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A Arte da Ficcéo Henry James Selegdo e Apresentagiio Anténio Paulo Graga Tradueao Daniel Piza Edltora Smaginsni Dads Tnternaionai te Ctalogast na Publis (Gaara Bastien do Lv, SP, Bras ' James, Henry, 1849-1916, ! Sumario Alegorias da consciéneia moral © interpretagio 1. Gra, Antonio Paulo Graca mun ere } A Arte da Ficgio 19 | Critica 47 {indices para catalog sisteratico: 1. Peg: Hisiiae eaten 8093 © Futuro do Romanee 55 | Guy de Maupassant 69 Emile Zola 105 ‘Projeto Bdtorial:Plinio Angusto Coelho ieardo Nakamsiti Revisto: Ana Paula Landi oe projeto de eapa: Milton José do Al da eapa: INT Arts Gréficas |, 228 con, 11 Fone / Fax: (011) 258-5998 101228.010 Sao Paulo - SP Impresso no Brasil Dezembra de 1985 | A Arte da Ficgéo Bu nao deveria ter escolhido um titulo tao abrangente para estas poucas observagées, necessa- riamente incompletas quando se trata de um as- sunto sobre 0 qual poderiamos ir to longe, se nfo me parecesse ter descoberto um pretexto para tal temeridade no interessante panfleto recém-publi- cado sob esse titulo pelo sr. Walter Besant. A con- feréncia do sr. Besant na Royal Institution — a fonte original de seu panfleto — aparece como indi- cio de que muitas pessoas esto interessadas na arte da ficgéo, e de que nao estao indiferentes as observagdes que os que a praticam possam querer fazer sobre ela, Estou ansioso, em conseqiléneia, por nao desperdigar 0 beneficio dessa associagao favoré- vel e acrescentar algumas palavras, acobertando- me da atengéio que o sr. Besant esta certo de ter chamado. Ha algo muito encorajador no fato de ele ter dado forma a certas idéias suas sobre 0 mistério da narrativa, Esse fato 6 uma prova de vitalidade e curiosi- dade — curiosidade tanto por parte da irmandade dos romancistas quanto por parte de seus leitores. Ha bom pouco tempo, era de supor que o romance inglés nao fosse 0 que os franceses chamam de “discutable”. Ele néo aparentava ter uma teoria, uma convicedo, uma autoconsciéncia por tras de si —a de ser a expresstio de um credo artistico, 0 re- sultado de escolha e comparagao. Nao digo que isso fosse necessariamente ruim: seria preciso muito mais coragem do que possuo para sugerir que a 20 AArte da Ficedio forma do romance como a viam Dickens ¢ Thacke- ray (por exemple) tivesse qualquer sombra de in- completude. Isso, no entanto, era naif (se me per- mitem outra palavra francesa); e evidentemente, se se deve sofrer por causa da perda da naiveté, existe agora a idéia de que também se deve extrair as res- pectivas vantagens. Durante o perfodo a que aludi havia em outros pafses uma sensagéo confortdvel, bem-aceita, de que um romance 6 um romance as- sim como um pudim 6 um pudim, e de que s6 nos cabe engoli-lo. Mas em um ano ou dois, por um mo- tivo ou outro, houve sinais do retorno de uma ani- magiio — a era da discuss, ao que parece, estava sendo iniciada. A arte vive de discussao, de experi- mentagio, de curiosidade, de variedade de tentati- vas, de troca de visdes e de comparagio de pontos de vista; e presume-se que os tempos em que ninguém tem nada de especial a dizer sobre ela e em que ninguém oferece motivos para 0 que pratica ou pre- fere, embora possam ser tempos honrados, nao se- jam tempos de evoluefio — talvez sajam tempos, até, de uma certa monotonia. A pratica bem-sucedida de qualquer arte 6 um espetéculo agradével, mas a teoria também é interessante; e, embora haja uma grande quantidade da segunda sem a primeira, suspeito de que nunca tenha havido um sucesso genuino que nfo tenha tido um amago latente de conviegio. Discussic, sugestdo, formulagio, essas coisas so férteis quando sao francas e sinceras. 0 sr. Besant dou um exemplo excelente ao dizer o que pensa que deva ser a maneira de escrever ficydo, assim como a maneira de publicé-la; pois sua visio da “arte”, explicada no apéndice, abrange isto tam- bém, Outros trabalhadores da mesma Area vao ler ia, eo efcito certamente serd o de tornar nosso interesse pelo romance um pouco maior do que aquele que A Arte da Ficedo 21 por um tempo cle ameagou deixar de ser — um inte- esse sério, ativo, investigative, sob cuja protegao esse agradével estudo pode, em momentos confessionais, aventurar-se a dizer um pouco mais sobre 0 que o romance pensa de si mesmo. © romance precisa se levar a sério para que 0 pttblico 0 leve a sério também. A velha superstigéio sobre a ficg&o ser “infqua” sem diivida morreu na Inglaterra; mas seu espirito subsiste num certo olhar obliquo que se dirige a qualquer histéria que no admita, mais ou menos, ser apenas uma ane- dota. Mesmo 0 romance mais anedético sente de algum modo 0 peso da proscri¢ao que antes se diri- gia contra a leviandade literéria: a anedota nom sempre consegue passar por ortodoxia. Ainda se espera, embora as pessoas talvez tenham vergonha de dizer, que uma produgao que, afinal, 6 apenas uma “simulacdo” (pois 0 que mais ¢ uma hist6ria?) deva ser de algum modo apologética — deva renun- ciar a pretensdo de tentar realmente representar a vida: Isso, claro, qualquer histéria sensata, consei- ente, rejeita fazer, pois logo percebe que a toleran- cia que Ihe é emprestada sob essa condigio 6 apenas uma tentativa de sufocé-la, disfarcada na forma de generosidade. A velha hostilidade evangélica ao romance, que era to explicita quanto estreita, que o considerava tio pouco favorével ao nosso ser imortal quanto a pea de teatro, era na verdade bem menos insultuosa. A vinica razio para a exis- téncia de um romance 6 a de que ele tenta de fato representar a vida. Quando ele desdenha essa ten- tativa, a mesma tentativa que se vé na tela do pin- tor, tera chegado a uma situagao muito estranha. Nao se espera de uma pintura que seja tio humilde que possa ser esquecida; ¢ a analogia entre a arte do pintor e a arte do romancista é, até onde posso ver, completa. Sua inspiragao 6 a mesma, sua téc- e xo a mesma, elas podem explicar e sustentar uma a” A 22 A Arte da Piogdio nica (a despeito da qualidade diferente dos meios) é outra; Seu motivo 6 o mesmo, e a honra de uma é a honra da outra. Os maometanos pensam que a pin- tura 6 uma coisa profana, mas jé se vai muito tempo desde que os cristaos pensayam assim, e portanto ¢ mais estranho que na mente crista tragos (ainda que dissimulados) de suspeita contra uma arte irma subsistam até hoje. A tnica maneira eficaz de apaga-los é enfatizar a analogia a que acabei de me referir — 6 insistir no fato de que, se a pintura 6 realidade, o romance ¢ histéria. Essa ¢ a tinica des- crigéo