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colegio ‘educacio r literaria Naquela manhé, como em todas as Adaptagio Lc Lefont foram dadas por Ali, Ali Babs anda ‘na montanha. De stibito, aparece no} ‘uma nuvem de poetra, aproxim-se UN de quarenta ladroes ¢ o pobre lenhador set ron} Eque do seu esconderio, Ali Babi deseoblg "um segredo fabuloso: as palavras mage ‘acesso a0 tesouro dos bandidos.. Acolegao Educagio Literéla reine obras referéncia da Iteratura portuguesa ¢ univer 1. A caverna das maravilhas Numa cidade do Oriente, cujas muralhas brancas brilhavam no sopé da montanha Qat, viviam dois irmiios. (© mais velho chamava-se Qassem e 0 mais novo All © pai deles era um modesto curtidor de peles, Gassem, casou-se com a fittta de ut rico mercador, que ao mor ter The delxou 0s seus bens. A sua loja, situada numa praca sombreada de plétanos onde havia uma fonte coberta por um quiosque, oferecia aos clientes perfu- mes delicados e tecidos Inxuosos, Ali também se casou. E para sustentar a sua familia, fa.a0 monte cortar fentia que acava em fetxes € vendia, Ac amanhecer, quando luz ainda é cor-de-r08a, viam- no passar debaixo do arco de peda lavrada da porta da cidade, levando o burro pela arreata, “Como vai isso hoje, Ali Babs?" perguntavam-the um, ‘ou outro que estava a abrir a sus loja, Era como se Ihe dissessem: “Como vai isso, tio Ali? Porque em drabe babd quer dizer “bom’ “boa pessoa, Alitinha fama de ser justo e de bom cora Ali respondia com uma palavra amével e seguia 0 seu caminho. Depois de sair dos muros da cidade, subia por atalhos para irlimpar como machado um canto da floresta e cortar a lenha em achas. ‘Um dia em que andava alia trabalhar, notou uma nu- vem de poeira no vale, entre as oliveiras. Era uma coluna de cavaleiros que surgiu na base do outeiro, no atalho que ele tinha seguido. “Vao passat por aqui nao tarda nada — disse Ali para si mesmo. — Quem serio eles? Honestos Viajantes? Salteadores de estrada’... Seja como for, quan- do eles aqui chegarem serd tarde para saber!” E decidiu esconder-se. 0 seu burro, a pastar por ‘aqui por ali, inha-se afastado e jé nao se avistava, Ali ‘optou por uo 6 chamar, atravessou umas moitas e su- biu para o alto de um cipreste muito frondoso. No seu entender, era tempo de deixar a caravana passar, Mas qual nao foi o seu espanto quando, pouco de- pois, 05 cavaleiros pararam as suas montadas mesmo Por baixo dele! Ficou a observé-los sem se mexer. De- baixo do wmbaz, a larga capa que os envolvia, adivi- nhavam-se armas afiadas, “E sem diivida um bando de salteadorest concluiu Ali para si mesmo. Contou exa- tamente quarenta, ¢ nao se encontrava lé muito segu- 10, escarranchado sobre um ramo, Os homens desamarravam os alforges que pendiam das selas dos seus cavalos. Um deles, afastando umas ramagens, chegou junto de uma saliéncia rochosa que se erguia, abrupta, mesmo ao pé da arvore de Ali. Eo lenhador ouviu-o gritar: ase on aren Len — Abre-te, sésamo! sera E de imediato se desenhou na rocha um: para thes dar passagem! — Entremos — disse o homem. _—Nés vamos atras de ti, Qoja Hussein. wwa de res- Voltando-se um pouco, aquele que acabava d sto, E, carregan- ponder chamou os outros com tum gest F, carre8a ‘seu saque, desapareceram todos na brecha, até 20 rm cha, at a wa recupera ikimo, Agora 0 que Ali mais deseava era reeuDery 9 seu bu 8 ness nay iriam os