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URILO RUBIA Epiddlia, Epidélia. Comegavam alto. Aos poucos, as vozes des- ciam de rom, transformando-se em soturno murmiirio, para de novo se altearem em lenta escala. Jas gradagies pelo imenso coral, levava-o a0 limite extremo da sastia. Apertou 0 ouvido com as maos, enquanto 0 coro se distanciava, até desaparecer, Pirdpolis recuara no tempo ¢ no espago, no mais havia o mar. O parque readquirira as‘dimensdes antigas, Manfredo pisa- va uma cidade envelhecida, 178 PETUNIA “E nascerdo nas suas casas espinhos ¢ ) urtigas e nas fortalezas 0 az (Isatas, XXXIV, Nem sempre amou Pett se amado tanto, « Fles gostavam dos jardins, dos péssaros, dos cavalos-mari- nnhos, de stias Mas nao sabia de quem a tives- ma Angilica, Quando dos pequeninos tiimulos, colocados & margem da estrada, safram os mintisculos titeus, nada mais pertencia a Eolo. . Vedou-lhe o jard am os timéteos, umas flores alegres, eméritos dancarinos. las Pettinias, brincando de roda, ensinando- Ihes a danga, despindo-se das pétalas. A sua nudez. aborrecia Cacilda, Sem protesto, Bolo aguardava as begénias, naquele ano , comoulhe o bindculo. E que ausentes. se tomnou a espera ¢ se punha triste por andar sozi- arto timido. Impedido de franquear as janes, que ndara trancar com pregos, ele imaginava com amat- wios bailados dos timéteos, a alegria das louras 1 que Petiinia-mae as julgava mortas, se nada apo- 179 ‘MuRiLO RUBIA ‘A primeita Petiinia, Periinia Maria, filha de Pet levou-o a acteditar que os dias seriam felizes. Chamo-me Cacilda, Nenhuma delas se chama Pevinia — gritava a mulher, (Cacos de vidro, perdeu-se © amor de encontro & vidraga.) Por que begSnias? Fel6nia, felonia. Fenelio comeu a peda. — Periinia Jandira gostava de hist ~~. Papai, quando virio os proteus? —- Nie come a gente, si0 dangarinos, filhinha. —- Eos homens? — Fenelio comeu a pedra. Eta Iiico o Fenelao. ias: olo nao tinha planos para casamento, porém sua mae pen- sava de outro modo: — Sou rica ¢ s6 tenho voce. Nao admito que minha fortuna vé para as méos do Estado, — E, ittitada dianie dessa possibili- dade, alteava a vor: — Quero que ela fique com os meus netos! Vendo que néo conseguia mudar as convicgdes do filho, nem seduzi-lo com a visio antecipada de possiveis descenden- tes, descaia para a pieguice: —- Além do mais, amor, quem cuidard do meu Eolinho? O diminutivo era o bastante para enfurecé-lo. Safa batendo portas até seu quarto. Periodicamente dona Mineides promovia festinhas, enchendo a casa de mogas, esperangosa de que 0 rapaz casasse com uma delas. As que reuniam, na sua opiniéo, melhores qua- 180 ONTOS REUNIDOS lidades para’ o matriménio, insinuava aparentando uma infeli- cidade um tanto fingida: “Alguém ter que substituir-me e cui- dar dele com 0 mesmo carinho”. — As jovens concordavam, felizes por se vornarem ctimplices da velha. O filho bocejava. Ou se irritava ouvindo os gritinhos histé- ricos, as perguntas idiotas, a admiragéo das mocinhas pelo casa- Go, onde © mau gosto predominava. Enfastiado, esperava esvaziar-se 0 recinto, cessasse o alvoro- go das inquietas raparigas. Terminada a festa, dona Mineides ¢ 0s criados jé recolhidos aos aposentos, os passaros invadiam as salas, voavam em corno dos lustres, pousavam nos bragos das cadeiras, Nao cantavam. Ruflavam de leve as asas, para niio des- pertar os que dormiam, pois jamais permitiam que outsas pes- soas, além dele, os vissem em seus ¥os noturnos. Estava Holo, uma tarde, a soltar bolhas de sabao; quando ouviu de longe amie benar: S| — Folo, seu surdoi venha ca! Relutou em atender ao chamado, tal o seu desagrado pelo tom brusco,com que solicitavam a sua presenga na sala. A velha aguardava-o impaciente. Logo que pressentiu seus pasos no corredor, avangou em dirego do filho, arrastando pelas maos uma moga que pouco a vontade a acompanhava: |-Eela.