constituidas sobre as criancas e a infancia: tanto delas sabemos quanta, numa ciéncia que tem sido predominantemente produzida a partir de uma perspectiva adultocentrada, as vivencias, culluras € representagdes das criangas escapam-se ao conhecimento que delas temos. Uma ruptura epistemologica ho conhecimento sobre a Infancia e sobre as -criangas:~ que tem vindo a ser defendida no interior do campo dos “estucios da infancia” em plena constituicao ~ € condigao essencial para procurar a luz que nos permita ir tacteando as sombras ladle historica visi O interesse histOrico pela infancia é relativame recente. A referéncia histérica A infancia aparece muito tardiamente, ¢ essa, aliés, uma das razOes que levaramP, Ariés a afiemar a inexisténcia do “sentimento da-infancia’ at_20 dealbar da modemidade, Apenas referénc as autoblogravicas ~ onde a infancia aparece evocada pelo filtro, frequentemente critico, do adulta que se conta - e registos cispersos em testamentos, didrios, documentos funetarios ov evocages novelisticas assinalam a prasenca de criancas no passado. ‘Acresce a essa auséncla a aproblematitidade do conccito de Infancia na construgao cientifica de uma ontologia social (a0 contraria clo que aconteceu com a nogao de ‘pessoa humana” fu, noutras dimensdes, com a construgao da ideia de género ¢ a problematicidade da condicao de muther, ou a criacao clas fepresentacdes sociais sobre classes sociais como a pracucao do “Povo”, (Bourdieu, 1983) - a “arraia miuida’ ja referenciada por Femao Lopes no século XIV - ou do Proletario, por exemple). Infancia é 0 “ser em cevir" e nesta transitoriedade se tu nor demasiado tempo a complexidede da realicade social Gas criancas. Hlauma marginalidade conceptual no.que respeita 2 ielaia ou imagem de Infancia no passaco, que & correlats cla marginalidade social em que foitida. Einvisivel no passado, em suma, e quando aparece ¢ ou como memoria infiel ou como legataria de uma tradicao, de um poder ou de bens a prosseguir como heranga familiar Salvo na imagem sagrada de um menino-Deus freauentemente dotado de caracteristicas adultas com que a escultura ¢ a imagistica medievais representaram a crianca~9menino que é mais sAbio que os sdbios, que detém sob a mao 0 livo do conhecimento, que olha fixamente em frente e noo espelha um poder incomensuravel, que apesar de pré-pubere exibe no rosto a baba que dignifica a condigao varonil, que apresenta uma cabaca enorme num corpe fragil ete. fisica da imagem infantil & a expressio maior do que Arias (1973) designou como ausencia da consciéncia da ideia da infancia durante amaior parte da Historia. Esta tese de Ariés cancitou até hoje uma enorme contraversia, quie incicle quer nos aspactas metodolégicos do urabalho de historiader francés, quer na ausancia de uma filtragem tedrica que permitisse interpretar os dadlos histéricos recolhidos a luz da sua natureza, dependente da classe social e do tipo de relacdes caciais donde emanam por exemplo, @ criticado frequentemente o facto de Aries tcorizar sobre toda a categoria social infancia, rend utilizado registos documentais provenientes do clero © da nobreza havendo, por consequéncia, uma auséncia de referencia As criangas das.ciasses populares -, quer, ainda, finalmente, na generalizaao interpretativa que produz sobre a alegada auséncia de consciéncia da infancia no passado, especialmente na Idade Média (cf. Heywood, 2002). Independentemente da critica historiografica a que a obra de Aries tem sido submetida, ha, no entanio, um conjunto de aspectos pelos quais ela é considerada como uma referéncia ncantornavel, a ponto de, de alguma maneira, nao apenas a Historia da infancia, mes os estudos da inf sofrido, a partir dela, uma mud logo, a chamada da inf conhecimento historiogral Interesse mais geral no conhecimento da condicao hu que _concepsoes, que imagens, que prescricces, que préticas a¢iais foram historicamenie produzidas sobre/com as cliaaicas? De que modo a emergéncia ou as mudancas na concepcéo ce Bey waycaces a. Kan } 27 Om deauwiitias de elias = en OS se) SneS cod clos PoerSook. IFANCIA (ryvisivEL Grater ~QeesS ens SALSties * Infancia _alteraram as condiches sociais de existéncia_na Sociedade? De que forma tudo isso modificow as formas de Vida da sociedade, nd-sou Conjunto? Se as concencdes de infancia podem existir, modificar-se e diversificarse, se elas $20 trugao histérica, ¢ née decorrem de uma natureza jente, o que e que esta na origem dessas concepsbes? Que peso tém essas concepgdes, quais so 0s seus vectores Ge transformacao e de mudanca? Essas questbes tornaram-se possivels, depais de Aris, Alias, ele mesmo se apropriou do Conhecimento que de algum modo inaugurou para se interrogar Sobre 2 relagae mais vaste entre Infancia € sociedade, num texto