ladrées sair ne wma ybrissem ali, a sua ro mesmo momento? Se eles o descot vida nao teria grande valor! ; nao fazer nada “O mais seguro é penne ficou empoleirado na drvore, tao imével oan de vimaras Assimse pasaram aver mas ast saco de : a -as, Como 08 minutos pareciam longos! Por fim, ; " sa cavalo, ‘mens voltaram a aparecer e montaram todos ses 2 ; contando ‘Ali voltou a conté-los: quarenta, conta s 3! Esperou até ver coluna rensou ele. eee de se arriscar a descer. De- saree lie, we sea pena estan . sbedece também a mim!” E avangou entre 0. me’ quan — disse em vor solene. Ali Babé deu um passo para o interior da caverna, depois outro. Quando a parede se fechou atras dele, rem pensou em inquietar-se com isso; estava todo en- tegue ao seu espanto. Curiosamente, a cavidade nao é nada escura. Todos aqueles tesouros parecem irradiar luz. De um lado, pe- ‘cas de seda fina, roupas cintilantes bordadas a fio de ouro, de outro baclas de porcelana a transbordar de colares € pulseiras. Joias amontoadas sobre bandejas de cobre: esmeraldas de um verde vivo, diamantes cris talinos como a dgua, dgatas multicores. Ali caminha sobre grossos tapetes da India e da Pérsia, nos quais tropeca. Quantas geragées de ladrdes terao sido neces: sérias para acumular riquezas to tabulosas Depois de saciar um pouco os olhos, Ali Babé refle- tiu, Dois sacos de moedas bastavam para fazer dele um homem rico... ali esto precisamente dois sacos va- zios! Para os encher, tira uma mao-cheia daqui, outra mio-cheia dali, e no fim de contas era como se nada tivesse sido tirado. Depois pronuncia a férmula magt- ca, a rocha desloca-se de novo e Ali ja esta ca fora. ‘Ao longe, 0 burro esté a estender 0 pescogo por cima de uns ramos de acéela. Ali vai buscé-lo, equilibra as cargas sobre 0 lombo dele e, para esconder 0 contet do, coloca por cima uns feixes de lenha. Afaga o pescogo do animal e este poe-se a caminho com a sua carga pre sa, para regressar & cidade, 2. Arasoira de Xainaz, Depois de passar a porta mourisca, Ali Babé entrou com 0 burro na cidade. No bairro do mercado, a que se chama Bazar, 0s toldos estendidos por ‘a do passeto sobre as bancas e sobre as pessoas. Ali seguiu pelo corredor dos oleiros, pelo corredor dos acougueiros, pelo dos vendedores de especiarias e de- pois achou-se a céu aberto, nas ruelas inundadas de sol por entre os muros dos quintai ‘Ao chegar diante de um portéo por cima do qual pendiam as grandes folhas de uma figueira, entrou, le- vando atras de si o burro. Ao fundo do pequeno patio havia uma casinha de adobe, pintada de branco até smeia altura, Uma mulher surgiu & porta, — Jéestds de volta a meio do dia! — observou ela, surpreendida, — Aproxima-te e vem ver! — disse All sem mais co- mentérios, Quando ele abriu um dos sacos, aquilo que a mu: ther viu luzir debaixo dos ramos fé-la recuar um passo. ~ Ali, de onde vem todo esse dinheiro? Nao o terds roubado? — Nao sei muito bem o que te diga —respondeu Ali Babd sem olhar para ela, — Pois sera ladrto aquele que rouba aos ladroes? E como a mulher nada respondesse a isto, pos-se a contar-Ihe em pormenor a sua aventura. — Mas peco-te, Feiruz, guarda bem este segredo para ti! —aconselhou ele. Dentro de casa, depois de esvaziarem os sa cos no chao de terra batida, ficaram os dois ma- ravilhados, e Feiruz, toda entregue aos seus sonhos, quis comecar a contar. — Que fazes