genérica (que Ihe faga justiga) que se pode dar do romance. Mas a histéria também se permite representar a vida; ndo se espera dela, néo mais do que da pintura, que faga apologias. O tema da fiegio esta arquivado, como em documentos e registros, © para que seja explorado 6 prociso falar dele com seguranga, com a tonalidade do historiador. Alguns romancistas de renome tém um costume de entregar-se que deve com freqiléncia levar as lagrimas pessoas que tomam sua ficgéo a sérig. Recentemente me espantei, ao ler muitas paginas de Anthony Trollope, com sua falta de discrigéo quanto a isso, Numa digressio, num paréntese ou. aposto, ele concede ao leitor que ele e esse ai confiante estéo apenas “simulando acredita ‘Admite que os eventos que narrou nao aconteceram realmente, e que pode mudar sua histéria do modo como 0 leitor preferir. Tal traigio de um oficio sagrado me parece, confesso, um crime terrivel; era 0 que eu queria dizer quando falei sobre a atitude de apologia, e isso me choca, por menor que scja, tanto em Trollope quanto teria chocado em Gibbon. ou Macaulay. Implica que o romancista esta menos ocupado em procurer a verdade (quero dizer, claro, a verdade que ele assume, as premissas que Ihe AArte da Fiegao 23 garantimos, quaisquer que sejam) do que o his- toriador, e ao fazé-lo esté se privando de uma pince- _ Jada do quarto em que esta. Representar ¢ ilustrar 0 passado, as agées do homem, é a tarefa de qualquer _ escritor, ¢ a tinica diferenga que posso ver 6 a favor do romancista, se bem-sucedido, porque ele tem bom mais dificuldade do que o historiador em cole- tar suas provas, que esto longe de ser puramente literdrias. Pareco-me que lhe dé um grande caréter © fato de ele ter em comum tanto com o filésofo como com o pintor; essa dupla analogia ¢ uma he- _ ranga magnifica, E por isso evidente que o sr. Besant estd certo ao insistir no fato de que ficgo € uma das belas artes, merecedora por sua vez de todas as honras ¢ ganhos que até agora tém sido reservados as bem- sucedidas profissdes de misico, pintor, poeta, arqui- teto. & dificil insistir tanto numa verdade tao im- portante, e o lugar que o sr. Besant reclama para 0 trabalho de romancista pode ser representado, um pouco menos abstratamente, dizendo-se que cle pede que seja reputado nao s6 como artistico, de fato, mas também como muito artistico. B timo que ele tenha feito soar essa nota, porque o fato de té-lo feito indica que havia uma necessidade disso, que sua proposicao pode ser para muitas pessoas uma novidade. Esfregam-se os olhos diante desse pensa- mento; mas o resto do ensaio do sr. Besant confirma a revelacdo. Na verdade, suspeito que seja possfvel confirmé-la ainda mais, e que nao estaria errado quem dissesse que, além das pessoas a quem nunca ocorreu que um romance deve ser artistic, ha muitos outros que, se Ihes fosse explicado esse principio, ficariam cheios de uma indefinivel des- confianga. Achariam dificil explicar sua repugnan- cia, mas isso os deixaria fortemente em guarda. “Arto”, nas nossas comunidades protestantes, em 24 A Arte da Ficgdo que tantas coisas mudaram tao estranhamente, imagina-se em certos circulos que tenha algum efeito vagamente injurioso sobre aqueles que a consideram, que dao certo peso a ela. Supde-se que ela se oponha, de alguma maneira misteriosa, a moralidade, ao lazer, & educagéo. Quando esta in- corporada numa pintura (escultura 6 outro as- sunto!) sabe-se 0 que ela 6: ela esta la diante de voc@, na honestidade do rosa © do verde e uma mol- dura dourada; vocé pode ver a parte pior dela de relance e ainda se manter protegido. Mas quando ela se introduz na literatura se torna mais insidiosa — hf o perigo de que ela o machuque antes de vocé conhecé-la. A literatura deveria ser ou instrutiva ou divertida, e ha em muitas cabecas a impressio de que essas preocupagées artisticas, como a busca da forma, nao contribuem em nenhum dos dois senti- dos, e mesmo interfere em ambos. Séo muito frivo- ficantes e muito sérias para ser di- além disso, sfo pretensiosas_@ paradoxais e supérfluas. Isso, creio, representa a maneira como 0 pensamento latente de muitas pessoas que lem romances como um exercfcio fugaz poderia explicar a si mesmo se fosse articulado. Blas argumentariam, claro, que um romance tem de ser “bom”, mas interpretariam este termo 4 sua ma- neira, o que certamente iria variar bastante entre um critico e outro, Alguém diria que ser bom significa representar personagens virtuosos ¢ _ inspiradores, situados em posigées proeminentes; ” outro diria que isso depende de um “final feliz”, ‘uma distribuigao final dos prémios, pensdes, mari-” los, mulheres, bebés, milhdes, pardgrafos anexos e ivertidas: Outro, ainda, diria que ser bom significa ser repleto de incidentes e movimento, de modo que ele queira saltar adiante, para ver quem era o misterioso estranho e se 0 objeto rou- AArte da Fiegao 25 bado foi encontrado, e de modo que ele nfo seja desviado desse prazer por alguma anélise ou “deserigéo”, Mas todos concordariam que a idéia “artistica” traria uma perda para seu entreteni- mento, Um a associaria com a descrigao, outro a veria revelada na auséncia de simpatia. Sua hosti- lidade a um final feliz seria evidente, e em alguns casos até faria qualquer conclusao ser impossfvel. A “conclusao” do romance 6, para muitas pessoas, como a de um bom jantar, uma seqtiéncia de sobre- mesas e sorvetes, ¢ 0 artista na ficgdo é visto como uma espécie de um médico chato que profbe praze- res supérfluos. E portanto verdadeiro que essa con- — cepgao do sr. Besant do romance como uma forma — superior encontra uma indiferenca ndo s6 negativa ‘mas também positiva; Pouco importa & esséncia da obra de arte que supra finais felizes, personagens simpaticos e um tom objetivo, como se fosse uma obra mec@nica: a associagdo de idéias, embora in- congruentes, poderia ser demais para ela se uma vor elogiiente As vezes nao se erguesse para chamar atengdo para o fato de que a ficedio é um ramo da literatura a um tempo tao livre e sério quanto qual- quer outro, Certamente 6 preciso as vezes duvidar disso na presenga do enorme ntimero de obras de ficgéio que apelam a eredulidade da nossa geragdo, porque pode facilmente parecer que néo deve haver ne- nhuma grande personagem numa mercadoria téo répida e facilmente produzida. Deve-se admitir que bons romances sfo bastante comprometidos por maus, e que 0 campo como wm todo sofre descrédito quando superpovoado. Acho, no entanto, que essa injiiria é apenas superficial, e que a superabundan- cia de