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DIO PICHON-RIVIERE Enrique Pichon-Riviére O PROCESSO GRUPAL Tradugiio MARCO AURELIO FERNANDES VELLOSO e MARIA STELA GONCALVES (3 artigos firais) Revisiio da tradugio MARIA STELA GONCALVES | Martins Fontes j SGo Paulo 2005 ecenemssl retirement Indice Prélogo 1 Uma nova problemdtica para a psiquiatria 9 A nogdo de tarefa em psiquiatria 33 Prdxise psiquiatria 39 Freud: um ponto de partida da psicologia social 45 Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal 49 Tratamento de grupos familiares: psicoterapia coletiva 63 Grupos familiares. Um enfoque operativo 73 Aplicagoes da psicoterapia de grupo 85 Discurso pronunciado como presidente do Segundo Congresso Argentino de Psiquiatria 95 A psiquiatria no contexto dos estudos médicos 101 Apresentagao a cdtedra de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de La Plata 111 Prologo ao livro de F. K. Taylor, Uma andlise da psicoterapia grupal 115 Técnica dos grupos operativos 121 Grupos operativos e doenga tinica 139 Grupo operativo e modelo dramdtico 161 Estrutura de uma escola destinada a psicélogos sociais 169 Discépolo: um cronista de seu tempo 183 Implacdvel interjogo do homem edo mundo 193 masenointansn aiesisrnentetcee A Ana Pampliega de Quiroga, cujo afeto e colaboracéo sao a necessdria companhia na tarefa. Uma teoria da doenga 197 Uma teoria da abordagem da prevengao no ambito do grupo familiar 213 Transferéncia e contratransferéncia na situagao grupal 221 Questiondrio para Gentemergente 229 Entrevista em Primera Plana 233 Contribuigées a diddtica da psicologia social 237 Conceito de ECRO 249 O conceito de porta-voz 257 Historia da técnica dos grupos operativos 271 Prélogo Connaissance de la mort Je te salue mon cher petit et vieux - cimetiére de ma ville oit jappris @ jouer avec les mori Ceest ici ott j'ai voulu me révéler le secret de notre courte existence @ travers les ouvertures d'anciens cercueils solitaires. E. PICHON-RIVIERE! O sentido deste prdlogo é esclarecer alguns aspectos de meu esquema referencial, questionando sua origem e sua historia, em busca da coeréncia interior de uma tarefa que mostra nestes escritos, com tematica e enfoques hete- _ togéneos, seus diferentes momentos de elaboracao tedrica. Como crénica do itinerario de um pensamento, ele sera necessariamente autobiografico, na medida em que o esquema de referéncia de um autor nao s6 se estrutura como uma organiza¢ao conceitual, mas se sustenta em ali- cerce motivacional, de experiéncias vividas. E através delas. que o investigador construiré seu mundo interno, habitado por pessoas, lugares e vinculos que, articulando-se com um tempo proprio, num processo criador, iréo configurar a es- tratégia da descoberta. Eu poderia dizer que minha vocagao pelas Ciéncias do Homem surge da tentativa de resolver a obscuridade do 1, Poema escrito em 1924, [Conhecimento da morte / Eu te satido / mew querido, pequeno e velho / cemitério de minha cidade / onde aprendi a brincar / com os mortos. / Foi agui que eu quis que me fosse revelado o segredo de / nossa curta existéncia / através da abertura /de antigos caixdes solitdrios. (N. doT.)] Prélogo 3 diato. Os mistérios nao esclarecidos no plano do imediato (a que Freud chama “romance familiar”) e a explicagéo magica das relacdes entre o homem e a natureza determi- naram em mim a curiosidade, ponto de partida de minha vocagao para as Ciéncias do Homem. O interesse pela observagao dos personagens prototi- picos, que nas pequenas populages adquirem uma signifi- cacao particular, estava orientado, ainda nao consciente- mente, para a descoberta dos modelos simbélicos, através dos quais se torna manifesto o interjorgo de papéis que con- figura a vida de um grupo social em seu ambito ecoldgico. Algo do magico e do mitico desapareceria, entao, dian- te do desvelamento dessa ordem subjacente, porém explo- ravel: a da inter-relagao dialética entre o homem e seu meio. Meu contato com o pensamento psicanalitico foi ante- rior ao ingresso na Faculdade de Medicina e surgiu como a descoberta de uma chave que permitiria decodificar aquilo que era incompreensivel na linguagem e nos niveis de pen- samento habituais. Ao entrar na Universidade, orientado por uma vocagao destinada a qualificar-me para a luta contra a morte, 0 con- fronto desde cedo com o cadaver, que é paradoxalmente o primeiro contato do aprendiz de médico com seu objeto de estudo, significou uma crise. Ali reforgou-se minha decisdo de trabalhar no campo da loucura, que, mesmo sendo uma forma de morte, pode ser reversivel. Os primeiros contatos com a psiquiatria clinica abriram-me o caminho para um en- foque dinamico, o que me levaria progressivamente, a par- tir da observagao dos aspectos fenoménicos da conduta desviada, 4 descoberta de elementos genéticos, evolutivos e estruturais que enriqueceram minha compreensao do com- portamento como uma totalidade em evolucao dialética A observagao, no ambito do material trazido pelos pa- cientes, de duas categorias de fendmenos nitidamente dife- rencidveis para o operador (0 que se manifesta explicita- process grupal mente € 0 que subjaz como elemento latente), permitiu in- corporar, de forma definitiva, em meu esquema de referén- cia, a problematica de uma nova psicologia que desde o ini- cio se dirigia ao pensamento psicanalitico. O contato com os pacientes, a tentativa de estabelecer com eles um vinculo terapéutico, confirmou 0 que de algu- ma maneira fora intuido: que por trds de toda conduta “des- viada” subjaz uma situac4o de conflito, sendo a enfermida- de a expressao de uma tentativa falida de adaptagao ao meio. Em sintese, a doenga era um processo compreensivel. Desde os primeiros anos de estudante trabalhei em cli- nicas particulares, adquirindo experiéncia no campo da tare- fa psiquidtrica, na relacdo e na convivéncia com internos. Esse contato permanente com todo tipo de paciente e seus familiares permitiu-me conhecer em seu contexto o proces- so da enfermidade, particularmente os aspectos referentes aos mecanismos de segregaco. Tomando como ponto de partida os dados sobre estru- tura e caracteristicas da conduta desviada que me eram proporcionados pelo tratamento dos enfermos, e orientado pelo estudo das obras de Freud, comecei minha formacao psicanalitica. Isso culminou, anos mais tarde, em minha and- lise didatica, realizada com 0 dr. Garma. Através da leitura do trabalho de Freud sobre “a Gra- diva” de Jensen, tive a vivéncia de ter encontrado 0 caminho que me permitiria obter uma sintese com base no denomi- nador comum dos sonhos e do pensamento magico, entre aarte e a psiquiatria. Durante o tratamento de pacientes psicéticos realizado segundo a técnica analitica e pela indagagao quanto a seus Processos transferenciais, torou-se evidente para mim a existéncia de objetos internos, multiplices “imago”, que se articulam num mundo construido segundo um processo ptogressivo de internalizagao. Esse mundo interno confi- Prélogo sau see are gura-se como um cenério no qual é possivel reconhecer o fato dinamico da internalizacdo de objetos e relagdes. Nes- se cenério interior, tenta-se reconstruir a realidade exterior, mas 0s objetos e os vinculos aparecem com modalidades di- ferentes pela passagem fantasiada a partir do “fora” para o Ambito intra-subjetivo, o “dentro”. E um processo compa- ravel ao da representaco teatral, no qual nao se trata de uma repeticéo sempre idéntica do texto, mas em que cada ator recria, com uma modalidade particular, a obra e 0 per- sonagem. O tempo e 0 espago inserem-se como dimensdes na fantasia inconsciente, cr6nica interna da realidade. A indagagao analitica desse mundo interno levou-me a ampliar 0 conceito de “relagao de objeto”, formulando a no- go de@incuilo, que defino como uma estrutura complexa que indi um sujeito, um objeto e sua mttua inter-relagdo com processos de comunicacao e aprendizagem. Essas relacées intersubjetivas sao dirigidas e estabele- cem-se com base em necessidades, fundamento motiva- cional do vinculo. Tais necessidades tém um matiz e inten- sidade particulares, nos quais ja intervém a fantasia incons- ciente. Todo vinculo, assim entendido, implica a existéncia de um emissor, um receptor, uma codificacao e decodifica- cao da mensagem. Através desse processo comunicacional, torna-se manifesto o sentido da inclusdo do objeto no vin- culo, o compromisso do objeto numa relacao nao linear, mas dialética, com o sujeito. Por isso insistimos que em toda es- trutura vincular (e com o termo estrutura ja indicamos a in- terdependéncia dos elementos) 0 sujeito e 0 objeto intera- gem, realimentando-se mutuamente. Nessa interacaéo ocorre a internalizago dessa estrutura relacional, que ad- quire uma dimensao intra-subjetiva. A passagem ou inter- nalizacao tera caracteristicas determinadas pelo sentimento de gratificagao ou frustragdo que acompanha a configuragao inicial do vinculo, que ser entao um vinculo “bom” ou um vinculo “mau”. 0 processo grupal As relacdes intra-subjetivas, ou estruturas vinculares internalizadas, articuladas num mundo interno, condicio- narao as caracteristicas de aprendizagem da realidade. Na medida em que o confronto entre o ambito do intersubjeti- vo e 0 ambito do intra-subjetivo seja dialético ou dilematico, essa aprendizagem sera facilitada ou dificultada. Ou seja, dependera de que o processo de interacao funcione como um circuito aberto, com uma trajetéria em espiral, ou como um circuito fechado, viciado pela estereotipia. O mundo interno define-se como um sistema, no qual interagem relagdes e objetos, numa mttua realimentacao. Em sintese, a inter-relacdo intra-sistémica é permanente, enquanto se mantém a interagao com o meio. Formulare- mos os critérios de satide e doenga a partir das qualidades da interacao externa e interna. Esta concepgaéo do mundo interno e a substituigao da nogao de instinto pela de estrutura vincular (entendendo- se o vinculo como uma proto-aprendizagem, como 0 vefcu- lo das primeiras experiéncias sociais, constitutivas do sujeito como tal, com uma negagao do narcisismo primdrio) condu- zem necessariamente a definic&o da psicologia, num senti- do estrito, como psicologia social. Mesmo que essas ponderagdes tenham surgido de uma praxis e estejam sugeridas, em parte, em alguns traba- lhos de Freud (Psicologia das massas e andlise do ego), sua for- mulacao implicava romper com o pensamento psicanalitico ortodoxo, ao qual aderi durante os primeiros anos de mi- nha tarefa, e para cuja difusao contribuf com meu esforco constante. Acredito que essa ruptura tenha significado um verdadeiro “obstaculo epistemoldgico”, uma crise profun- da, em cuja superacao levei muitos anos, e que, talvez, s6 hoje, com a publicagao destes escritos, essa superago es- teja sendo realmente conseguida. Esta hipdtese poderia ser confirmada pelo fato de que, a partir da tomada de consciéncia das modificacées significa- Prology saussutgueaueuutaaueu nee tivas de meu quadro referencial, me voltei mais intensamen- te para o ensino, interrompendo o ritmo anterior de minha produco escrita. $6 em 1962, no trabalho sobre “Emprego de Tofranil no tratamento do grupo familiar’, em 1965, com “Grupo operativo e teoria da enfermidade tinica”, eem 1967, com “Introdugado a uma nova problematica para a psi- quiatria”, obtive uma formulacao mais totalizadora de meu esquema conceitual, ainda que alguns aspectos fundamen- tais desses trabalhos estejam relacionados entre si, e muito especialmente nos mais recentes, ou seja, “Propésitos e me- todologia para uma escola de psicdlogos sociais” e “Grupo operativo e modelo dramatico”, apresentados respectiva- mente em Londres e Buenos Aires, no Congresso Interna- cional de Psiquiatria Social e no Congresso Internacional de Psicodrama, no ano de 1969. A trajetéria de minha tarefa - que pode ser descrita como a investigagao da estrutura e do sentido do comporta- mento, na qual surgiu a descoberta de sua indole social - configura-se como uma praxis que se expressa em um es- quema conceitual, referencial e operativo. A sintese atual dessa investigacdéo pode evidenciar-se pela postulagaéo de uma epistemologia convergente segun- do a qual as ciéncias do homem dizem respeito a um obje- to tinico: “o homem-em-situagdo” suscetivel de uma abor- dagem pluridimensional. Trata-se de uma interciéncia, com uma metodologia interdisciplinar que, funcionando como unidade operacional, permite um enriquecimento da com- preensdo do objeto de conhecimento e uma mtitua reali- mentagao de suas técnicas de abordagem. E.P-R. Uma nova problematica para a psiquiatria’ A histéria da psiquiatria aparece demarcada, em dife- rentes épocas, pelas especulagées de alguns investigadores quanto a possibilidade de haver um parentesco entre todas as doencas mentais, a partir de um nticleo basico e universal. No entanto, essas tentativas, viciadas por uma concepco or- ganicista da equacao etiolégica (origem da doenga), excluem da patologia mental a dimensao dialética em que, através de saltos sucessivos, a quantidade se transforma em qualidade. A concepgao mecanicista e organicista leva, por exemplo, no caso da psicose maniaco-depressiva, a estabelecer uma di- visdo entre formas enddgenas e exdgenas, sem indicar a cor- relac4o existente entre ambas. Freud, por sua vez, sustenta que a relacao entre o endégeno e o exégeno deve ser vista como relagao entre o disposicional e os elementos vincula- dos ao destino do préprio sujeito. Ou seja, ha uma comple- mentaridade entre disposigio e destino. Acrescentamos a essa idéia que, quando se insiste no fator endégeno ou nao com- preensivel psicologicamente, os psiquiatras ditos classicos 1. Acta psiquidtrica y psicoldgica de América Latina, 1967, 13. (Numero em homenagem ao autor.) 1 Jeeseesani nae abinSEnEsISSEEERISESESEIIE _____ Oprocesso grupal deixam transparecer sua incapacidade de detectar 0 mon- tante de privagdo, que ao exercer impacto sobre um limiar, varidvel em cada sujeito, completa o aspecto pluridimensio- nal da estrutura da neurose ou da psicose. Ao considerar en- dégena uma neurose ou psicose, nega-se de forma implicita a possibilidade de modificd-la. O psiquiatra assume o pa- pel de condicionante da evolugao do paciente e entra no jogo do grupo familiar que tenta segregar o doente, por ser este o porta-voz da ansiedade grupal. Em sintese: 0 psiquia- tra transforma-se no lider da resisténcia 4 mudanga em ni- vel comunitario e trata o paciente como um sujeito “equi- vocado”, do ponto de vista racional. Nos tiltimos anos, ao uso instrumental da légica formal acrescentou-se 0 da légica dialética e 0 da nogao de conflito, em que os termos nao se excluem, mas estabelecem uma continuidade genética com base em sinteses sucessivas. A operacao corretora ou terapéutica é levada a termo seguin- do 0 trajeto de um vinculo nao linear, que se desenvolve na forma de uma espiral continua, através da qual se resolvem as contradi¢oes entre as diferentes partes do mesmo sujeito. Inclui-se assim uma problemética dialética no processo cor- retivo ou no vinculo com o terapeuta, que funciona como enquadramento geral, permitindo investigar contradicdes que surgem no interior da operacao e do contexto em que ela ocorre. A fragmentacao do objeto de conhecimento em domi- nios particulares, produto da fragmentac&o do vinculo, é seguida de um segundo momento integrador (epistemolo- gia convergente), cumprindo-se assim dois processos de sinais contrarios, que adquirem complementaridade atra- vés da experiéncia emocional corretora. Pode-se também afirmar que se trata de dois momentos de um mesmo pro- cesso, tanto na doenga como na corregao. Se esse acontecer € posto em movimento pelo terapeuta, seré impedida, se- gundo a eficdcia de sua técnica, a configuracdo de situagdes Uma nova problemtica para apsiquiatria dilematicas, génese de todo estancamento, e a formacado de esteredtipos de uma conduta que assume caracteristicas de desvio por falta de ajuste dos momentos de divergéncia e convergéncia. A dificuldade de integragaéo desses dois momentos é dada pela inevitavel presenga, no campo da aprendizagem, do obstaculo epistemoldgico. Esse obstaculo, que na teoria da comunicacao é representado pelo ruido e na situagao trian- gular pelo terceiro, transforma a espiral dialética da apren- dizagem da realidade num circulo fechado (esteredtipo), que atua como estrutura patogénica. O perturbador de todo o contexto de conhecimento é 0 terceiro, cuja presenga em nivel do vinculo e do didlogo condiciona os mais graves disturbios da comunicagdo e da aprendizagem da realida- de. Dai deriva minha definicado de vinculo, substituindo a denominagao freudiana de relagao de objeto. Todo vinculo, como mecanismo de interagao, deve ser definido como uma Gestalt, que é ao mesmo tempo bicorporal e tripessoal. (Gestalt como Gestaltung, nela introduzindo-se a dimensao temporal.) Dessa Gestalt vai surgir o instrumento adequado para apreender a realidade dos objetos. O vinculo configura uma estrutura complexa, que inclui um sistema transmissor-re- ceptor, uma mensagem, um canal, sinais, simbolos e ruido. Segundo uma anilise intra-sistémica e extra-sistémica, para obter eficacia instrumental é necessaria a similitude no es- quema conceitual, referencial e operativo do transmissor e do receptor; do contrario, surge o mal-entendido. Toda a mi- nha teoria da satide e da doenga mental centra-se no estudo do vinculo como estrutura. A adaptagao ativa a realidade, critério basico de satide, sera avaliada segundo a operativi- dade das técnicas do ego (mecanismos de defesa). Seu uso pluridimensional, horizontal e vertical, adaptativo, operacio- nal e gnosiolégico, em cada aqui e agora, ou seja, de uma for- ma situacional, através de um planejamento instrumental, 2 O proceso grupal deve ser tomado como sinal de satide mental, que se ex- pressa através de um limitado desvio ou bias* do modelo na- tural. Isso é possivel através de uma primeira fase, que po- demos chamar teérica, realizada através de técnicas de per- cepcdo, penetracdo, depositacao e ressonancia (empatia), em que 0 objeto é reconhecido e mantido a uma distancia 6tima do sujeito (alteridade). E por isso que tanto a quali- dade como a dinadmica do conhecimento condicionam uma atividade na qual se reconhece um estilo proprio de abor- dagem e de criagéo do objeto. Abordagem que tende a apreendé-lo e modificd-lo, constituindo-se assim 0 juizo de realidade, critério de satide e doenga mental, através de uma permanente referéncia, verificagao e avaliacao no mun- do externo. A adaptagao ativa a realidade e a aprendizagem esto indissoluvelmente ligadas. O sujeito sadio, 4 medida que apreende o objeto e o transforma, também modifica a si mesmo, entrando num interjogo dialético, no qual a sin- tese que resolve uma situacao dilematica se transforma no ponto inicial ou tese de outra antinomia, que devera ser re- solvida nesse continuo processo em espiral. A satide mental consiste nesse processo, em que se realiza uma aprendiza- gem da realidade através do confronto, manejo e solugao in- tegradora dos conflitos. Enquanto se cumpre esse itinerdrio, atrede de comunicagées é constantemente reajustada, e sé assim é possivel elaborar um pensamento capaz de um did- logo com o outro e de um confronto com a mudanca. Essa descricao refere-se a superestrutura do processo. O campo da infra-estrutura, depésito de motivos, necessi- dades e aspiragées, constitui o inconsciente com suas fan- tasias (motivagdo), que sdo 0 produto das relagdes dos mem- bros do grupo interno entre si (grupo interno como grupo mediato e imediato internalizado). Esse fendmeno pode ser * Em inglés no original. (N. doT.) Uma nova problemdtica para a psiquiatria estudado no contetido da atividade alucinatéria, em que o paciente ouve a voz do lider da conspiragaéo inconsciente em didlogo com o self, a quem controla e observa, ja que é uma parte projetada dele mesmo. Outro fato curioso do de- senvolvimento da psiquiatria é que até hoje se insistia ex- clusivamente na relagdo com o objeto perseguidor projeta- do, abrindo-se um campo tao vasto quanto 0 anterior ao se descobrir uma patologia do vinculo bom, e a dimensao grupal do contetido inconsciente, perceptivel através da nogao de grupo interno, em permanente inter-relagdo com o externo. Encontramos na fantasia motivacional, como fizemos na alu- cinacdo, uma escala de motivos, necessidades e aspiragdes que subjazem no processo da aprendizagem, da comunica- do e das operagdes que tendem a obtencao de gratificagao em relagdo com determinados objetos. A agio e a decisao alicergam-se nessa constelagéo de motivos e o ganho esta mais relacionado com a apreensao do objeto do que com a descarga de tensdes, como foi descrito por Freud. A apren- dizagem e a comunicagcao, aspectos instrumentais da con- quista do objeto, possuem uma subestrutura motivacional A conduta motivacional, a mais ligada ao destino do sujeito, consta também dessa dupla estrutura, na qual se pode observar que o aspecto direcional primario esta liga- do as etapas iniciais do desenvolvimento. O processo uni- versal que promove a motivagao é o da recriagdo do objeto, que adquire em cada sujeito uma determinagao individual, surgida da conjugacao das necessidades bioldgicas e do apa- rato instrumental do ego. O aspecto direcional secundario, escolha de tarefa, par, etc., passa pelo filtro grupal, que de- cide a escolha em definitivo. A descoberta da motivagao constitui a maior contribuigdo de Freud, que relacionou os fendémenos do “aqui e agora” com a histéria pessoal do su- jeito. Isso se chama “sentido de sintoma”. A dupla dimensao do comportamento, verticalidade e horizontalidade, torna-se compreensivel por uma psicolo- 14 Eee _____ Oprocesso grupat gia dinamica, historica e estrutural, distanciada da psiquia- tria tradicional, que se movimenta somente no campo do fenoménico e descritivo. A dupla dimensao condiciona as- pectos essenciais do processo corretivo. A corregao é obtida através da explicacdo do implicito. Essa concepgao coincide com 0 esquema que alguns filésofos, economistas e socié- logos relacionaram ao econémico-social, falando de uma superestrutura e de uma infra-estrutura, situando a necessi- dade como nticleo dinamico de ado. No ambito do proces- so terapéutico, a resolugao da fissura entre as duas dimen- sdes 6 conseguida através de um instrumento de producao, expresso em termos de conhecimento que permite a passa- gem da alienagao ou da adaptacao passiva num bias progres- sivo a adaptacao ativa a realidade. Em nossa cultura, 0 ho- mem sofre a fragmentagao e dispersdo do objeto de sua ta- refa, criando-se entao, para ele, uma situacdo de privacdo e anomia que lhe torna impossivel manter um vinculo com esse objeto, com o qual conserva uma relacao fragmentada, transitdria e alienada. Ao fator inseguranga diante de sua tarefa vem acres- centar-se a incerteza diante das mudangas politicas, sendo ambas sentimentos que repercutem no contexto familiar, no qual a privacgao tende a se globalizar. O sujeito vé-se im- potente no manejo de seu papel, e isso cria um baixo limite de tolerancia as frustragdes, em relagao com seu nivel de aspiragées. A vivéncia de fracasso inicia 0 processo de en- fermidade, configurando uma estrutura depressiva. A alie- nagao do vinculo com sua tarefa desloca-se para vinculos com objetos internos. O conflito internaliza-se em sua to- talidade, passando do mundo externo ao mundo interno com seu modelo primdrio da situagao triangular. Essa de- prtessao, que aparece com os caracteres estruturais de uma depressio neurdtica ou neurose de fracasso, submerge o su- jeito num processo regressivo para posi¢ées infantis. O gru- po familiar, em estado de anomia diante da doenga de um 15 Uma nova problemdtica para a psiquiatria de seus membros, incrementa a depressao do sujeito. Esta- mos no ponto de partida que, num processo de regressao, vai articular-se com uma estrutura depressiva anterior, re- forgando-a. E o momento, nesta exposicao, de considerar a vigéncia de outras depresses e analisd-las na diregao do desenvolvimento, no sentido inverso aquele seguido no processo terapéutico que parte do aqui e agora. Tomarei como esquema de referéncia aspectos da teo- ria de M. Klein, Freud e Fairbairn para tornar compreensi- vel minha teoria da enfermidade tinica. Levarei em consi- deracao as duas primeiras posigdes do desenvolvimento: a instrumental esquizoparandide e a depressiva (patogenéti- ca existencial), qual acrescento outra: a patorritmica (tem- poral), que inclui os diferentes tempos em que se manifes- tam os sintomas gerados na posigao patogenética ou de- pressiva, estruturada com base na posigo instrumental es- quizoparandide. Através de todo esse trajeto permanecerei conseqiiente com minha teoria do vinculo. Porém, antes de prosseguir na descricdo das posigdes, vamos estudar os in- gredientes da causagao de uma neurose ou psicose, ou, usan- do a formulacao de Freud: a equacao etiolégica. Entendo que os principios que regem a configuracao de uma estru- tura patoldgica sdo: 1) policausalidade, 2) pluralidade feno- ménica, 3) continuidade genética e funcional, 4) mobilida- de das estruturas, 5) papel, vinculo e porta-voz, 6) situagao triangular. Como primeiro principio devemos destacar o da poli- causalidade ou equacao ctiolégica, processo dindmico e con- figuracional, expresso em termos do montante de causagao. Em detalhe, os parémetros sao: fator constitucional, dividido em dois anteriores: 0 genético propriamente dito e o preco- cemente adquirido na vida intra-uterina. A influéncia sofri- da pelo feto através de sua relaco bioldgica com a mae ja inclui um fator social, visto que a seguranca ou inseguranga da mae estd relacionada com o tipo de vinculo que esta man- DOr et process grupal tém com seu parceiro ¢ a situacdo de seu grupo familiar. Levando em consideragao a situacao triangular, vemos que ela opera desde 0 inicio. Ao fator constitucional se acrescenta, no desenvolvimento, o impacto no grupo familiar. A inte- ragao desse fato com o fator anterior tem como resultado aquilo que se chama disposicao ou fator disposicional (se- gundo Freud, fixacao da libido numa etapa de seu percur- so), lugar