tu? — perguntou Ali Baba, — Isso é um disparate! Quando é que acabavas de contar? — Se ao menos — disse ela, melindrada — tivésse- ‘mos uma daquelas vasilhas que servem para medir as sementes, podiamos fazer uma ideial.. Eu podia ir buscar uma a casa do teu irmao! — propés ela recupe- rando o seu entusiasmo. — Por mim, nao vejo 0 interesse disso. Mas se fazes questao!,.. Mas — repetiu ele — tem cuidado para nao revelares 0 nosso segredo! E saiu para o patio, onde comegou a cavar debaixo da figueira uma cova bastante grande para esconder 0 seu tesouro, Entretanto, Feiruz tinha ido a correr a casa de Qassem. Era numa rua de casas altas, com grandes jardins fechados. Passou pelo portao, cujos batentes 56 eram fechados a noite, e entrou na galeria que circun- dava o patio. Enroladas nos pilares, trepadeiras de cor violeta escura misturavam-se com roseiras brancas. A mulher de Qassem estava a cortar flores para fazer um ramathete (naz, minha cunhada — perguntou Feiruz —, odes emprestar-me a rasoira das sementes? Eu trago- ta 0 mais depress c possivel ‘ainaz era muito curiosa e nao tinha vergonha, Quando foi buscar a medida & cozinha, com um gesto répido passou um pano engordurado pelo fundo da vasilha. “Alguns graos ficardo aqui agarrados — pen. Ao voltar a casa, Feiruz fez 0 seu célculo mergulhan. ‘eiruz tinha para medir” do a medida no monte de dinheiro e despejando-a um ouco ao lado, no chao, Depois, caminhando depressa pela sombra das pa- redes, foi levar a rasoira @ cunhada, sem reparar numa moeda que tinha ficado colada no fundo. Xainaz des. cobriu a moeda e ficou palida de surpresa. 18 Nessa noite parecia-the que o marido nunca mais voltava, ardendo de impaciéncia a espera dele. Quando © viu atravessar 0 jardim, foia correr ao seu encontro, — Qassem, meu amigo — exclamou ela ime- diatamente, — tu pensas, é claro, que és muito mais rico ddo que o teu irmao! Mas sabes tu que esse homem, que se finge miserdvel, nao conta o dinheiro moeda a moeda? Nao, pois vé tu, ele mede-o aos litros, como as sementes!.. E, colocando-Ihe a moeda nas maos, contou-lhe a sua asticia. Entao o mercador sentiu, mulher, um desejo ardente de boa fortuna de Ali Babé. tal como a sua iber qual podia ser a ‘Um pouco mais tarde apareceu em casa do irmao... — Tu, Ali, és um homem muito reservado — disse- -Ihe ele assim que entrou no pequeno pat ives ‘modestamente e sem fazer gastos, mas vejo que nao te falta dinheiro. Ali Babé ergueu as sobrancelhas, sem se alarmar, ~ Fala com mais clareza, Qassem! fa primeira vex ue te vejo aqui desde hd muito tempo. A que devo a honra da tua visita? E de que me queres tu falar? — Disto, que ficou preso ao fundo da rasoira que Feiruz nos pediu emprestada Qassem exibia a moeda debaixo do nariz de Ali Babé, ‘mas este nao manifestou qualquer surpresa, — Vamos, entra, meu irmao! — disse ele. — Porque me aconteceu uma aventura extraordinaria que te vou contar E de novo contou 0 caso, como tinha contado a Fei- ruz, Quando terminou, a alma ciumenta de Qassem cestava cheia de inveja. — Agora, Ali — disse ele com os labios cerrados — {quero que me expliques onde se encontra esse roche- do! Se nao, jéte digo, denuncio-te ao juiz por teres rou- bado esse dinheiro! ‘Ali Baba nao ficou nada impressionado com tais ameagas, mas a sua bondade, mais uma vez, levou a _methor. Contou tudo 0 que o outro queria saber. ‘Annoite seguinte