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PAPIA 11, 2001, 8.4050 SOBRE AS ORIGENS ESTRUTURAIS DO PORTUGUES BRASILEIRO: CRIOULIZAGAO OU MUDANGA NATURAL? Maria Marta Percita Scherre, URFJ ¢ UnB ‘Anthony J. Nato, UFRJ 1. Introdugio A hipétese de que o portugués brasileiro apresenta tragos indicadores de uma hist6ria crioula baseia-se em uma série de fatos, entre os quais destacam-se: 1) as condigdes da colonizacio do Brasil, em que entraram em contato falantes adultos de linguas diversas: linguas indfgenas, aticanas e européias (portugués, francés, holandés e espanhol), sem nenhuma lingua em comum; 2) as diferencas estruturais entre o portugués brasileiro e 0 portugués europeu, realgades pela ampla variagéo na concordancia verbal ¢ nominal, especialmente a de nimero, (cf. Coelho, 1967:45-44). As condigées sociais propicias ao surgimento de Iinguas crioulas e as diferengas estruturais realcadas pela ampla vatiagdo parecem irrefutdveis. Todavia, as onicens das diferengas estruturais tém suscitado intensa polémica. Este € precisamente o foco de nossa discussdo. Em particular, voltamos nossa atencéo para a identificaco, no portugués euro- peunéo-padtio moderno, de uma série de tracos liniiisticas estigmatizados, considerados peculiares a0 portugués brasileiro ¢ associados a processos de crioulizagdo na literatura pertinente, Desta forma, queremos entender se as diferencas entre o portugués brasileiro (doravante PB) ¢ 0 portugués europeu (doravante PE) podem ser atribuidas a um processo de crioulizagdo, em que o PE entrou como lingua de base, fornecendo a maior parte dos 3s Iexicais, eas inguas africanas, ou outres linguas por ventura presentes na populago, ‘entraram como linguas de substrato, intervindo na génese das mudangas lingiifsticas estru- turais, como pressupdem os estudiosos que levantam a hipdtese da crioulizagio prévia (cf. Silva Neto, 1986;-Camara Jt, 1975; Ferreira, 1994; Jeroslow, 1979; Holm, 1992; Guy, 1989; Baxter & Lucchesi, 1997; Baxter, 1998; Mello, 1997). A nosso ver, uma série de fatos refutam a hipotese da crioulizacao (cf., particularmente, Tarallo 1993; Naro & Scherre 1993; 2000; 2000b). Hi evidéncias contundentes (1) da pesquisa sociolingistca laboviana ‘com base em dados do PB falado pot amplas comunidades urbanas e rurais espalhadas por todo 0 teritério nacional; (2) da pesquisa quantitative do portugués arcaico; (3) da pesqui- sasociolingiifsticae dialetologica de comunidades brasileiras isoladas, altos ¢ nao-aftos;¢ (4) da pesquisa dialetolégica portuguesa européia, Neste artigo, vamos focalizar nossa argumentagdo na comparacao entre tragos do PB de comunidades isoladas ¢ do PE no- padréo com relacio a trés estruturas lingtifsticas identificadas inequivocamente como crioulizantes no portugués do Brasil; na identificacdo no PE de outros nove aspectos estru- turais considerados como especificos do PB ena identificagao da variago da concordancia dendimero, em especial na concordéncia verbal. 2, Sobre trés estruturas lingifsticas radicais Nossa busca das origens estruturais do PB comega por focalizartrés estruturas lingiifsticas radicais, identi"~>elas na fala de uma comunidade isolada afto-brasileira da CCaoube 9 o8 HUAN NATURAL? 