ao qual se volta no processo regressivo com a fi- nalidade de se instrumentar, como aconteceu no momento disposicional. O regresso é promovido pelo fator atual, no qual o montante disposicional entra em complementarida- de com o conflito atual, descrito por mim como depressao desencadeante, iniciando-se ai uma regressdo que marca 0 comeco da doenga. Pluralidade fenoménica. Este principio baseia-se na con- sideracao de trés dimensGes fenoménicas da mente com suas respectivas projegdes, denominadas em termos de reas: rea um, ou mente; area dois, ou corpo; drea trés, ou mun- do exterior. Essas trés areas, fenomenicamente, tém impor- tancia enquanto o diagnéstico é feito em funcao do predo- minio de uma delas, ainda que uma anilise estratigrafica demonstre a existéncia ou coexisténcia das trés areas com- prometidas nesse processo em termos de comportamento, porém em diferentes niveis. E isso que constitui o compor- tamento na forma de uma Gestalt ou Gestaltung em perma- nente interagao das trés areas. No entanto, levamos em con- ta que 0 processo ordenador, ou seja, o planejamento, em termos de estratégia, tatica, técnica e logistica, funciona a partir do self situado na drea um, ou seja, que nenhum com- portamento lhe é estranho. Qualquer outra investigacéo que negasse esta totalidade totalizante cairia numa flagran- te dicotomia. As areas sao utilizadas na posicao instrumental esquizo- parandide que se segue a depresso regressiva, para situar Uma nova problemética para a psiquiatria os diferentes objetos e vinculos de sinais opostos num cli- ma de divaléncia, com a finalidade, como ja dissemos, de preservar o bom e controlar o mau, impedindo assim a fu- s&o de ambas as valéncias, o que significaria a configuracdo da posigdo depressiva e a aparicao do caos, do luto, da ca- tastrofe, da destrutividade, da perda, da solidao, da ambiva- léncia e da culpa. Se a posicao instrumental nao esta parali- sada, funciona na base do splitting, configurando os vinculos bom e mau, com seus respectivos objetos. Aqui aparece a fundamentacgéo de uma nosografia genética estrutural e funcional em termos de localizagéo dos dois vinculos nas trés areas, com todas as varidveis que podem existir. Por exemplo, a titulo de ilustragao: nas fobias, agorafobia e claus- trofobia, o objeto mau, parandide ou fobigeno, esta proje- tado na area trés e atuando; isso configura a situacao fobi- ca, em que tanto o objeto mau (fobigeno-parandide) como 0 objeto bom, sob a forma de acompanhante fébico estao situados na mesma Area. Por um lado, o paciente teme ser atacado pelo objeto fobigeno, preservando, por outro lado, © objeto acompanhante depositario de suas partes boas, por meio do mecanismo de evitacao. Assim nao se juntam, evitando a catastrofe que se poderia produzir diante do fra- casso da evitagao. Toda uma nosografia poderia manifes- tar-se em termos de area comprometida e valéncia do obje- to parcial. Essa nosografia, muito mais operacional do que as conhecidas, caracteriza-se pela compreensao na opera- ¢ao corretora, nos termos ja assinalados, e por sua mobili- dade ou passagem de uma estrutura a outra, constituindo o quarto principio que pode ser observado durante o adoecer e durante o processo corretivo. Continuidade genética e funcional. A existéncia de uma posicao esquizoparandide com objetos parciais, ou seja, 0 ob- jeto total cindido, pressup6e a existéncia de uma etapa pré- via em relagéo com um objeto total, com o qual se estabe- 18 O processo grupal lecem vinculos de quatro vias. A cisao ou splitting produz-se no ato do nascimento, e todo vinculo gratificante fara que o objeto seja considerado bom. E 0 que Freud chama (erra- damente, a meu ver) instinto de vida (Eros), enquanto a outra parte do vinculo primario e de seu objeto, com base em experiéncias frustrantes, se transforma em objeto mau, num vinculo persecutério, o que de novo Freud considera inStinto, neste caso, instinto de morte, agressao ou destrui- cdo (Thanatos). Como se vé, no meu entender, os instintos de vida ou de morte sao, de fato, uma experiéncia em forma de com- portamento em que o social esta incluido através de mo- mentos gratificantes ou frustrantes, produzindo-se a inser- do da crianga no mundo social. Ela adquire através dessas frustragGes e gratificagdes a capacidade de discriminar en- tre varios tipos de experiéncias como primeira manifesta- cdo de pensamento, construindo assim uma primeira esca- la de valores. A divisao do objeto total tem como motivagao impedir a destruigdo total do objeto, que, ao cindir-se em bom e mau, configura os dois comportamentos primérios em relagéo com o amar e ser amado, e odiar e ser odiado, ou seja, dois comportamentos sociais que determinam o comego do processo de socializagdo na crianca, que tem um papel e um status no interior de um grupo primario ou familiar. Retomando 0 ponto de partida da protodepressao, com 0 aparecimento do splitting como primeira técnica do ego, introduzimo-nos na posigaéo esquizoparandide, des- crita por Fairbairn e M. Klein de forma paralela aos meus primeiros trabalhos sobre esquizofrenia. Com o surgimento dessa técnica defensiva, configu- ram-se dois vinculos: uma situagéo de objeto parcial em relacao de divaléncia (e nao de ambivaléncia como definiu Bleuler), processos de introjegao e projegao, de controle oni- potente, de idealizagao, de negagao, etc. Levando em conta esse conceito da posigao esquizoparandide, é possivel revisar 19 Uma nova problemtica para a psiquiatrig 0 conceito de repressao, tao importante na teoria psicanalf- tica e ponto de partida da divergéncia entre Freud e P. Janet. Freud sustentava que o processo de repressao era uma es- trutura tinica e caracteristica na génese das neuroses; Janet, no entanto, entendia que o processo primario podia ser de- finido em termos de dissociagdo. Penso que a questao fica resolvida ao se considerar que a repressdo é um processo complexo que inclui a dissociagao ou splitting, processos de introjegao e projecao, e de controle onipotente, etc. Por exemplo, o fracasso deste tiltimo constitui o que Freud chama a volta do reprimido, que é 0 negado, o frag- mentado, 0 introjetado e projetado, podendo voltar a qual- quer das trés areas ou dimensdes fenoménicas em que a mente situa os vinculos e objetos para seu melhor manejo. Nesse voltar, o reprimido é vivido pelo self como 0 estra- nho e oalienado. A ansiedade dominante na posigao esqui- zoparandide é a ansiedade persecutéria ou parandide de ataque ao ego, como produto de uma retaliacao pela proje- cao da hostilidade* que volta agigantada ou realimentada, como um bumerangue, sobre o préprio sujeito. Essa ansie- dade parandide volta como se procedesse de objetos huma- nos ou deslocamentos, depositarios da hostilidade da qual 0 ego se liberou pela projegao. A essa ansiedade, a nica descrita anteriormente, acrescento a outra, proveniente das vicissitudes do vinculo bom, ou dependéncia de objetos de- positarios dessa qualidade de sentimentos. As alternativas sofridas por esse vinculo tém como produto outro tipo de ansiedade, diferente da persecutéria, com a qual, no entan- to, muitos a confundem: é 0 sentimento de “estar 4 mercé do depositario”. A ansiedade parandide e 0 “sentimento de estar 4 mer- é” (ansiedade depressiva da posicao esquizdide) sdo coe- 2. A hostilidade emerge como produto da frustrasao. 20 O processo grupal xistentes e cooperantes em toda estrutura neurdtica normal. A antiga diferenciagdo entre ansiedade, angustia e medo desaparece 4 medida que incluimos a dimensao do incons- ciente ou do implicito. As definigGes de ansiedade e angtis- tia estavam viciadas pelo conceito de relagado an-objetal. A posicao esquizoparandide vincula-se a crescente idea- lizagao do objeto bom, conseguindo 0 ego, por meio de sua técnica, a preservacao do objeto idealizado. A medida que se incrementa a idealizacdo do bom, aumentam o controle e o afastamento do mau e persecutério, tornando-se o pri- meiro um objeto invulnerdvel. Essa situagao de tensdo en- tre os dois objetos em diferentes dreas torna necessaria a emergéncia de uma nova técnica diante do carater insu- portavel da perseguicao: a negagado magica onipotente. Entre os outros processos que operam, devemos assi- nalar a identificacao projetiva. Nesse mecanismo, 0 ego pode projetar parte de si mesmo com diferentes objetivos: por exemplo, as partes mds, para livrar-se delas, assim como para atacar e destruir o objeto (irrup¢ao). Podem-se também pro- jetar partes boas, por exemplo, para coloca-las a salvo da maldade interna ou melhorar o objeto externo através de uma primitiva reparagao projetiva. Nesse momento, pode- mos compreender aquilo que chamo situagao depressiva esquizéide ou neurstica. Ela é produzida pela perda do con- trole do depositario e do depositado. Essa depressao nao deve ser confundida com a depressao da posigao depressi- va basica. Nesta, observamos a presenga de um objeto total, vinculos de quatro vias, ambivaléncia, culpa, tristeza, soli- dao em relagao a imagem do préprio sujeito. Na depressio esquizdide observa-se 0 vinculo com um objeto parcial, com depositacao dos aspectos bons. E uma depressao vivida fora, sem culpa, em uma situagao divalente e com sentimento de estar a mercé. O sentimento basico da depresséo esquizéide é a nos- talgia. M. Klein a descreveu, sem perceber sua estrutura di- ferenciada, quando se referiu a situagao de despedida nor- 21 Uma nova problemtica para a psiquiatria mal. A parte boa colocada no objeto viajante ou depositario afasta-se da pertenga do ego. Este fica enfraquecido, e a partir desse momento nao deixar de pensar em seu desti- no; e ainda que a preocupacao manifesta seja pelo deposi- tario, sua preocupaco esta vinculada ao estado das partes dele proprio que se desprenderam, criando-se uma situa- ¢ao de naufrdgio permanente. A nostalgia é algo diferente da melancolia. O termo, criado por Hofer, é uma condensagao das palavras gregas nostos — (vootoc) retorno — e algos — (aos) dor. O splitting permite ao ego emergir do caos e ordenar suas experiéncias. Esta na base de todo pensamento se con- sideramos que a discriminagao é uma das primeiras mani- festacgdes deste comportamento da area 1. Posicio depressiva. A posigao esquizoparandide, ao obter um manejo bem-sucedido das ansiedades dos primeiros meses, leva a crianga pequena a organizar seu universo in- terno e externo. Os processos de splitting, introjecdo e pro- jec4o permitem-lhe ordenar suas emocées e percepgées, separar 0 bom (objeto ideal) do mau (objeto mau). Os pro- cessos de integragdo tornam-se mais estaveis e continuos, surgindo um novo momento do desenvolvimento: a posi- cao depressiva caracterizada pela presenga de um objeto total e um vinculo de quatro vias. A crianga sofre um pro- cesso de mudanga subita e a existéncia de quatro vias no vinculo causa nela um conflito de ambivaléncia, do qual emer- ge a culpa. A maturacao fisiologica do ego traz como conse- qiiéncia a organizagéo das percepcées de origem miltipla, assim como o desenvolvimento e a organizagéo da mem6- ria. A ansiedade dominante, ou medo, refere-se a perda do objeto, devido a coexisténcia no tempo e no espago de as- pectos maus (destrutivos) e bons, na estrutura vincular’. 3. Que abrange 0 ego, 0 vinculo e o objeto. © processo grupal Os sentimentos de luto, culpa e perda formam um ni- cleo existencial junto a solidao. A tarefa do ego, nesse mo- mento, consiste em imobilizar 0 caos possivel ou iniciante, recorrendo ao tinico mecanismo ou técnica do ego perten- cente a essa posi¢ao: a inibigdo. Essa inibicdo precoce, mais ou menos intensa em cada caso, iré constituir uma pauta estereotipada e um complexo sistema de resisténcia 4 mu- danga, com perturbages da aprendizagem da comunica- cao e da identidade. A regressao a partir de posigdes mais elevadas do desenvolvimento a esses pontos disposicionais, que adquirem o contexto daquilo que M. Klein chamou de neurose infantil, traz como conseqiiéncia a reativacdo desse esteredtipo que denominamos depresséio bdsica, com a pa- ralisagao das técnicas instrumentais da posicao esquizéide. Se 0 processo regressivo do adoecer consegue reativar o splitting e todos os outros mecanismos esquizdides, com a reestruturagdo de dois vinculos com objetos parciais, um to- talmente bom e outro totalmente mau, configuram-se en- tao as estruturas nosograficas, segundo a localizacao des- ses objetos nas diferentes areas. As duas posicdes descritas por M. Klein e Fairbairn (es- truturas predominantemente espaciais), acrescentamos 0 fator temporal para construir a estrutura tetradimensional da mente. A situacao patorritmica expressa-se em paradas, velocidades ou ritmos que constituem momentos de estru- turaco patoldgica, que vao da inibicao e desaceleracgao dos processos mentais ao pélo explosivo, onde tudo acontece com as caracteristicas das crises coléricas infantis (e de onde tomarao sua configuracao). Se essa bipolaridade chega a predominar na maneira de ser e de expressar-se das ansie- dades e das técnicas do ego que tendem a controld-las e elabord-las, encontramo-nos no amplo campo da enfermi- dade paroxistica (epilepsia). Na equacao etiopatogénica da neurose e psicose, deve- mos considerar 0 que acontece no processo do adoecer e do Una nova problemdtica para a psiquiatria 23 recuperar-se, durante a operagao corretora com o psicote- rapeuta, assim como a reparagéo dos aspectos instrumen- tais do par aprendizagem-comunicagao. E a essa perturba- cao — uma estrutura com vigéncia na posigao depressiva do desenvolvimento, e com antecedentes constitucionais — que se retorna (partindo da depressao desencadeante) no pro- cesso regressivo. A funcionalidade desse processo deve ser descrita em termos de “voltar ao lugar onde as técnicas do ego foram eficientes”; mas ao imobilizar e dificultar a estru- tura depressiva, esta se torna rigida, repetitiva (esteredtipo), permanecendo, de forma latente, como posicao basica. Essa estrutura atuou como ponto disposicional no momento do desenvolvimento, e, se houve um bom controle dos medos basicos, ficou estancada como estrutura prototipica que constitui o nticleo patogenético do processo do adoecer. Isso é 0 que eu chamo de depressao basica (depressao do desenvolvimento, acrescida da depressao regressiva com aspectos da protodepressao). Denomino depressiio desencadeante a situagao habitual de comego, cujo denominador comum foi expresso por Freud em termos de privagao de ganhos vinculados em ni- vel de aspiracao. Esse fator pode ser retraduzido quando se estuda sua estrutura, em termos de depressao por perda ou privagao. Nao sé em termos de satisfacao da libido e seu estancamento, mas também em termos de privagdo de ob- jeto, ou situacao em que o objeto aparece como inatingivel por impoténcia instrumental de origem miltipla. A impossi- bilidade de estabelecer um vinculo com o objeto acarreta primeiro fantasias de recuperagao, nas quais 0 fantasiado esta em relacao com os instrumentos do vinculo (exemplo: caso. do membro-fantasma na amputagao de um brago; ne- gacdo da perda do membro). Isso constitui a defesa ime- diata diante da perda que, contudo, nao resiste 4 confron- taco com a realidade e faz 0 sujeito mergulhar na depres- sao. Ao impor-se a cruel verdade da perda, inicia-se a re- a ________ Oprocesso grupal gressdo e elaboracao do luto que configuram a complexi- dade fenoménica e genética da depressao regressiva. Em sintese, a estrutura da pauta depressiva da conduta esta assentada na situagaéo de ambivaléncia diante de um objeto total. Dessa situagdo de ambivaléncia surge a culpa (amor e ddio diante de um mesmo objeto, num mesmo tem- po e espaco). A ansiedade depressiva deriva do medo da perda real ou fantasiada do objeto, o conflito de ambiva- léncia, produto de um vinculo quadruplo (0 sujeito ama e sente-se amado, e odeia e sente-se odiado pelo objeto), pa- ralisa 0 sujeito devido a sua intrincada rede de relagdes. A inibicao centra-se em determinadas fungées do ego. A tris- teza, a dor moral, a soliddo e o desamparo derivam da per- da do objeto, do abandono e da culpa. Diante dessa situa- cao de sofrimento surge a possibilidade de uma regressao a uma posicao anterior, operativa e instrumental para 0 con- trole da ansiedade da posigao depressiva. O mecanismo ba- sico é a divisao do ego e seus vinculos, e o surgimento do medo do ataque ao ego, seja a partir da area 2 (hipocondria) ou a partir da drea 3 (parandia). Aparece também um medo depressivo diante do objeto bom depositado, com senti- mento de estar a mercé e de nostalgia. As neuroses sao técnicas defensivas contra as ansieda- des basicas. S40 as mais bem-sucedidas e préximas do nor- mal e estao distanciadas da situagdo depressiva basica pro- totipica. As psicoses sao também formas de manejo das ansiedades basicas, assim como a psicopatia. As perversdes sao formas complexas de elaboragao da ansiedade psicstica, e seu mecanismo centra-se no apaziguamento do perse- guidor. O crime é uma tentativa de aniquilar a fonte de an- siedade projetada a partir da area 1 para o mundo exterior, enquanto esse mesmo processo, quando internalizado, con- figura a situacSo de suicidio. A “loucura” é a expressdo de nossa incapacidade para suportar e elaborar um montante determinado de sofrimento. Esse montante e o nivel de ca- Uma nova problemdtica para apsiquiatria pacidade sao especificos para cada ser humano e consti- tuem seus pontos disposicionais, seu estilo proprio de ela- boragao. Depressio iatrogénica, Denominamos depressao iatro- géenica 0 aspecto positivo da operacao psicoterdpica, que consiste em integrar 0 sujeito através de uma dosificagao operativa de partes desagregadas e fazer que a constante universal de preservacio do bom e controle do mau funcione em niveis sucessivos, caracterizados por um sofrimento to- lerdvel, por diminuigao do medo da perda do bom e uma diminuicgao paralela do ataque durante a confrontacgdo com a experiéncia corretora. Na adjudicagao sucessiva de papéis que ai se realiza, o psicoterapeuta deve ter a flexibilidade su- ficiente para assumir o papel adjudicado (transferéncia), nao 0 atuando (acting in do terapeuta), mas introduzindo-o (in- terpretagao) em termos de uma conceitualizacao, hipdtese ou fantasia acerca do acontecer subjacente do outro, estan- do atento para sua resposta (emergente), que, por sua vez, deve ser retomada num continuo, como um fio de Ariadne em forma de espiral. Agora j4 podemos formular 0 que deve ser considerado como unidade de trabalho, tinico método que, por suas possibilidades de predicao, mais se aproxima de um método cientifico, de acordo com critérios tradicio- nais. Critérios que, por sua vez, devem ser analisados para nao se tornarem vitimas de esteredtipos, que, atuando a partir de dentro do ECRO, de maneira quase inconsciente, funcionam da parte do terapeuta como resisténcia 4 mu- danga. A unidade de trabalho é composta por trés elementos que representam 0 ajuste da operacao: existente-interpre- tagao-emergente, O emergente é expresso no contexto da operagao e tomado pelo terapeuta como material. Quando 0 contetido é multifacetado e, em seguida, atua fora pelo paciente, configura-se o acting out, diante do qual o tera- peuta nao tera de emitir juizo segundo uma ética formal, 26 Oprocesso grupal mas funcional, relacionando-o com o aqui e agora que in- clui aspectos positivos vinculados com a aprendizagem da realidade ou da reparacdo das comunicagées. Se o terapeuta julga o paciente em terrnos de bom, mau, imoral, etc., poe em risco sua possibilidade de compreensao. No processo corretor, através de fendmenos de apren- dizagem, comunicacdo e sucessivos esclarecimentos, dimi- nuem os medos basicos e possibilita-se a integracdo do ego, produzindo-se a entrada em depressdo e a emergéncia de um projeto ou prospectiva que inclui a finitude como situa- co propria e concreta. Aparecem mecanismos de criagao e transcendéncia. Entao a posicao depressiva da oportunida- de ao sujeito de adquirir identidade, base do insight, e faci- lita uma aprendizagem de leitura da realidade por meio de um sistema de comunica¢Ges, base da informagao. Em sin- tese, as conquistas da penosa passagem pela posigéo de- pressiva, situagao inevitavel no processo corretor, incluem a integracdo que coincide com a diminuigao dos medos ba- sicos, reativados pelo processo desencadeante, a diminui- cdo da culpa e da inibigdo, o insight, a movimentagao de me- canismos de reparagao, criagao, simbolizacgao, sublimacao, etc., que tém como resultado a construgdo do pensamento abstrato, que, por nao arrastar 0 objeto subjacentemente existente, acaba sendo mais util, flexivel, capaz de avalia- cOes em termos de estratégia, tatica, técnica e logistica de si mesmo e dos outros. O planejamento e a prospectiva, juntamente com as tl- timas técnicas citadas, constituem o que Freud chama de processo de elaboragao que se segue ao insight. Esse pro- cesso, uma vez ativado, persiste ainda que se interrompa 0 vinculo com o terapeuta, continuando-se a elaboragao de- pois da anilise (after analysis). Isso acontece quando o pro- cesso corretor seguiu uma estratégia adequada. Paradoxal- mente, 6 0 momento dos maiores ganhos para a autocon- ducao. Com a depressao iatrogénica, fechamos nosso esque- Uma nova problemdtica para a psiquiatria 27 ma das cinco depressées: protodepressao, de desenvolvimen- to, desencadeante, regressiva, iatrogénica. Elas constituem o nticleo basico do acontecer da enfermidade e da cura. Retomando os componentes da causacgao configura- cional, depois do principio de continuidade genética estru- tural e funcional através de cinco depressées, irei referir-me ao quarto principio: mobilidade e interacio das estruturas. Ja assinalamos 0 carter funcional e significativo das estrutu- ras mentais que adquirem a fisionomia do que chamamos doenca mental. Uma anilise seqiiencial e estratigrafica pro- va-nos 0 carater complexo e misto de cada uma delas, dife- renciando-se umas das outras pelo cardter dominante da colocag&o dos medos basicos em cada area, através de vin- culos significativos. Geneticamente, observa-se no desen- volvimento o mesmo que no processo de adoecer e no pro- cesso corretor. As estruturas sao instrumentais e situacio- nais em cada aqui e agora do processo de interacao. As dis- cussées bizantinas dos psiquiatras devem-se, em grande parte, a um mal-entendido, ja que a estrutura que foi vista em um momento de observacao pode variar no tempo e no espago, considerando-se que a relagéo vincular com o pes- quisador determina a configuragéo de estruturas com esse carter funcional, instrumental, situacional e vincular, figu- rando este tiltimo em relagao com 0 tipo especifico de codi- ficagdo e decodificagao, aprendizagem, etc. Por isso susten- tamos esse principio em seus aspectos fenomenoldgico e genético, estrutural e clinico. Quinto principio: vinculo, papel, porta-voz: jA definimos © conceito de vinculo como uma estrutura complexa de in- teracao, nao de forma linear, mas em espiral, fundamento do didlogo operativo, em que a cada giro hé uma realimen- taco do ego e um esclarecimento do mundo. Quando essa estrutura se estanca pelo montante dos medos basicos, pa- talisam-se a comunicagado e a aprendizagem: estamos na 28 Oprocesso grupal presenca de uma estrutura estatica e nado dinamica, que im- pede uma adaptagao ativa a realidade. O conceito de papel, incorporado a psicologia social e desenvolvido por G. H. Mead, o grande precursor dessa disciplina, que baseou todo o seu desenvolvimento tedrico no conceito de papel, de sua interacdo, 0 conceito de mim, de outro generalizado, que representaria o grupo interno como produto de uma internalizagao dos outros, padece, no entanto, de uma limitagdo que resolvemos incorporan- do a idéia de grupo interno ou mundo interno do sujeito a internalizagéo chamada ecoldgica. Consideramos que a in- ternalizagao do outro nao se faz como a de um outro abs- trato e isolado, mas inclui os objetos inanimados, o habitat em sua totalidade, que alimenta intensamente a constru- cao do esquema corporal. Defino este tiltimo como a repre- sentagao tetradimensional que cada um tem de si mesmo em forma de uma Gestalt-Gestaltung, estrutura cuja patolo- gia compreende os aspectos da estrutura espago-temporal da personalidade. A nogao popular de “queréncia”, ou “pago”, vai muito além das pessoas que a integram, e isso é observado nas rea- des das situacdes de migracdo: o medo da perda paralisa o migrante camponés no momento em que tem de assumir um papel urbano, provocando sua marginalizagao. Reto- mando 0 conceito de papel, consideraremos algumas situa- gGes que se apresentam com maior freqiiéncia nos grupos operativos. O campo do grupo operativo esta povoado por Ppapéis prescritos ou estabelecidos, que definimos em termos de pertenga, afiliacao, cooperagao, pertinéncia, comunica- cdo, aprendizagem e telé, os quais, representados na forma de um cone invertido, convergem como papéis ou fungdes para provocar na situacao de tarefa a ruptura do esterestipo. Pode-se dizer que, no acontecer do grupo, determina- das pessoas vao assumir esses papéis correspondentes de Uma nova problematica para a psiquiatria ee acordo com suas caracteristicas pessoais: porém, nem tudo se realiza em termos de uma tarefa positiva. Outros papéis, de certa maneira prescritos por sua fre- qiiéncia, so assumidos por membros do grupo, como os papéis de porta-voz, sabotador, bode expiatério e, quando algum deles vem associado a comando, o papel de lider (0 lider autocratico, democratico ao qual acrescento o dema- gdgico, cuja estranha auséncia nos pesquisadores nos cha- ma a atencao). Os membros do grupo podem assumir os pa- Péis prescritos, e, quando a adjudicagao ou assunciio do papel se realiza adequadamente deniro dos limites do lugar que ocupam, sua funcionalidade aumenta. Certos papéis, como o de conspirador ou sabotador, sao geralmente eleitos pelo extragrupo e introduzidos no intragrupo com uma missao secreta de sabotar fundamentalmente a tarefa e o esclareci- mento. Essas infiltragdes, em forma de conspiracdo, devem ser tomadas como um fato natural e sao as forcas que atuam a partir de fora, introduzidas no