que publicou anos apés a si inal num artigo para publicacao inicial na Enciclopédia Eunaudi (Aries, 1986). toriografia mais recente sobre a infancia (e.9 Pollock, 1983; Hendrick, 1994; Becchi € Julia, 1998, Heywood, 2002) tem considerado que, mais do que auséncia da existiam concep;oes que foram profundamente alteradas pela “mergncia do capitalismo, pela ¢riacao da escola publica ¢ pela (usta renovacad das idelas com a crise do_pensamento feocéntrico ¢ 0 advento do racionalisma, Os_séculos X\ vill, Que assisterna essas mudancas ia3.na sociedade Ueno periodo histérico em que 2 moderna idela da Gia se cristaliza Gefinitivamente, assumindo ym caracter renctadora dem grupo mano que nao se Caracteriza pela imperfeicao, | ‘ompletude da timmiaturizagag do adulto, mas por uma fase propria do jacenvalvimento humana “———Aconitece que a distinao da Infancia da adultez, que amedernidade ocidental produziu, naa corresponde a uma 36 ai erm au ca nerma dla Infancia. Nao Japenas varios autores tém chamadlo a atencse paraaciversidade das farmas ¢ modos de desenv Wt das criangas.-210 aca Infancia, Po! contraponto a ideia de uma natureza sal da infancia, suposta a partir de estudos cen| inte (eg Rogoff, 2003) -, como a norma da infancia jental ¢ 2 evolucéo das cont ‘ore notras_ ais (eg. Mead; 1970) Porém, mesmo no ingle dn prongs cura sustenance INFANCIA (In)VESIVEL do mesmo espaco cultural, a variagao das concep¢bes da infancia 8 fundada em variaveis como a classe social, 0 grupo de pertenca étnica ou nacional, a religisio predominante, 0 nivel de Instrucao da papulacao etc. Oestudo das concepgdes da infncia deve, por isso, ter em conta os factores de heterageneidade que as geram ainda que nem todas se equ contexto espago-temparal dado, uma (cu, por vezes, mais do que uma) que se torna dominante. 0 astudo dessas concepcoes, sob a forma de imagens sociais da infancia, tornase indispensavel para construir uma reflexividade fundante de um rnd ofuscado pela luz que emana das concepgoes citas e tacitas sobre a infancia Imagens sociais da infincia Uma panoramica da construgio histérica das imagens sociais da infancia, desde o dealbar da modernidade ocidental, é proposta por James, Jenks e Prout (1998, p. 3-34) ‘A sua abrangéncia e compreensividade facilitao entendimento da tese que temos vindo a expor ~ a criacio de-sucessivas cepresentacdes das criancas ao longo da Historia produziuum efsito.de invisibilizagae da realidade social ca infancie, Esse Frabalho de “imaginagao’l da infaneis estruturou-s® sequndo_ principlos GE teducao da. complexidade, de abstracizazao das realidadeé @ de interpretacdo para fins normativos da crianca “ideal”. Os autores distinguem dois periodos fundamentais: 0 das imagens da “crianga pré-sociolégica" e o das imagens da crianga soctolégica’. A distingao decorre do facto de, no primeiro periodo, o trabalho de "imaginacao’ social da crianca considerar 0 sujeito infantil como uma entidade singular abstracta, analisada nao apenas sem recurso a ideia da infancia como categoria social de pertenca mas com exclusao do proprio contexte social enquanta produtor de condicées de existéncia e de formacao simbdlica. As imagens da “crianca sociologica sao produges contemporaneas © resultam de um juizo interpretativo das criancas a partir das propostas teéricas das cléncias socials. Constituem, de facto, processos de reinterpretagao das representagdes anteriormente formuladas, com revisdo do seu fundamento pela compreensao da categoria INFANCIA (IN}VISIVEL nal. Entre as imagens da “crianca pré-sociclégica”e as jologica’, 2 imagem da “crlanca socialmente desenvolvida’ ~ referente & concep¢ao da infancia dbjecto do proceso de socializacao - corresponde a uma teorizacao transaccional” (id, ib., p. 22), entre representacdes tradicionais da infancia e a concapcao das criancas como seres Sociais que integram uma categoria geracional distinta. Interessanos sobretudo tomar em-consideragao aqui.as imagens "pré-sociolOgIcas”,parque elas. cortespondem atipos idea's de simbolizacées histéricas dacrianga,apartirde. inicig da madernicade ocidental. com expressao conceptual a abra-de filésofos ov outros hamens do_pensamento e da ciéncia, mas que se disseminaram no_quotidiano, foram apropriados pelo senso cOmum eimpregnam as relagdes entre Saluites € crlancas nos mundos de vida comuns. As imagens da “crianca sociologica’ correspondem, de facto, a diferentes teorlas sociolégicas e nao tém nem a mesma espessura historica nem a influéncia social que as imagens da “crianga pré: sociologica” possuem, como constructos interpretatives que $80 dos diferentes modos madernos de "perceber” as criangas @ de, em consequencia dessa percepgo, administrar a sua existéncia no quotidiano! ‘antes de sumarizermas, com alguma