41 vila de Helvécia, municipio de Mucuri, Zona Fisiografica do Extremo Sul da Bahia (Ferreira, 1994221; Baxter & Lucchesi, 1997), interpretadas como indicios clavos fe ‘oulizagéo: ocorréncia de sujeito pronominal de primeira pessoa do singular com verbo deterceira pessoa, do tipo eu foi (Ferreira, 1994250); variaglo na concordéncia de gene 10, do tipo o meu sobrinha (Baxter & Lucchesi, 1997:78);e supressio de preposicso ¢@ é dizé o sinké que ndo (Baxter & Lucchesi, 1997:78). Todavia, come s¢ pode ver no quadro 1, esses tréstragas so encontrads também no PE moderne io- padréo, Além do mais, a flutvagio na concardéncia de género ¢ auséncia co nei preposicional também foram observados por [sensee (1964:49-50) ¢ Calloy (1998:26% 265) na fala de uma comunidade brasileira isolada no-ao, de “asoendéncia porweyess pra” (Callou, 1998:262) Em sintse, os dados do quado 1 mostram semclhan‘as Mt linguogem de comunidades brasileira isoladas aftos © nio-afros ¢ comunidades Port guesas que falam PE nao-padro, previamente analisadas como tragos crioulizantes de ‘rigem africana, segundo Ferreira (1994) e Baxter & Lucchesi (1997). QUADRO 1: TRES TRACOS CONSIDERADOS CRIOULIZANTES NO: DIALETO RURAL DEHELVECTA (os negritos e pequenas adaptagGes nos exemplos so noss ‘Daso0s vo ronruouls rumorcunhoranako Davos oeweuvtcra DEMATO GHOSSO (comunidades beasilcivas isoladus da Bahia} [CD Prana ressox COM nA VERA LOE TERCERA ESSOA ou “ia tere” (Pereira, 1994350) “Bu onte fo & Maluada”; "Ew na quints-eira apanhiow 2 kilos de poles" (Alves, 1995:190) eu fo; eu psi eu pode; eu teve” (Mira, 1954:114) (errsiea, 199430) "& feu] agora na me recorda, na me fembra® (Mar- ‘ques, 1968:57) “E feu] também ja nd’ me lembea (Cruz. 1991:170) “eabelo prose; la & muito seido” (Pereira, 1994:29) “o meu sobcinha: umes duas arquerim de tera” (Baxter & Lucchesi, 1997.78) “as coisa muito barato; esse daqui éa mulher dele” (Callow, 1998:265) ner nn ed cr eo . oe 6 tem as caizes enterrado na carne” (Mira, 1954:150) eee eae, 19:9200 42 Soromne & Karo [slsuressio ve raerosicio “Goste mata virge.” “Mou amigo, ex num v6 dia 0 sinhb que nio." “Perguatci o Petro, ele disse. ‘Baxter & Lucchesi, 1997-78) “porque eu nunca gostei nenhumna” “mandava corte pra me mandando izes ea asi" “nio trabalho garimpo" “viajando 36 0 dia” (Callou, 1998270) “Nunca me lembré fazenda” (Cruz, 1991:17) "0 Senhor Prior vem (a) todos os interos" .) “tearentos seudos, foi (a) como eomprei (06) ano passado”. (Marques, 1968:60) ‘Com relagao & oposigdo entre 1* e 3* pessoas verbais, ¢ oportuno mencionar que, em verdade, a lingua portuguesa codificada pelas gramsticas normativas — a lingua padrio - esté repleta de neutralizagbes entre primeiras ¢ terceiras pessoas, nfo analisadas como falta de con- cordancia. As neutralizagdes envolvem todos os verbos regulares no pretérito imperfeito (ew amawva/ele amava), no pretérito mais-que-perfeito (eu amara/ele amara), todo o modo subjur ‘vo (gue eu ame/que ele ame; que eu amasse/gue ele amasse; quando eu amar/quando ele ‘amar), Além do mais, em formas do pretérito perfeito de verbas como trazer, caber, saber exe srouxelele trowxe; eu coubelele coube; eu soubelele soube), & A EXISTENCIA DE FORMAS COM. ‘orosicho que ¢esTiomarizaDA: eu truxeele troxe (pata oPE, cf Cruz, 1991:125; Mira, 1954:115);eu subelele sabe (para 0 PE, cf, Mira, 1954:115); eu cabilele cobe. Com relagao ao género, destaca- ‘mos que o fundamental para a discussdo em pauta é que a flutuacdo de concordincia de género (ou a sua indicagao) é um fendmeno comum a variedades no-padtio do portugues, sejam elas, brasileras ou européias, sejam elas de comunidades isoladas aftos ou nio-afros. Estes dados ‘nos conduzem a novas reflexes, Serd que a origem da flutuacdo da concordéncia de género pode ‘mesmo ser atribuida a processos de crioulizagdo? Serd que tal fenémeno revela reestruturago lingtistica?” Com relacdo a flutuacdo no uso de preposicao, sabe-se que esse fentésmeno & geral ‘em toda a lingua portuguesa, incluindo o PB pacirdo (precise-se empregados vs, precisa-se de empregadis), com motivagies lingisticas regulates. O trabalho brasileiro mais recente sobre ‘esse fendmeno evidencia que os mesmos prineipios regem tanto a mudanca