foi muito diferente para os dois ir ‘aos. Ali Baba adormeceu com o prazer da sua desco- berta; Qassem, por seu lado, deu voltas e mais voltas nna cama, sem pregar olho. Muito antes do amanhecer ji ele se tinha levantado e carregado seis mulas com caixas e sacos. Depois amarrou os animais uns aos ou- jinho da gruta. ‘Amanha venho bus- tros e seguit 0 cat car 0 resto, se ndo conseguir carregar tudo hoje’ pensou. Assim que chegou, prendeu a primeira mula ao tronco de um dlamo e quando disse “Abre-te, sésa~ mo! a rocha abriu-se, como acontecera com 0 irmio. Qassem caminhou entre maravilhas amontoadas € 19 2 compreendeu que elas ultrapassavam em muito tudo Aaquilo que Ali Baba o fizera imaginar. Com os olhos ar- regalados, comecou a encher os seus sacos com tudo 0 que podia, Mas a sua ambicao desmedida perturbou-the de tal modo 0 espitito que, qui \do se preparava para sair, esqueceu-se da formula. Fez um esforgo para se recor- dar, mas a sua cabeca estava to vazia como os sacos estavam cheios, — Abre-te, cevada! — experimentou ele dizer. ‘Mas sabia que estava enganado e, com efeito, se mexeu, Designou outros cereais, 0 paingo, o trigo, vets nem resulta, Gs 0 : 1a sua vida nada muti de plantas, «era como se nunca na su wd tivesse ouvido a palavra sésamo, porque esta nao Ihe veio aos labios nem uma tinica vez. Beis o pobre Qassem as voltas entre todos aqueles tesouros, os quais, no seu desespero, jé rem sequer vé! a 3. As trés pogées do boticario (0s quarenta ladrdes voltaram & gruta nessa mesma, noite. As mulas de Qassem, que esperavam ali desde manha, relincharam de fome ao vé-los e puxavam as correias que as prendiam umas as outras. Diante da _quele espetdculo insélito, os homens desceram das se- Jas num abrire fechar de olhos, Alarmados, avangaram por entre o mato. — Abre-te, sésamo — disse Qoja Hussein. B, quando a rocha se abriu, todos puderam ver uma silhueta que se arremessava pelo meio deles como um relampago. Qassem esperava realmente aproveitar a surpresa deles para atravessar as suas fileiras © esca- par-se. Mas ainda ele nio tinha dado dez pasos quan- do um golpe de sabre Ihe cortou a cabeca.. Pouco depois, os nossos ladrdes, reunidos na gruta, interrogavam-se como teria aquele homem chegado ali 26 Foi o que fizeram. E voltaram a partir. Levaram as seis boas mulas do pobre Qassem, que eles apreciavam. ‘como bons conhecedores e esperavam vendé-las por ‘um bom prego. Entretanto, na cidade, Xainaz vigiava 0 regresso do marido. Durante toda a tarde tinha esperado por ele, ansiosa por contar as suas novas riquezas. Mas como as horas iam pasando e ja tinha caido a noite, a sua impaciéncia transformou-se em angtistia, Em que ar- ‘madilha teria caido Qassem? Por volta da meia-noite, saiu de casa e foi bater a porta do cunhado. — Ali, como deves calcular, Qassem parti para a caverna logo de manha cedo, com as mulas para carre- gar! Mas até agora ainda nao voltou, Que poderia Ali Babé fazer para a acalmar? —Volta para casa, Xainaz, e procura dormir — disse cele. — Se Qassem nao tiver voltado de manha, eu paso pela caverna quando for apanhar lenha. Ao nascer do dia Xainaz bateu de novo & porta de Ali: Qassem nao tinha regressado! Quando, duas horas depois, Ali penetrou na gruta, deparou com um espetéculo assustador. Levou muito ‘tempo a serenar. Por fim caiu em si ¢ 0 seu primeira pensamento foi enterrar Qassem