fiegio nada prova contra o principio em si Ela foi velgarizada, como todos os outros tipos de 26 AArte da Ficeéo literatura, como tudo 0 mais hoje em dia, e provou mais do que os outros tipos ser acessivel & vulgari- zagG0. Mas ha tanta diferenga quanto sempre houve entre um bom romance e um mau: 0 mau romance é varrido com todas as telas borradas e mérmores danificados em diregao a um limbo nao visitado, ou para o infinito depésito de lixo atras das janclas do mundo, e 0 bom romance subsiste e emite sua luz e estimula nosso desejo por perfeigao. Se posso tomar a liberdade de fazer uma tnica critica ao sr. Besant, cujo texto ¢ tao repleto do amor por sua arte, devo fazé-la agora. Ele me parece equivocado ao tentar ,| dizer tao definitivamente no que consiste um bom romance. Indicar 0 perigo que existe nesse erro foi o propésito destas poucas paginas, como o de sugerir / que certas tradigées nesse campo, aplicadas a pri- ori, j tenham assumido responsabilidades demais, | e que a boa satide de uma arte que tao imediata- | mente se dispée a reproduzir a vida exija que essa | arte seja perfeitamente livre. Ela vive de exercicio, | e 0 proprio sentido do exercicio 6 a liberdade. A’ ‘unica obrigagao que devemos imputar previamente a um romance, sem cair na acusagéo de arbitrarie- dade, é a de que seja interessantey Essa responsa- bilidade geral 6 a dnica que vejo repousar sobre ele. As formas como ole 6 livre para tentar atingir esse resultado (de ser interessante) sdo surpreendente- mente numerosas, e 86 podem sofrer com as restri- Bes e prescrigées. Sao tao variadas quanto peramento do homem, e bem-suc que revelem uma mente particular, outros. Um romance, em sua definigao mais ampla, 6-uma impressio direta e pessoal da vida: isso, para comegar, constitui seu valor, que 6 maior ou menor de acordo com a intensidade da impressiio. Mas nto” -haverd intensidade alguma, e portanto valor algum,” se néo houver liberdade para sentir e dizer, Tragar AArte da Ficgdo 27 uma linha a ser seguida, um tom a ser obtido, uma forma a ser preenchida, 6 uma limitagao dessa li- berdade © uma supressio justamente daquilo por que estamos mais curiosos. A forma, parece-me, 6 para ser apreciada depois do fato: sé entao a escolha do autor tera sido feita, seu padrdo indicado; 36 entéo podemos seguir linhas e diregdes e comparar tonalidades e semelhangas. E, em suma, podemos desfrutar um dos prazeres mais charmosos, podemos avaliar a qualidade, podemos aplicar 0 teste da execugao. A execugao pertence apenas ao autor; 60 que h4 de mais pessoal, e o medimos por ela: A vantagem do artista, 0 seu luxo, assim como seu tormento e sua responsabilidade, é a de que n&o ha limites para o que ele quiser tentar como executante — no hé limites para seus possiveis experimentos, esforgos, descobertas, conquistas. especialmente neste ponto que ele trabalha, passo a passo, como o seu amigo do pincel, de quem sempre dizemos que pinta da melhor maneira que conhece. Seu estilo 6 seu segredo, nfo necessariamente um de dar inveja. Ele nao poderia revelé-lo em termos genéricos se quisesse; estaria perdido se quisesse ensiné-lo a outros. Digo isso com a devida lem- branga de que insisti na similaridade do método do artista que pinta um quadro eo que escreve um romance. O pintor é capaz de ensinar os rudimentos de sou oficio, e 6 possivel, com o estudo das boas obras (havendo a aptidao), tanto aprender a pintar como a escrever: No entanto, continua sendo ver- dade, sem injiria ao rapprochement, que o artista literario seria obrigado a dizer para seu disefpulo, mais do que o outro, “Ah, bem, faga como voeé pu- der!” B uma diferenga de graduagao, uma questao do dolicadoza. Se existem ciéncias exatas, também existem artes exatas, ¢ a gramética da pintura ¢ tao mais definida que isso faz diferenca 28, A Arte da Fiegio Tenho de acrescentar, entretanto, que se 0 sr. Besant diz no comego de seu ensaio que “as leis da fiego podem ser estabelocidas © ensinadas com tanta precisao e exatiddo quanto as leis da harmo- nia, perspectiva e proporgao”, ele amortece 0 que poderia parecer uma extravagéncia ao aplicar sua observagiio a regras “gerais” e ao expressar a maio- ria dessas regras de um modo do qual certamente seria incdmodo discordar. Que 0 romancista deve escrever a partir de sua experiéncia, que seus per- sonagens “devem ser reais ¢ tais que poderiam ser encontrados na vida real’; que “uma jovem criada numa calma aldeia campestre deve impedir descri- ses de uma vida luxuosa” e “um eseritor eujos ami- gos e experiéncia pessoal pertencem a classe média baixa deve introduzir cuidadosamente seus perso- nagens na sociedade”; que se devem colocar as pré- prias notas em um livro de citagdes; que as figuras devem ter contornos claros; que fazé-los claros por algum truque de linguagem ou de procedimento 6 uum mau método, e “descrevé-las longamente” 6 pior ainda; que-a Ficetio Inglesa deve ter um “propésito ‘moral conseiente”; que ¢ “quase impossivel estimar em excesso 0 valor do artesanato cuidadoso — isto 6, 0 estilo”; que “o ponto mais importante 6 a histé- ria”, que “a histéria 6 tudo”: esses sao prinefpios com a maioria dos quais é certamente impossivel — -néo simpatizar, A observagao sobre o escritor de classe média baixa e sobre ele saber seu lugar talvez seja um tanto cruel; mas, quanto as restan- tes, acho dificil discordar de qualquer uma. Ao mesmo tempo, acho dificil aderir a elas, com exee- cdo, talvez, da que fala sobre colocar notas préprias em um livro de citagdes. Elas pouco me parecem ter a qualidade que o sr. Besant atribui as regras do romancista — a “procisio ¢ exatidao” das “leis de harmonia, perspectiva e proporcao”. Sao sugestivas, A Arte da Ficgao 29 até mesmo inspiradoras, mas nao sao exatas, embora elas possam ser, dependendo do caso — 0 que é uma prova da liberdade de interpretagao que defendi. Pois 0 valor dessas diferentes observagoes — to belas ¢ to vagas — ostd todo no significado que cada um der a elas. As personagens, a situagao que assustam alguém por sua realidade serao as que mais 0 tocarem e interessarem, mas a medida da realidade 6 dificil de fixar. A realidade de Don Quixote e do sr. Micawber é uma sombra muito deli- cada; é uma realidade téo colorida pela visio do autor que, por mais vivida que seja, hesita-se em propé-la como um modelo: perguntas muito emba- ragosas poderiam ser feitas pelo discipulo. Nem 6 preciso dizer que voc® nao vai escrever um bom romance se no possuir um sonso de realidade; mas serd dificil lhe dar uma receita de