lingifstica como a aquisigdo do portugués como lingua de contato no Alto Xingu cf. Gomes, 1999:227). ‘Antes de dar continuidade as nossas reflexes, que envolvem a concordincia de ‘imero, listamos ¢ exemplificamos no quadro 2 nove caracterisicas apresentadss na literatura pertinente como especificas do PB ¢ como indicios de histéria criouta (cf. Guy, 1989; Baxter & Lucchesi 1977; Holm, 1992; Baxter, 1998). Como se pode ver pelos exemplos, as nove caracte= risticas também encontram-se documentadas no PE nfo-padrio modemno. (Crowuzagio ou munanca NATURAL? 43 QUADRO 2. OUTROS TRACOS LINGUISTICOS DO PORTUGUES EUROPEU NAO-PADRAO RELEVANTES PARA REFUTAR A HIPOTESE DA GENESE CRIOULA DO PORTUGUES BRASILEIRO 1. Uso do pronome do easo reto em fungdo de objeto direto “As 3." pessoas (singular plural) apresentam as formas: I= Ele, ela, cles, elas, a par de: 0, a, 0s, as, em frases come: (.) <>. ‘>. (Alves, 1995:180; ef. também, p-189) 2. Uso do pronome obliquo em fungéo de suite: “0 pronome pessoal complomento & usedo por vezes como funglo de sueito": “<<. di pra mim guardari>>. (Cruz 1991:153) "Mim" & empregado com sujeito em oregSes ifinitivas, que no portugués pudedo se consteSem éom a “Pea mim fazera” Pra mim dizera” (Delgado, 1970-162) 5. Uso de se para outas pessoas “0 pranome ge aparece a subslituir outros prononies a reforgos,na primeira c segunda pessoa, talvez por ser usado com mas frequéncia: “vou simbara” (por “vou-me embora”), "ve ali uma colsa que ntressa de comprar (por “que lhe interessa comprar"), “na sinlendimas” (por “no nos entendemos"), "confessave- mies” (por “confessivam-nos"Y” (Marques, 1968:56). 4. Allernincias de preposigées, incluindo a preposigio emt no lugar das preposigies a ou de “Alguns casos de mudanea de preposicio com preferénein pelo uso de in: “aquile chegou na (i) dltema misér. (..) "C2 que cuidar im (de) (argues (968:60) se i Fosse in (a) casa. (u) 5. Uso do verbo fer indicando posse ¢ existéncia “0 werbo ir € wsado por havar em Frases como: “aqui no nosso sitio tem muntos rapazes..", "em muntas cachopas que nfo prestam”, (Marques, 1968:58) “tinha muita casa vea.” (Marques, 1968:51) 6. Uso aio freqiente de formas perifristicas “L.A conjugagdo peifrstica ¢ muito frequentemente empregada no falar de Odeeite. Formas: (G2)-Com fe 0 Tafinitivo regio ou mio da preposigao a: (.) -> (Cruz 19912168) ,,0 futuro eo candicional simples sho evtados quase sempre e substiluids pela forma peiféstica ou pelo presente do indeatvo: “amanhi tau ou dauo sari Cascais”, “aman vamas a Sintra”. (Marques, 1968:58) A forma perfrstin & de uso muito frequente e substitu os tempos menos vulgares € mais complexos” eiroto, 1968: 145) 7, Redugdo ample de modos ¢ tempos verbais + ,Omedoconfaniv curio mito rene sa no tented (nr) (ives, 1995:1 Sitti pessoal &empregu plo conjunivo present: <> (Alves, 1995:190). 8, Uso freqdente de coordenasio e justaposigio, com pouco uso de subbordinasio (Mira, 1954:144.145;, Delgado 1970:158) 9, Use reqiente de formas expltivasc outros processos de énfase (Mira, 1954:165-170; Marques, 1968:52; Delgado, 1970:185; Retinho, 1959:199; Peixoto, 1968:204) 44 soitae a 3. Sobre a concordancia varidvel no portugués europeu nio-padriio Voltando ao inicio da pesquisa variacionista no Brasil, nas décadas de 70 e 80, ‘vamos encontrar a hipétes: mais difundida de Naro (1981) de que a vatiagéio na con- cordancia de némero no PB indica um processo lento de mudanga lingiistica, cami- nhando em diregdo a um sistema sem marcas. Nato (1981) localiza as origens desse processo nos ambientes de menor saliéncia, especialmente nos de menor saliéncia f6nica, ‘em que a diferenca morfol6gica da oposicao singular/plural Stona pode ser marcada apenas pela