| Nao se lembraria em seguida de ter ouvido 0 nome de Cacilda, calvez pela surpresa do encontro, O rubor subiu-lhe a face, ele que de ordinario mostrava-se seguro de si ou indiferen- te no trato com as mulheres. Ficou a contemplar em siléncio os olhos castanhos ¢ grandes, 0s labios carnudos, os cabclos longos muRILO RUBIA da desconhecida, Vagaroso aproximou-se dela ¢ tomou-a nos bragos. Apertou-a, a principio com suavidade, para depois estreité-la fortemente. Dominado pela sensualidade que aquele corpo the provacava, esqueceu-se da mae. A per — Lindos passaros. Dona Mincides olhou para o — Que passaros? Folo ignorou a pergunta, ja convencido de que sempre ira Pettinia, porque na sua frente estava Pettinia. wem mulher nao lados © Ja vendo perguntou: Amae nao nciou o casamento, Antes de morrer, mani- de jantar apressou-se ni concordar, enquanto Bolo, consciente dos motivos que leva vam a moribunda a expressar o estranho pedido, hesitava em ret ransferido, » devejo de ver se a sal 1 08 aposentos que iriam abrigar o casal. Pett dar sua aquiescéncia Casados, os dias corriam trangiiilos para os dois. A casa ivia povoada de passaros ¢ cavalos-marinhos, estes trazidos pela iva. Até 0 nascimento da terceira filha nenbum atrito eriara rmonia entre eles Alguns dias apés 0 dou o marido: — Olha, olha o recrato! Holo demorou a entender por que fora despertado de maneira tao repentina. Finalmente compreendeu a rari maquilagem da mie se desfazia no quadro, escorrendo tela abai- xo, Levantou-se resmungando, Com a ajuda de batom e cosmé- i 1.0 rosto de dona imo parto, aterrorizada, Pevinia acor- fl 182 — Pronto — disse, O sorriso demonstrava sua satisfagéo pelo trabalho realizado. Pectinia fez uma cara de nojo ¢ virou-se para 0 canto Custou esquecer a cena, tinha o pe ‘eencetar © sono inverrompido. Por mais que tentasse nento voltado para o retrato da sogra a derreter-se, sujando a moldura ¢ o assoalho. ‘A repeti¢io do fato nas noites subseqiientes aumentou desespero dela. Suplicava ao esposo que retirasse o quadro da parede. Eolo fingia-se deseitendido. Pacientemente recompu- noha sempre a pintura da velha. Houve um momento em que Petiinia descontrolou- : amar, com essa bruxa no quarto? ses entre os dois, aos poucos, tornavam-se frias, sem que deixassem de compartithar a mesma cama. Qu nio se falavam, os corpos distantes, nunca se tocando, Cacilda Ihe dava as costas e entediada lia um livro qualquer. Também des cuidava das filhas © muitas vezes as evitava. Eolo acabava de entrar em casa, vindo da cidade, quando sentiu 0 corpo tremer, afrouxarem-lhe as pernas, a nausea che- gando a boca: jogadas no sofi, as trés Pectinias jaziam inertes, estranguladas. Cambalcante, deu alguns passos. Depois retroce- deu, apoiando-se de encontro & parede. ‘Transcorridos alguns minutos, superou a imensa fadiga que se entranhara nele e pode observar melhor as filhas. Quis reanimé-las, endireitar-lhes os pescocinhos, firmar as cabecinhas pendidas para o lado. Percebeu a inutilidade dos seus esforcos ¢ rompeu-se num pranto convulsive. Nao entendia por que alguém poderia ter feito aquilo, De repente tudo se aclarou ¢ saiu a procura de 183 i | | da fiiria dos cavalos-m: MURILO RUBIA Cacilda, Encontrou-a sentada na cama, segurando a cabeca nas mos. Inquirida sobre o que acontecera, levantou os olhos secos na diregio do mari ~ Foi ela, a megera, — A vor. era inexpressiva, sumida, O dedo apontava o retrato da velha a se desmanchar na tela Perdera a nogéo de quantas horas havia dormido. O primei- ro pensamento, ao acordar, foi para as Pettinias. Segu sala e surps 08 aposentos, Nenhum sinal des filhas ou da mulher. Teve 0 mento de que tinham sido levadas p ‘pido as cscadas. No transpés a porta. Os cavalos-mari- hos obstrufam a passage, Avangaram sobre cle, subindo , cobrindo-the o rosto, os cabelos, Recuow apa- cir para longe os agressores. arde. Nio dew explicagées do que se pas- idou-se por nao vé-las no mesmo ly ido, mas aparentava. trang certa cuforia, ‘Também costumava a Por muito tempo Folo se absteve de sair de casa, temeroso hos. Impossibilitado de saber 0 que se passava Id fora, através