interior do grupo com a fi- nalidade de sabotar a mudanga, ou seja, so representantes da resisténcia 4 mudanga. Papéis por delegac3o, as vezes com infinitos degraus, mas que desembocaraéo em outro grupo, o qual, como grupo de pressao, assume na comuni- dade o papel da resist@ncia 4 mudanga e do obscurantismo. O nivel de cooperagao nos pequenos grupos pode ser operativo, porém também o é, principalmente, nos grupos maiores. Quando as liderancas adquirem um campo maior, a identificagao cooperativa soma-se a identificagao chama- da cesariana, que pode exercer um papel na histéria quan- do as situagGes grupais estéo em perigo, ou sao incapazes de compreender 0 processo histérico, e quando o medo rea- tivado por situagdes de inseguranca e perigo torna-se per- secutorio. O movimento regressivo dirigido por um lider cesariano tenta entdo controlar o grupo ou tomar o poder. As identificagdes deste tipo entre os membros de um grupo ou comunidade, massa e lider, conduzem & idéia de que a 30 Oprocesso grupal desgraca que caiu sobre a comunidade foi produzida exclu- sivamente por uma conspiragao de certas pessoas ou gru- pos, aos quais é adjudicado o papel de responsaveis e de bodes expiatérios. Porém, é freqiiente encontrar um fio con- dutor que vai da lideranga ao “bode expiatério”, no qual am- bos desempenham uma espécie de role-playing, em que um éobom eo outro é o mau. Situagao triangular © complexo de Edipo, tal como foi descrito por Freud, com suas variantes negativas e positivas, pode ser com- preendido de uma maneira muito mais significativa se re- corrermos @ sua representacao espacial em forma de um triangulo, colocando no angulo superior o filho, no 4ngulo inferior esquerdo, a mae, e no angulo inferior direito, o pai. Seguindo a diregdo de cada lado do triangulo, temos uma representagao de quatro vinculos. Por exemplo: a crian- a, num primeiro nivel, ama e sente-se amada pela mae; num nivel subjacente, odeia e sente-se odiada pela mae; no outro lado esta a relagéo da crianga com o pai, na qual, num primeiro nivel, odeia e sente-se odiada e, num segun- do nivel, ama e sente-se amada. O que poucas vezes é as- sinalado é o parametro que opera desde a vida pré-natal. E a estrutura vincular entre mae e pai, na qual um ama e sen- te-se amado pelo outro, ou odeia e sente-se odiado pelo outro. Fazendo abstracao dos participantes, este vinculo te- tia também quatro vias; mas, na realidade, visto simulta- neamente a partir de cada um dos extremos, complica-se mais ainda, porque tanto um como outro adjudicam e as- sumem papéis originarios de cada um dos membros do ca- sal. O montante de adjudicagGes e assungdes dependerd do papel de ser amado e ser odiado. Essa totalidade, verdadei- ra selva de vinculos, forma uma totalidade totalizante, ou Uma nowa problematica para a psiquiatria 31 seja, uma Gestalt em que a modificagao de um dos parame- tros acarreta a modificagao do todo. Cerca de 80% dos trabalhos que tratam da crianga e de seus vinculos referem-se a relacéo com a mae; o pai apare- ce como uma personagem escamoteada, mas por isso mes- mo operativa e perigosa. E a nogo do terceiro, que defini- tivamente nos leva a definir a relagaéo bipolar ou vinculo como sendo de carter bicorporal, mas tripessoal O terceiro, na teoria da comunicagao, ¢ representado pelo ruido, que interfere numa mensagem entre emissor e receptor, conceito este que, ao ser aplicado em qualquer si- tuacao de contflito social, nos faz de novo encontrar a situa- co triangular como estrutura basica e universal. Partem de cada Angulo, por deslocamentos sucessivos, pessoas que desempenham papéis semelhantes com relacao a idade e sexo; dessa maneira, separamo-nos progressivamente do endogrupo endogamico para o extragrupo exogamico, que representa a sociedade. No endogamico, 0 tabu do incesto orienta as linhas de parentesco com suas proibigGes e tabus, e dessa maneira passamos da psicologia individual, com sua situagdo endopsiquica, a psicologia social, que trata das inter-relages no endogrupo ou intragrupais, e finalmente a sociologia, quando tratamos das inter-relacdes intergrupais. Eo campo do exogrupo, ambito especifico da sociologia. Se consideramos a fungao partindo desses parametros, podemos falar de comportamento econémico, politico, re- ligioso, etc., num nivel grupal ou comunitario, cuja andlise e evolucao se realizam partindo das seis fung6es descritas: pertenga e afiliagao, cooperagao e pertinéncia, aprendizagem, comunicacao e telé, cooperando nos niveis corresponden- tes aos dos campos das ciéncias sociais mencionadas e diri- gidas para uma situagao de mudanga que pode ser descrita nos niveis individual, psicossocial, comunitario e nas dire- ¢6es dos comportamentos. A nogao de tarefa em psiquiatria' (em colaboragao com o dr. A. Bauleo) A nog&o de tarefa na concepgao de psicologia social por nés proposta permite-nos um posicionamento diante da patologia e, por sua vez, uma estrutura de linhas de acao. Para isso, distinguiremos trés momentos abrangidos por essa nocdo: a pré-tarefa, a tarefa e o projeto. Esses momentos apresentam-se numa sucessao evolutiva, e seu surgimento e interjogo constante podem situar-se diante de cada situa- do ou tarefa que envolva modificagdes no sujeito. Iremos desenvolvendo cada um desses momentos sa- bendo, desde ja, que sdo proposigGes relativas a posigdes te- rapéuticas, e como tais devem ser admitidas, isto é, como proposigées. Na pré-tarefa situam-se as técnicas defensivas, que es- truturam o que se denomina resisténcia 4 mudanca e que sao mobilizadas pelo incremento das ansiedades de perda e ataque. Essas técnicas sao empregadas com a finalidade de pos- tergar a elaboracdo dos medos basicos; por sua vez, estes tl- timos, ao se intensificarem, operam como obstaculo episte- molégico na leitura da realidade. Ou seja, estabelece-se uma 1.1964, 34 O proceso grupal distancia entre o real e o fantasiado, que é sustentada por aqueles medos basicos. A pré-tarefa também aparece como campo no qual o projeto e a resisténcia 4 mudanga seriam as exigéncias de sinais opostos e criadoras de tensao; a busca de safdas para essa tensdo é obtida através de uma figura transacional, re- solugdo transitoria da luta: aparece o “como se” ou a im- postura da tarefa. Tudo é feito “como se” se tivesse execu- tado o trabalho especificado (ou a conduta necesséria). Os mecanismos defensivos atuantes no momento da pré-tarefa sao os caracteristicos da posigdo esquizoparandide (M. Klein), instrumental e patoplastica (P.-Riviére); mecanis- mos que operam como meios de expressdo e configuragdo das estruturas patolégicas (neurose, psicose, perversdes, etc.). Além disso, é nessa pré-tarefa que se observa um jogo de dissociagdes do pensar, atuar e sentir, como que fazendo parte também dos mecanismos enunciados anteriormente. Podemos estipular que 0 “como se” aparece através de condutas parcializadas, dissociadas, semicondutas ~ pode- riamos dizer -, pois as partes sao consideradas como um todo. E impossivel a integragao dos aspectos manifestos e latentes numa denominagao total que os sintetize. O problema da impostura nos é apresentado nessas se- micondutas da pré-tarefa. Se a significagao esta reduzida e © sujeito ndo apresenta a opacidade que sua presenga re- quer, ha uma certa transparéncia. Com a falta de totalida- de, efetua-se em seu corpo a decantacdo significativa. O sujeito é uma caricatura de si proprio, seu “negativo”. Fal- ta-lhe a revelagéo de si mesmo, sua denominacdo como homem. A situagao se lhe apresenta com um sabor de es- tranheza, e é essa estranheza que o desespera; para supe- rd-la recorre a comportamentos estranhos a ele como su- jeito, porém coerentes com ele enquanto homem alienado. Entrega-se entdo a uma série de “tarefas” que lhe per- mitem “passar 0 tempo” (mecanismo de postergacao, atrds 35 A nogdio de tarefia em psiquiatria__ do qual se oculta a impossibilidade de suportar frustrages de inicio e término de tarefas, causando, paradoxalmente, uma constante frustracao). Os mecanismos de defesa sao somente elementos for- mais, cujo contetido (tarefa e projeto para cada sujeito) esta dissolvido neles. O sujeito aparece como mais uma estru- tura daqueles mecanismos e seus fins esgotam-se em cada manifestac4o. Portanto, o que se observa so maneiras ou formas de ndo entrar na tarefa. O momento da tarefa consiste na abordagem e elabo- racao de ansiedades, e na emergéncia de uma posigao de- pressiva basica, na qual 0 objeto de conhecimento se torna penetravel pela ruptura de uma pauta dissociativa e este- reotipada, que vinha funcionando como fator de estanca- mento da aprendizagem da realidade e de deterioragéo da rede de comunicacao. Na tarefa, aquela posigdo depressiva requer elabora- cdo, processo cuja significagéo central esta em tornar “consciente o inconsciente”, e no qual se observa uma total coincidéncia das diferentes areas de expressao fenoménica. O sujeito apareceria com uma “percepgao global” dos elementos em jogo, com a possibilidade de manipuld-los e com um contato com a realidade no qual, por um lado, Ihe é acessivel o ajuste perceptivo, ou seja, o situar-se como sujeito, e por outro lado, lhe é possivel elaborar estratégias e taticas mediante as quais pode intervir nas situagdes (projeto de vida), provocando transformagées. Essas trans- formagées, por sua vez, modificarao a situagao, que se tor- nara entao nova para o sujeito, e assim 0 processo comega outra vez (modelo da espiral). Na passagem da pré-tarefa para a tarefa, 0 sujeito efe- tua um salto, ou seja, a acumulagao quantitativa prévia de insight realiza um salto qualitativo durante 0 qual o sujeito 36 _____ Oprocesso grupal se personifica e estabelece uma relacdo com 0 outro dife- renciado. No contexto da situagao terapéutica, corretora, a situa- ¢a0 transferencial e contratransferencial ocorre, principal- mente, no ambito da pré-tarefa do sujeito. Se confunde a pré-tarefa com a tarefa, o terapeuta entra no jogo da neu- rose transferencial e atua nela. A tarefa do terapeuta trans- forma-se em pré-tarefa, ao ter ele mesmo resisténcia a en- trar em sua tarefa especifica, por evitar o problema essencial do tornar-se responsavel, do “compromisso”, do ser cons- ciente e do projeto. (Resisténcias ideoldgicas a praxis.) Conclui-se entao que as nogées de pré-tarefa, tarefa e projeto apareceriam como elementos para situar uma ati- tude terapéutica. Seria esquematico resumir, sob a nocdo de tarefa, tudo © que implica modificagao em dupla diregao (a partir do su- jeito e para o sujeito), envolvendo assim a constituicdo de um vinculo. Trata-se de estabelecer uma nog&o que englobe, ao examinar um sujeito, sua relagéo com os outros e coma si- tuagao. A nogao “trabalho” tem a conotacio ideolégica de ser feito por alguém, modificando algo. Sua indeterminagaio faz que diversas concepcées filosdficas, teoldgicas e metafi- sicas tenham falado a respeito dele. Para nés também é um elemento ideoldgico, mas sua incluso em nossa concepgéio psicossociolégica tem por finalidade, como eu disse ante- tiormente, elaborar, através de esquemas adequados, cer- tas situacGes praticas. O estabelecer pré-tarefa, tarefa e pro- jeto como momentos situacionais de um sujeito, permite- nos uma aproximacao e um diagnostico de orientacao. Pois em cada um desses momentos configuram-se um pensar, um sentir e um agir, cuja discriminacao é central para toda terapia. Mas isso, por sua vez, nos leva a pensar que, se situa~ Mos 0 sujeito em cada uma dessas situagdes, em diregao a alguém com quem esta relacionado, nao ser4 necessdrio Annogio de tarefa em psiquiatria = estabelecer 0 porqué e o para qué da situagao total e de cada momento particular. E é assim que, tanto em relacao a si- tuagdo geral como diante de nds mesmos enquanto obser- vadores, temos de agir logo sobre esses mecanismos, jé que 0 porqué e o para qué da situacao assim se nos apresentam: Por outros Para outros Etiopatogenia _— Diagndstico Profilaxia Profilaxia Tratamento Por tiltimo, diremos que estabelecer pré-tarefa, tarefa e projeto consiste na busca de nogées que, partindo da supo- sicio do homem-em-situacao (Lagache), permitam esta- belecer melhor a relacdo entre os dois limites dessa suposi- do, para poder operar no campo pratico. Praxis e psiquiatria' 1) A praxis da higiene mental, tarefa essencialmente social, nutre-se das principais teorias provenientes de diferentes posturas ideolégicas. Segundo seu esquema referencial, qual a contribuicgao desse mesmo esquema para a higiene mental? Chama a minha atencdo 0 uso de uma linguagem que entra em flagrante contradigao com 0 aspecto da semantica e da tarefa. Ao perguntar se a praxis da higiene mental, ta- tefa essencialmente social, se nutre das principais teorias provenientes de diferentes posturas ideolégicas, poderiamos responder dizendo que nao existe uma praxis da higiene mental. Jalvez exista uma confusdo entre métodos de hi- giene mental. De qualquer maneira, ainda que o problema formal esteja repleto de mal-entendidos, a “tarefa essen- cialmente social” centra o problema nao sobre os métodos da HM, mas sobre os métodos ou estratégias de como mu- dar a estrutura socioeconémica da qual emerge um doente mental. Ha mais de vinte anos venho sustentando que o doente mental é 0 porta-voz da ansiedade e dos conflitos 1. Reportagem realizada pela Revista Latinoamericana de Salud Mental, 1966. i O processo grupal do grupo imediato, ou seja, do grupo familiar. E essas an- siedades e conflitos que sao assumidos pelo doente sao de ordem econémica e acabam acarretando um sentimento crénico de inseguranga, um indice de ambigiiidade consi- derdvel e, principalmente, um indice de incerteza também crénico, submetido a ziguezagues, de acordo com a situa- ¢ao hist6rica de cada momento. O paciente, se for analisa- do detidamente, esta denunciando: ele é 0 “alcagiiete” da subestrutura da qual ele se tornou responsavel e que traz como conseqiiéncia o emprego de técnicas de marginalida- de ou segregagao (intemamento em hospital psiquidtrico), em que num interjogo implicito, mas certamente nao ex- plicito, o psiquiatra assume o papel de resisténcia 4 mudan- ¢a, ou seja, de mantenedor da cronicidade do paciente. Ele esta inexoravelmente comprometido com a situacao e, des- sa maneira, é leal 4 sua classe social. Poderiamos chegar a uma interpretagao mais profunda, com o risco de atrair a repulsa dos psiquiatras como comunidade, se empregar- mos a palavra simbolo, j4 que alguns acreditam que ela foi uma invencao de Freud. O doente mental, entao, é 0 simbolo e depositario do aqui e agora de sua estrutura social. Curd-lo € transforma-lo ou adjudicar-lhe um novo papel, 0 de “agen- te de mudanga social”. Assim, estamos em plena militan- cia, todos estéo comprometidos através de uma ideologia com revestimentos cientfficos. Quanto as principais teorias provenientes de diferentes “posturas”, sao simplesmente ideologias. A psicoterapia tem como finalidade essencial a transformagao de uma situacao frontal numa situacdo dia- lética, que percorre um trajeto com a forma de uma espiral permanente, através de uma tarefa determinada. Ali sim, encontramos o verdadeiro sentido da praxis, no qual teoria e pratica se realimentam mutuamente através dessa suces- sao, resultando na criagéo de um instrumento operacional que configura uma situacdo que poderiamos denominar “operagdo-esclarecimento”. O que chamamos ECRO, esque- Prixis e psiquiatria__ ere EtesuaEE suite ma conceptual, referencial e operativo, é 0 produto da sintese de correntes aparentemente antag6nicas, mas principal- mente ignoradas, situagao que cria, por exemplo, pelo des- conhecimento da psicandlise, um clima sonolento e de bi- zantinismo. Finalizando essa resposta, direi que o psiquiatra, em geral, tem todas as caracteristicas de uma personalida- de autoritdria etnocéntrica, que pensa sempre em termos absolutos e nao dialéticos; e naqueles que aparentemente pensam dessa forma dialética, suas proposigGes chegam a estereotipar-se de tal modo, “como se as tivessem estudado de memoria”, transformando-se paradoxalmente em pes- soas que, devendo ter adquirido flexibilidade e personali- dade democratica, se comportam da mesma maneira que os primeiros, de forma autoritdria, absoluta, sem aberturas, chegando alguns deles a situar-se na mais covarde das po- sig6es, que é dificil de pronunciar, e que se intitula ecleticismo. 2) Complementam-se essas idéias com as provenientes de ou- tras escolas? Se considerarmos o homem como um ser total e totali- zante em pleno desenvolvimento dialético, as idéias com as quais se prope atuar sobre ele so emergentes das pré- prias contradigées do paciente e absorvidas pelo terapeuta, configurando-se uma situacao alienada e realimentada por ambos os personagens. Toda compreensao do paciente men- tal deve partir da compreensAo vulgar, ou seja, de uma psi- quiatria da vida cotidiana. O grau de profundidade a que se pode chegar dependera do instrumental operacional e situa- cional empregado por cada psiquiatra, j4 que no final das contas nao existem progndsticos em relacao as enfermida- des, mas sim prognésticos em relagao a cada terapeuta. 3) Considera possivel o trabalho em comum de investigado- res de diferentes ideologias cientificas no campo da satide mental? Sou um veterano da investigacao grupal, sempre que o grupo seja manejado com técnicas operativas centradas na BO process grup tarefa (a doenca mental), e nao se gaste o tempo da tarefa no pingue-pongue da pré-tarefa, nas discussGes intermi- naveis sobre ideologias cientificas. A tarefa deve estar cen- trada no como obter uma maior satide mental numa co- munidade especifica, situada no tempo e no espago. 4) No campo concreto da praxis, e de acordo com seus princi- pios tedricos e com suas experiéncias, que medidas praticas consi- dera oportunas para uma educagao sanitdria em higiene mental? Primeiramente, eu faria que o estudante de psiquiatria entendesse o sentido real da praxis e nado o dissociasse em campos concretos e principios tedricos. O melhor meio di- datico para formar psiquiatras é fazer que a tarefa esteja centrada nao na doenga mental, mas na satide mental. O termo higiene esta viciado por um materialismo ingénuo, e os grupos de trabalho, repetimos, devem estar centrados nos fatores que condicionam um certo modo de satide men- tal (nado na forma absoluta de satide mental como valor maximo e absoluto). Trata-se de quantidades de satide men- tal que, através de saltos dialéticos, transformam a quanti- dade em qualidade, ja que a satide mental é medida princi- palmente em termos de qualidade de comportamento social e suas causas de manutenc&o ou deterioragdo estao rela- cionadas com situagdes sociais como os fatores socioeco- némicos, estrutura de familia em estado de mudanga e prin- cipalmente nesse indice de incerteza que se torna persecu- trio e que perturba o comportamento social, ja que o que se quer obter é uma adaptagao ativa a realidade, na qual o sujeito, na medida em que muda, muda a sociedade, que, por sua vez, atua sobre ele no interjogo dialético em forma de espiral, na medida em que se realimentando em cada passagem realimenta também a sociedade a qual pertence. Aqui esta o erro mais freqiiente: o de considerar um pacien- te “curado” quando é capaz apenas de cuidar de seu asseio pessoal, adotar boas maneiras e, principalmente, nao de- Praise psiquiatria 43 monstrar rebeldia. Este ultimo sujeito, desde ja, com sua conduta passiva e parasitaria, continua filiado a alienagao. 5) Qual é sua opinido quanto a uma orientacio em higiene mental relacionada com as estruturas socioeconémicas e culturais? Creio que em minhas opinides anteriores estao mais implicitas as respostas a esta pergunta. O que, por sua vez, me faz perguntar a mim mesmo: é possjvel que exista al- gum psiquiatra que ainda duvide disto? Freud: um ponto de partida da psicologia social' Sigmund Freud assinala claramente sua posigao diante do problema da relagao entre psicologia individual e psico- logia social ou coletiva em seu trabalho Psicologia das massas e andlise do ego. Na introdugao desse livro, em geral tio mal compreendido, diz: “A oposicao entre psicologia individual e psicologia social ou coletiva, que a primeira vista pode nos parecer muito profunda, perde grande parte de sua signifi- cacao quando a submetemos a um exame mais minucioso. A psicologia individual concretiza-se, sem duvida, no homem isolado e investiga os caminhos através dos quais ele tenta alcancar a satisfacao de seus instintos, porém, s6 muito pou- cas vezes, e sob determinadas condigGes excepcionais, Ihe é dado prescindir das relacdes do individuo com seus se- melhantes. Na vida animica individual, aparece integrado sem- pre, efetivamente, 0 outro como modelo, objeto, auxiliar ou adver- sdrio, e desse modo a psicologia individual 6 ao mesmo tempo, e desde o principio, psicologia social, num sentido amplo, mas ple- namente justificado.” Freud refere-se logo as relacdes do individuo com seus pais, com seus irmaos, com a pessoa objeto de amor e com 1. 1965. BOO process grep seu médico, relagSes que tém sido submetidas a investiga- Ges psicanaliticas e que podem ser consideradas como fe- ndémenos sociais. Esses fendmenos estariam em oposigdo aqueles denominados por Freud narcisicos (ou autisticos, por Bleuler)*. Podemos observar, de acordo com as contri- buig6es da escola de Melanie Klein, que se trata de relacdes sociais externas que foram internalizadas, relagGes que de- nominamos vinculos internos, e que reproduzem no ambito do ego relagdes grupais ou ecolégicas. Essas estruturas vin- culares que incluem 0 sujeito, 0 objeto e suas mtituas inter- relacGes se configuram com base em experiéncias muito pre- coces; por isso, excluimos de nossos sistemas 0 conceito de instinto, substituindo-o pelo de experiéncia. Mesmo assim, toda vida mental inconsciente, ou seja, o dominio da fanta- sia inconsciente, deve ser considerada como a interacao en- tre objetos internos (grupo interno), em permanente inter- relacao dialética com os objetos do mundo exterior. Freud insiste na necessidade de uma diferenciagao dos grupos, mas afirma que de qualquer maneira as inter-rela- des entre individuos continuam existindo, e que para sua compreensao nao é necessario recorrer a existéncia “de um instinto social primrio e irredutivel, podendo o comego de sua formacao ser encontrado em circulos mais limitados, por exemplo, na familia” Em outro pardgrafo, diz Freud: “Basta pensar que 0 ego entra, a partir desse momento, na relagao de objeto com o ideal do ego por ele desenvolvido, e que, provavelmente, to- dos os efeitos reciprocos (que poderiamos assinalar como regidos pelo principio de agao reciproca funcionando em forma 2. Poderiamos objetar aqui que essa oposigao nao existe, pois todo nar- cisismo € secundério, na medida em que no vinculo interno, que pode ter uma aparéncia narcisica, 0 objeto foi previamente introjetado. Ou seja, dada uma estrutura vincular, “o outro”, o objeto, esta sempre presente através de tal vinculo, ainda que seja escamoteado sob a aparéncia de um narcisismo secundario. 47 Freud: wo ponto de partida da psicologia social de espiral) desenvolvidos entre 0 objeto e 0 ego total, con- forme nos foi revelado na teoria das neuroses, se reprodu- zem agora no interior do ego.” Esse conjunto de relagées internalizadas, em permanente interacao, e sofrendo a atividade de mecanismos ou técni- cas defensivas, constitui o grupo interno, com suas relagdes, contetido da fantasia inconsciente. A andlise destes paragrafos mostra-nos que Freud al- cangou, por momentos, uma visao integral do problema da inter-relagéo homem-sociedade, sem poder desapegar-se, no entanto, de uma concepcao antropocéntrica, que o im- pede de desenvolver um enfoque dialético. Apesar de perceber a faldcia da oposigao dilematica entre psicologia individual e psicologia coletiva, seu apego a “mitologia” da psicandlise, a teoria instintivista, e seu des- conhecimento da dimensao ecolégica, impediram-Ihe a for- mulacao do vislumbrado, isto é, de que toda psicologia, num sentido estrito, é social. Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal' Minha contribuigdo neste Coléquio Internacional so- bre Estados Depressivos trata do uso instrumental e situa- cional de uma droga antidepressiva (Tofranil), empregada durante o transcurso de tratamentos psicoterdpicos indivi- duais e grupais. O objetivo principal do uso da droga é faci- litar a mobilizagao de estruturas ou pautas estereotipadas (esteredtipos) que se apresentam e operam com as caracte- tisticas de resisténcias ao progresso do processo terapéutico. As ansiedades diante da mudanca ou aprendizagem, de tipo depressivo e parandide, promovem a estruturagao do este- redtipo (“mais vale um passaro na m4o do que dois voan- do”). A oportunidade de um coléquio sobre estados depres- sivos fundamenta-se no fato de que, finalmente, a psiquia- tria aparece progressivamente centrando-se ao redor da génese, estrutura e vicissitudes de uma situacao depressiva bdsica. Acredito ser necessdrio esclarecer previamente, em termos gerais, 0 texto e contexto do quadro ou esquema de referéncia com o qual penso e opero. Assim, farei primeiro uma rapida cronica do desenvolvimento biografico desse esquema referencial. 1. Acta Neuropsiquidtrica Argentina, 6, 1960 50 Oprocesso grupal I Construgao de um esquema conceitual, referencial e operativo (ECRO) Minhas investigagGes sobre uma situagdo depressiva bd- sica (1938) partiram de dois campos ou quadros de trabalho em continua interagdo: 1) de uma pratica continua como psicoterapeuta de ca- sos individuais e de grupos, e 2) de uma vasta experiéncia paralela a anterior e, amitide, combinada com ela, empre- gando tratamentos bioldgicos: choque hipoglicémico, con- vulsoterapia, sono prolongado, etc. No ano de 1946, publi- quei a primeira sintese pessoal sobre uma teoria geral das neuroses e psicoses, introduzindo os conceitos de plurali- dade fenoménica, de unidade funcional e genética (enfermidade unica) e de policausalidade. Sustentava entao: “Através da psicanalise de esquizo- frénicos e epilépticos, e apoiado pelas observacées realiza- das durante os tratamentos bioldgicos, tornou-se evidente um nuicleo psicético central, bem delimitado e do qual par- tem todas as outras estruturas como maneiras ou tentativas de resolver tal situagdo basica. Essa situaco configura-se com os elementos que caracterizam o estado depressivo, com seus conflitos e mecanismos especificos”, “... que a si- tuagao assim estabelecida... situagao basica das psicoses ¢ configurada no sentido de uma estrutura melancélica, é 0 ponto de onde se inicia a elaboragao de outras situagdes que vao configurar todos os outros tipos clinicos descritos. Em termos gerais, poderiamos dizer que esta é a tinica enfermi- dade; todas as demais estruturas sao tentativas feitas pelo ego para ‘desfazer-se dessa situacao depressiva bdsica...’