como dar existén- cia a ose senso. A humanidade é imensa, e a reali~ dade tem uma miriade de formas; 0 maximo que se pode afirmar 6 que algumas das flores da ficcdo tém 0 odor dela, outras nao; jé buqué deve ser composto, 6 igualmente excelente e inconchu: deve escrever a partir da experiéncia; para nosso hipotético aspirante, tal declaracdo pode ter sabor de zombaria. Que tipo de experiéncia é pretendida, ¢ onde ela comega o termina? A experiéncia nunca é limitada e nunca 6 completa; ela é uma imensa sensibilidade, uma espécie de vasta teia de aranha, da mais fina seda, suspensa no quarto de nossa consciéncia, apanhando qualquer partfcula do ar em seu tecido. B a propria atmosfera da ment quando a mente 6 imaginativa — muito mais quando acontece de ela ser a mente de um génio— cla leva para si mesma os mais ténues vestigios de vida, cla converte as préprias pulsagées do ar em revelagdes. A jovem que foi criada na aldeia tem de 30 AArte da Ficeao ser apenas a donzela com a qual nada se perde quando se faz parecer injusto (como me parece) que ela declare nada ter a dizer sobre os militares. JA se viram milagres maiores que, com ajuda da imagina- ‘go, 0 de alguém como ela falar a verdade sobre’ alguns desses cavalheiros, Lembro-me de uma ro- maneista inglesa, uma mulher de talento, dizendo- me que estava muito satisfeita com a impressiio que conseguiu dar em uma de suas histérias sobre a natureza e modo de vida da juventude protestante francesa. Perguntaram-Ihe onde aprendeu tanto sobre essas pessoas to recénditas, deram-lhe pa- rabéns por ter tido oportunidades tao peculiares. Eesas oportunidades consistiam no fato de ela ter, uma vez em Paris, ao subir uma escada, passade por uma porta aberta onde, na casa de um pasteur, alguns jovens protestantes estavam sentados a0 redor de uma mesa, ao fim da refeigao. O olhar de relance constituiu uma pintura; durou apenas um instante, mas esse instante foi experiéncia. Ela teve uma impressio pessoal direta, e extraiu seu modelo, Sabia que juventude era aquela, e que protestan- tismo; também tinha a vantagem de ter visto o que era ser francés, de modo que ela converteu essas idéias numa imagem concreta e produziu uma realidade. Acima de tudo, no entanto, ela foi aben- goada com a faculdade de quem recebe uma mao obtém um brago, e que para o artista é uma fonte de poder maior do que qualquer acidente como o lugar de residéncia ou a posigéo social. O poder de adivi- -nhar néo-visto do visto, de tragar a implicagio das » coisas, de julgar toda a pega pelo padrao, a condigio» de sentir a vida em goral tio completamente que © vyoeé se sente disposto a conhecer cada canto dela —~ esse actimulo de capacidades pode quase ser ~ chamado de experiéncia, e ocorre na cidade ou no campo, e nos mais diversos estagios de educacio: Se A Arte da Ficedo 31 a experiéncia consiste em impressies, pode-se que as impressdes sdo experiéncia, jA que (nao é 0 que vimos?) so 0 préprio ar que respiramos. Por- tanto, se eu dissesse a um novato: “Escreva a partir da experiéncia e 86 dela’, sentiria que se trata de uma adverténcia tantalizante se nfo acrescentasse imediatamente: “Tente ser uma das pessoas com quem nada se perde!” Longe de mim pretender com isso minimizar a importéncia da exatidao — da verdade do detalhe. Cada um fala melhor daquilo que prova, entao posso me arriscar a dizer que 0 ar de realidade (a solidez da especificacdo) parece-me ser a suprema virtude do romance — o mérito do qual todos os ou- tros méritos (inclusive o propésito moral consciente, de que o sr, Besant fala) inevitdvel e submissa- mente dependem. Se ele nao existe os outros nfo so quase nada, e se estes existem devem seu efeito a sucesso com que o autor.produziu a iluséo de vida. O cultivo desse sucesso, 0 estudo desse exce- lente processo formam, para 0 meu gosto, 0 comego © 0 fim da arte do romancista. Sao sua inspiracao, seu desespero, sua recompensa, seu tormento, sua delicia. f aqui, na verdade mesma, que ele compete com a vida; 6 aqui que ele compete com seu irméio, 0 pintor, na sua tentativa de produzir a viséo das coisas, a visdio que comunica o significado delas, de captar a cor, 0 relevo, a expresso, a superficie, a substancia do espetéculo humano. E por isso que 0 sr. Besant est4 bem-intencionado quando diz ao autor para tomar notas. Talvez ele nao possa tomar muitas, talvez ndo possa tomar as suficientes. A vida toda o solicita, e “produzir” a mais simples superficie, conseguir a mais momenténea ilusdo, 6 um negéeio muito complicado. Seu trabalho seria mais fécil, © a regra mais exata, se o sr. Besant ti- vesse sido capaz de Ihe dizer que notas tomar. Mas | a2 A Arts da Ficgto isto, receio, ele nunca poderé aprender em qualquer manual; é 0 objetivo de sua vida. Ele tem de tomar muitas notas a fim de selecionar umas poucas, tem. de retrabalhé-las como puder, e mesmo os guias © filésofos que poderiam ter muito a Ihe dizer devem deixé-lo sozinho quando chega a hora de aplicar os preceitos, como se deixa o pintor em comunhao com sua paleta, Que seus personagens “devem ter contornos claros”, como diz o st. Besant — ele sabe disso em seu Amago; mas como deve fazer isso é um segredo entre seu anjo da guarda e ele mesmo. Seria absurdamente simples se a ele fosse ensinado que uma grande quantidade de “descrigéio” os faria assim, ou que, ao contrério, a auséncia de deserictio € 0 cultivo do didlogo, ou a auséncia de didlogo e a licacio dos “incidentes’, o salvaguardariam das dificuldades. Nada, por exemplo, é mais possivel do que ele ter um tipo de mente para a qual essa oposi¢éo bizarra e literal entre descrigéo e didlogo, incidente e descrigao tem pouco significado e luminosidade, As pessoas geralmente falam isas como se elas tivessem uma espécie de itrinseca, em vez de se misturarem umas as outras a cada respiragao e serem partes intima- mente associadas de um esforgo de expresso geral. Nao posso imaginar a composigdo existindo em uma série de blocos nem conceber, em qualquer romance que valha a pena discutir, uma passagem de diélogo que nao tenha intengSo descritiva, um toque de verdade que nfo partilhe da natureza dos inciden- tes, ou um incidente que derive seu interesse de qualquer outra fonte que a fonte tinica e genérica do sucesso de uma obra de arte — a de ser ilustrativa. Um romance 6 uma coisa viva, e 4 medida que ele vive seré visto, ereio, que em cada uma de suas par- tes ha alguma coisa das outras. 