liberdade interpretativa, as imagens dacrianga pré-sociolGgica’ propostas por James, Jenks e Prout, convém também reter que clas nao Coriespondem a etapas ou estagios historicos, ultrapassados ou em transito, de construcao simbolica de Imagens socials Gas criangas. Esses imagens, porventura dominantes num noulro momento historico considerado, coexistem_¢ Sobrepoem-se, oor vezes de forma tensa, outras vezes, de odo sincrético. As imagens socials das crianas, por estranhas du aicaicas que possam parecer (pelo menos algumas deles), Centinuam, como dizem os socidlogos britanicos. a "moldar accdes quotidianas e praticas” (id, ib., p. 21), nao ser isso, negligenciavels os seus efeitos na configuragao das condicdes de existéncia concreta das criancas Sao as sequintes as imagens psapostas como ‘imagens da-crianga pré-sacioléaica geraci imagens da “erianca si Q - Acrianca ood (the evil child) ~ basoada na ideia do “oecado 30 INFANCIA, original”, 2 imagem da crianga ma esta associada a toda uma conceptualiza¢ao do corpo e da natureza como re: que necessitam de ser controladas: proxima dan: ‘Gomesticads" pela razdo mas cori crianca @ Concebida como uma expresedo de forgas indomadas, dionistacas, com potericialidade permnanente para O mal A referencia Higsatica€ a teoria de Hodoes sobre = xigéncia de controle das "excesses", pelo poder a do Estado sobre 0s cidadaos « dos pals sobre ae crancas, cone milo de vitae eattatia soclal ou ot individual Contemporaneamente, a ctianga me & vslumbrads nas-imagens_produzidas sobre as_crlancas das classes da pelo insti populares, em particular quando é mobilizada uma ideologia Wremencista ® Secufifaria cue refere as “familias distuncionaic", Gvoea accoes de etradas por a3 OU convoca os~rerigos” da Sociedade moderna para propor o ietarge day Totervengbes pateimastas e mesic a adopcao de medidas de repressia infantil (escida da idade pen wwfarco dos requlaimentos disciplinares etc.) A ctlanga inecente- contrapondo:se A crianca ma, a crianga inocente funda-se no mito romantico da iniancia como a dade da inocéncia, da pureza, da beleza e da bondade, Com expresso vasta na pintura romantica, bem como em mutes romances, encontra no Emilio de Rousseau o seu paradig filosefico. A tese aaui dominante @ a ee que a matureza genuinamente boa € 56 a sociedad a perverte, 0 que se Contrapée A concep¢ao oposta da necessidade da razio e da norma soclal para controlar as forcas “monstruosas’ da natureza indomada. As concep¢des rousseaunianas tem uma ampla expressac contemporanea nos modelos pedagagicos rados nas criancas ¢, néo por acaso, concitam ainda hoje um importante debate pol 20; co mesmo, modo, a ideia das criangas com tur do inundo" esta freauentemente associada a uma concepcao salvifica que entronca numa crencaromantica da bondade infani Acrianca imanente - a ideia de um potencial de lesenvolvimento da crlanca, nao ap intrinsecamente boa, mas da possibilidade de a razao e da experiencia, aparece na formulacao filosofica da teoria da sociedade de John Locke. Para filosofo inglés do 31 INFANGIA (rovisives, Q século XVII a crianca é uma fabula rasa.na qual padem-ser inseritos quero viclo quer a virtude,arazdo ouadesrazaa, Rees dee Sx Sacindacts promover 0 crescimento com uma ordem social Coesa,ATManéncia da crianga torna Se ane aie proyecto de future depende sae ve da niclaagert 2 que seja submctige na infincla-A concepgae lackiana propde wmp-atencioA< dispasicsas e cuisgdaee infantis © Hesse sentido precede concepcoes Fe aa Se so vis Tlorescer séculog mais tarde ‘N cilatea Datiraimente desenvolvida ~ a psicologla do desenvolvimento, a partir especialmente dos trabalhos de} Piaget, constitui-se como o principal referencial de entendimento e interpretacao da crianca no século KX, com na pedagogia, nos cuidados médicos € Socials, nas politicas publicas e na relaco quotidiana dos adultos com as criangas. Os autores sinalizam essa imagem am tomo de duas idelas centrais: as_criangas sao-seres naturais, antes de serem seres sociais, 3 natureza infantil Shee um procésso de maturacao que se desenvolve por EUdGS {Ib p. 17-19). A psicologia do desenvolvimento Endo apenas responsavel pela constituicao de uma reflexividade institucional sobre a infancia, mas também pela propesta de uma norma de canstituicao do conhecimento Eientifico sobre as criancas, avravés do recurso a um conjunto Ofisticado de-escalaz e-testes de ?medicao" do lesenvolvimento natural” da crianga. A ctilica interna propria psic jo clesem jente, nameadamente par. efeite da influéncia do cons Sobre as caracte’ stas, uni &socioldgicas, telenldgicas @ positivistas da corrente Regemvri cada psicclogia do desenvolvimenta nao obsta a Gue esta imagem da infancia

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