. Criada essa situagao penosa, 0 ego tende a livrar-se dela recorren- do a um novo mecanismo de defesa que € a projeciio. Se for projetada no corpo, configura-se a segunda estrutura, que é.a Emprego do Tofranil em psicoterapia individual egrapal hipocondriaca. Tado 0 que o hipocondriaco diz de seus 6r- gaos é uma transposicéo da situagdo anterior, podendo-se dizer que, enquanto o melancélico é um sujeito perseguido por sua consciéncia, 0 hipocondriaco o é por seus drgiios... Se a pro- jecdo for feita no exterior, configura-se a terceira estrutura: a estrutura parandide... A f6rmula ja expressa de que o melan- célico é um sujeito perseguido por sua consciéncia e o hi- pocondriaco por seus 6rgaos, acrescentaremos que 0 para- néide o é por seus inimigos interiores projetados” (3, 4, 5)*. Indagacées posteriores, em continuidade a estas, per- mitiram-me a construcgao de um esquema conceitual, refe- rencial e operativo cujas caracteristicas podemos, grosso modo, assim definir: 1) A resposta depressiva deve ser considerada como pau- ta total de conduta diante de situagGes de frustragéo, perda, privagao, tendo além disso um carter unitdrio em seu apa- recimento, estrutura e fun¢do. 2) Uma situagao depressiva infantil esta incluida no de- senvolvimento normal (M. Klein [2]), junto a outras situa- bes: esquizdide e epileptéide. 3) A situacao depressiva bdsica opera no desenvolvi- mento de toda doenga mental (situagao patogenética viven- cial). O fator disposicional pode ser expresso em termos de graus de fracasso na elaboragao da situagao depressiva infantil (luto). A regressao, durante o processo da enfermidade, rea- tiva a posigdo depressiva infantil (situagao patogenética), assim como promove o emprego da posicao esquizdide (si- tuagao patoplastica e instrumental), como também da situa- ¢a0 epileptdide (situagao patorritmica temporal). 4) Outra situagao depressiva a ser descrita é aquela que esta incluida em todo processo terapéutico. A resolugao das * Esses ntimeros remetem a bibliografia no final do capitulo a __— O proceso grupal divisdes ou cisdes do ego e de seus vinculos, ou seja, 0 pro- cesso de integracao, sé é possivel através desta nova Ppassa- gem por uma situagdo depressiva (grau de insight conse- guido; é a conseqiiéncia, junto com o processo de re-disso- ciagao). 5) A estrutura da pauta de reagdo inclui o conflito de am- bivaléncia diante de um objeto total. Dai surgem 0 sentimen- to de culpa e a inibicdo ou desaceleragdo de determinadas fungdes do ego. A tristeza, a dor moral, o sentimento de so- lidao e desamparo derivam da perda de objeto e da culpa. A possibilidade de reparar e sublimar estao seriamente im- pedidas. 6) Diante dessa situacao de sofrimento surge a possibi- lidade de uma regressao a uma posicao anterior, operativa e instrumental, para o controle da ansiedade (situagao esqui- z6ide). O mecanismo bdsico aqui € a divisao ou dissociacio (split) do ego e de seus vinculos, coma conseqiiente emer- géncia da ansiedade parandide que substitui a culpa. A situa- ¢4o epileptdide e patorritmica assinala as formas nas quais 0 tempo se manifesta através do manejo das ansiedades bd- sicas ou medos. 7) As neuroses sao técnicas defensivas contra ansieda- des basicas, psicéticas. Essas técnicas sao as mais bem-su- cedidas e as mais préximas do normal, e esto afastadas da situagdo depressiva basica prototipica. As psicoses sao tam- bém formas de manejo de menor sucesso que as anterio- Tes, como as psicopatias, que tém como caracteristica priva- tiva o mecanismo de delegacao. As perversdes manifestam-se como formas complexas de elaboragao das ansiedades psi- coticas e seu mecanismo geral centra-se em torno do apazi- Suamento do perseguidor. O crime constitui a tentativa de ani- quilar a fonte de ansiedade maxima projetada no mundo externo, enquanto esse processo centrado no proprio sujeito configura a conduta swicida. 8) O sofrimento inerente a posigao depressiva esta vin- Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal 53 culado ao incremento do insight (autognose), ou seja, 0 co- nhecimento e compreensao da realidade psiquica interna e externa. O fracasso da elaboracdo da posigdo depressiva (luto), além das conseqiiéncias assinaladas, acarreta inevi- tavelmente o predominio de defesas que carregam em seu bojo o bloqueio das emocGes e da atividade da fantasia. Impedem, principalmente, 0 aparecimento de um certo grau de autognose necessdrio a uma boa adaptaco a reali- dade. (As defesas manfacas que emergem em certos casos condicionam a superficialidade manifestada pelo ego, im- pedindo de certa maneira seu fortalecimento e aprofunda- mento durante o processo terapéutico.) 9) Rickman afirma (6) que nao existe uma psiquiatria sem lagrimas e que é melhor enfrentar concretamente o que se relaciona com a vivéncia depressiva sem, é claro, descui- dar dos outros aspectos que tém relagdo com 0 processo de progressao. Além disso, no contexto de toda psiquiatria di- namica a indagagao e o processo terapéutico sao insepardveis. O paciente, diz Rickman, s6 poderd nos revelar os mais profundos niveis de seu sofrimento sob a condi¢g&o de ex- perimentar, ao mesmo tempo que acontece o processo de indagagao, um alivio de seu proprio sofrimento devido ao proprio processo de indagacao (temos aqui um modelo da- quilo que é denominado indagagao ativa operativa dentro do campo da psicologia). 10) Esse esquema referencial foi depois completado com o enquadramento grupal da situagao depressiva, assim como com as nogées de porta-voz da ansiedade do grupo (0 paciente), de pauta grupal estereotipada, de depressdo basica grupal, de grupo operativo, de coincidéncia do pro- cesso de comunicagao, esclarecimento, aprendizagem e trei- namento centrado na tarefa e no processo terapéutico. Uma espiral dialética assinala a direcdo desse complexo processo. O processo grupal IT Psicoterapia individual e Tofranil (uso instrumental e situacional da droga) H. Azima (1950) vem estudando, em particular, as mo- dificagdes psicodinamicas provocadas pela administracao de Tofranil, tentando encontrar uma explicacdo dos efeitos desta droga. Observou o seguinte: 1) Uma mudanga na di- regao das preocupagées. Estas passam dos objetos internos para os externos. 2) Uma diminuicao do sentimento de cul- pa. 3) Uma diferente orientagao dos impulsos agressivos e, em certos casos, sua liberagdo sob a forma de explosdes agressivas. 4) Uma reorganizacao secundaria das cargas de objeto. 5) Euforia e conduta hipomaniaca em pacientes clas- sificados como manjaco-depressivos. 6) Necessidade de certa intensidade de depressao para a obtengo desses efei- tos; as manifestagdes depressivas leves nao sao influencid- veis pelo Tofranil. 7) Diminuig&o da necessidade de beber alcool. 8) Uma mudanga centrada, unicamente, no estado depressivo. 9) Nenhuma modificacao das caracteristicas ba- sicas da personalidade, anteriores ao estado depressivo (1). Apoiado nessas observacdes, Azima pée em evidéncia uma mutacio do equilibrio da agressividade em relacao ao superego. Essa reorganizagao traz como conseqiiéncia uma sedagao do estado depressivo, mas essa mudanca no equilibrio psicodinamico parece ser transitéria e necessita, além disso, para se produzir, de uma certa intensidade de depressao. O Tofranil representa até o momento o tinico timolép- tico e, em conseqiiéncia, novas orientacdes em psicofarma- cologia. Ao manter o humor e elevar o impulso vital, desen- volve uma aco seletiva sobre o nticleo central da depressao, sem os efeitos de um sedativo, ou de um estimulante ou euforizante. A indagagao sobre a ago dessa droga antidepressiva (Tofranil) — que realizei com a ajuda de meus colaborado- Emprego do Tofranil em psicoterapia indfvidual egrupal____ 55. res, os doutores F. Taragano, G. Vidal, A. Marranti e A. Benchetrit — tinha como ponto de referéncia a consideragdo da situacdo depressiva basica jé descrita. Também se in- cluiu o conceito de que a enfermidade traz implicita, como causa ou conseqiiéncia, uma perturbacao da aprendizagem e da comunicagao. O montante de ansiedade predominantemente depres- siva seria responsdvel pela pauta estereotipada de conduta anormal. A ansiedade diante da mudanga, tornada possivel pela agiio especifica do esclarecimento, provoca, por outro lado, a resistencia & mudanca, que em termos gerais é deno- minada reacdo terapéutica negativa. O Tofranil atua baixando o montante de agressao, de ansiedade, de ambivaléncia e de cul- pa. Dessa maneira, sua aco possibilita uma mudanga, pro- duzida pelo esclarecimento do campo de trabalho. Produz-se a abertura de um circulo vicioso anterior, criando-se as con- digSes para a emergéncia de uma espiral dinamica de apren- dizagem e de comunicagao. A transferéncia negativa dimi- nui (ao diminuir a hostilidade) e a tarefa entre paciente e psicoterapeuta orienta-se para um nivel de maior integragao. A vivéncia da monotonia ou estereotipia torna-se consciente em sua estrutura e motivacées. Observa-se um grande progresso no insight e o paciente chega a vivenciar a entrada numa posicdo depressiva necesséria a todo tratamento realmente eficaz. Expressa de diferentes maneiras que sente que coisas dispersas comecam a juntar-se, que adquirem vida e agora as compreende melhor (integragao). Para ilustrar essa situag4o prototipica de todo tratamen- to, vou utilizar 0 caso analisado por um de meus colabora- dores, o dr. Guillermo Vidal. Trata-~se de uma doente de trinta e cinco anos, casada, que faz uma consulta queixan- do-se de depressdes periédicas, quase sempre durante o inverno, coincidindo com a estagdo do ano em que seu ma- tido mais viaja. Seu primeiro episddio depressivo ocorreu em conseqiiéncia do primeiro parto. Normalmente dura- 56 O processo grupal vam de trés a quatro meses. Aplicaram-Ihe varias vezes in- sulina e eletrochoque. Comega seu tratamento psicanalitico em maio de 1959, em estado de depressao leve. Logo de- pois de umas curtas férias, em julho, ocorre a sexta crise de- pressiva. A depresséo desenvolve-se lenta e progressiva- mente, acompanhada de uma grande inibigéo psicomotora. A doente mostra-se impermedvel as interpretacdes que Ihe sao feitas. E perceptivel o tom choroso e mondtono em que fala. Diz: “Eu me sinto muito mal.” “Eu nao posso nem me levantar da cama.” “E impossivel trabalhar.” “Quero ajudar minhas filhas e nao posso.” “Nao posso, no posso”, repete insistentemente. Como 0 quadro se agrava ostensivamente e a doente quase nao pode vir para a consulta, o terapeuta de- cide administrar-lhe Tofranil em doses progressivas, até cin- co drageas diarias. Isso foi numa sexta-feira; no dia seguinte, sabado, nao foram registradas maiores variagdes. Porém, na segunda-feira, quando ja havia tomado oito drageas, a doente aparece mudada. Diz: “Nao sei 0 que se passa comigo. E como se nao pudesse continuar triste. Ou entdo, agora estou triste mas nao angustiada. Sinto-me simplesmente cansada. Nao posso precisar bem o que esté acontecendo comigo.” Com certa estranheza assiste ao seu proprio acontecer. Dois dias depois, a transformacdo manifesta-se com mais clare- Za; expressa-a assim: “Doutor, hoje me sinto bem.” “Ima- gine que ontem a noite pude ter relagdes com meu marido, e de forma natural (a doente era frigida), coisa que nunca havia acontecido antes...” “Além disso, acontece-me uma coisa estranha, agora é como se de repente eu compreendesse tudo o que vocé me disse antes no decorrer da anilise, e as coi- sas dispersas se juntassem todas e recuperassem a vida, e eu as compreendesse melhor. Nao sei francamente o que me estd acontecendo.” Na semana do inicio do tratamento com Tofranil, a pa- ciente acha-se praticamente recuperada, melhor ainda do que nos intervalos anteriores, com a vivéncia de que com- Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal 57 preendeu muitas coisas (insight) e de que é outra mulher. Poder-se-ia dizer que, subitamente, cristalizara 0 efeito de cinco meses de tratamento psicanalitico. A doente tomou no total cem drageas de Tofranil. TT Psicoterapia grupal (grupo familiar). Uso instrumental e situacional do Tofranil A loucura € a expressao de nossa incapacidade para suportar e elaborar um montante determinado de sofri- mento. Esse nivel de tolerancia é especifico para cada um de nés e depende, em grande parte, da dificuldade relativa em superar a depressao infantil basica, tecida de frustra- g6es, aspiragdes, demandas bioldgicas excessivas, provocan- do a emergéncia da agressao (birras), de ansiedades depres- sivas e parandides (os medos), da ambivaléncia, da culpa, de inibicdes, etc. A emergéncia de uma neurose ou psicose no 4mbito de um grupo familiar significa que um membro desse gru- po assume um novo papel, transforma-se no porta-voz ou depositario da ansiedade do grupo. A estrutura grupal altera- se, ocorrem perturbagGes no sistema de adjudicacgao e as- sungao de papéis, aparecem mecanismos de segregagao do doente, o prognéstico do caso depende, em grande parte, da intensidade desses mecanismos de segregacao. O doente €alienado por seu grupo imediato. Uma determinada inseguranga social instala-se no inte- rior do grupo. Essa inseguranga esta ligada a ansiedade dian- te da mudanca. Essas ansiedades sao de dois tipos, tal como indicamos anteriormente: ansiedade depressiva, expressa como temor ou medo da perda de um status determinado, e ansiedade parandide diante de novas condigGes de vida ou medo do ataque. A pauta estereotipada configura-se de- 58 O processo grupal pois da emergéncia da enfermidade num de seus membros. Constitui um mecanismo de seguranca patolégico; é um sistema em circulo fechado. E um sistema de realimentacao entra em funcionamento a servigo da pauta estereotipada. O sistema de inter-relagées do grupo familiar segue um modelo basico triangular: 0 sujeito, a mae e o pai, ou seus substitutos, a quem so adjudicados determinados papéis que sao por eles assumidos. Os irmaos, de acordo com o sexo, agrupam-se no contexto do papel materno ou pater- no. Distorgdes nesse sistema fazem surgir uma série de perturbagGes e mal-entendidos. nesse Ambito ou campo que a doencga de um dos membros do grupo deve ser compreendida e esclarecida. Esse grupo estereotipado e pouco produtivo se transformard, com 0 uso de determinadas técnicas, no préprio instrumento da operagao corretora. A técnica empregada é a que denomi- namos grupos operativos de esclarecimento, de aprendizagem, de treinamento ou de tarefa, que atua como processo tera- péutico. A tarefa esta centrada na cura do doente. Configu- ta-se uma nova rede de comunicacées. Isso possibilita a mu- danga e a conseqiiente aprendizagem. A ansiedade global assumida pelo paciente novamente se fragmenta e cada mem- bro do grupo torna-se encarregado de uma parte dela. O gru- po transforma-se em uma empresa cujo negdcio é a cura de um de seus membros através do esclarecimento de todos. Porém, novamente, como na andlise individual, perce- bemos que a pauta estereotipada basica se alicerga na si- tuagdo depressiva. Se a ansiedade inclufda em tal pauta é demasiadamente intensa, estrutura-se a resisténcia 4 mu- danga (reagdo terapéutica negativa); 0 tratamento estanca, aparecendo sérias dificuldades no manejo da situacao glo- bal. E nesse momento que incluimos, de maneira instru- mental e situacional, uma droga (Tofranil) que é adminis- trada a todo o grupo, de uma vez, com 0 objetivo de diminuir 0 estado de tensao grupal proveniente da situagdo depressi- va, estereotipada. Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal 59 Assinalarei agora os delineamentos gerais desse méto- do de psicoterapia grupal, tomando como unidade de tra- balho o grupo familiar, com a incluséo de uma varidvel: uma droga administrada a todo o grupo. O principio geral, como ja assinalei, € o de que todo sujeito que adoece psiquica- mente adoece porque assumiu um papel particular, e de certa forma operativo, dentro do grupo familiar, ao trans- formar-se no porta-voz ou depositario da ansiedade do grupo. Dessa maneira, quando o grupo familiar lhe adjudica esse papel e ele o assume, obtém-se um efeito que pode ser ex- presso como superacao da situacéo de caos subjacente. O grupo é transformado através da tarefa psicoterapica num verdadeiro grupo operativo quando, baseado em progres- sivos esclarecimentos, ha um reajuste nos papéis, uma maior heterogeneidade entre seus membros e uma maior homoge- neidade na tarefa. As técnicas empregadas pelo coordenador ou terapeuta do grupo consistem em criar, manter e fomentar a comuni- cago, que vai adquirindo um desenvolvimento progressi- vo em forma de espiral. Dessa maneira 0 grupo aprende, co- munica-se, opera e alivia-se da ansiedade basica. O esclarecimento familiar, que 4s vezes acontece na forma de “revelagdes”, tende a diminuir progressivamente o mal-entendido basico existente no grupo. Os sistemas refe- renciais, as ideologias comegam a ter uma importancia par- ticular nessa andlise grupal; a redugao do indice de ambigiii- dade, devido a resoluc4o de contradices intragrupais (and- lise dialética), constitui uma das principais tarefas do grupo. O esquema de referéncia do grupo agora se realimenta, man- tém-se flexivel, ou seja, nao estereotipado. A situacao de rigidez ou estereotipia da conduta grupal doentia constitui 0 principal ponto de ataque: af centra-se a tarefa. O grau de estereotipia obtido pelo grupo apés a eclosao de uma psi- cose em seu interior constitui o montante de resisténcia ao esclarecimento e a cura. - Oprocesso grupal Criada a situagao de esteredtipo, funcionam também os mecanismos de segregacéo, de expulsao ou alienagdo do pa- ciente. Se isso se produz, o grupo muda sua forma e se es- tereotipa, no sentido de nao mais admitir o membro segre- gado. O prognéstico da enfermidade desse elemento esta relacionado, principalmente, com a receptividade ou nao- receptividade do grupo. Este pode se organizar para man- ter fora o paciente, realizando, por vezes, verdadeiros sa- crificios, contanto que se mantenha a segregacao. Os processos de motivacao (motivos e necessidades) e a acao em sua fase de articulacao tém a ver com os processos de decisdo dentro do grupo. O temor diante da mudanga ea inseguranga social estado na base das ansiedades do grupo, que se expressam em termos das ansiedades basicas de- pressiva e parandide, como ja dissemos. A posigdo depres- siva constitui, essencialmente, a situagao patogenética, e a modificagao da ansiedade do grupo vai girar em torno de sua resolucao (dos medos e birras do grupo). A luta contra as ansiedades depressivas e os esteredti- pos configurados como defesa vao constituir o centro de todo ataque terapéutico, seja por meio da psicoterapia, seja pela acdo de uma droga antidepressiva. O propésito é trans- formar um circulo vicioso, fechado, num circulo benéfico, com aberturas dialéticas sucessivas. A administragao de Tofranil a todo o grupo familiar ao mesmo tempo tem por finalidade diminuir e fracionar a ansiedade, tornando possiveis a ruptura do esteredtipo fa- miliar e a transformacdo desse grupo rigido, nao operante, em um grupo flexivel, plastico, operativo, que assume ago- ra, como tarefa concreta, a cura da enfermidade do grupo na ocasiao de sua emergéncia num de seus integrantes. Em sintese: 0 coordenador ou terapeuta do grupo favo- rece, com sua técnica, os vinculos dentro do grupo. O cam- po da tarefa esta baseado numa situagao triangular, deven- do-se compreender e interpretar o vinculo transferencial Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal_————— 61 no interior desse contexto triangular. A familia reorganiza-se na tarefa de lutar contra a ansiedade do grupo agambarca- da por seu porta-voz (0 paciente). Os papéis redistribuem-se e chegam a operar como liderangas funcionais. Os meca- nismos de segregac4o que contribuiram para alienar o pa- ciente diminuem. As ansiedades sao redistribuidas, o este- redtipo perde sua rigidez e o grupo pode entao enfrentar situagdes de mudanga. A droga favorece a ruptura do estere6- tipo e, pela acao do esclarecimento psicoterépico, 0 grupo integra-se, adquirindo agora a caracteristica de uma estru- tura funcional. Bibliografia 1. Azima, H.,, “Psychodynamic Alterations Concomitant with Tofta- nil Administration’, Canad. Psychiat. Ass. J., 1959, IV, S172. 2. Klein, M. e Riviére, J., Las emociones basicas del hombre, Nova, Bue- nos Aires, 1960. 3. Pichon-Rivitre, E., “Patogenia y dinamismos de la epilepsia”, Re vista de Psicoandlisis, 1944, II, 615. 4, —, “Contribucién a la teoria psicoanalitica de la esquizofre- nia”, Revista de Psicoandlisis, 1946, IV, 1. 5. —, “Psicoanilisis de la esquizofrenia”, Revista de Psicoanilisis, 1947, V, 293. Rickman, J., Selected Contributions to Psychoanalysis, The Hogarth Press, Londres, 1957. > Tratamento de grupos familiares: psicoterapia coletiva’ As definigdes das relagdes humanas, diz Friederic Allen, estéo sujeitas 4 experiéncia vivencial dos individuos, que desempenham papéis correspondentes ao seu agrupamen- to bioldgico (sexo, idade) e a sua adaptacao social, adquiri- da através de seu crescimento e treinamento. Os aconteci- mentos mais significativos para a vida dos individuos e dos grupos estao vinculados ao esclarecimento dessas diferen- cas funcionais e biolégicas, referentes a cada ser humano. As comparagées, imitagdes, rivalidades, satisfagSes e desi- lusdes de cada um constituem o drama dos seres humanos, que convivem e que se empenham em encontrar a maneira de manter sua posigao individual num mundo que pertence aos outros. As inter-relagdes existentes entre os grandes e os pequenos, os jovens e os velhos, os homens e as mulhe- res, preenchem com uma significacao dinamica, para cada ser humano, essa descric&o universal das diferengas possi- veis. A crianca, ao adaptar-se a essas diferencas evidentes, define e da sentido ao préprio papel individual, que desem- penha na relagdo com os demais. Através do processo que 1. Baseado em anotagies feitas pelo Dr. Alegro, 1960. 64 _____ Opracesso grupal conduz a definigéo desse papel para cada individuo, seja ele criancga ou adulto, ele préprio se torna uma influéncia integral que contribui para definir os papéis dos outros in- dividuos que integram seu meio social. Malinowski insiste na “impossibilidade de se imaginar qualquer forma de organizacao social carente de estrutura familiar”. Esta constitui a unidade indispensavel de toda or- ganizagao social, através da historia do homem. A familia adquire essa significagao dinamica para a humanidade por- que, mediante seu funcionamento, fornece 0 quadro ade- quado & definigdo e conservacao das diferencas humanas, dando forma objetiva aos papéis distintivos, mas mutuamen- te vinculados, do pai, da mae e do filho, que constituem os papéis basicos em todas as culturas. A familia sé pode funcionar mediante as diferencas in- dividuais que existem entre seus membros, as quais lhes atribuem os trés papéis, intimamente relacionados, de pai, mace e filho. Se essas diferengas sao negadas ou negligen- ciadas, ainda que isso ocorra por parte de um sé membro do grupo, modifica-se a configuragao essencial que condi- ciona a vida normal, criando-se um estado de confusio e de caos. Segundo Kretch e Crutchfield, a familia, como grupo pri- mario, pode ser analisada em trés diferentes niveis (anlise polidimensional): 1) Do ponto de vista psicoldgico ou psicossocial. Os pro- blemas tipicos a serem estudados seriam os seguintes: a con- duta do individuo em funcdo de seu préprio meio familiar, as reacdes de agressao e submissao em relacao aos diferen- tes tipos de autoridade familiar, o impacto que significa para ele o ingresso de novos membros na familia, suas crengas e atitudes como resultado da educagao e experiéncias fami- liares. Os problemas desse tipo devem ser investigados atra- vés do estudo do campo psicolégico do individuo, quer di- Tratamento de grupos familiares: psicoterapia coletioa seat 65. zer, esclarecendo as nog6es e idéias sobre sua familia em conjunto e sobre cada membro em particular (grupo intemo). 2) Do ponto de vista da dinamica de grupo ou ponto de vista sociodinamico. Investigam-se os problemas refe- rentes a determinadas familias segundo determinadas cir- cunstancias. Por exemplo: perigos externos que ameagam a felicidade da familia, morte ou admisséo de novos mem- bros na familia que acarretam mudangas nas relagdes de autoridade, prestigio, etc. Desse ponto de vista, é impor- tante medir os indices de rigidez ou de maleabilidade do gru- po familiar. 