0 eritico que, diante da textura fechada de um trabalho acabado, pren- A Arte da Ficeao 33 tenda tragar uma geografia dos itens marcaré al- gumas fronteiras tao artificiais quanto, acredito, qualquer uma das conhecidas pela histéria. HA uma velha distingao entre 0 romance de personagem e 0 romance de incidente que deve ter provocado muito sorriso nos fabulistas conscientes que gostam de seu trabalho. Essa 6 uma distingéio tao pouco significa- tiva para mim quanto a igualmente celebrada dis- tingdo entre “novel”! e “romance”? — pouco corres- ponde a realidade alguma. HA bons e maus ro- manees, assim como boas e mas pinturas; mas esta Ainica distineao em que vejo algum sentido, pois niio posso me ver falando em romance de persona- gem assim como nao posso me ver falando em pin- tura de personagem. Quando alguém diz pintura diz pintura de personagem, quando diz romance diz nance de incidente, e os termos podem ser troca- & vontade. O que é um personagem senéo a de- ‘minagio do incidente? O que é um incidente se- 0 a ilustragio do personagem? O que sdo uma _ pintura ou um romance que néo sejam de persona- gem? O que mais procuramos ¢ encontramos neles? 1m ineidente para uma mulher que ela esteja em com a mao apoiada sobre uma mesa, ¢ olhe voce certo modo; ¢ se nao é um incidente acho que ficil dizer 0 que é. Ao mesmo tempo 6 a ex- pressiio de um personagem; Se vocé disser que nao $0 (um personagem nisso — allons done’ que o artista que tem suas proprias razées para Jar que vé isso deve mostrar a vocé, Quando um conelui que nao tem £6 bastante para entrar igreja como pretendia, isso 6 um incidente, ainda vocé no va se apressar em diregiio ao final do itulo para ver se talvez ele néio mude de idéia de 34 A Arte da Fiegao A Arte la Ficedo 35 novo, Nao estou dizendo que esses sejam incidentes e nem tentaram destacar nele coisas menores, que extraordinérios ou surpreendentes. Nao tenho a eu saiba, para esse fim. Nao vejo nenhuma pretensdo de avaliar o grau de interesse pro- obrigagfio que o “romancer” tonba que o “novelist” cedente deles, pois néo tenha; 0 padrao de execugao é igualmente alto pintor. Soa pueril dizer que alguns incidentes sao para os dois. claro que estamos falando de intrinsecamente muito mais importantes que execugéo — sendo este 0 tnico ponto de um outros, e preciso tomar essa precaugdo depois de ter romance que est aberto A disputa. Talvez se perca professado minha simpatia pelos incidentes maiores muito isso de vista, 0 que s6 produz intermindveis ao observar que a tinica classificagao do romance confusdes e mal-entendidos. Deve-se garantir ao que posso entender é a de ele ter vida ou nao. artista seu assunto, sua idéia, sua donnée: a erftica “Novel” e “romance”, o romanee de incidente & deve ser aplicada apenas ao que ele faz disso. 0 de personagem — essas separagbes grosseiras me parecem ter sido feitas por criticos e leitores para sua propria conveniéneia, e para ajudé-los em Naturalmente ndo estou dizendo que estamos inclinados a gostar disso ou achar aquilo interes- sante: se nfo estamos, nossa atitude deve ser sim- algumas situagées eventualmente problematicas, ples — abandoné-lo. Podemos acreditar que de uma mas me parecem ter pouco interesse ou realidade determinada idéia, meemo o mais sincere roman- para 0 criador, de cujo ponto de vista estamos ten- RE ttine arene ates ten ereh tek iare tando considerar a arte da ficgéo. O caso 6 0 mesmo Tents mossd renga; shasrewiniérssiawbaasanidowiee=™ ‘em outra categoria nebulosa que o sr. Besant apa- faléncia na execugio, ¢ é nela que a fraqueza fatal ~ rentemente esta disposto a estabelecer — a do eciauaensuimianiay Se ipreteuderice realiaectenren “romance inglés moderno”; a no ser, certamente, peitar o artista, devemos permitir sua liberdade de que ele tenha caido numa acidental confusto de eae rine ea eee ea car Tet caeee ciel nciracs pontos de vista. Nao esté claro se ele pretende, com peetrtenncrentdetarsietoccsnta: atieal nase as observagies em que alude a essa categoria, ser arte deriva uma parte considerdvel de seu exer didatico ou histérico. B tao dificil imaginar uma benéfico de enfrentar as presungées, e algumas das pessoa pretendendo escrever um inglés moderno experiéncias mais interessantes de que ela 6 capaz quanto imaginé-la pretendendo escrever um ro- estdo ocultas no seio das coisas comuns. Gustave mance inglés antigo: este 6 um rétulo questiondvel. Flaubert escreveu uma hist6ria sobre a devocao de Escreve-se um romance, pinta-se um quadro, com a uma empregada a um papagaio, e o resultado, al- linguagem de seu tempo, e chamé-la de inglés tamente acabado como 6, nao pode ser, de todo, moderno nao tornard a tarefa mais fécil. Tampouco, Ee eat ere erer arena infelizmente, chamando este ou aquele trabalho vres para consideré-lo superficial, mas eu o acho artistico de “romance” — a nfo ser, claro, que seja interessante; e estou extremamente feliz por ele t¢- pelo prazer de fazé-lo, como quando Hawthorne lo escrito; 6 uma contribuigio para 0 nosso conheci- assim qualificon seu romance Blithedale. Os sever ala ene tial reefer cee franceses, que deram & teoria da ficgio uma notével ee ea ee cree nnn ene completude, tém apenas um nome para 0 romance, surdo e mudo e um cachorro vira-lata, e 0 resultado 36 A Arte da Ficeaio 6 tocante, adordvel, uma pequena obra-prima. Ele fez soar a nota da vida onde Gustave Flaubert a deixou escapar — clo enfrontou uma prosungdo © a venceu. Nada, claro, vai em algum dia tomar o lugar da velha e boa moda do “gostar” de uma obra de arte ou nao gostar dela: a critica mais evolufda nao abolira esse teste primitivo, final. Menciono isso para me proteger da acusagio de sugerir que a idéia, 0 assunto, de um romance ou pintura n&o importa. Importa, a meu ver, no mais alto grau, e se pudesse pregar uma regra ela seria a de que os ar- tistas devem selecionar apenas os assuntos mais ricos. Alguns, como j4 reconheci antecipadamente, siio muito mais recompensadores que outros, e este seria um mundo mais feliz se as pessoas que pre- tendessem tratar deles estivessem isentas de confu- ses e equivocos. Essa condigio afortunada s6 che- gard, receio, no mesmo dia em que os eriticos se purgarem de erros. Entretanto, repito, nao julga- mos 0 artista com justiga se nao Ihe dizemos, “Eu Ihe legitimo 0 ponto de partida, porque se ndo 0 fizesse estaria preserevendo regras a voc’, e Deus me livre dessa responsabilidade. Se tenho a preten- sfo de Ihe dizer 0 que nfo fazer, entao vocé me chamaré para dizer o que fazer; e nese caso estarei encrencado, Além disso, é s6 depois que recebo suas informagées que posso avalid-lo. Tenho um