nasalizacao dadesinéncia vocélica, no caso da concordancia verbal (sabe/ sabe; vende/vendem). Considera que esse processo se localiza no componente fonoldgico, tendo em vista que os processos de desnasalizagao da vogal tona final envolvem também nomes (garagem/garage) ¢ constituem uma deriva européia seeu- lax. Originariamente de natureza fonolégica, Naro (1981:93) afitma que esse processo “mais tarde se generalizou para outros ambientes”, isto é, atingiu as oposigdes morfol6gicas, as mais salientes, tais como comeu/comeram, é/sa0, envolvendo toda a ‘oposicio desinencial. Em verdade, Naro (1981:90-93), que nio tinha conhecimento do trabalho de Mira (1954) sobre o portugues ropular de Lisboa, bem como de outros valiosos trabalhos da dialetologia portuguesa hoie consultados, néo precisaria ter ido muito longe na hist6ria (ch, também, Nato & Scherze, 1993). As palavras de Mira (1954:149) transcritas no item 3.1 do quadro 3 jé evidenciam # origem da variagdo da concordancia verbal de a 1ando-a no componente fonoldgico. Vejam outros casos varidveis registrados em 3.2. 3.6 no quadro 3, que permitem situd-la também no componente motfoldgico. Ente os registros de quadro 3, destacamos adicionalmente dois pontos de capital importancia para nossa ardlise, que jé se iniciara no Brasil com dados do portugués atcaico (cf. Mattos e Silva, 1991; Naro & Scherre, 1999; 2000): 1) O uso da palavra FreqUeNTeMeNTe no texto de Cruz (1991) pata se referit aos ‘casos de concordéncia variavel em que 0 sujeito ocorre A piReita do verbo, ¢ 0 uso da ‘expresso Por vezts para sereferir aos casosem que o sujeito ocorte A ssauexDA do verbo, que apontam para a hipétese de ser a posicAo retativa também uma restricéo importante para o entendimento da vaciagdo da concordancia de nimero no PE. Como jé sabemos, sujelto a esquerda do verbo favorece mais variante explicita de plural no verbo do que sujeito a sua diteita, tanto no PB quanto no portugués arcaico (cf. Nato, 1981; Scherre & Naro, 1997: Naro & Scherre, 2000a;2000b); 2) O uso da expresso casos ozRa's do texto de Mira (1954), pata se referir aos casos de verbos de terceira pessoa “eles oube(m), eles sacode(m)”, que sugere que a ‘0POSIgAO DA SALIENCIA FONIca também possa ser um efeito relevante no entendimento da variagdo no PE. Sao estes precisamente os casos que Naro & Lemle (1977) ¢ Naro (1981) classificam como de menor saliéncia fOnica ¢ séo os que mais favorecem a variante zero de plural no PB (cf. Scherre & Nato, 1997). Resultados para a variacéo identificada no portugués arcaico indicam de forma semelhante que verbos de oposigao ‘mais favorecem mais presenga de variante explicita de plural (cf., novamente, Naro & Scherte, 2000a;2000b). ‘CrowzacAo au muanen NATAL? “6 QUADRO 3. CONCORDANCIA VARIAVEL NO PORTUGUES EUROPEU NAO- PADRAO 5.1 A Linguagem popular (LP) de Lisboa (Mi 'A) Componente morfokigico 5, 1954:149-150; 1145 147) “Sao meqveres (grifos nostos) na LF, as fates de concordinca, consideradas erros do ponto de vista sramatical.” “0s nossos agasalhos & es es"; “as raises enterrado na carne”. ') Componente fonalégica (p.114) . ML = Verbos| Ga) 17 Conjugasio simples —exs0s so.4005 ') Formas de primeira pessoa do singular do pet. pert. simples em que seniiodeua metafonia: eu foi eu pos cu pde eu fez eu teve 2 Casos cxaass (gifs nosso) (p.117) Go) 'b) = As formas verbs de tree pessoa do plural (sobretudo dos verbos da 5'conjugagdo) lerminadas om vogal nasel ?desnesalzam-se: cles oube (m) cles sacode (mi) 5.2 A finguagem dos pescadores de Ericeira, Joana Lopes Alves, Lisbon, 1995:190.191: “A 34 pessoa do singular aparece usada pla "do plural em frases como: <: on) > (p.190) rrequente 0 uso de singular plo plural, <>; >, >. (p.191) 5.5 O filer de Odeleite, “uma aldeia do sul do pats, (.) do Sotavento do Algarve” (Cruz, 1991:159) (oa) S20 suleito & plurle esté depois do verbo, este fica ereavenewene (grlos nossos) no singular: ‘cE wm terreno que se caia em volta pra que ni entre Id gados .