3) Do ponto de vista institucional, os problemas tipicos sao os da estrutura da familia nas diversas classes sociais (meio urbano, rural, classes abastadas, pobres); as transfor- maces da instituig&o familiar devidas a crises econdmicas, guerras, mudangas de costumes. O estudo desses problemas baseia-se, por um lado, na busca de correlagdes entre os indices da estrutura da fami- lia e da forga do patriménio familiar, e, por outro, nos dife- rentes indices da situaco econdmica, meio geografico, ca- samentos, nascimentos, etc. Esses trés niveis complemen- tam-se e estdo numa relacdo de dependéncia reciproca, sen- do impossivel interpretar os dados recolhidos em um nivel sem apelar para aqueles que foram obtidos nos outros. Tratamento do grupo familiar Tendo definido a familia como uma estrutura social bdsi- ca, que se configura pelo interjogo de papéis diferenciados (pai, mie, filho), e enunciado os niveis ou dimensdes envolvidos em sua andlise, podemos afirmar que a familia 6 0 modelo na- tural da situagao de interacao grupal. Os conceitos ja enun- ciados sao decisivos na elaboragao de uma teoria da doen- ca mental e na conseqiiente orientacao da tarefa psiquiatrica. So __— O processo grupal Como ponto de partida do enfoque terapéutico por nés proposto, estabeleceremos as relag6es existentes entre doenga mental e grupo familiar. As contribuigdes da teoria gestdltica, as investigagdes de Kurt Lewin e as conclusGes resultantes de nossas pr6- ptias experiéncias permitem-nos considerar a doenga men- tal nao como a doenga de um sujeito, mas como a da uni- dade bésica da estrutura social: 0 grupo familiar. O doente desempenha um papel, é 0 porta-voz, emergente dessa si- tuaco total. O estudo dos aspectos patolégicos de um grupo fami- liar e sua abordagem terapéutica deverdo incluir varios ve- tores de andlise, entre os quais assinalaremos, em primeiro lugar, os quatro momentos da operagao terapéutica, que sao: a) 0 diagndstico, b) o prognéstico, c) o tratamento e d) a profilaxia. Cada uma destas dimensGes deve ser centrada: 1) no paciente, 2) no grupo, 3) na situagao. Assim temos um diagndstico, um prognéstico, um trata- mento e uma profilaxia, seja do paciente, do grupo ou da si- tuagao. Esses aspectos sao cooperantes e interatuantes, e se complementam. O enfoque grupal permite fazer uma ava- liagao diagnéstica, prognéstica, terapéutica e profilatica mui- to mais operativa do que aquela resultante do centrar 0 pro- blema no paciente com exclusao de seu meio familiar. Os postulados basicos que permitem a compreensao do que foi exposto podem ser assim sintetizados: A) Quanto ao diagndstico 1) Na situagao ha um grupo familiar doente, do qual 0 paciente é emergente e adquire a qualidade de porta-voz da enfermidade grupal. Tratamento de grupos familiares: psicoterapia coletiva 67 2) Isso pode ser mais bem compreendido se virmos a doenga do paciente como um “papel” dentro da situagao grupal 3) O paciente é 0 depositério das ansiedades e tensdes do grupo familiar. 4) Nesse sistema de depositacao € necessario conside- rar: a) os depositantes, b) o depositado e c) 0 depositario. O paciente € 0 depositdrio que se faz portador de dife- rentes aspectos patolégicos depositados por cada um dos outros membros do grupo ou depositdrios. Um exemplo ti- pico é 0 dos pacientes que aparecem clinicamente com qua- dros de deficiéncia intelectual; o paciente (“louco”) faz-se portador da parte “louca” de cada um dos outros membros, que a projetam macigamente, fechando-se assim o circulo vicioso. Ou seja, 0s outros o tratam como “louco”, ¢ este, por sua vez, assume o papel. 5) Isso permite inferir que o paciente é o membro di- namicamente mais forte (e nao o mais fragil), j4 que sua es- trutura pessoal lhe permite tornar-se o portador da doenga grupal. 6) A dindmica subjacente é a de que o paciente adoece como uma forma de “preservar” do caos e da destruigaéo 0 restante do grupo; e pede ajuda (direta ou indiretamente) na tentativa de buscar a solugdo para a cura. 7) Na medida em que a assungao do papel pelo pa- ciente é eficaz, 0 grupo consegue manter certo equilibrio e certa economia sociodinamica. 8) Aparecem, em relac4o ao paciente, mecanismos de segregacao do interior do grupo, como um desejo de elimi- nar a enfermidade grupal. B) Quanto ao prognéstico O prognéstico do paciente do grupo e da situacao sao dados: 68 O processo grapal 9) Pela estrutura pessoal do paciente nesse momento (dindmica e funcionalmente). 10) Em estreita relagdo com a imagem interna que o grupo tem do paciente. 11) Pelo grau de intensidade de esteredtipos com que esses aspectos sdo dinamizados no paciente e no grupo. 12) Pelo montante dos mecanismos de segregacio. C) Quanto ao tratamento E importante romper com o primeiro esteredtipo: a de- legacao do papel pelo grupo e a sua assuncao pelo paciente. 13) A terapia pode ser dirigida ao grupo (incluindo ou nao o paciente), tendendo a romper os esteredtipos e dimi- nuir os mecanismos de segregacao. D) Quanto a profilaxia 14) Ao reduzir as estruturas individuais e grupais, faz- se a profilaxia: a) Da recorréncia de um novo episddio no paciente. b) De outro membro que pode adoecer ao melhorar 0 paciente. c) Do grupo familiar em sua totalidade. Os niveis de abordagem terapéutica seguem 0 esque- ma delineado para a anilise polidimensional. Considerare- mos, entao, a partir do angulo da tarefa corretora: a) Um nivel psicossocial: refere-se as relagdes do paciente com cada um dos outros membros do grupo familiar. Nes- se sentido, a abordagem do grupo é feita através da repre- sentagao interna que o doente tem de cada um dos familia- res, ou seja, aquilo que se denomina grupo interno. A andlise Tratamento de grupos familiares: psicoterapia coletiog______—*9. dos vinculos internos permite melhorar os vinculos exter- nos (ao curar-se, 0 doente por sua vez “cura” 0 grupo ex- terno, os outros, através de suas mudancas de atitudes). b) Um nivel sociodindmico: refere-se 4 abordagem do grupo em sua totalidade gestaltica, e ao estudo do que Le- win denomina dindmica grupal. Podem-se aplicar as técni- cas grupais e as sociométricas. co) Um nivel institucional: refere-se 4 abordagem da fa- milia como instituicao através do estudo da histéria fami- liar, de sua estrutura socioeconémica e de suas relagGes in- tergrupais e ecoldgicas: com outras familias, a vizinhanga, 0 bairro, o clube, a igreja, etc. A anilise sistematica das situagdes grupais nos tem possibilitado registrar um conjunto de processos relaciona- dos entre si, que nos permitem, por sua reiteragao, consi- der4-los como fenédmenos universais de todo grupo, em sua estrutura e dinamica. Para a melhor compreensao desse conceito, emprega- Mos 0 esquema que denominamos do cone invertido. Nesse cone vemos uma base, um vértice e a espiral dialética. s Ocexplicito Dimensdes explicitas Espiral dialética \ Oimplicito Universais 70 Oprocesso grupal a) Na base: localizam-se os contetidos emergentes, ma- nifestos ou “explicitos”. b) No vértice: encontram-se as sifuacées bisicas ou uni- versais “implicitas”. ¢) Aespiral grafica representa o movimento dialético de indagacao e esclarecimento que vai do explicito ao implici- to, com 0 objetivo de explicita-lo. Analisar é tornar explicito o implicito. Enquanto 0 explicito é configurado pelos quatro mo- mentos da operagao corretora, apresentados no primeiro ponto desta anilise, o implicito é constituido pelos “univer- sais” que permanentemente estao atuando e cuja investi- gacdo cabe ao terapeuta em sua operagao. O esquema do cone invertido tem a intencao de configurar em sua base to- das as situagdes manifestas no campo operacional e, no seu vértice, as solugdes basicas universais que esto atuan- do de forma latente. Estes universais sao: a) Os medos basicos: 1) medo da perda da estrutura ja ob- tida e 2) medo do ataque na nova situacdo a ser estruturada. b) “A situacao terapéutica negativa” diante da situacdo de mudanga configurada por: 1) medo da mudanga, 2) re- sisténcia 4 mudanga. c) Um sentimento basico de inseguranca (a formula é “mais vale um passaro na mao do que dois voando”). d) Os processos de aprendizagem e comunicaciio: Ambos os aspectos formam uma unidade e sao inter- dependentes. A comunicacao é 0 trilho da aprendizagem. e) As fantasias bdsicas: 1) de doenga, 2) de tratamento e 3) de cura. Ao encarar a tarefa corretora, 0 terapeuta iré manejar um ECRO que contenha os seguintes conceitos e passos operacionais: Tratamiento de grupos familiares: psicoterapia coletioa 1) O conceito de porta-voz: 0 doente é 0 porta-voz da enfermidade grupal. 2) A andlise dos papéis: fungdes sociais perturbadas, papéis assumidos em situagdes de emergéncia. (Por exem- plo: um pai com papéis maternos.) (Rigidez ou rotativida- de.) Liderangas. 3) A anilise das ideologias (ou preconceitos). Cada fa- milia tem sua ideologia grupal e o membro pode ter sua propria ideologia, distinta da familiar. Assim vemos os con- flitos de geracSes (nos judeus, por exemplo, acontece o fato de os velhos serem sionistas e conservadores; por sua vez, os jovens chegam a assumir idéias de esquerda). Delineiam-se assim as contribuigdes a ser resolvidas. 4) A anilise do mal-entendido bdsico. 5) Aanilise dos segredos familiares. (Todos os conhecem, mas ninguém fala deles.) 6) Aandlise dos mecanismos de splitting. 7) Aandlise dos mecanismos de segregaciio e de suas in- fra-estruturas. 8) Aanilise dos mecanismos de preservacao. 9) As fantasias de onipoténcia e impoténcia, que facil- mente sao projetadas no terapeuta como uma forma de tor- na-lo impotente e paralisd-lo. (O terapeuta é o ser onipo- tente que resolve tudo, ou o ser impotente que nada pode fazer.) 10) A anilise da situagao triangular bdsica reeditada em séries de situagGes triangulares intragrupais. 11) A evolugiio dos meios ou logistica Grupos familiares. Um enfoque operativo' O processo terapéutico tem como objetivo obter uma diminuicéo das ansiedades psicéticas basicas. Em conse- quéncia, como terapeutas, nao falamos de “cura”, mas ten- tamos diminuir um montante determinado de medos basi- cos, de ansiedades, de perda e ataque, de forma que 0 ego do sujeito nao precise recorrer ao emprego de mecanismos defensivos que, estereotipando-se, configurem a doenga, e Ihe impecam uma adaptacao ativa a realidade. A doenga, tal como manifesta fenomenologicamente, é uma tentativa de elaboracao do sofrimento provocado pela intensidade dos medos basicos. Como tentativa, leva ao fracasso, pela utilizagéio de mecanismos defensivos es- tereotipados, rigidos, que se mostram ineficazes para man- ter 0 sujeito em um estado de adaptacao ativa ao meio. (Esse processo acarreta a alienagao do grupo do qual o sujeito que adoece é porta-voz. Ou seja, a alienacao do intra e do extra grupo.) Insistiremos no conceito de adaptacao, pois parece-nos fundamental para a elaboragao de uma teoria da satide e da doenga mental diferenciar um processo de adaptagao ativa 1. Notas de um curso dado no “Centro de Medicina”, 1965-66. 74 Pere te _ O processo grupal a realidade de um processo de adaptagao passiva. Na pratica psiquiatrica, é freqiiente observar que a alta é dada a muitos pacientes mediante a utilizacéo, como indicador de cura, do fato de comerem bem, de se vestirem corretamente, etc., ou seja, de apresentarem um comportamento aparente- mente “normal”, de terem chegado a construir um estered- tipo segundo o qual se conduzem, quase que automatica- mente, em sua vida cotidiana. Nesse esteredtipo, o médico, a familia e os mais chegados integram-se como contexto. O sujeito pode comer, pode dormir, etc., porém nao acon- tecem nele modificagdes profundas, nem, tampouco, atua como um agente modificador de seu meio. Converte-se, assim, num lider alienante de toda uma estrutura, 4 mercé da situacao de impostura grupal, na qual impera a “md-fé”. O conceito de adaptagao ativa que propomos é um concei- to dialético, no sentido de que o sujeito, ao transformar-se, modifica 0 meio, e ao modificar 0 meio, modifica-se a si mesmo. Dessa maneira, configura-se uma espiral perma- nente, pela qual um doente que estd em tratamento e apre- senta melhoras opera simultaneamente em todo o circulo familiar, modificando estruturas nesse meio (produzindo uma desalienagao progressiva do intra e do extra grupo). A afirmagdo de Melanie Klein de que os conflitos, os vinculos e as redes de comunicagao perturbados pela doen- ¢a esto relacionados mais com os objetos internos do que com os externos permite visualizar que a imagem interna que o paciente tem de seu grupo familiar esta distorcida por determinadas situagdes ocorridas em algum momento de sua historia. O paciente tem uma visdo de seu grupo pri- mario totalmente diferente do que este é na realidade, pro- duzindo-se entéo uma intensificagéo do processo de inco- municagao, provocada pelo desajuste ou desarticulagdo en- tre ambas as imagens. Com base nisso, podemos definir o mundo interno e as fantasias inconscientes como a crénica que o self realiza so- Grupos familiares. Um enfoque operative. bre seus vinculos de via dupla com objetos internos, que por sua vez podem chegar a interagir, prescindindo do self. E nesse momento que 0 sujeito experimenta a vivéncia de perder o controle sobre esse agir de seus objetos internos, instalando-se a “loucura”. Ou seja, surge uma “conspiragéo0” interna vivenciada como o enlouquecer, a derrubada do ego. O mundo interno é constituido por um processo de progressiva internalizacao dos objetos e dos vinculos. Este mundo encontra-se em permanente interag4o, interna e com o mundo exterior. Através da diferenciagdo entre mun- do externo e interno, o sujeito adquire identidade e auto- nomia (sentimento de mesmidade ou vivéncia do self). A no- gao de mundo interno aparece como possibilidade de re- solver o conflito entre o geral e o particular. Assim, entramos no terreno da ecologia interna, que investiga os mecanis- mos pelos quais se constréi um mundo interno em intera- cdo permanente com o externo através de processos de in- trojegao e projecao. Essa unidade fundamental que é 0 vinculo constitui-se, durante o desenvolvimento infantil, com base nas necessi- dades corporais que promovem 0 reconhecimento das fon- tes de gratificagao, mediante técnicas mais ou menos uni- versais. Definimos o vinculo como a estrutura complexa que inclui 0 sujeito e o objeto, sua interagéo, momentos de co- municacao e aprendizagem, configurando um processo em forma de espiral dialética, processo este em cujo comego as imagens internas e a realidade externa deveriam ser coinci- dentes. Isso nao acontece, visto que 0 objeto atua em duas diregGes: para a gratificagao (constituindo assim 0 vinculo bom) e para a frustracao (configurando o vinculo mau). As- sim surge a estrutura divalente no sistema vincular com ob- jetos parciais ou, esclarecendo melhor, com uma ciséo do objeto total em dois objetos parciais; um deles vivido com uma valéncia totalmente positiva, pelo qual 0 sujeito se sen- te totalmente amado e ao qual ama; 0 outro objeto é mar- 76 O processo grupal cado por uma valéncia negativa: 0 sujeito sente-se totalmen- te odiado, sendo reciproco esse vinculo negativo, do qual necessita desfazer-se ou controlar. Creio que cabe aqui uma definigao de fantasia inconscien- te: ela é o projeto ou a estratégia totalizante de uma agao com base numa necessidade. Fara a abordagem do processo corretor, quando enfo- camos terapeuticamente um grupo familiar — do qual sur- giu um doente como porta-voz de suas ansiedades -, tor- na-se um passo decisivo detectar a estrutura e a dinamica do grupo interno do paciente, ou seja, a representagdo que ele tem do grupo real internalizado. Essa representacdo constitui a base de suas fantasias inconscientes na relagdéo com sua familia. O terapeuta questionaré a articulacao des- se mundo interno com 0 grupo externo. Através dessa con- frontagao com a realidade, poderemos avaliar a intensida- de e a extensao do mal-entendido, enfermidade basica do grupo familiar. O paciente tem uma imagem distorcida dos membros de sua familia, com os quais nado pode comunicar-se, exa- tamente por essa perturbac&o no vinculo. Sua emissao e recepgao de mensagens sofrem permanentemente a inter- feréncia da projegao de imagens internas construidas du- rante sua infancia em situagGes de frustrac4o ou gratifica- ¢do que nao pode modificar. Como dissemos, essas ima- gens nao coincidem com a realidade, porque se configuram com base nos vinculos bom e mau, seguindo um modelo estereotipado e arcaico. Como vimos, 0 vinculo mau relaciona-se com experién- cias de frustragao, e o vinculo bom com experiéncias grati- ficantes. Referimos a nogao de vinculo ao que Freud chama “instinto de vida e instinto de morte”. Contudo, nao fala- mos de instinto, mas de estrutura vincular, de atitudes que sao o produto de experiéncias muito precoces de gratifica- Go e frustragao. O objeto gratificante, na medida em que Grupos familiares. Um enfoque operation satisfaz as necessidades do sujeito, permite-lhe estabelecer com ele um vinculo bom, enquanto o frustrante o é na me- dida em que nao satisfaz essas necessidades, estabelecen- do-se um vinculo negativo. Nele, a hostilidade 6 perma- nentemente realimentada pelo mecanismo de retaliacao. Diante do objeto gratificante, 0 sujeito experimenta uma ansiedade que denomino “sentimento de estar 4 mer- cé”. O objeto nao é perseguidor, mas uma fonte de angtis- tia na medida em que pode ser perdido. A ansiedade e o temor diante do objeto bom sao experimentados nao tan- to pelo medo da perda do objeto em si, porém, muito mais, pelo medo da perda das préprias partes do sujeito que ele depositou nesse objeto. No grupo interno, a dependéncia surge pela projecdo, numa das figuras parentais, dos aspec- tos bons do sujeito, estabelecendo-se um vinculo bom, de via dupla, com objetos parciais. A ansiedade relacionada com esse vinculo bom (patologia do vinculo bom), o temor do abandono e da perda, originam o sentimento de nostal- gia caracteristico da depressao esquizdide. Sobre 0 outro objeto, e com raizes em experiéncias frus- trantes, 0 sujeito projeta suas partes mas, gerando um re- torno da agressao contra si mesmo, o que da origem aos sentimentos ou idéias de perseguigao. Sao estas, entao, duas imagens basicas que operam na mente do paciente. Como possibilidade de conceituar e sintetizar, insisti- remos que a interacgdo num grupo familiar se estrutura com base num interjogo de imagens internas. Quando em um grupo se produz a emergéncia de uma doenga mental, os integrantes teréo uma imagem do sujeito que adoece, que sera conjugada com as imagens que ele tem dos outros in- tegrantes, de si mesmo e com o que acredita que os outros pensam dele. A tarefa corretora consiste na ratificacao ou retificacao dessas imagens em interjogo. Se forem muito diferentes en- tre si, aparece a duivida, a incerteza, como medida da inten- 78 O processo grupal sidade da fissura existente entre a qualidade da auto-repre- sentagao e a imagem que os outros tém do sujeito. Se 0 ajuste de imagens for perfeito, mas ainda persistir uma conota¢ao negativa, pode surgir o masoquismo, atra- vés do qual o sujeito se tornara 0 portador da situacdo de doenga. Quando alguém adoece num grupo familiar, hd a tendéncia de excluir esse membro, surgindo o mecanismo de segregaco, de cuja intensidade dependeré 0 prognéstico do paciente. A marginalizagao produz-se porque o doente mental é 0 depositario das ansiedades de seu grupo, e as- sim trata-se de afasta-lo, com a fantasia de que, com o de- saparecimento dele, desaparecerd a ansiedade. Mutagao do objeto protetor em bode expiatério Prop6e-se aqui um problema curioso: quem adoece num grupo familiar é o membro mais forte ou o mais fra- co? O mesmo acontece quando se trata de uma enfermida- de psicossomatica. A localizagao de um distarbio num de- terminado drgao abre uma questao sobre se esse érgio serviu para elaborar ansiedades durante muito tempo e foi, em certo momento, um orgao forte, até que se tornou viti- ma da fadiga do conflito e do estado de stress crénico pro- vocado por ele. Na familia, o doente 6, fundamentalmente, o porta- voz das ansiedades do grupo. Como integrante dela, desem- penha um papel especifico: é 0 depositdrio das tensdes e conflitos grupais. Torna-se o portador dos aspectos patold- gicos da situagdo nesse processo interacional de adjudica- ¢do e assuncao de papéis, que compromete tanto o sujeito depositdrio como os depositantes. O esteredtipo configura-se quando a projegao de aspectos patologicos é maci¢a. O su- jeito fica paralisado, fracassa em sua tentativa de clabora- ao de uma ansiedade tao intensa (salto do quantitativo ao Grupos familiares, Um enfoque operation qualitativo) e adoece. A partir desse momento, 0 circulo se fecha, completando-se 0 ciclo de configuragdo de um me- canismo patologico de seguranca que, desencadeado por um aumento das tensGes, consiste numa depositacao ma- ciga dos contetidos ansiégenos no membro doente, com a posterior segregacao desse depositdrio em razao da pericu- losidade dos contetidos depositados. A doenga de um membro, contudo, opera como denun- ciante da situagao conflitiva e do caos subjacente que esse dispositivo patolégico de seguranga tenta controlar. O pa- ciente, por sua conduta desviada, transforma-se no porta- voz, no “aleagiiete” do grupo. Uma vez iniciado o processo corretor, é muito freqiien- te que, apdés algumas sessdes de grupo familiar, haja a eclo- sao de um conflito que, apesar de conhecido por todos, era mantido em siléncio. Esse conflito silenciado, secreto, con- verteu-se, com a cumplicidade explicita ou implicita dos integrantes, num “mistério familiar”, gerador de ansiedades. Provocou-se, assim, uma ruptura da comunicacao. O carater misterioso (perigoso) dessa situagdo vé-se permanentemente realimentado por essa “conspiragao do siléncio”. A familia vive a confrontagao do conflito, a deso- cultagéo, como uma catastrofe, resistindo ao esclarecimento. A mudanga, que por uma ruptura da estereotipia dos papéis possibilitava a redistribuigaéo das ansiedades, pro- duz um temor que se manifesta por um modo particular de tratar o doente, uma ocultagao dos fatos, uma forma de cuidado que configura, na realidade, um mecanismo sutil de segregacao. Esse processo subjacente atua como refor- cador da doenga, j4 que a inseguranca do paciente se vé au- mentada por sua percepgao de que “algo se passa”, sem que esse “algo” Ihe seja esclarecido. Perante essa situagdo, o terapeuta deverd realizar um manejo adequado do timing de esclarecimento, esperando 50 O processo grupal © ponto de urgéncia, ou seja, um avizinhamento do impli- cito ao explicito. A tarefa corretora consistira na reconstrugao das redes de comunicacao tao profundamente perturbadas, na re- construcao dos vinculos, com uma reestruturagao do inter- jogo de papéis. Precisamente no processo de adjudicacao e assungao de papéis ¢ que surgem a confusao e as perturba- ¢6es da comunicagao, viciando-se a leitura da realidade. ‘Tudo isto desencadeia e realimenta os sentimentos de inseguranca e incerteza, que estao na base de todos os trans- tornos individuais e grupais. No sentimento de inseguran- ¢a, incluem-se o medo da perda e 0 medo do ataque. O su- jeito adoece de inseguranga (por amor e de ddio), visto que 0 grupo do qual provém nao lhe permite obter uma identi- dade. A anormalidade dos vinculos, os transtornos da co- municacao impossibilitam discriminar, saber realmente “quem é quem”. Uma familia é, entao, uma Gestalt-Gestaltung, um “es- truturando” que funciona como totalidade. Seu equilibrio é obtido quando a comunicagao é aberta e funciona em mil- tiplas diregdes, configurando uma espiral de realimentagao. Quando um grupo familiar adquire um determinado montante de satide mental, 0 sistema, a rede de comunica- sOes, é multidirecional. Essa rede perfeita que, representa- da graficamente, nos permitird visualizar multiplas linhas de comunicacao partindo de cada membro e incluindo cada um dos integrantes, é caracteristica do grupo que obteve um grau otimo de integracao. Em alguns casos podem surgir subgrupos, que se co- municam no interior de uma estrutura vincular de via du- pla. A existéncia de subgrupos é natural em toda situacdo grupal, mas em certos casos esses subgrupos adquirem ca- racteristicas mais estdveis, mais rigidas, com uma tendén- cia a estereotipar a diregado da comunicacao. Grupos familiares. Um enfoque operativo a set 81 E freqiiente observar-se, em certos grupos familiares, membros com uma tendéncia ao isolamento ou a inclusdo em outro grupo, que progressivamente vao adquirindo uma certa autonomia, uma pertenga a um extragrupo ou grupo de referéncia. Na medida em que deslocam sua pertenga do grupo primdario para o grupo de referéncia, transferem também sua cooperacao e pertenca. O grupo primario é mantido na medida em que outros integrantes podem assumir o papel do ausente, ja que os papéis podem ser complementares ou suplementares. Um grupo familiar que possui uma boa rede de comu- nicagdo, que se desenvolve eficazmente em sua tarefa, é um grupo operativo, no qual cada membro tem um papel espectfico atribuido, porém com um grau de plasticidade tal que Ihe permite assumir outros papéis funcionais. Essa capacidade de assungao de papéis (potencial de substitui- cao na emergéncia) constitui um elemento a ser considera- do no prognéstico do grupo familiar. Na assun¢4o de pa- péis necessitados situacionalmente, configura-se um pro- cesso de aprendizagem da realidade, tarefa fundamental do grupo. Em sintese: um grupo obtém uma adaptagdo ativa a realidade quando adquire insight, quando se torna cons- ciente de certos aspectos de sua estrutura e dinamica, quan- do torna adequado seu nivel de aspiracdo a seu status real, determinante de suas possibilidades. Num grupo sadio, verdadeiramente operativo, cada sujeito conhece e desem- penha seu papel especifico, de acordo com as leis da com- plementaridade. E um grupo aberto 4 comunicagao, em ple- no processo de aprendizagem social, em relacdo dialética com o meio. Insistimos no conceito de aprendizagem do papel no grupo primario, porque as falhas na instrumentagao (papel) geram no sujeito um sentimento de inseguranga que o pre- Be O processo grupal disp6e a cair numa situacao neurdtica. A aprendizagem é perturbada porque o sujeito, segundo um mecanismo ja des- crito, se torna portador das ansiedades do grupo, configu- rando-se a situagao de bode expiatério. Entao o sujeito de- fende-se da ansiedade recorrendo aos mecanismos ou téc- nicas do ego estudadas pela psicologia individual. Se esse recurso adaptativo falhar, a enfermidade eclo- dird, com a conseqiiente segregacao do paciente, abandono do papel, dificuldades na reintegragao do membro doen- te, etc. Um enfoque imediato e pluridimensional da situagado de enfermidade facilitara uma redistribuicao de ansiedades, liberando o paciente da ansiedade global que havia assumi- do, numa tentativa de preservacéo do grupo. Abre-se assim uma possibilidade de esclarecimento do mal-entendido gru- pal, que opera como estrutura patogénica, tornando possi- vel uma reorganizacao funcional e operativa do grupo. De acordo