modelo, um registro; nao tenho o direito de mexer na sua flauta ¢ entdo criticar sua musica. Claro que ndo devo me preocupar com sua idéia, de modo algum; ela pode ser tola, antiquada ou obscura; nesse caso lavo minhas maos imediatamente. Devo contentar- me em acreditar que vocé nao vi conseguir ser inte- ressante, mas, claro, ndo devo tentar demonstrar isso, e voce sera tao indiferente para comigo quanto cu para com yoo. Nao preciso lembrar voce de que AArte da Ficgdio 37 existem todas as variedades de gosto: quem saberd qual o melhor? Algumas pessoas, por motivos exce- lentes, nao gostam de ler sobre carpinteiros; outras, por motivos melhores ainda, nao gostam de ler so- bre cortesiis. Muitos fazem objegdes a americanos. Outros (aeredito que sejam principalmente editores © editoras) nao olharao para italianos. Alguns leitores nao gostam de assuntos tranqtiilos; outros ngo gostam dos inquietantes. Alguns gostam de uma completa ilusdo, outros da consciéncia de grandes privilégios. Eseolhem 03 romances de acordo com isso, @ se nfo se preocupam com seu assunto também nao se preocuparao, a fortiori, com seu tratamento”. Volta-se, assim, rapidamente, a questiio do gostar, apesar do sr. Zola, que racionaliza menos poderosamente do que representa, e que nao se reconciliaré com esse absolutismo do gosto, achando que ha certas coisas de que as pessoas devem gostar e de que elas podem ser levadas a gostar. Sinto-me bastante perdido se tiver de imaginar qualquer coisa (em qualquer sentido, quanto a ficeao) de que as pessoas deveriam gostar ou nao. A selecdo cer- tamente tomaré conta de si mesma, pois tem um motivo constante por tras. Esse motivo é simples- mente a experiéncia. Como as pessoas sentem a vida, sentirdo a arte que for mais intimamente rela- cionada a ela. Essa intimidade de relagao néo pode ser esquecida quando se fala no esforgo do romance. Muitas pessoas falam da ficedo como uma forma artificial, facciosa, um produto da engenhosidade, cuja funcao é alterar e arranjar as coisas que nos ceream, traduzi-las em moldes convencionais, tradicionais. Essa, no entanto, é uma visdo que néo nos leva longe, que condena a arte a uma eterna repeticio de uns poucos clichés familiares, encurta eu desenvolvimento e nos leva em diregao a um 38 AArte da Ficedio muro letal. Capturar o verdadeiro tom e truque, 0 ritmo estranho ¢ irregular da vida, essa é a tentativa cujo vigor mantém a Ficgiio em pé. A Proporgéo que vemos vida no que ela nos oferece sem rearranjos, sentimos que estamos tocando a verdade; & proporgéo que a vemos com rearranjos, sentimos que estamos diante de um substituto, uma acomodagio e convengio. Nao é incomum ouvir uma assergéo convieta quando se trata dessa questéio do rearranjo, do qual freqiientemente se fala como se fosse a ultima palavra em arte. O sr. Besant parece- me & beira de cair nesse grande erro com sua con- versa um tanto descuidada em torno da “selegio”. A arte 6 essencialmente selecio, mas 6 uma selecio cuja preocupagio central é ser tipica, ser inclusiva, Para muitos, arte significa janclas réseas, e selecao significa pegar um buqué para a sra, Grundy. Eles vio the dizer loquazmente que consideragées artis- ticas nada tém a ver com o desagradavel, como vio gritar lugares-comuns vazios sobre a provinci da arte e os limites da arte até que voed sinta certo marayilhamento, em compensagio, quanto a pro- vincia e aos limites da ignorancia. Parece-me que jamais alguém conseguiu fazer uma tentativa seria- mente artistica sem se tornar consciente de um incrivel aumento — uma espécie de revelagio — da liberdade. Percebe-se nesse caso — sob a luz de um raio solar — que a provincia da arte é toda vida, toda sentimento, toda observagao, toda visio. Como. o sr. Besant tao justamente sugere, 6 toda experién- cia, Essa 6 uma resposta suficiente para os que sus- tentam que ela nao deva tocar as partes mais tristes da vida, os que enfiam em seu peito divinamente in- consciente pequenas inscrigdes proibitorias na ponta de estacas, como se vé em jardins publicos — “B proibido pisar a grama; B proibido tocar nas flores; Nao é permitida a entrada de caes a per- A Arte da Fiegao 39 manéncia até a noite; Mantenha-se & direita”. O Jovem aspirante na linhagem da ficeéo que conti- nuamos a imaginar no faré nada sem experimen- tar, pois nesse caso a liberdade seria de pouco uso para ele; mas a primeira vantagem de sua experi- éncia 6 revelar a ele 0 absurdo das pequenas ins- crigées © bilhetes. Se ele tiver gosto, devo acrescen- tar, certamente terd engenhosidade, e minha recente referncia desrespeitosa a essa qualidade nao queria dizer que ela fosse indtil na ficgdo. Mas trata-se de um recurso apenas secund: meiro 6 a capacidade para receber diretas. sr. Besant tom algumas observagées sobre a questao da “historia” que nao tentarei criticar, embora me parecam ter uma singular ambigitidade, porque acho que néo as entendo. Nao entendo 0 que ele quer dizer quando fala como se uma parte do ro- mance fosse a histéria e a outra, por mfsticas ra- zes, néo fosse — a nao ser, de fato, que a distingao seja feita no sentido de que é dificil supor que al- guém tente comunicar algo. “A histéria", se repre- senta alguma coisa, representa 0 assunto, a idéia, a donnée do romance; ¢ certamente nao ha nenhuma “escola” — o sr. Besant fala em uma escola — que proclame que um romance deva ser todo tratamento e nao assunto. Seguramente deve haver algo do que tratar; todas as escolas esto intimamente conscien- tes disso. Essa nogao da histéria como sendo uma, idéia, o ponto de partida do romance, 6 a tinica coisa que entendo que se possa falar como algo diferente de seu todo organico; e, j4 que o trabalho 6 bem- sucedido & medida que a idéia o permeia e penetra, © informa e anima, cada palavra e cada pontuacéo contribuem dirctamente com a expressdo, e da mesma forma perdemos nosso sentido da histéria como uma espada que pode ser mais ou menos ti- 40 A Arie da Fiegao rada de sua bainha. A histéria e o romanee, a idéia ea forma, sio a agulha e o fio, e nunca ouvi falar de ifaiates que recomendem o uso do fio sem a agu- Tha, ou da agulha sem o fio. O sr. Besant nao 6 0 Uinico critico a ter falado como se houvesse coisas na vida que constituem histérias e outras que néo. Encontro a mesma conclusdo esquisita num interes- sante artigo na “Pall Mall Gazette”, dedicado, como séi, a palestra do sr. Bosant. “A-histéria 6 0, vesseneial!”, diz o gracioso escritor, como num tom de oposigéo a alguma outra idéia. Eu deveria pensar que ¢ isso mesmo, assim