>> ‘<<. punhomese pela cabeza, condo morria pessoas de familia chigada>> ‘Mesmo quando 0 sujeito & plural e esti antes do verbo, verificese, ron vezss (grifos nOst0s), 0 cernprego deste no singular. ‘<< Duas canas dé oito mesias>>. <<. pra ver quais era qui a fazia rir. 540 falar da Azoie, povoasio préximna de Cabo da Roca, na provincia de Estremadura -perto de Sintra "Yau ld os criadas, (..) "08 borriebras que vero onte & que fez isto” (..) (Marques, 1988:61) 10.0 enxame quando vei a voar pelo a, o enxeme vai aqui, tudo junto, © a mest vai a gular como equi aqua parede (dois metros) e as outras vo todas a perseguir aquela. Ele arriou o chéo, apoisou no cho, asoutras val (udo (poisr) em cima dela.” (negritos nossos) (Marques, 1968:58) 5.5 O falar de Balezio, distrito de Bejs, cegiéo centro-su. “D'pds vein 0 rel ea rainha" Delgado (1970:2269 46 Scum & Nato 3.6 O falar de Monte Gordo, litora sul de Portugal” 1 €¢'ms andes envenénoy o comer (Ratinho, 185240) " Nosio Senhori os faga feliz." (Ratinho, 1959:240) Finalmente, uma pé de cal sabre asuposta origem crioula para @ concordancia variavel de niimero no PB tem seu respaldo nas palavras de Lapa (1991:157-169). Em Aestilistica da lingua portuguesa, Lapa dedica 13 paginas ao t6pico concordancia, onde arrola uma série de casos que, segundo ele, so erros, do ponto de vista da gramatica. Afirma, todavia, que, do ponto de vista da estilistica, sfo fatos a serem esclarecidos ¢ explicados. Segundo ele, hé construcées consideradas erradas pela gramatica que vem desde o século XIV (1301-1400). Sao de Lapa (1991:158-159) as, seguintes palavras: os exemplos da lingu antige eutorizamas maioresiregularidades da ingue modera. Quelquet “es exerplos de construglo imegular pornos apresentados éverdaderamente inolenivo s 0 ‘comparormos i eudicias dos ecritores tem vemculos da culos XVI e XVI. Vjam se apenas ‘estas quatro frases, respectivamente, de Het Pinto Jose de Barros, Francisco de Moris e Fe Antonio das Chagas 1. Aormosura de Pris ¢ Helena forum a causa da dstrugio de Tesia. 21 Os povos destsihaséde co bag ede cabo cored 5 Foi D. Duardose Férda aposentas no eposento que tinba 0 seu nome “4. Pouco importa que tena a casa cha de pola e diamante, sos ndo aprovsta dela. (9 Que havemos de conclur de tudo isto? Que © que hoje se afigura aos olhos do srarottico um erro ou ume impropriedad fot lagomente empregido pelos nosios melhores ‘Sectors elsscas. Combes, em tudo crsdor e genis, wou argomente J odasetaslberdades de concordancia. Divergimos de Rodrigues Lapa em um tnico ponto: a descrigao ¢ explicagdo dos fenémenos arrolados nfo sfo do campo de esilistica, mas, sim, do campo da lingiistca: ha restrigdes sintéticas, semanticas e discursivas claras que regem a variacio da concordaincia de ndimero, tanto na fala e quanto na escrita (cf. Scherre & Naro, 1998b; ‘Naro & Scherre, 1999). 4.Conclusiio Nosso garimpo estrutural localiza no PE as origens de uma sétie de trecos do PB, atribuidos a processos de crioulizagao, em que o portugues teria entrado como fingua de base, fornecendo a maior parte dos itens lexicais,e diversas linguas afticanas teriam, entrado como linguas de substrato, fornacendo estruturas gramaticais. Portanto, em Funcdo dos fatos aqui apresentados, refutaros novamente a posi¢do de que o PB tenha uma hist6ria crioula, seja um semi-crioulo ou tenha subjacente uma leve crioulizacao, Gc. Silva Neto, 1986; Cémata Jr, 1975; Jeroslow, 1975; Guy, 1989; Holm, 1992; Ferreira, 1994; Baxter & Lucchesi, 1997; Baxter, 1998; Mello, 1997). Como jé tive- ‘mos ocasiao de colocar em outros textos (Naro & Scherre, 1993; 2000a; 2000b; Scherre eNaro, a sair), consideramos que o uso do termo ‘crioulizaclo" no Brasil 6 un equtvo- co, uma vez que nao é possivel haver associagao do processo com algum grupo étnico particular e nao hé evidéncia que indique a existéncia de um pidgin prévio de base lexical portuguesa, semelhante a0 Tok Pisin nos adultos da década de 70 na Nova Crowuzacio ov MuDNNca narURAL? 