com as pesquisas da Sra. Minkowska, pode- se fundamentar uma tipologia familiar utilizando-se como critérios de classificagao os diferentes graus de aglutinacao, dispersao e dissolugao dos vinculos intergrupais. A Sra. Minkowska iniciou sua tarefa estabelecendo uma distingdo entre as familias estudadas, que foram divi- didas em dois grandes grupos. Consignou num deles todos os nucleos familiares nos quais a tendéncia a aglutinagdo aparecia como predominante, chamando-os “grupos epi- leptoides”. No outro grupo enquadrou as familias caracte- rizadas pela tendéncia a ociagado e dispersao, denomi- nando-os “grupos esquizdides”. Estabeleceu também, entre esses dois pdlos representativos de situagdes extremas, uma gtadacao de quadros mistos, posig6es intermediédrias entre a aglutinagao e a dispersao. A familia do tipo epileptéide evita o deslocamento, esta apegada 4 terra, seus integrantes nao emigram ou, se se impuser o abandono do lugar natal, é feito pelo grupo em Grupos familiares. Um enfogueoperatino == sua totalidade. A estrutura familiar é fechada, rigida, aceita com muita dificuldade o ingresso de um novo integrante, que € sempre colocado num status inferior. (Nas familias turais de tipo epileptéide, o genro ou a nora desempenham sempre as tarefas mais arduas.) Os papéis sao fixos, este- reotipados. Nas situag6es de luto torna-se mais notéria a viscosi- dade do grupo epileptoide: diante da perda, parecem aglu- tinar-se com maior intensidade, e mesmo plasticamente este processo é mais perceptfvel, j4 que o luto na familia epileptdide parece mais negro e os rituais finebres, mais parcimoniosos e lentos. Nas festas, a familia epileptdide mostra uma excitagao contrastante com sua viscosidade habitual. O epiléptico apresenta um baixo limite de reagao ao alcool (alcoolismo patolégico). O estouro de um conflito, com caracteristicas de violéncia stibita e desproporcional, é um traco habitual nas festas das familias epileptdides. Nessas situagdes, nao é raro que 0 conflito culmine num crime. Estudando as ca- racteristicas de um conflito desse tipo, observamos que tem uma histéria dentro do grupo que, ao ser reativada por al- gum fator desencadeante, determina 0 estouro. A familia esquizdide, por sua vez, tende a dissolucao, a ruptura progressiva dos vinculos. A unidade familiar é es- cassa, quase nula. Seus integrantes emigram freqtiente- mente, rompem a comunicagao e desconhecem a nostalgia. O arquétipo ou modelo de conduta é 0 do pioneiro, do aven- tureiro, que perde contato com a familia, que nao escreve. Na realidade, isso se deve a intensidade da internalizacao, que lhe permite manter um didlogo com seus objetos in- ternos, experimentando assim uma proximidade interior que o impede de vivenciar sua solidao. Entre as estruturas intermediarias podemos mencionar a hipocondriaca, com caracteristicas relativamente simila- res as do grupo epileptdide quanto a viscosidade. A perso- 84 O processo grupal nagem central desse grupo, em torno da qual se estrutura a rede de comunicagao, é a doenga. Os integrantes estabele- cem entre si vinculos com caracteristicas particulares, fa- zendo-se uma codificagado em termos de érgaos. E importante assinalar as possibilidades de contami- nacao que apresentam esses grupos familiares hipocondria- cos, no sentido de que, pela convivéncia, podem reativar nticleos hipocondriacos latentes em todos nds, nticleos que tém sua origem numa posigao nao esclarecida diante da propria morte. No processo corretor de um grupo familiar, sejam quais forem as caracteristicas por ele apresentadas, a operagao estara centrada na abordagem do nticleo depressivo basico patogenético, a partir do qual todas as outras estruturas patoldgicas se tornam tentativas fracassadas de elaboracao. Como tarefa complementar, ao enfrentar o tratamento de um grupo familiar com tragos esquizdides, objetivar-se-4 particularmente o estabelecimento de uma rede eficaz de comunicagdo para obter uma maior integracao. Num grupo que apresente tragos epileptdides, o traba- lho terapéutico tenderd a promover a discriminagao, a to- mada de uma distancia dtima, 0 esclarecimento dos mal-en- tendidos e a ruptura de um esterestipo viscoso, de acordo com 0 qual cada integrante é, para o outro, sua proprieda- de privada. Aplicagées da psicoterapia de grupo' Retomarei alguns dos aspectos desenvolvidos por meu colega para enfatizar as alteracdes ou dificuldades na apren- dizagem da psiquiatria. Mencionarei também as aplicagdes das técnicas grupais na industria e na empresa, no hospital e em outros grupos. Ha muito tempo tenho a preocupacao de poder encontrar o meio mais facil para ensinar psiquia- tria. Na realidade, podemos pensar que 0 conhecimento psi- quiatrico, ou seja, o que chamamos de esquema referencial da psiquiatria, esté na mente do estudante. Isto 6, ele tem funcionando dentro de si todos os mecanismos da doenga com variacGes quantitativas entre ele e o doente mais grave do hospital psiquiatrico. O problema é formulado da seguin- te maneira: para poder conhecer o paciente, entrar nele, o aprendiz tem de assumir o papel do paciente. O papel do paciente é um papel que acaba sendo angustiante, porque € 0 papel do doente mental. Ou seja, uma auténtica aproxi- magdo do doente significa para o estudante um perigo, uma ansiedade especial, cujo contetido iremos analisar. A preo- 1. Relato oficial do Primer Congreso Latinoamericano de Psicoterapia de Grupo, 1951 86 process grupal cupacao com esse problema didatico levou-me a outras con- sideracdes no ambito da teoria geral das neuroses. Em cer- ta medida, podemos considerar as neuroses ou as psicoses como uma perturbacao da aprendizagem e uma perturbagao da aprendizagem da realidade: uma perturbacao da apren- dizagem da realidade através de papéis, ou seja, de fungdes sociais. Se a sociedade esta internalizada, estéo depositadas uma série de atitudes, uma série de conhecimentos psicolé- gicos, e é necessdrio somente encontrar o meio, uma maiéu- tica particular, para que cada um dos aprendizes possa ex- plicitar a assuncdo desses papéis. A teoria da aprendizagem, principalmente em seus tltimos desenvolvimentos com Kurt Lewin, com Mead, com Bachelard e Melanie Klein, vem trazendo-nos sucessivas aproximacées. De Kurt Lewin, por exemplo, utilizamos a nogao de campo, a de situagao e mui- tos aspectos de alguns principios topoldgicos da aprendi- zagem. De Mead utilizamos a nogao de papel. De Bache- lard, a de que existe no conhecimento e, mais ainda, neste tipo de conhecimento, o que ele chama de “obstaculo epis- temofilico”. Ou seja, que no campo do conhecimento, o objeto do conhecimento situa-se quase como um inimigo do sujeito. Esse obstdculo tem de ser penetrado, tem de ser conhecido. Neste caso, repetimos novamente, o campo é a aprendizagem, a aprendizagem da psiquiatria, da psiquia- tria, nao individual mas em grupo, ¢ o obstdculo epistemo- filico é 0 outro, o paciente, que, além de obstdculo, tem de ser conhecido. A possibilidade de conhecer essa situagao, 0 que, na verdade, foi feito, através de anilises individuais, deu lugar a tentativa de aplicar todos esses conhecimentos ao ensino em grupo. Isso ocorreu certamente porque 0 gru- po oferece a possibilidade da co-participacao do objeto de conhecimento, ou seja, do objeto mental. E como se no gru- po se fragmentasse a ansiedade provocada pela aproxima- Gao desse objeto. Essas primeiras abordagens provocaram a revisdo da antiquada didatica do ensino da psiquiatria e Aplicacées da psicoterapia de grupo 87 da psicandlise. No entanto, a psicandlise nao incorporou em sua didatica a propria psicandlise. Ou seja, o campo de aprendizagem da psicandlise, na realidade, é bastante ve- Iho. O que se tem feito, sim, é destacar uma série de per- turbagdes da aprendizagem, porém mais em termos de mecanismos, assinalando-se principalmente todos os dis- turbios de aprendizagem nas criangas; no que diz respeito ao adulto, tem havido muito poucas contribuicdes. Contudo, nos ultimos tempos, alguns investigadores tém se preocu- pado com o ensino da psiquiatria, da psicandlise e, ultima- mente, com a psicoterapia de grupo, ou seja, o tema que nos reuniu aqui. Uma vez configurado esse esquema de conhecimento, decidimos abordar o problema. O primeiro grupo que tratamos dessa maneira foi um grupo constitufdo por seis estudantes dos primeiros anos de medicina (ha qua- se trés anos), estruturado com 0 propésito de ensinar psi- quiatria. Era um grupo de alunos que freqiientava 0 hospital, que tinha contato com pacientes — coisa importantissima, porque poderiamos dizer que um ensino de psiquiatria sem contato com os pacientes, seguindo esse esquema de tra- balho, seria um ensino abstrato. Dessa maneira, configu- rou-se um grupo que era praticamente do hospital, e colo- cou-se entao a possibilidade de ensinar. Bem, agora, uma das prescrigGes era que nao deveriam estudar e que deveriam aproximar-se dos pacientes. Dessa maneira, comegamos a trabalhar. As primeiras ansiedades que sofreram nessa si- tuacgao podem ser comparadas, muito diretamente, ao tipo de ansiedade que haviamos visto nas anilises individuais de candidatos a analistas. Ou seja, imediatamente apareceram situagGes fobicas, de temor de penetrar na situacao, de te- mor de penetrar no préprio campo em que estavamos, no proprio campo do grupo, e isso logo foi interpretado. Apre- sentava-se também uma situacao de grande rejeicdo. A re- sisténcia expressava-se como uma resisténcia a aprender, ja que a prescrigao era analisar o aprender. Por exemplo, 88 _ O processo grupal muito cedo na terccira aula ou sessao (as sess6es realiza- vam-se uma vez por semana no préprio hospital e duravam uma hora), apareceu uma situacéo especial, momento em que pudemos ver quase toda a patologia mental. Tratava-se de uma situacdo de exame. Os seis estavam na mesma si- tuagdo ¢ os seis reagiram ao impacto do exame com dife- rentes quadros. Ou seja, pudemos ver todos os quadros psi- cossomaticos e todos os quadros mentais atenuados nessa situagao. Alguns experimentaram ansiedade claustrofobi- ca, outros uma situag4o agorafobica, outros ansiedades de- pressivas, outros ansiedades parandides, outros tiveram diar- réia, e outros tiveram diversos sintomas: nduseas, vomitos, dores de cabega, etc. O impacto dessa primeira aula criou neles uma situa- cao de resisténcia, até que pouco a pouco foi fragmentado esse objeto de conhecimento e novamente compartilhado. Entdo, periodicamente, cada vez que se penetrava numa sé- tie de conhecimentos, produzia-se a mesma situagao. Ou seja, a elaboragdo, que é na realidade um processo de assi- milagao e reestruturagao no grupo, é feita de maneira gru- pal, e isso constitui ent&o, para um tipo de ensino como o da psiquiatria, da psicologia, da filosofia, etc., um meio real- mente eficaz. Além disso, poderiamos dizer que toda a pe- dagogia e a didatica se configuram, em geral, com base numa situagao falsa, pois quase sempre se referem a uma situa- ¢40 a dois. Contudo, a situacao natural é grupal; por exem- plo, ensinar um grupo de criancas. E curioso encontrar na historia da pedagogia algumas tentativas muito importan- tes, por exemplo, na escola de Cousinet na Franga, que apro- veita a situagao do grupo para o ensino. O tema da aula nao tem uma ordenagao sistematica. Ele é trazido por um dos alunos, que entao assinala uma dificuldade. Por exemplo, uma técnica que pouco a pouco foi surgindo — porque na realidade aprendemos uma técnica com esse primeiro gru- po ~ era a seguinte: cada vez que aparecia um quadro clini- Aplicagdes da psicoterapia de grupo 89 co determinado, eu solicitava aos alunos que cada um fa- lasse sobre a vivéncia que tinha a respeito de um determi- nado disturbio. Numa aula sobre esquizofrenia, por exem- plo, cada um havia recebido um impacto particular. Ou seja, para alguns chamou a atenco 0 isolamento, para ou- tros a indiferenga, ou a dissociagao, ou o delirio, e assim podiamos montar 0 quadro fragmentado através do grupo, facilitando sua assimilacdo. Esse grupo teve caracteristicas particulares, no sentido de que sofreu varias situacdes im- pactantes no hospital; também situacdes com o observador, que, por uma situacao politica, criou uma tensdo muito gran- de dentro do grupo, sendo finalmente expulso. Essa situa- cao de expulsao do observador do grupo coincidiu com um aumento da ansiedade na penetracao do objeto do conhe- cimento. Na realidade, ele foi utilizado como “bode expia- tério”. Isso criou um grande sentimento de culpa, muito dificil de elaborar. Pouco a pouco, no decorrer do tempo, cada um teve a fantasia de fazer uma anilise individual, e, assim, progressivamente, foram entrando em anilise indi- vidual. A prescrigao era de que aqueles que fizessem andli- se individual deixassem o grupo. Isso criou uma grande an- siedade para desapegar-se do grupo. No entanto, varios 0 fizeram, e atualmente é um grupo que, de seis elementos, ficou reduzido a trés, dos quais dois, a semana que vem, ou por estes dias, comegam uma andlise individual. Permanece apenas um, que nao a pode fazer. O balango desse primeiro grupo de trabalho de ensino foi muito positivo, porque depois os vi trabalhar em ocupa- ¢6es nao psiquiatricas clinicas; por exemplo: trabalharam co- migo em trabalho social, em trabalho de pesquisas, e de- monstram uma compreensao notavel de todo 0 acontecer e, principalmente, ndo tém conhecimentos psiquiatricos clini- cos classicos, mas possuem, especialmente, uma grande compreensao do fendmeno mental referente ao seu contex- to social. Considero essa experiéncia notavelmente positiva. 90 O proceso grupal A outra experiéncia, seguindo outra técnica, consiste na possibilidade de ensinar psiquiatria de maneira acumu- lativa, ou seja, propor um plano de ensinar psiquiatria a um grupo, seguindo mais ou menos esta técnica e trabalhando trés ou quatro horas didrias durante dez dias. E uma expe- riéncia que realizei quatro vezes em diferentes lugares, di- ferentes paises, também com excelente resultado. Porém eram pessoas que tinham experiéncia psiquiatrica e, em mui- tos casos, tinham comegado uma anilise. A fantasia basica que dificulta a aprendizagem é uma fantasia que foi assina- lada por Melanie Klein: o temor, a ansiedade de destruir o objeto de conhecimento, que neste caso, por exemplo, pode estar representado pelo peito ou pelo corpo da mae; entre- tanto, outra ansiedade soma-se a esta: o temor de perma- necer dentro do objeto, uma vez que penetrou nele e 0 es- vaziou. O aprisionamento no objeto e a situaco claustro- fobica dentro dele — e neste caso o objeto é um alienado mental ~ produzem entao uma ansiedade particular que se expressa nos sonhos que pude recolher neste grupo, carac- terizados, fundamentalmente, por manifestos contetidos claustrofdbicos, no sentido de que nao podiam sair do hos- pital, que o porteiro nao os conhecia, que haviam mudado de aspecto, que estavam vestidos como os doentes. Toda uma gama de sonhos que indicavam exatamente essa si- tuacgaéo. Uma vez conhecida essa situagao basica, com um grupo novo, ja pude trabalhar diretamente sobre ela. Ou seja, desde as primeiras sessdes é possivel abordar 0 pro- blema, ja que a atitude de rejeicao a psiquiatria, a dificuldade diante da psiquiatria, 6 uma atitude natural, principalmen- te em quem tem vocagao para esse tipo de conhecimento. Se a situagao nao for analisada precocemente, produz-se um fenédmeno muito especial, que podemos chamar de fe- némeno de distanciamento do objeto. Pouco a pouco, en- tao, o estudante ou o aprendiz se afasta do objeto de conhe- cimento, toma-o superficialmente e, inclusive, ndo assume Aplicagies da psicoterapiadegrpo © papel, mas representa o papel do paciente, imitando coi- sas dos doentes. E muito freqiiente ver, nos hospitais psi- quidtricos, a presenca de um grupo de estudantes ou médi- cos que tém tragos particulares que lembram aspectos dos doentes. E muito comum dizer que o psiquiatra se “conta gia”. 6 evidente que sim, porém, desse ponto de vista. Se ele se identifica com 0 paciente ou o imita, cai finalmente no jogo. Ou seja, temos dois tipos de aprendizes de psi- quiatria: aqueles que permanecem dentro do hospital, que geralmente se identificam com os pacientes, criando uma vida parasitaria; e aqueles que, geralmente, vao se distan- ciando do paciente até que, por fim, fazem uma psiquiatria por delegacao, ou seja, por intermédio dos ajudantes, dos médicos, enfermeiros, fazendo-os realizar, por exemplo, as terapias bioldgicas. Creio que essa experiéncia é muito util, tanto para aquele que recebe o ensinamento como para aquele que a realiza. O outro aspecto fundamental que deve ser analisado é um tema que temos mencionado muito neste congresso: 0 esquema referencial. O esquema referencial ¢ 0 conjunto de conhecimentos, de atitudes, que cada um de nds tem em sua mente e com o qual trabalha na relagao com o mundo e consigo mesmo. Ou seja, que pode ser, até certo ponto, nucleado e conhecido. O fundamental, entao, é que aquele que se aproxima de qualquer campo de conhecimento co- nhega, mais ou menos conscientemente, até onde lhe for possivel, os elementos com os quais opera. A situacaéo do psiquiatra, do psicanalista, é particular, visto que nao so- mente tém de penetrar no paciente para conhecé-lo e en- téo, por analogia, reconhecer o do outro como de si mes- mo, mas deve modificar seu campo de trabalho, devolven- do esse conhecimento e modificando a estrutura do campo e do objeto. Esta maneira de trabalhar, ou seja, buscando fantasias basicas de uma tarefa, pode ser realizada em ou- tros Ambitos. Essa é a fantasia basica da aprendizagem da 92 _____ Oprocesso grupal psiquiatria. O mesmo poderia ser realizado em qualquer profissao, e assim, entéo, poderiamos estender este tipo de aprendizagem a outras disciplinas que formam o contexto geral das relagdes humanas. Por exemplo, tanto uma em- presa como um hospital ou uma instituicgéo podem ser es- tudados e considerados como uma totalidade e como um grupo. Ha dois magnificos estudos integrais de um hospi- tal psiquidtrico de Stuart, onde foram analisados todos os tipos de relagGes estabelecidas dentro dele: todas as hierar- quias, os status e todos os fendmenos de comunicagao e formagao. E assim foi possivel descobrir uma série de fend- menos, importantes nao sé do ponto de vista do conheci- mento em si, mas pelo fato de esse conhecimento ser ime- diatamente operacional. Quer dizer que, modificando certos aspectos da estrutura de um hospital e os contatos entre funciondrios e pacientes, resolveram um quantum bastante consideravel do isolamento dos pacientes. Estudaram jus- tamente o problema do isolamento, da ruptura da comuni- cacao dentro do hospital psiquiatrico, e de que maneira um paciente psiquiatrico, inclufdo nesse contexto, pouco a pou- co, por falta de contato humano, rompe com a possibilidade de comunicar-se com 0 exterior e permanece fixado, preso definitivamente numa comunicacdo interna com um vin- culo interno. Quando os problemas de isolamento eram muito agudos, descobriu-se sempre que esse problema nao existia apenas no paciente, mas também no pessoal encar- regado de traté-lo. E assim, entao, fazendo grupos com en- fermeiros e também com médicos, péde-se reduzir esse problema tao sério que afeta o hospital psiquiatrico: 0 iso- lamento. Outros problemas foram encarados, como a exci- tagao, a falta de controle esfincteriano, problemas do sono, de fuga, de suicidio. Enfim, todos os problemas dessa peque- na comunidade que é o hospital foram, assim, considerados em seu conjunto, e muitos deles puderam ser reduzidos. Aplicagées da psicoterapia de grupo 93 Assim como ha uma fantasia total sobre o hospital, existe também uma fantasia total do que é uma empresa ou uma fabrica. Quanto a empresa ou fabrica, essa situagéo foi estudada pela primeira vez com um surpreendente grau de profundidade por Elliot Jacques, psicanalista e socidlogo inglés. Surgiram nas fabricas problemas de grupo. Os pro- blemas podem acontecer entre os grupos dirigentes ou en- tre funciondrios e operarios*. O conflito foi criado por uma modificagao no regime de saldrios. Jacques pode pesquisar a situagao psicolégica e o significado do conflito em cada um dos grupos. Era uma grande empresa em Londres. As ca- racteristicas de sua atuacao foram: ele e sua equipe haviam sido contratados pela fabrica, pelo sindicato e pelo gover- no. Essa situagdo ideal péde condicionar uma investigagéo profunda. Todo o tipo de ansiedades parandides, depressi- vas, que caracterizam profundamente a situagao foi visto ali, e Jacques péde pesquisar, através desse trabalho, como as instituigdes sociais funcionam como defesa contra an- siedades psicoticas. Ou seja, o enfraquecimento dessa estru- tura acarreta um fendmeno de aumento de ansiedade, au- mento de inseguranga, aumento de conflito e hostilidade, criando-se assim um circulo vicioso que as vezes é impos- sivel reduzir no campo das relages humanas na empresa. * No original, trabajadores y obreros, (N.doT.) Discurso pronunciado como presidente do Segundo Congresso Argentino de Psiquiatria’ Este Segundo Congresso Argentino de Psiquiatria é uma contribuigéo para o Ano Mundial da Satide Mental (1959- 1960), auspiciado, principalmente, pela Federacéo Mundial para a Satide Mental, cujo presidente, o professor Pacheco e Silva, hoje nos honra e incentiva com sua presenga e co- laboragao. Afirma-se: “O maior problema sanitério no mundo de hoje é o da mé satide mental, que ocupa mais leitos de hos- pital do que o cancer, as doengas do coragio e a tuberculose juntos. E mais, para cada paciente que recebe tratamento num hospital psiquidtrico ha pelo menos dois que nao es- to internados, ou seja, que vivem fora do hospital, nao su- ficientemente doentes para ser hospitalizados, nem sufi- cientemente sadios para viver uma existéncia saudavel e feliz.” Calcula-se, além disso, que cerca de metade dos lei- tos hospitalares se acha ocupada por casos psiquiatricos, en- quanto um tergo ou mais dos pacientes externos que pro- curam, por qualquer motivo, consultas nos hospitais gerais, fazem-no por motivos psicolégicos. A gravidade desse pro- 1 Acta Neuropsiquidtrica Argentina, 7, 1961. 96 O processo grupal blema foi considerada, hé muitos anos, num seminario da Organizacéo Mundial de Satide, quando se fez a seguinte declaracao, tao atual hoje quanto na época: “Se as doencas isicas alcancassem no mundo as proporgées de muitos dos atuais males sociais que tém sua origem em fatores emocio- nais (como a delingiiéncia, 0 alcoolismo, as toxicomanias, os suicidios, etc., sem contar os casos de doengas mentais tipicas), declarar-se-ia, sem diivida, um estado de epidemia, e adotar-se-iam poderosas medidas para combaté-la.” Ou seja, colocar-se-ia a humanidade numa situagao de emer- géncia, num estado de quarentena. Muitos dos problemas da vida moderna sao na reali- dade problemas de satide mental, como medo, inseguranca, nervosismo, intolerancia, preconceitos, etc.; porém, por sor- te, pode-se afirmat, por outro lado, que diagnésticos e tra- tamentos precoces com métodos adequados podem fazer que 80% dos doentes mentais possam reintegrar-se 4 so- ciedade, num tempo cada vez mais curto. Quanto a insalubridade psiquidtrica, existe um proble- ma cuja importancia adquire um significado particular: 6 0 da insalubridade psiquidtrica no ambito estudantil, de onde sairao os quadros dos futuros dirigentes nos diferentes ni- veis da estrutura social. Calcula-se, por exemplo, que nos Paises Baixos cerca de 35 em cada 1.000 estudantes neces- sitam de assisténcia psicolégica ou psiquidtrica. Em nosso meio, nao realizamos estudos sisteméticos, mas obtemos dados concretos através de investigacées em grupos voca- cionais. O problema é sério, tanto mais sério quanto maior a coincidéncia do préprio campo da aprendizagem com a orientagao e a mente do aprendiz: ou seja, os estudantes de psicologia e os aprendizes de psiquiatria so os que esto em um estado de maior vulnerabilidade. Nos Estados Unidos, tem-se dado especial atencdo a satide dos estudantes, e os estabelecimentos de ensino su- perior contam, em sua maioria, com seus préprios psiquia- 97 Discurso tras, psicdlogos, assistentes sociais, etc. Pesquisas realizadas tém provado a importancia desses problemas; a demanda de psicoterapia no meio estudantil é muito maior do que até entdo se acreditava. Provou-se também que as causas que estao por tras dessas perturbagées derivam de situacdes familiares ou das comunidades e dos meios sociais dos quais os estudantes sao origindrios. Por exemplo, um desajuste ou desnivel existente entre os valores e os costumes de um grupo de estudantes e os da coletividade de onde provém contribui para criar um estado de tensao particular que di- ficulta a aprendizagem. Ja em 1920, a Associacaéo Norte- Americana para a Satide Estudantil insistia nesse proble- ma, com 0 objetivo de zelar pela integridade da comunidade estudantil. Constitui uma economia consideravel fazer a prevencao de fracassos parciais ou totais na aprendizagem. Além disso, é fazer higiene mental em seu sentido verdadei- ro. Assinala-se que aproximadamente 10% dos estudantes do nivel universitario correm 0 risco de sofrer sérias dificul- dades na aprendizagem, o que acarreta ainda problemas mais sérios de adaptacao social no futuro. Afirma-se que uma pessoa mentalmente sa é aquela capaz de enfrentar a realidade de uma maneira construtiva, de tirar proveito da luta e transforma-la numa experiéncia util, de encontrar maior satisfacao no dar do que no receber e estar livre de tensdes e ansiedades, dirigindo suas rela- ces com os outros para obter miitua satisfagao e ajuda, de poder usar certo montante de hostilidade com fins criativos e construtivos e de desenvolver uma capacidade de amar. Toda escola de psicologia ou de psiquiatria deve dispor, por tudo 0 que foi dito, de consultdrios de satide mental, com o objetivo de tratar as tensGes que emergem dentro do pré- prio campo da aprendizagem. A identificag@o com 0 outro, ou os outros, € o instrumento com o qual a aprendizagem opera. O aprendiz de psicdlogo, psiquiatra ou psicdlogo so- cial pode vir a ter perturbado esse instrumento de trabalho, i O processo grupal que é facilmente vulnerdvel, e 0 processo de identificacao, uma vez viciado, acarreta graves distorcgdes no campo con- creto da observagao, ou seja, da leitura da realidade. Para resolver esses problemas, faz-se necessério utilizar técnicas grupais na didatica e na aprendizagem da psicolo- gia, da psiquiatria, das ciéncias sociais, etc. O que caracteri- za nosso modo atual de encarar os problemas psiquiatricos e sociais é 0 enquadramento grupal em diferentes contextos: 1) Promover uma didatica e uma aprendizagem com técnicas grupais, uma didatica interdisciplinar, acumulativa e departamental. 