como 0 pintor, na hora em se prepara para “mergulhar” em sua pintura, olha para o infinito, em busca de algum assunto — com 0 que qualquer artista ainda indeciso sobre seu tema certamente concordaré. Ha assuntos que fa- Jam a nés e outros que nao, mas seria um homem mais esperto aquele que se submetesse a estipular uma regra — um index expurgatorius — pelo qual nga a histéria da nao-chistéria. (ao menos para mim) imaginar uma tal no seja arbitréria, O eseritor na “Pall M: delicioso (como suponho) romance Margot la Bala- frée a certos contos em que “ninfas bostonianas” parecem ter “rejeitado duques ingleses por razies psicolégicas”. Nao estou familiarizado com o ro- mance mencionado, e mal posso perdoar o eritico da “Pall Mall” por nao ter citado o nome do autor, mas 6 titulo parece se referir a uma dama que teria ga- nhado uma cicatriz numa aventura herdica. Nao posso me consolar por nao conhecer o episédio, mas me sinto terrivelmente perdido ao tentar explicar por que ele é uma histéria quando a rejeigio (ou aceitagéo) de um duque néo é, e por que uma razao, psicolégica ou de outro tipo, nao é um assunto quando uma cicatriz 0 6, Todos eles sao partes de _uma vida miltipla com a qual 0 romance liday e A Arte da Fiecao 41 certamente nenhum dogma que pretenda legitimar abordagem de um e nao a do outro ficaré em pé or mais de um instante. £ a pintura especffica que ica em pé ou cai, A medida que parece ser ver- ladeira ou nao, O sr. Besant, a meu yer, nao ilu- mina 0 assunto ao sugerir que uma histéria deva, sob a pena de no ser uma histéria, consistir em wenturas”. Por que aventuras e ndo um par de 6culos verde? Ele menciona uma categoria de coi- sas impossiveis, e entre elas pbe “ficgaio sem aven- tura”. Por que sem aventura, e no sem casamento, sem celibato, sem parto, sem edlera, sem hidropatia, sem jansenismo? Isso me parece trazer 0 romance de volta para 0 réle pequeno e infeliz de ser uma coisa artificial, engenhosa — tiré-lo de sua natureza livre e imensa que é sor uma ampla e notavel correspondéncia com a vida. E 0 que é aventura, por falar nisso, e por que sinal deve 0 aluno-ouvinte reconhecé-la? E uma aventura — uma enorme aventura — para mim escrever este pequeno artigo; para uma ninfa bostoniana rejeitar um duque inglés 6 uma aventura menos excitante apenas, devo dizer, do que para um duque inglés ser rejeitado por uma ninfa bostoniana. Vejo dramas dentro de dramas, e inumerdveis pontos de vista. Uma razao psicolégica é, para minha imaginagao, ‘um objeto adoravelmente pictérico; captar as tintas de sua complexidade — sinto que essa idéia pode inspirar alguém a esforgos ticidnicos. Ha poucas coi- sas mais estimulantes para mim, em suma, do que uma razao psicol6gica, e além disso, afirmo, 0 ro- mance me parece ser a mais magnifica forma de arte, Li recentemente, ao mesmo tempo, a deliciosa historia de A Ilha do Tesouro, do sr. Robert Louis, Stevenson, e, de maneira menos conseqilente, 0 iltimo relato do sr. Edmond de Goncourt, que se chama Chérie. Um desses trabalhos trata de a2 AArte da Fiegao assassinatos, mistérios, ilhas de reputagio as- sombrosa, fugas assustadoras, coincidéncias mira- culosas ¢ dobrées enterrados. O outro trata de uma Pequena garota francesa que vivia numa agradavel casa em Paris e morreu com a sensibilidade ferida Porque ninguém quis se casar com ela. Chamei A Itha do Tesouro de delicioso, porque me parece ter se sucedido maravilhosamente bem em sua inten- 0; e ouso nao conferir nenhum epiteto a Chérie, que me parece ter falhado deploravelmente em sua intengdo — ou seja, tragar o desenvolvimento da consciéncia moral de uma crianga. Mas cada um doles me surpreende como romance tanto quanto 0 outro, ¢ por ter a mesma quantidade de “histéria”. A consciéncia moral de uma crianga é tao parte da vida quanto as ilhas espanholas, e um tipo de geo- grafia me parece contor tantas daquelas “surpresas” de que o sr. Besant fala quanto 0 outro, Para mim GA que sempre se termina, como dito, na preferéncia individual), a imagem da experiéncia da erianga tem a vantagem de que Posso, em passos sucessivos (uma volipia imensa, préxima ao “prazer sensual” do qual a critica na “Pall Mall” fala), dizer Sim ou Ni, como quer que soja, diante do que o artista dispée diante de mim. Fui uma crianga na tealidade, mas s6 procurei por um tesouro escondido na suposigéio, e foi apenas um acidente que com o sr. de Goncourt eu tenha precisado dizer Nao na maior parte do tempo, Com George Eliot, quando ela pintou aquele campo com uma inteligéncia bem distinta, eu sempre disse Sim, A parte mais interessante da palestra do sr. Besant ¢ infelizmente a passagem mais curta — sua alusdo bastante breve ao “propésito moral consci- ente” do romance. Aqui novamente no esta claro se ele est4 registrando um fato ou estabelecendo um principio; 6 uma grande pena que, no wiltimo caso, A Arte da Fiegao 43 ele nao tenha desenvolvido a idéia, Esse ramo do assunto 6 de imensa importéncia, ¢ as poucas pala~ yras do sr. Besant apontam para considerag5es do ior alcance, que devem ser levadas a sério. Tera tratado com superficialidade a arte da ficeao quem nio estiver preparado para avangar wm pouco due na diregdo a quo o levam essas consideragées. jor esse motivo que no inicio destas observagées tive 0 euidado de avisar ao leitor que minhas refle- xdes sobre um assunto tao vasto nio tinham pre- tonstio de esgoté-lo. Como o sr. Besant, deixei a questo da moralidade do romance para o final, eno final vi que meu espago se acabava. I uma questo cereada de dificuldades, como pode testemunhar quem nos encontra, sob a forma de uma pergunta dofinitiva, dentro das trincheiras. Vagueza, em tal discussio, ¢ fatal, e qual é o sentido da sua morali- dade e do seu propésito moral consciente? Vocé nao definira seus termos e explicaré como (um romance sendo uma pintura) uma pintura pode ser moral ow Go: questies artisticas so questies (no sentido mais amplo) de execugao; questées morais s40 outro assunto, e voce ndo nos deixaré ver como pode achar tao facil misturd-las? Essas coisas sao tao claras para o sr, Besant que ele deduziu delas uma lei que vé encarnada na Ficgao Inglesa, e que é “uma coisa realmente admirdvel e um grande mo- tivo de congratulacdo”. & realmente um grande motivo de congratulag&io quando problemas tao es- pinhosos se tornam tio macios quanto seda. Devo acrescentar que, enquanto o sr. Besant acha que a Ficedo Inglesa se dirigiu preponderantemente para essas questées delicadas, parecer4 a muita gente ter feito apenas uma va