47 Guiné (cf. Sankoff & Laberge. 1980:208). Consideramos ainda mais que a idéia de crioulizagao leve (ef. Baxter & Lucchesi, 1997) ou mesmo a idéia de semi-crioulo. (cf. Silva Neto, 1986; Camara Jr, 1975; Holm, 1992) no acrescenta significado lingiifstico algum ao arcabougo tedrico da crioulizagio. Enfatizamos novamente que, no caso do Brasil, os tragos e todas as estruturas presentes no atual estdgio do processo histdrico de evolugao estavam presentes desde inicio. Até o presente momento, com relacao a concordéncia, verificamos que mu- ddanga bésica foi na tendéncia geral da freqiiéneia das formas. Na concordéncia verbal especificamente, as principais restrigdes varidveis que governam o uso da concordan- cia nao mudarem com o pasar do tempo; mudou o peso do input, ou seja, da freqiiéncia global de uso da variante zero, sem ddvida atualmente muito maior no Brasil (cf. Naro & Scherre, 2000b). Nesse aspecto, o processo é qualitativamente idéntico a uma mudanca lingiifstica natural (Kroch, 1989). Resta ainda uma questao, levantada por Mello (1997:41): se as origens vieram_ do PE, numa deriva romanica secular, especialmente com relagao aos fenémenos de concordancia, por que razo essa deriva ndo se desenvolveu no PE? Quanto a Portu- gal, gostariamos de enfatizar mais uma vez que ainda sio desconhecidas a verdadeira extensao ¢ a intensidade da variagaio na concordancia em terras lusitanas, especial- mente no PE nao- padrao. Quanto a0 Brasil, gostarfamos de fazer um paralelo pa o trabalho de Sankoff (1980). Esta pesquisadora mostrou que, na Nova Guiné, a nativizagio do pidgin por uma nova geraco de criangas, nascidas em familias em que os pais falavam o Tok Tisin apenas como pidgin, endo como lingua nativa, ndo causou qualquer reestruturagdo ou mudancas radicais na gramética das criangas em comparagéo a gramética de seus pais. Em verdade, segundo Sankoff & Laberge (1980:208), a nova geracao de falantes nativos levou “adiante tendéncias que jd esta- ‘vam presentes na Ifngua”. Portanto, no sentido de “levar adiante tendéncias que ja cestavam presentes” ~ & SOMENTE NESTE SENTIDO ~, vemos um paralelo entre as mudan- gas no PB e 0 processo de nativizaco na Nova Guiné. Po:tanto, 0 quadro geral que {ragamos € mais consistente com 0 ponto de vista que se baseia na origem européi mas também se apéia no efeito catalizador da nativizagao apontado por Sankoff. Em sintese, o modelo que assumimos para dar conta da mudanga que ocorreu no PB 60 da cone. uENcIA DE MOTIVAGOES, SEM CRIOULIZAGKO FREVIA. Transcrevendo nos- sas palavras jé publicadas em outros textos, nossa conclusdo € que o portugués mo- derno brasileiro € 0 resultado natural da deriva secular inerente na lingua trazida de Portugal, indubitavelmente exagerada no Brasil pela exuberancia do contato de adul- tos, falantes de linguas das mais diversas origens, e da nativizagao desta lingua pelas comunidades formadas por esses falantes e seus descenderttes. Referéncias Alves, Joana Lopes. 1995. A linguagem dos pescadores de Ericeira. Lisboa, Junta Distrital de Lisboa. Baptista, Candida da Saudade Costa. 1967. O falar de Escusa. 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