2) Tanto o diagndstico como o prognéstico devem tam- bém ser estabelecidos de forma grupal. Sao surpreendentes Os novos emergentes que aparecem com essa abordagem. Os tratamentos com drogas podem ser utilizados de forma instrumental e situacional para ajudar a mobilizar o estere6- tipo neurdtico ou psicdtico do individuo e do grupo. O tra- tamento pode chegar a atingir — além de grupos restritos — comunidades, que se transformam assim em operativas, te- tapéuticas, o que equivale a criacdo de estruturas com esse propésito. Obtemos assim trés instrumentos basicos de trabalho: a) grupos operativos, b) estruturas operativas, e c) comunidades operativas ou terapéuticas. 3) Técnicas grupais sao empregadas no ambito da em- presa para o tratamento de tensdes no contexto das rela- goes humanas. O mesmo pode ser dito para o tratamento da delingiiéncia, do alcoolismo e de outros males sociais. 4) Grupos operativos heterogéneos de aprendizagem sao uma garantia de eficiéncia, pois incluem, em niveis que al- ternam funcionalmente, psiquiatras, psicdlogos, socidlogos, economistas, etc. A unidade de trabalho é 0 grupo ou comunidade que tra- balha tendo por base outros grupos ou comunidades. Cada trabalhador social (psiquiatra, socidlogo, antropdlogo, etc.) Discurso Baan aes arate deve ter seu papel e assumir uma lideranca funcional em cada momento especifico da tarefa. Os grupos operativos ou comunidades do mesmo tipo tém sua atividade centrada na mobilizacao de estruturas estereotipadas, dificuldades de aprendizagem e comunica- cdo provocadas pelo montante de ansiedade despertada por toda mudanca. Os grupos podem ser verticais, horizon- tais, homogéneos ou heterogéneos, primarios ou secunda- rios; mas em todos deve-se observar uma diferenciagado pro- gressiva, ou seja, uma heterogeneidade adquirida 4 medida que aumenta a homogeneidade na tarefa. Tal tarefa depende do campo operativo do grupo; num grupo terapéutico, a ta- refa é resolver 0 denominador comum da ansiedade gru- pal, que adquire caracteristicas particulares em cada mem- bro; é a cura da doenga do grupo. Quando se trata de um grupo de aprendizagem de psiquiatria ou psicologia clini- ca, a tarefa consiste na resolugdo das ansiedades ligadas a aprendizagem dessas disciplinas, facilitando-se assim a as- similacao de uma informagao realmente operativa. O pro- pésito geral é 0 esclarecimento dado em termos dos medos basicos, aprendizagem, comunicac4o, quadro de referéncia, seméantica, decises, etc. Dessa maneira, a aprendizagem, a comunicacao, 0 esclarecimento e a resolugao da tarefa coin- cidem com a cura do grupo. A aplicagdo dessas técnicas a grupos primarios (a fami- lia, por exemplo), cuja tarefa é curar alguns de seus mem- bros, oferece 0 exemplo mais evidente do que é um grupo operativo. O mesmo poderiamos dizer do campo da delin- qiiéncia juvenil: trata-se aqui de transformar um bando ou quadrilha num grupo operativo, ao qual se atribui uma ta- refa social construtiva. No caso da familia, esta se reorganiza, ou melhor, organiza-se contra a ansiedade do grupo acam- barcada por seu porta-voz, o doente. Os papéis sao redis- tribufdos com caracteristicas de liderangas funcionais, os mecanismos de segregacao que alienam o paciente passam 100 OO processo grupal por um enfraquecimento progressivo, a ansiedade é redis- tribufda, cada um se faz portador de uma determinada quan- tidade desta, ou seja, de uma responsabilidade especifica. Desse modo, o grupo familiar transforma-se numa empre- sa e o negécio que realiza é a cura da ansiedade do grupo. Oensino departamental — ou interdepartamental - e in- terdisciplinar é a base institucional necessdria 4 mudanga que propomos. E nesse ambito departamental que se deve- réo reduzir as contradi¢Ges, as rivalidades e as invejas pro- fissionais que hoje obscurecem o campo de nossa tarefa. ‘Todo adiamento quanto a esse aspecto s6 consegue ali- mentar sentimentos de culpa com ressentimento e perse- guicao, quando este sentimento de culpa é projetado sobre os outros. Cada intragrupo considera o extragrupo como res- ponsdvel pelo atraso da tarefa, emergindo assim um bode expiatério num dado contexto. Por isso, cada um de nds deve assumir seu papel e sua responsabilidade correspondente, ja que estamos comprometidos numa situagdéo de emer- géncia. Isto do ponto de vista assistencial. Uma ultima questao: nés, que assumimos a responsa- bilidade de contribuir para a formagao de psiquiatras, psi- célogos clinicos, psicdlogos sociais, etc., nao devemos es- quecer-nos de identificar basicamente 0 ato de ensinar e aprender com 0 ato de inquirir, indagar ou investigar, ca- racterizando assim a unidade do ensinar-aprender como uma continua experiéncia de aprendizagem em espiral, na qual num clima de plena intera¢ao, professor e aluno — ou gru- po — indagam se descobrem ou se redescobrem, aprendem ese ensinam. A psiquiatria no contexto dos estudos médicos' Contribuigdo ao subtema “O ensino da psicologia médica” (trabalho em colaboragdo com o dr. Horacio Etchegoyen) O ponto decisivo, talvez, da medicina de nossos dias é seu reencontro com 0 homem. Abarcd-lo em sua mais alta e complexa unidade é hoje sua grande tarefa, j4 que nao é mais possivel estudd-lo na soma de suas partes, mas em. sua viva totalidade funcional. O século XIX permitiu compreender 0 homem como ser bioldgico adaptado a seu meio. Com o método das cién- cias naturais, estudou o organismo, de forma profunda, ra- cional e objetiva, alceangando assim um conhecimento de irrepreensivel solidez, porém com um enfoque parcial e frag- mentario. Parcial, enquanto desconsiderou o fato incontes- tavel de que o meio ambiente do homem nao é somente fisico, mas também social; fragmentario, enquanto estudou o ho- mem morto e em setores. Para continuar interpretando o homem como ser biolégico adaptado a seu meio, teve de reconhecer seu mais alto nivel de atuacao, 0 psiquico, e apreendé-lo em sua integral e indivisivel qualidade biol6- gica, psicolégica e social. 1. Nao nos foi possivel localizar onde foi apresentado originalmente este trabalho. 102 process grupal Essa nova antropologia sociomédica foi gestada, em grande parte, a partir da psiquiatria, o que permite resolver a antinomia entre doenga e doente, valorizar a importancia dos componentes psicoldgicos e sociais no comportamento, na satide e na doenga e captar os fatores afetivos que inci- dem na relagéo médico-paciente. Explica-se assim a mis- sao da psiquiatria no contexto dos estudos médicos: ofere- cer as bases para uma visao mais integral do homem. Para atingir esses fins, é inevitavel um ensino psiquidtrico novo e mais amplo. E sabido que o ensino médico se ressente de uma ex- cessiva extensdo, nao havendo justificativas que legitimem um aumento dessa extensdo. A questdo nao é, pois, sim- plesmente advogar um maior ensino psiquidtrico mas as- sinalar de que forma pode a psiquiatria colocar-se a servico da formagao médica. Isso s6 podera ser obtido se um novo equilibrio dos planos de estudo lhe outorgar o lugar que lhe corresponde. Convém que os novos conhecimentos se incorporem ao ensino desde 0 comego, para evitar que o estudante ad- quira um conceito parcial da natureza humana, e, mesmo assim, seria prudente que fossem ministrados pela cdtedra psiquiatrica, de forma que seja somente uma a disciplina responsavel por esse aspecto fundamental do ensino mé- dico. Nao seria aconselhdvel deixd-la entregue a boa von- tade das outras cdtedras, por motivos dbvios e miiltiplos, embora desde 0 inicio se deva favorecer toda aproximacio entre as diversas disciplinas. Daf se segue que a psiquiatria, na condicao de matéria basica, deve ocupar um lugar ao lado da fisiologia, da ana- tomia, da histologia e contribuir com essas disciplinas para a preparacao do aluno desde os primeiros anos. Incorporar esses conhecimentos é tao importante quan- to criar uma nova matéria, seja ela psicologia médica ou psiquiatria pré-clinica. Esta Ultima denominagao tem a van- ‘Appsiquiatria no context dos estudos médicos_-— 108. tagem de estabelecer sua continuidade com a catedra de psiquiatria, o que é muito importante; mas, por outro lado, complicard o funcionamento dela, porque a obrigaré a um trabalho muito amplo, para o qual, em geral, nao esta pre- parada. Em conclusao, o dilema psicologia médica ou psiquiatria pré-clinica pode ser resolvido de qualquer uma das manei- ras propostas, seja criando-se a catedra de psicologia médi- ca, seja estendendo-se 0 raio de aco da psiquiatria, desde que se assegure a unidade do processo docente, articulan- do-o com o plano geral da formagao médica. Contetido do ensino da psiquiatria Mesmo havendo um acordo geral quanto ao fato de que a psiquiatria deve ser ensinada ao longo de toda a car- reira, existem discrepancias sobre seu programa de ensino, porque fica dificil fixar os conceitos gerais que satisfagam a todas as escolas. Contudo, talvez no seja necessdrio pre- tender esse acordo e seja mais conveniente respeitar a indi- vidualidade dos professores, em cujo bom critério cabe le- gitimamente confiar. Deve-se propiciar o funcionamento paralelo de varias cdtedras de psiquiatria em cada faculdade, como acontece, por exemplo, no Chile, dando aos estudantes a liberdade de se inscrever segundo suas preferéncias. Dessa forma, cada cdtedra atenderia um grupo de alunos ao longo de toda a carreira, com uma ordenacao no sentido vertical e nao trans- versal, para assegurar a continuidade do processo docente. Se nessas cdtedras houver homens representativos das grandes escolas psiquiatricas, o que existe em todo pais, to- dos teriam oportunidade de desenvolver seus planos de ensino e confronta-los com os demais. Por outro lado, isso estimularia os futuros psiquiatras a entrar em contato com WOO process gripe todas as escolas, e, como assinala Whitehorn, isso é impres- cindivel quando se quer evitar o sectarismo. Para os alunos, no entanto, um ensino de tal amplitude e complexidade le- varia a uma desalentadora exposigao de dados, de valor formativo duvidoso. A Conferéncia de Ithaca, “Psychiatry on Medical Edu- cation”, 1951, propés linhas gerais para o plano de estudos de psiquiatria, que abrangem os quatro anos do curriculo nos Estados Unidos. Nos dois primeiros anos de psiquia- tria pré-clinica, os temas principais sao: a psicodinamica (es- trutura do aparelho psiquico e desenvolvimento da perso- nalidade), a psicopatologia e as relagdes interpessoais; nos dois ultimos anos de psiquiatria clinica, 0 aluno estuda doen- tes de ambulatério externo e interno do hospital psiquiatrico (ou melhor, da sala psiquiatrica do hospital geral), psiquia- tria infantil, infeccdes psicossomaticas, etc. Sobre essas ba- ses, a American Psychiatric Association estruturou um pro- grama de psiquiatria que abrange a totalidade dos estudos médicos. Apesar de ser amplo e flexivel, esse programa tem o inconveniente de estabelecer um escalonamento que vai da psicologia normal a patologia e desta a clinica psiquid- trica, o que da ao aluno a falsa sensagao de divis6es, que nao existem no processo fluido da vida humana. O programa que é esbogado em seguida se inspira no propésito de assegurar a unidade do processo docente, evi- tando toda fragmentacao no ensino. O basico é a aproximacao do doente, que deve ser total desde o primeiro momento. A gradacao do conhecimento deve ser estabelecida através da compreensao cada vez mais profunda do doente, e nao através de diversas matérias ou temas. Nos primeiros passos, 0 estudante aborda a situagéo do paciente diante da sua doenga e observa como esta reper- cute em sua conduta e em seu grupo social, passando as- sim gradual, espontanea e, sem diivida, rapidamente da A psiquiatria no contexto dos estudos médicos ae 105 compreensao comum 4 cientifica. Essa aproximagao deve estar presente desde o primeiro ano, para que o aluno se conecte com o doente e nao s6 com o cadaver. Lewin, num artigo ja classico, assinalou a grave deformagao que isso com- porta na futura relagéo do médico com o doente. Esse estudo preliminar das condigdes superficiais do doente e seu gru- po social € feito, simultaneamente, no hospital e na resi- déncia, através de visitas a familia, em que o estudante atua prestando assisténcia social. Assim, ele se compenetra dos problemas do doente e de seu ambiente, avaliando, em ambos, o impacto da doenga Na etapa seguinte, que corresponde ao segundo ano, 0 estudante ocupa o lugar de observador-participante diante do enfermo, estudando sua personalidade e sua estrutura psiquica mediante o contato com a psicologia clinica. No terceiro ano, sempre como observador-participan- te, comeca a penetrar nas implicagdes emocionais e sociais da enfermidade em si mesma, agora dentro do paciente, e nao mais periodicamente, como nas etapas anteriores, e assim se coloca em relagéo com a psicopatologia, com as correla- Ges psicossomaticas, etc. Do quarto ano em diante, o aluno passa a ser agente operacional diante do doente, seja em relagGes individuais ou de grupo. O estudante adquire agora a nogao do traba- Iho em equipe, e atua em diversos campos, estudando o doente em todos os seus matizes fenomenolégicos e diag- nosticos, abordando-o com a totalidade das possibilidades terapéuticas. E fundamental que, nesta etapa, 0 aluno veja doentes das mais variadas condigdes: de ambulatério ex- terno e internados, neurdticos e psicdticos, organicos e fun- cionais, criangas e adultos, pessoas de diferentes classes so- ciais e niveis culturais, etc. 106 process grip Problemas pedagégicos no ensino da psiquiatria Todos os psiquiatras de orientag&o dinamica concordam que o ensino da psiquiatria encontra seu maior obstdculo na forte resisténcia emocional que desperta. O objeto de co- nhecimento e os conceitos que devem ser ensinados pro- vocam anguistia, o que faz que o material de ensino seja re- jeitado, enquanto reativa micleos neuréticos da personali- dade do estudante. O obstaculo essencial para o ensino da psiquiatria esta, pois, na propria natureza do que se deseja ensinar. Abrem-se dois caminhos diante desse singular proble- ma. Alguns autores inclinam-se a lidar com essas dificul- dades, pura e simplesmente, com psicoterapia; outros, em compensagao, separam rigidamente as duas coisas, teme- rosos de desvirtuar a finalidade docente, transformando o aluno em doente. Contudo, por pouco que se observe, compreende-se que os limites entre psicoterapia, aprendizagem e ensino sao fluidos e que o problema consiste em estabelecer claramen- te as técnicas e métodos que permitam um ensino psiqui trico mais livre e simples, integrando ambos os fatores. No entanto, ainda nao se investigou suficientemente, a luz da prépria psicoterapia, o contexto do ensino e da apren- dizagem a fim de fundamentar uma didatica que, por si mesma, inclua o fator psicoterapéutico, embora ja se vis- lumbre esse caminho. A integracdo de psicoterapia e ensino mostra que nao é licito transformar o ensino em terapia, nem o aluno em doente; e que também nao é sensato se furtar, no processo pedagégico, a aplicagao dos principios em que este ensino se sustenta. E evidente que nao seria sensato provocar difi- culdades para ter a oportunidade de resolvé-las; mas tam- pouco se pode renunciar ao direito de traté-las quando, ape- sar de tudo, se apresentarem. O propésito é resolver, no A psiquiatria no contexto dos estudos médicos 107 proprio campo da aprendizagem, a freqiiente e perturba- dora diviséo entre teoria e pratica. Com efeito, as resisténcias afetivas na aprendizagem da psiquiatria provém de motivagGes internas, proprias do aluno, e externas, do professor e de seu método. O professor deve estar sempre atento as suas proprias limitag6es, sem perder de vista que toda dificuldade no en- sino lhe é, em parte, imputavel, seja qual for a participagao dos alunos. A forma de expor, a prudéncia no desenvolvi- mento do curso, 0 acerto na escolha dos temas, etc., devem ser avaliados a cada momento, a luz da tens&o que surge nos alunos. O professor deve levar em consideragao — e isto é o mais importante ~ 0 problema das relagées interpes- soais com os estudantes. A relagao entre mestre e discipulo sempre mobiliza grandes quantidades de afeto, e isto é par- ticularmente verdadeiro para a psiquiatria, pela natureza angustiante de seus temas. Esse fator, no qual temos insis- tido ha muitos anos e que ultimamente foi destacado por Silverman, entre outros, deve interessar de forma particu- lar 0 professor, que permanecera alerta diante de seus pré- prios afetos conscientes e inconscientes. A psicoterapia de grupo no ensino da psiquiatria Razées tedricas confirmadas pela experiéncia pratica demonstram que a situacao de grupo é o melhor recurso para ensinar a psiquiatria. O alcance do método pode osci- lar dos grupos de ensino, nos quais se desenvolve uma am- pla comunicagdo intelectual e afetiva entre 0 docente ¢ os alunos, aos grupos de psicoterapia que se desenvolvem com um estrito sentido terapéutico. Entre esses dois extremos, localizam-se os grupos de aprendizagem (Pichon-Riviére, Ber- man, Fey, Ganzarain, etc.), em que o fator aprendizagem se conjuga com a psicoterapia. Ele difere dos anteriores pela 108 Oprocesso grupal existéncia de um tema de estudo; porém, com esse ponto de partida, alcangam-se os fatores emocionais que intervém na dindmica grupal. Nos grupos de aprendizagem dirigidos por um de nés (Pichon-Riviére), o tema em estudo é a propria tarefa da vo- cacao e da aprendizagem. Através de sua anilise, é possivel ir ensinando a fenomenologia psiquiatrica e a psicodinami- ca, a0 mesmo tempo que se cumpre uma tarefa de elucida- Gao e de psicoterapia que limpa o campo da aprendizagem. Pode-se observar nesses grupos que o medo da loucu- ra, reconhecido por todos os autores como uma das mais im- portantes fontes de resisténcia 4 aprendizagem da psiquia- tria, assume um viés especifico. Aparece como um temor estritamente fobico, no qual se mesclam ansiedades para- ndides e depressivas diante do objeto do conhecimento. Os alunos percebem, de forma muito clara e dramatica, que a aprendizagem significa, no fundo, identificar-se com 0 ob- jeto do conhecimento, penetrar literalmente nele. As an- siedades parandides aparecem como fantasias de ficar pre- so dentro do objeto, com nitida conotaco claustrofobica, acompanhadas de temores hipocondriacos da contamina- ao e do contagio. A anilise precoce e sistematica dessas ansiedades es- pecificas encurta 0 caminho e torna possfvel a obtengao da finalidade proposta, a limpeza do campo operacional da aprendizagem. Como é légico supor, esses conflitos aparecem com maior intensidade entre os futuros psiquiatras, em quem, por nao serem resolvidos oportunamente, acabam criando uma verdadeira fobia com relagao ao doente, que é resolvi- da numa constante evasiva, e numa técnica de tratamento a distancia, “por delegacao”. Com alunos do terceiro ano da Faculdade de Ciéncias Médicas de Cuyo, um de nds (Etchegoyen) iniciou uma ex- periéncia de psicoterapia psicanalitica de grupo. Trata-se de A psiquiatria no contexto dos estudos médicos 109 um nticleo pré-formado de dez estudantes que desejam abragar a especialidade de psiquiatria. Em mais ou menos dez sessées realizadas até hoje, aparece uma intensa de- pendéncia dos membros do grupo com relagao ao terapeuta. A vocacao desses jovens, bem como outras circunstancias que nao podem ser detalhadas agora, explica esse aspecto especial da situagao transferencial, em que nao aparecem até 0 momento os temores fdébicos descritos anteriormen- te, ainda que eles sejam presumidos. Conclusées 1) A atual antropologia sociomédica exige um ensino psiquiatrico novo e mais amplo. 2) Esses conhecimentos devem ser adquiridos ao lon- go de toda a carreira, seja estendendo-se 0 raio de agao da cdtedra de psiquiatria, seja criando-se a cdtedra de psicolo- gia médica, desde que se assegure a unidade entre ambas. 3) O estudante receberd um ensino em que o informati- vo € 0 formativo se resolvam de modo harmonioso, e cujo desenvolvimento e contetido devem ser confiados ao titular, sem que se aspire a planos de estudo rigidos e uniformes. 4) O programa de psiquiatria deve assegurar a unidade e seqiiéncia do processo docente e estabelecer uma grada- cdo que vd da compreensao comum 4 cientifica, através de um conhecimento cada vez mais profundo. 5) A abordagem do doente deve ser total, desde o ini- cio, culminando com 0 estudo de diversos doentes (quanto ao tipo nosografico, idade, sexo, condic&o social, etc.). 6) Paralelamente a catedra oficial de psiquiatria, devem funcionar outras em que estejam representadas as princi- pais correntes doutrinais modernas, o que permitira uma expansdo da psiquiatria e sera til para a formagao dos fu- 110 O processo grupal turos psiquiatras, que teréo oportunidade de ampliar seus pontos de vista. 7) O problema pedagégico fundamental no ensino da psiquiatria é a ansiedade que o contexto de aprendizagem provoca no aluno. O professor deve prevenir sua emergéncia vigiando a diregao do curso e sua prépria participagdo emo- cional no processo; porém nao deve evitar o tratamento das inevitdveis dificuldades do aluno, quando se apresentarem. 8) As situacgdes de ansiedade que se opdem ao livre de- senvolvimento da aprendizagem encontram seu melhor tra- tamento na psicoterapia de grupo, que pode ser adminis trada, de acordo com as circunstancias, em diferentes ni- veis (grupos de ensino, de aprendizagem, de treinamento e de terapia propriamente dita). 9) Em geral, devem-se preferir os grupos de aprendi- zagem, porque conjugam o ensino a psicoterapia. 10) Existem contetidos especificos vinculados ao tema da aprendizagem (temor da loucura) que convém analisar de forma precoce e sistematica. Apresentacao @ catedra de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de La Plata* O ensino da psiquiatria, como situacdo particular, exi- ge que a propria psiquiatria seja tomada como objeto de investigagao. Tal como ¢ realizado geralmente em nosso pais, esse ensino acaba sendo de pouca utilidade tanto para o es- tudante de medicina como para o pés-graduado. O psiquiatra move-se hoje, queira ou nado, num amplo contexto social em que os vinculos interpessoais e a dinami- ca dos grupos constituem seu principal material de trabalho. Isto nao é um plano sistematico; proponho-me somen- te a assinalar algumas linhas de trabalho possiveis, melhor dizendo, necessarias. 1) E necessrio que o estudante tome contato, 0 mais rapidamente possivel, com os problemas emocionais e so- ciais do homem doente, considerado como uma totalidade. A melhor oportunidade apresenta-se quando toma contato “vivo” com o paciente durante a aprendizagem das técni- 1. Respondendo ao item i da lista de requisitos para a apresentagiio no concurs, que diz: “Exposigo esquematica a respeito da forma como, no caso de designagio, conduzira sua cétedra. Esta exposicéo é absolutamente voluntéria.” 112 O processo grupal cas semioldgicas no Hospital Geral. Digo contato “vivo” por- que o primeiro contato que toma no desenvolvimento de seus estudos é um contato “morto” com o objeto de sua fu- tura profissao. Esse vinculo com o cadaver, 0 unico no inf- cio da carreira médica, deixa remanescentes que orientam certas atitudes futuras. 2) Essa formacao poderia durar trés anos, recebendo o estudante conhecimentos de psicologia e psicopatologia di- namicas, psicologia social, antropologia, etc., assim como a aprendizagem de técnicas psicoldgicas e sociais realizadas paralelamente aquelas que tém o corpo como campo de trabalho. Esse conhecimento poderia ser integrado no tlti- mo curso, através da clinica psiquiatrica, junto com conhe- cimentos de psicoterapia individual e coletiva. Ea partir do Instituto de Psiquiatria que deve ser configurada uma nova maneira de ver o paciente, o médico e sua inter-relacdo. 3) Os pacientes (0 objeto de estudo) devem ser proce- dentes de diversas classes, grupos, 4reas ou zonas. Por exem- plo, o paciente psiquiatrico pode proceder do Hospital Psi- quiatrico (interno), do Hospital Geral (interno) ou de am- bulatérios externos tanto de Hospitais Psiquiatricos como de Hospitais Gerais. A zona correspondente ao Hospital Psi- quidtrico, fonte de quase todo o material de ensino, é a me- nos extensa e a que tem menos implicages sociais; contudo, quase toda patologia mental vem sendo construida com base nesse material, e é a que habitualmente é ensinada. 4) Um Instituto de Psiquiatria deve ter um cuidado es- pecial na formacao de pés-graduados. Esses so os grupos de profissionais em atividade que podem contribuir em maior escala para criar uma consciéncia psiquidtrica. Po- dem ser realizados dois tipos de formac&o: 19) para aquele que deseja especializar-se em psiquiatria, e 2°) para aque- le que deseja aumentar a compreens&o psiquidtrica de seus pacientes na clinica geral ou especializada. Também é im- portante a formagéo de um pessoal psiquidtrico auxiliar Apresentagio BEE aan 113 com conhecimentos de psiquiatria dinamica, principalmen- te em alguns campos, como, por exemplo, na psiquiatria infantil e na psiquiatria industrial. 5) Um Instituto de Psiquiatria deve contribuir para a educagdo do puiblico. Necessita para isso, como passo pré- vio, realizar investigagSes sobre a opinido publica (precon- ceitos), atitudes sociais, etc. Af residem situagdes-chave que devem ser esclarecidas e manejadas por uma Psiquiatria Social e Preventiva. O estudante de medicina deve familia- rizar-se com as técnicas de investigagdo social, como en- quetes, entrevistas, observagdes em grupos, métodos esta- tisticos, etc. 6) Todo Centro Universitario deve ter, como anexo ao Instituto de Psiquiatria, um Servigo de Satide Mental para estudantes, tal como existem em alguns institutos norte- americanos. A aprendizagem da psiquiatria é freqiientemen- te perturbada pela emergéncia de situagdes de ansiedade implicadas na situacao interpessoal paciente-médico. As te- rapias coletivas podem ser aqui de grande ajuda. 