descoberta. Essas pessoas fica- “4 A Arte da Fiegto rio positivamente surpresas, ao contrério, com a ida moral do romancista inglés médio; com a aversdo dele (ou dela) a onfrentar as dificuldades ‘que por todos os Iados o lidar com a realidade sus- cita. Ele 6 apto a ser extremamente timido (ao passo que a imagem que o sr. Besant faz 6 uma de cora- gem) ¢ o signo de seu trabalho, na maior parte, 6 um siléncio prudente sobre certos assuntos. No ro- mance inglés (no que também incluo o americano, claro), mais do que em qualquer outro, ha uma di- ferenga tradicional entre o que as pessoas sabem e 0 que elas concordam em admitir que sabem, entre o que véem ¢ o de que falam, entre o que sentem ser parte da vida e 0 que permitem entrar na litera- tura. Hé uma grande diferenga, em resumo, entre 0 que elas abordam em conversas ¢ o que elas conver- sam por escrito, A esséncia da energia moral 6 pes- quisar 0 campo todo, e devo reverter a observagiio do sr. Besant e dizer néo que a Ficgio Inglesa tem um propésito, mas que tem um acanhamento, Em que medida um propésito numa obra de arte 6 uma fonte de corrupgao nao tentarei saber; 0 que me Parece menos perigoso 6 0 propésito de fazer uma obra perfeita. Quanto ao nosso romance, devo dizer enfim que o que nesse sentido encontramos na In- glaterra hoje me surpreonde por se dirigir em larga escala aos “jovens”, e que isso, por si, faz presumir que ela seja um tanto timida, Isso é certo, mas a auséneia de discusso no é um sintoma de paixio moral. O propésito do romance inglés — “uma coisa realmente admirdvel e um grande motivo de con- gratulagao” — me surpreende, portanto, de modo bastante negativo, Ha um ponto em que o sentido moral e o sen- tido artistico se aproximam muito; ¢ isso sob a luz bastante dbvia de que a qualidade mais profunda de uma obra de arte sempre seré a qualidade da mento A Arte da Ficgéo 45 » criador. A medida que essa inteligéncia é .ada, 0 romance, a pintura e a escultura parti- 1m da substancia de heleza e verdade. Ser cons- tituido de tais elementos é, a meu ver, ter propésito ante. Nenhum bom romance jamais viré de ma mente superficial; esse me parece um axioma para o artista da ficgao, cobriré todo o terreno oral necessario: se 0 jovem aspirante o assumir 1m paixéo ele lhe iluminaré muitos dos mistérios do “propésito”. Ha muitas outras coisas titeis que podem ser ditas para ele, mas cheguei ao fim do ‘meu artigo e 86 posso tocar nelas de passagem. O critico na “Pall Mall Gazette”, que ja citei, chama atengdo para o perigo, ao falar na arte da ficgao, de generalizar. O perigo que ele tem em mente é antes, creio, 0 de particularizar, pois ha algumas ob- servagies abrangentes que, além das presentes & sugestiva palestra do sr. Besant, sem o temor de desvirtuar suas idéias podem ser enderegadas ao estudante engenhoso. Devo lembré-lo primeiro da magnificéncia da forma que se abre diante dele, que oferece a vista tao poucas restrigdes e tfo nume- rosas oportunidades. As outras artes, em compara~ flo, parecem confinadas e embaragosas; as variadas condigdes sob as quais sao exercidas so rigidas definidas. Mas a tinica condigéo que posso pensar associada & composigdo do romance é, como jt disse, a do que seja sincera. Essa liberdade 6 um privilégio cespléndido, e a primeira ligao do romancista é estar a altura dela. “Aproveite-a como ela merece”, eu lhe diria; “tome posse dela, explore-a até a tltima con- seqiiéncia, publique-a, regozije-se nela. Toda vida Ihe pertence, ¢ no dé ouvidos nem para os que 0 querem feché-lo num canto dela Ihe dizem que a arte reside apenas aqui ou ali, nem para os que alegam que esse mensageiro dos céus faz seu cami- nho por fora da vida, respirando um ar super-rare- 46 A Arte da Ficedo feito, e virando 0 rosto para a verdade das coisas.” ‘Nao hé impressao da vida, nenhuma maneira de vé- @ que 0 projeto do romancista néio possa dar lugar; vocé tem apenas de lembrar que talentos td dessemelhantes como os de Alexandre Dumas e Jane Austen, Charles Dickens e Gustave Flaubert atuaram nesse campo com igual gléria. ‘Nao pense tanto em otimismo ou pessimismo; expe- rimente e capture 0 colorido proprio da vida. Na Franga hoje vemos um esforco prodigioso (0 de Emile Zola, a cujo trabalho sélido e sério nenhum explorador da capacidade do romance pode aludir sem respeito), vemos um extraordindrio esforgo vieiado pelo espirito do pessimismo em uma base estreita. O sr. Zola é magnéfico, mas ele espanta um leitor inglés com sua ignorancia; ele tem um ar de quem trabalha no escuro; se tivesse tanta luz quanto energia, seus resultados seriam da mais alta valia. Quanto as aberragdes de um otimismo raso, 0 ‘campo (da figdo inglesa especialmente) esta coberto de frageis particulas assim como de vidros quebra- dos. Se voce quer se perder om conclustes, deixe-as ter o sabor do amplo conhecimento. Lembre-se que seu primeiro dever é ser to completo quanto possi- vel — fazer a obra perfeita. Seja generoso e delicado € persiga 0 prémio.” Critica Se se pode dizer que a critica literdria floresce ontre nés agora, certamente ela floresce em grande ‘ala, pois flui pela imprensa como um rio que rompeu 08 diques. Sua quantidade é prodigiosa, ¢ é uma mereadoria que, por maior que seja a demanda cstimada, 0 suprimento por certo jamais seré insuficiente. O que mais espanta o observador, sobretudo, em tal afluencia, é a inesperada propor- gio que 0 discurso leva para os objetos sobre os ais discorre — a paucidade de exemplos, de ilus- ‘agdes e produgées, e 0 diltivio de doutrina sus- nso no vacuo; a profusdo da conversa e a contra gio do experimento, do que se poderia chamar de conduta literdria. Isso, de fato, deixa de ser uma ‘anomalia assim que olhamos para as condigies do jornalismo contemporaneo. Entéo vemos que essas, condigées engendraram a prética da “resenha” — uma pratica que no geral nada tem a ver com a arte da critica, A imprensa 6 uma vasta boca aberta que tem de ser periodicamente alimentada — um vaso de enorme eapacidade que tem de ser preenchido. E como um trem regular que sai numa hora mareada, mas que s6 pode sair se todos os lugares estiverem ‘ocupados. Os lugares $80 muitos, 0 trem 6 conside- ravelmente longo, ¢ dai a fabricagio de bonecos para as estagdes em que nao hé passageiros sufici- entes. Um manequim € colocado no assento vazio, onde passa por uma figura real até o final da jor- nada. Parece-se bastante com um passageiro, ¢ vocs 6 porcebe que ele no 0 é quando nota que nfo fala

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