das janelas hermeticamente trancadas, ‘ vagava pelos quartos, afogava-se na tristeza. Quando, por acaso, descobriu que os pequenos animais tinham 0 sono tao profundo quanto 0 de Cacilda, a alegria Ihe retornou, Bem sucedido na primeira tentativa de chegar a0 184 ci i ciethtaaanhia sian ies MS CONTOS REUNIDOS patio sem ser molestado, adquiriu a confianga de que jamais seria pressentido em seus passeios noturnos. Tao logo a esposa adormecia, escapava sorrateiro da cama, escorregando por debaixo das cobertas. oa para um canteiro de agucenas. Elas se desvencilhavam répidas de suas mios ¢ ensaiayam imediatamente os primeizos passos de uma danga que se prolongaria pela madrugada afora. Ao lado, bailavam risonhos os titcus ¢ proteus. Em uma das ocasies em que se preparava para levantar-se, descuidou-se um pouco, suspendendo demasiadamente o lengol que cobria a companheira: no ventre dela nascera uma flor negra ¢ viscosa. Recém-desabrochada. Cortou-a pela haste, utilizando uma faca que buscara na corinha, e levou-a consigo, Caminhava sem precaugéo, a esbarrar nas portas, tropecando nos degraus. Contudo manteve os seus hébitos. Apenas nao prestou grande atengio avs bailados nem limpou cuidadosamente as Petini ‘Nas noites seguintes sempre encontrava a rosa escura presa Apele de stia mulher, Nao mais a cortava, Arrancava-a com vio- lencia ¢ a desfazia entre os dedos. Nervoso, descia ao jardim, para cumprir o ritual a que se acostumara. Mesmo contra a sua vontade, nao conseguia abandonar o leito sem descobrir 0 corpo da esposa, muito menos desviar os ‘os da flor. Na impossibilidade de livrar-se daquela presenga obcecante, procurou a faca com que decepara a flor negra da primeira ver, e enterrou-a em Cacilda. jar Kolo, o olhar fixo no busto da morta, contemplava-o sem a avidez de anos atrés. Voltou-se, por instantes; para os labios car- 185 MURILO RUBIA nudos, dos quais desaparccera a antiga sensualidade. Ao levan- tar a cabega, notou que a maquilagem da mae se desfizera. Recompés a pintura c scntou novamente na cama. O sangue ia da ferida, quando multiplicaram as flores no ven- ainda es tre de Caci ‘Catregou-a nos bragos até o qui I. Depois de alguma hesi- tagdo quanto & escolha do local onde abritia a cova, optou por um canteiro de couves. Cavou um buraco fundo, jogando nele © corpo, Mal © cobrira com terra, da emergiram pétalas viscosas ¢ pretas. Maquinalmente foi arran- cando uma a uma, Em meio a tarefa, lembrou-se clas filhas. ic estava farendo e correu para desenterré-tas. Sentia- guardou que elas terminassem a danga, Jogos-se na canna sem epi se € nprovisada sepuleara uncié-lo & policia. Alarmou-se com a possi encarcerado: quem cuidaria do retrato da mie, quem terra as Pettinias? Niio dorme. Sabe que os seus dias sero consumidos em desen- tcstar as filhas, retocar © quadro, arrancar as flores, Truz 0 rosto constantemente alagado pelo suor, 0 corpo dolorido, os olhos vermelhos, queimando. O sono é quase invencfvel, mas prossegue. 186 wc aia AGLAIA os teus trabalhos ¢ os eus parios.” (Génesis, I, 16) Vinha do seu giro habitual pelos bares da praia. Cambaleava, apesar de amparar-se no ombro da moga more- sta do hotel observou que Colebra estava mais embriagado do que nas outzas noites. A mulher também nao cra a mesma da véspera, mas jé se acostumara a velo mudar constantemente de companhia, Retirou do escaninho, juncamente com a chave do apartamento, um enyclope volu- moso, que entregou ao héspede. Este, numa voz pastosa, pediu que mandassem para seu quarto uma garrafa de u € dois copos: — Sempre comemoro o dia em que minha mulher me cnvia a mesada. na. O rece; espalharam-se pelo chao Fotografias de recém-nasci- dos. Recolheu no meio delas 0 cheque: — Sio meus filhos. Os da tiltima safra. — E apontava para as fotos. Pronunciara as palavras com édi . procurando ser sarcisti- co. Passou o braco pela cintura da companheira ¢ a conduzitr até o clevador. Ficaram no décimo andar. 187

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