7) A investigagao estritamente vinculada a pratica (e esta 4 aprendizagem) depende do tipo de formacao do psiquia- tra. Este € nossa personagem principal, j4 que nao ha “ques- tao psiquiatrica” que nao se relacione diretamente com as caracteristicas da formacao e ideologia do psiquiatra. Em sintese, devemos romper os estreitos limites em que se move a psiquiatria académica. Ao ampliar seu campo operacional, a psiquiatria ocupard o lugar que lhe corres- ponde na formacao universitaria do médico de hoje. Prélogo ao livro de F. K. Taylor Uma anilise da psicoterapia grupal' Com a publicagao deste livro, iniciamos as Edigées da Escola (Primera Escuela Privada de Psiquiatrfa Social). Nos- so objetivo fundamental é dotar nossos alunos de instru- mentos de trabalho, cumprindo assim a quarta etapa da estruturacao de uma escola. De forma geral, o termo escola tem trés interpretagdes comuns: 1) lugar (local, edificio, casa) onde se instruem varios individuos; 2) conjunto de profes- sores e alunos de um mesmo ensino, e 3) a doutrina ou sis- tema que imprimiu a um ramo da ciéncia ou da arte uma determinada dire¢gao. A essas trés acepcdes, consideramos imprescindivel acrescentar, em quarto lugar, a de fontes materiais e instrumentos de informagéo adequadamente operativos em relagdo com o esquema geral da escola. Esse aspecto ou componente de uma escola é 0 que nos propo- mos desenvolver agora, através da producdo editorial que inauguramos com o presente trabalho. Nossa experiéncia assinala, como um fato cada vez mais convincente, que o homem nao é compreensivel por si mes- mo (ou em si mesmo), e que o estudo de seu contexto so- 1, Taylor, F. K, Un andlisis de la psicoterapia grupal, Primera Escuela Privada de Psiquiatria Social , Buenos Aires, 1963. 116 O processo grupal cial, imediato ou mediato, torna possivel nao s6 sua melhor compreensao como também oferece as bases para uma ope- ragdo corretora de sua conduta social desajustada. Os pres- supostos basicos ou o esquema conceitual, referencial e ope- rativo (ECRO) com o qual operamos na técnica por nds elaborada, e que foi denominada grupos operativos (1947), sao constituidos por uma observacao sistematica que se rea- liza juntamente com a anilise das operagdes da mente em sua inter-relagao social e no seu continuo intercambio com o mundo externo — observacao e andlise que se centram, ambas, na tarefa. Sobre o fundamento de uma psicopato- logia grupal, propomos uma psicoterapia pelo grupo cen- trada na tarefa, juntamente com a anilise sistematica das dificuldades na tarefa, seja essa tarefa de aprendizagem, de cura, de criagao, etc. O grupo é o agente da cura, ¢ 0 tera- peuta reflete e devolve as imagens dessa estrutura em con- tinuo movimento, encarnando, além disso, as finalidades do grupo. O principal mérito do livro de F. K. Taylor é 0 de assi- nalar linhas de avaliagao da psicoterapia grupal; ou seja, cen- tra-se numa das tarefas essenciais, e em pleno desenvolvi- mento em todos os campos da investigagao cientifica atual: 0 problema da avaliagéo. Acumulamos grande quantidade de experiéncia e de dados, mas o que nos falta - e Taylor inicia brilhantemente esta etapa — sao critérios de avaliagao de nossa tarefa, ou seja, construir indices capazes de serem utilizados por outros investigadores para estabelecer com- parades entre experiéncias similares. Pode-se observar que no campo da psicoterapia grupal reina uma grande confu- sao, devido a existéncia de miultiplos esquemas referenciais de trabalho, em meio a notéria escassez de trabalhos refe- tentes a critérios e técnicas de avaliacao. Taylor inicia, com este livro, uma etapa de andlise sistematica do campo mes- mo de nossa propria tarefa. A partir dessa obra, podemos dizer que comegamos a ter pontos de referéncia que servi- Prolog teisectsee sate aseseectaee sees tsee cee Cee GeieEeee A rao para nos orientar, na medida em que percorremos a gran- de experiéncia acumulada por investigadores de todo tipo e de uma bibliografia cadtica que nos apresenta toda espé- cie de esquemas referenciais, mas sem explicita-los com a clareza suficiente. J. B. Pontalis denomina “empirismo caé- tico” essa situagdo que se observa hoje no contexto da in- vestigacao psicossocial dos pequenos grupos. Para Taylor, um grupo terapéutico, ou qualquer outro pequeno grupo, proporciona dois tipos de dados bem dife- renciados e independentes: por um lado, agGes e interagdes individuais e, por outro, observacGes microssociolégicas que caracterizam 0 grupo como um todo ou suas diversas es- truturas, nao levando em conta os individuos. A avaliagdo baseia-se nas mudangas dos sintomas. Taylor nao sé nos telata o desenvolvimento e as vicissitudes de um grupo te- tapéutico concreto, como também, além disso, realiza a and- lise sistemdtica da propria tarefa, assim como a avaliagao das mudangas observadas nas duas diregGes jd assinaladas. Numa crénica detalhada de um grupo terapéutico, podem-se observar a técnica empregada, as operag6es realizadas, cen- tradas na etapa, e a aplicacao dos postulados ou esquemas referenciais, que 0 autor submete imediatamente a uma andlise profunda. Ele comega por fazer uma avaliacao geral de todas as psicoterapias, individuais e grupais, tentando estabelecer as constantes que nelas podem ser observadas. Em seguida, enfoca os métodos empregados em psicoterapia de grupo e assinala as principais diregdes da técnica. Trata depois da selecao dos pacientes para a psicoterapia de grupo e das ta- tefas do grupo, objetivando alcangar: a) a revelaco hones- ta de si mesmos; b) a descrigdo de experiéncias significati- vas, e c) a elaboragao de interpretagdes que tornem com- preensiveis as respostas neuréticas. A seguir, refere-se aos efeitos emocionais do grupo, a estabilidade e ao seu tama- nho. Um grupo — diz Taylor - apresenta dados observaveis 118 proceso grupal em seus diferentes momentos e que emergem — de forma simultanea ou consecutiva — da complexa conduta no di logo e na agao dos individuos, que atuam em pares, em trios ou em outras configuragées interpessoais, sobre outros in- dividuos ou sobre outras configuragées interpessoais, so- bre o grupo como totalidade ou sobre o analista, ou reagem contra eles proprios. Com a andlise do contetido das conversagées, Taylor comega a esclarecer as operagGes que se realizam no grupo; prossegue com a andlise da interagdo verbal nessas discus- ses. Aqui jd comega a analisar 0 processo de interacao ea estabelecer coeficientes, indices e curvas que servem para objetivar os processos do grupo. A medicao da interagao ver- bal, com os pontos das interagGes individuais e totais, j4 per- mite extrair numerosas inferéncias sobre o grau de partici- pacao, a vivacidade das discuss6es e outros elententos sig- nificativos no desenvolvimento do grupo. Diz Taylor que 0 estudo do contetido das discusses do grupo e das caracteristicas conversacionais fica incompleto se nao forem pesquisados os sentimentos, opinides e atitu- des dos membros entre si e do grupo como totalidade, uti- lizando-se, de forma pratica e simples, os métodos da so- ciometria criados por Moreno. Continuando, no capitulo intitulado “Relato de uma experiéncia de Psicoterapia de Grupo” (capitulo central do livro), Taylor descreve os acontecimentos mais importantes ocorridos num grupo terapéutico, tratado por ele cerca de dez anos antes da publicagao de seu livro. Relata nao s6 0 que ocorreu durante a psicoterapia de grupo, como também fornece dados sobre a evolugao desses pacientes depois de terminado o tratamento. Descreve as diferentes fases de um tratamento psicoterapico grupal, assim como seu resul- tado, fazendo uma anilise detalhada do grupo terapéutico, em termos de mudanga dos sintomas, medidas e resulta- dos terapéuticos, a vivacidade das discuss6es do grupo, a Prélogo 119 participagao pendente, a hierarquia das posigdes na comu- nica¢ao, etc., centralizando sua atencdo, finalmente, sobre mecanismos tais como uma atengao cordial, a redugao tem- poraria das restrigdes sociais, a confissao das faltas cometidas, a catarse emocional e a interpretacdo do significado dos sintomas ou da doenga. Quanto a esse aspecto, sustenta que a atividade do grupo terapéutico consiste principalmente no intercambio de emogGes e de comunicagées verbais. No inicio, referimo-nos a confuséo que pode ser ob- servada no material acumulado pela experiéncia na psico- terapia de grupo, esse “empirismo cadtico” a que se refere Pontalis. Evidentemente, falta-nos ainda realizar uma tarefa: a localizacgéo ideolégica dos diferentes esquemas referen- ciais empregados. A acusac4o de “artificialismo” as vezes parece bem fundada, assim como a acusacao de uma certa “mistificagao”. F. Bourricaud escreve a este respeito: “O es- tudo dos pequenos grupos sem passado, sem localizagao territorial precisa, é perigoso quando s6 utiliza mecanismos psicoldgicos superficiais e torna manifestos os esteredtipos, deixando escapar a profundidade espacial, a espessura tem- poral da realidade social.” Por isso, Pontalis diz que é con- veniente comegar por interrogar-se quanto aos Ppressupos- tos ideoldgicos, tedricos e técnicos das experiéncias de grupo, questionamento necessario e permanente para toda inves- tigacdo na qual o observador, com seu horizonte pessoal, politico e social, j4 esta manifestamente vinculado 4 obser- vacdo. O livro de Taylor ordena muitas idéias, o que nos per- mite passar para esta segunda etapa da avaliac4o no terreno das ideologias cientificas. Consideramos que para o leitor comum havia algumas dificuldades na leitura e apreciagdo dos aspectos matemé- ticos e estatisticos da avaliacao. Por esse motivo, a doutora Nuria Cortada de Kohan escreveu, a nosso pedido, algumas notas que classificaram consideravelmente 0 livro, faci tando assim sua leitura. Técnica dos grupos operativos' (em colaboracao com os doutores José Bleger, David Liberman e Edgardo Rolla) A investigacao social vem adquirindo grande impor- tancia nos ultimos tempos, devido a multiplicidade de fatos incorporados a seu campo de estudo, assim como ao pro- gresso de seus métodos e técnicas. Os resultados obtidos, cada vez mais precisos e con- cretos, vém contribuindo decididamente tanto para 0 conhe- cimento da sociedade como para a solucao de problemas agudos. A tarefa mais ou menos explicita a que se propde o psicdlogo social, ao planejar e realizar cada investigacao, pode ser definida como a tentativa de descobrir, entre ou- tras coisas, certo tipo de interagdes que entorpecem o ple- no desenvolvimento da existéncia humana. Porém isso re- presenta s6 um aspecto de seus propésitos, pois toma tam- bém como objeto de pesquisa a descoberta dos fatores que favorecem o desenvolvimento mencionado. O psicélogo social, para poder operar com eficdcia, ne- cessita de uma ampla aprendizagem de seu oficio. E consi- derado, em seu meio, de duas manciras bem opostas. Por um lado, é desvalorizado, enquanto por outro é supervaloriza- 1. Acta Newropsiquidtrica Argentina, 6, 1960. 122 proceso grupal do em sua tarefa, com a mesma intensidade. Essa situagao condiciona tensdes nele e entre ele e os grupos, j4 que a negacao e a onisciéncia formam um conjunto dificil de ser manejado. O psicdlogo social aborda quest6es fundamentais e, ao investigar em profundidade tanto individuos como grupos, deve evitar tanto condutas de fuga como se deixar influenciar pelas opiniGes correntes em seu meio imediato. Por outro lado, deve saber que esté incluido, comprometido, no pr6- prio terreno de suas investigacGes e que, ao operar, produz de qualquer maneira um impacto determinado. A possibilidade de realizar seu trabalho depende em grande parte de um cli- ma particular, que pode ser preparado ou condicionado por meio de técnicas de planejamento, transformando essa situa- ¢ao num campo propicio a investigacao ativa*, por meio de técnicas que Kurt Lewin chama de laboratério social. O ponto de partida de nossas investigacdes sobre os gtupos operativos, tal como os concebemos hoje, provém do que denominamos Experiéncia Rosario (realizada em 1958). Essa experiéncia esteve a cargo do Instituto Argentino de Estudios Sociales (IADES) e foi planejada e dirigida por seu diretor, o doutor Enrique Pichon-Riviére. Contou-se com a colaboragao da Faculdade de Ciéncias Econémicas, do Ins- tituto de Estatistica, da Faculdade de Filosofia e seu Depar- tamento de Psicologia, da Faculdade de Medicina, etc. Essa experiéncia de laboratério social, ou de trabalho em uma comunidade, efetivou-se mediante 0 emprego de certas técnicas e teve como propésito a aplicagaio de uma didatica interdisciplinar, de carater acumulativo, que utiliza méto- dos de investigacao da acdo ou investigacio operativa. * Os termos “investigacdo ativa” ou “investigagao da ago” sdo utiliza- dos por Pichon-Riviére com referéncia & proposta de K. Lewin da “action research”. Outra traduco possfvel seria a de “pesquisa-acdo”, bastante utili- zada entre nés, mas que nao nos parece tio feliz. (N. doT,) Técnica dos grupos operativos __ 223 O esquema que reproduzimos condensa graficamente todos os momentos da Experiéncia Rosario: A) Preparagao da equipe de trabalho no IADES com téc- nicas grupais. A experiéncia foi planejada mediante uma estratégia e uma pratica operativa de cardter instrumental. Na cidade de Rosario, e em alguns lugares freqiientados por estudantes, foram colocados cartazes para fazer a publici- dade da experiéncia. B) A operagao propriamente dita seguiu os seguintes passos: 1) No auditério da Faculdade de Ciéncias Econé- micas, 0 coordenador geral da operacao falou sobre o sig- nificado da experiéncia, propondo alguns temas que foram elaborados posteriormente nos grupos. No auditério, esta- vam presentes professores, estudantes universitdrios (de ciéncias econdémicas, psicologia, filosofia, diplomacia, me- dicina, engenharia, etc.), assim como autodidatas, artistas, esportistas e publico em geral. 2) Primeira sesso de grupos heterogéneos reunidos no final dessa exposigao com uma média de nove membros por grupo, escolhidos ao acaso. Estes foram conduzidos por um coordenador, contando cada um com a presenca de um ou dois observadores. O coorde- nador atuava como orientador, favorecendo a comunicagdo intragrupal e tentando evitar a discussao frontal. O observa- 124 O processo grupal dor registrava tudo o que acontecia no grupo através de um enfoque panoramico. Essas sessGes tiveram uma duragdo de quatro horas, funcionando um total de quinze grupos heterogéneos. 3) Reunido da equipe IADES com 0 coorde- nador geral, com o objetivo de controlar e analisar a tarefa realizada até esse momento, resumindo em particular o tra- balho efetuado nos grupos. 4) Segunda sessdo dos grupos heterogéneos, com os mesmos participates. Tanto 0 coor- denador como o observador ja haviam analisado as tarefas da sessdo anterior e enfrentavam o grupo com uma cres- cente capacidade de compreensao. 5) Nova reuniao do gru- po IADES com o coordenador geral, para controlar a segun- da sesso dos grupos heterogéneos. 6) O doutor Pichon- Riviére volta a expor para o ptiblico, no auditério ja citado, com assisténcia de um grupo maior de pessoas. O cardter deste passo da experiéncia evidencia uma mudanga radical em relacao ao anterior’: a assisténcia atuou, desta vez, como grupo, e nao como publico. A finalidade dessa reuniao era trazer o material trabalhado por grupos e criar uma situacao em espelho, na qual os membros se “reconhecem” como individuos separados e como integrantes dos grupos, atra- vés dos diferentes temas emergentes. 7) Sessdes de grupos homogéneos: funcionaram, no total, cinco grupos de me- dicina psicossomatica, trés de psicologia, um de boxeado- res, um de estatistica, um de pintores e um de corretores de seguros. 8) Terceira sessao de controle da equipe IADES com o coordenador geral. 9) Ultima exposicdo do doutor Pichon- Riviére, da qual participaram integrantes de grupos homo- géneos ¢ heterogéneos. C) Intervalo entre essa experiéncia e uma préxima a ser realizada. No Instituto de Estatistica da Faculdade de Cién- cias Econémicas permanece em funcionamento, como se * O momento anterior referido 6 o do primeiro passo da Experiéncia. (N.doT,) Técnica dos grupos operatives fosse um departamento de relagdes ptiblicas, uma secreta- tia que estabelece contato entre aqueles que desejam infor- macgoes e o IADES. Durante esse espaco de tempo, espera- se a formacao de grupos. Varios jé funcionam. J4 existe um grupo formado por estudantes portenhos que estudam em Rosario. Outro ficou integrado naquela cidade, disposto a trabalhar em enquetes sociais. Existem também outros, dis- postos a operar diante dos problemas concretos referentes a comunidade rosariana (entre eles hd estudantes de medi- cina, arquitetura, estatistica e engenharia), no terreno das relagdes humanas, das relacdes industriais e do ensino. Essa didatica promovida por Pichon-Riviére é inter- disciplinar, acumulativa, interdepartamental e de ensino orientado. A didatica interdisciplinar baseia-se na preexisténcia, em cada um de nds, de um esquema referencial (conjunto de experiéncias, conhecimentos e afetos com os quais o indi- viduo pensa e age) que adquire unidade através do trabalho em grupo; ela promove, por sua vez, nesse grupo ou comu- nidade, um esquema referencial operativo sustentado pelo denominador comum dos esquemas prévios. Uma das definicdes classicas da didatica é a de desen- volver atitudes e comunicar conhecimentos. Na didatica in- terdisciplinar, cumprem-se fungées de educar, de despertar interesse, de instruir e de transmitir conhecimentos, mas por meio de uma técnica que redunda em economia do trabalho de aprendizagem, visto que, ao se empregar 0 mé- todo acumulativo mencionado, a progressao nao é aritmé- tica, e sim geométrica. A didatica interdisciplinar propicia a criagéo de depar- tamentos onde os estudantes das diferentes faculdades vao estudar determinadas matérias comuns a seus estudos; ou seja, teriamos assim a conjugagao dos diversos grupos de alunos em um mesmo espago, criando inter-relagdes entre eles. 126 proceso gruipat Essa orientagéo, com diferengas de intensidade, existe em alguns colégios e universidades estrangeiras que sen- tem a necessidade de fundamentar um ensino mais voca- cional e sintético. Tomando esses elementos histéricos de forma ordenada, podemos assinalar algumas etapas pri- mordiais de seu desenvolvimento: 1) Departamento especializado. 2) Comités de articulagao interdepartamental e outros dispositivos de coordenagao, que agrupam representantes de diferentes disciplinas. 3) Um coordenador ou encarregado de estabelecer li- gacées entre as diferentes disciplinas, tal como existe atual- mente na escola de jornalismo da Iugoslavia: um método de ensino orientado no qual a articulacdo se revela muito fe- cunda, ao orientar em um sentido a tarefa especifica de en- sino de diversas disciplinas, como se aplica, por exemplo, na escola de Ciéncias Politicas da Universidade de Princeton e em Ouro Preto (Brasil). 4) O método chamado interdisciplinar. No colégio men- cionado acima também foram feitas tentativas, mas sem centrar 0 problema em torno de um determinado esquema referencial. 5) A didatica interdisciplinar vem sendo o tema desta experiéncia de Rosério. La, os departamentos citados fun- cionariam sob a diregao do professor da matéria, que se en- carregaria de instruir sua equipe de chefes de trabalho ou monitores. Estes, por sua vez, seriam os encarregados de transmitir o conhecimento concreto aos estudantes, tal como Nés, os autores, fazemos na Escola Privada de Psiquiatria do IADES (1959). Dessa forma, o professor tem condigdes de aperfeicoar e investigar a matéria a seu cargo. Em Rosario, empregou-se como estratégia a criacdo de uma situagao de laboratério social; como tatica, a grupal, e como técnica, a de grupos de comunica¢ao, discussio e tarefa. Técnica dos grupos operations 227 Sabe-se que em sociologia é possivel efetuar experimen- tos que podem, tao legitimamente quanto os fatos na fisica ow na quimica, ser clasificados como cientificos. E 0 cha- mado laboratério social é constituido pela reuniao, numa mesma equipe de trabalho, de pessoas interessadas em tra- zer para a comunidade que as rodeia um certo ntimero de modificacdes de atitudes, com base num estudo detalhado da situacio e por meio de um programa de aco racional- mente concebido. O laboratério, social nao se limita, pois, a uma breve sessao de trabalho durante a qual os participan- tes discutem em comum os projetos previstos. Geralmente, essa sessao é a fase decisiva da organizacao do laboratério, no qual a aco e a investigacao sao inseparaveis Assim sendo, os grupos de discussao e tarefa, nos quais se estruturam mecanismos de auto-regulacao, sao postos em funcionamento por um coordenador, cuja finalidade é obter, dentro do grupo,.uma comunicacgao que se mante- nha ativa, ou seja, ériadora.) SHetet Esta compreende o estudo detalhado, em profundidade e no contexto global, de todos os aspectos de um proble- ma, com 0 objetivo de ajudar a soluciond-lo de forma efi- caz. Surge dessa definicdo — € isso realmente é 0 mais im- portante — a necessidade de trabalhar em grupos formados por integrantes de diversas especialidades (heterogéneos) relacionadas ao problema que sera estudado. A investigacao operativa pode oferecer sdlidas bases 4 tomada de deci- s6es, o que aumenta consideravelmente a eficdcia. Seu mé- todo consiste, entre outras coisas, em observar os elementos comuns a certo tipo de problemas e analisar as possiveis solugdes; nos casos em que nao se introduzem novos meios, ela busca a otimizacao daqueles jé existentes. O terreno onde mais freqiientemente se tem utilizado a investigagao ope- rativa é o dos chamados problemas executivos, que surgem da necessidade de divisao, especializacao e coordenagao das tarefas comerciais e industriais. Outro terreno de aplicagao 128 ——______________ 0 precesso grupal preferencial — e no qual se iniciou organizadamente este tipo de estudos ~ é o da resolucao de problemas de logisti- ca, tatica e estratégia militar. Nessas técnicas grupais, a fungdo do coordenador ou “co-pensor”* consiste essencialmente em criar, manter e fortientar a comunicagao, chegando esta, através de um de- senvolvimento progressivo, a tomar a forma de uma espiral, na qual coincidem didatica, aprendizagem, comunicacio e operatividade. 6) A investigagao da ago (action research), verdadeira investigacao operativa, adota como tarefa o esclarecimento das operagées que acontecem e tém vigéncia no ambito do grupo. E assim que se obtém uma comunicagao operante, um planejamento e uma estratégia que condicionam tati- cas e técnicas de decisao e de auto-regulacao. 7) Os sistemas referenciais correspondentes a esses gru- Pos sao investigados tanto em sua estrutura interna (anéli- se intra-sistémica) como em suas relagdes com os sistemas de outros grupos (andlises intersistémicas). Podem-se des- cobrir, entre outras coisas, sistemas fechados, estereotipados, assim como sistemas abertos, ou com fechamentos transi- torios, que podem, pelo grau de ansiedade neles presente, transformar-se em sistemas rigidos, que atuam como circu- los viciosos. A tarefa essencial do coordenador é dinamizar, resolvendo discuss6es frontais que ocasionam o fechamen- to do sistema, podendo valer-se do observador como ob- servador participante em situagdes em que o fechamento ameaga toda a operatividade do grupo. Os grupos podem ser mais ou menos heterogéneos (por exemplo: estudantes de diferentes faculdades), ou mais ou menos homogéneos (estudantes de uma mesma faculdade); * Neologismo introduzido por Pichon-Riviére que designa o coordena- dor como aquele que pensa junto com 0 grupo, ao mesmo tempo que colige e integra os elementos do pensamento grupal. (N. do T.) Téonica dos grupos operativos He Hd 29) a experiéncia assinala a utilidade dos grupos heterogéneos em tarefas concretas em que, diante de uma maxima hetero- geneidade dos componentes, pode-se obter uma maxima homogeneidade na tarefa. A eficiéncia do grupo pode ser me- dida através das variagGes quantitativas desses principios. 8) Outro fenémeno observado, e que se transforma num vetor de interpretagao, é que o pensamento que fun- ciona no grupo vai desde o pensar vulgar ou comum até o pensamento cientifico, resolvendo as contradigdes aparen- tes é estabelecendo uma seqiiéncia ou continuidade gené- tica e dindmica entre um e outro. £ tarefa importante do coordenador assinalar um ponto de partida falso, como é 0 de comecar trabalhando com um pensamento cientifico nao elaborado e sem ter analisado previamente “as fontes vul- gares do esquema referencial”. Uma problematica dialética serve de enquadramento geral; tende a investigar tanto o contexto da operagdo como as contradigGes que surgem em sua intimidade. Esse traba- lho é complementado pela formulacao de conceitos basicos e pela classificagdo sistematica do problema pertencentes a um dominio particular do conhecimento ou ao conjunto deste. Assim, impede-se a configuragao da situagao dilema- tica, base dos esteredtipos de comportamento. Como prin- cipais emergentes aparecem a investigacao de atitudes co- letivas, de formas de reagéo mais ou menos fixas, de falta de flexibilidade, dos preconceitos, etc. O aprender a pensar, ou maiéutica grupal, constitui a atividade livre do grupo, que nao deve ser regida pelas exclusdes, mas pelas situagdes de complementaridade dialética (sintese). Isso implica estimu- lar a formacao da espiral. 9) A anilise das ideologias é uma tarefa implicita na anilise das atitudes e do esquema conceitual, referencial e operativo (ECRO), jd mencionado. As ideologias (Schilder) sao sistemas de idéias e cono- tagdes de que os homens disp6em para melhor orientar sua

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