condignamente, Ca regou o corpo do irmao em cima do burro, dissimulando soc Qantas ‘uma parte em cada cesto. A triste carga foi também, desta vez escondida debaixo da lenha cortada, e Alt Baba regressou a cidade por volta do meio-dia, no pas- so calmo do jumento, Dirigiu-se a casa da cunhada, ‘onde encontrou a joven escrava Morjana no patio. Apreciava muito a inteligéncia daquela serva e dirigiu- -se a ela nestes termos: — Avisa a tua ama de que eu estou aqui, Morjana, Depois ficas ao pé dela quando eu Ihe falar, porque 0 que eu tenho para Ihe dizer é cruel. A desgraga que Ihe aconteceu nao tem remédio. B enquanto Ali Rab anunciava a sinistra noticia Xainaz, Morjana segurava as maos da sua ama € aca- entava-a com doces palavras. ‘Antes de abandonar a casa, Ali Babé chamou ainda ajovem de parte: : Tu sabes como 0 teu amo perdeua vida, Morjana. E compreendes que, para a sua honra, e também para nossa seguranca, devemos guardar segredo sobre a existéncia da caverna. £ preciso que toda a gente pense ‘que Qassem morreu na stia cama. Faz 0.que for preciso para isso. Tenho toda a confianga em ti! |, ajovem, enrolando um lengoa Assim que Ali parti ‘volta da cabeca, saiu de casa. Dirigiu-se a casa de Du- bane, 0 boticatio. Na botica, diante dos amigos e dos clientes que ali se encontravam, Morjana pede um me dlicamento que se costuma dar is pessoas atin- sidas de grande fraqueza — £1 um produto muito poderoso esse que tu vens buscar — observa Dubane, enquanto jstura as suas esséncias. Quem esté assim tao doente em tua casa? — Qassem, 0 nosso amo — diz ela em tom desgostado. — Desde ontem que nao se levan- ta da cama, Nao fala, ndo come nada e nin: guém sabe o que ele tem, Na manha seguinte, Morjana voltau a loja de Dubane, Mostrou o rosto cavado pelo can- aco e pediu a mesma pogao. — 0 teu amo esta melhor? — pergunta 0 boticario. — Nao parece — responde a jovem. E permaneceu de cabega baixa enquanto ele preparava o produto. mbém no outro dia Morjana voltou, com lagrimas a brilharem nos seus olhos. — Peco-the que faga o seu preparado o mais concentrado possivel, porque o nosso amo piora a cada hora que passa. Todos receamos 0 pior! Durante aqueles trés dias, oda a gente no bairro pode ver Ali Babé ou Fetruz dirigirem-se vinte vezes, de alma afta, & casa de Qassem. E no terceiro dia 0s vizinhos nao se surpreenderam quando ouviram os choros e lamentos {que safam da habitagao do mercador. Todos compreen- deram que tinha acontecido uma grande desgraca. Uma doenga impiedosa tinha levado 0 dono da casa... 4, Um funeral digno para Qassem Um velho sapateiro chamado Mustafa tinha a stia Joja a entrada do Bazar, préximo da porta da cidade, ‘A sua tenda era sempre a primeira a abrir. E daquela vezera ainda de noite quando o artesao viu uma jovern entrar pela sua porta. Ela chegou muito perto dele e, com a sua mao fina, deixou cair algumas boas moedas numa pequena taga que estava sobre a banca, —‘Tenho um servico a pedir-Ihe — disse ela por tras do seu véu. — Vou precisar da sua arte! Baba Mustafé era um homenzinho jovial. Deitou um olhar risonho a taga e pos de lado 0 bocado de cou- ro que estava a cortar —Se poes as coisas nesses termos, minha linda meni- na — disse ele alegremente —, encontrar-me-4s sem- pre disposto a trabalhar bem! — Entao do seu material traga aquilo que 6 preciso para coser e venha comigo. Mas primeiro vou-lhe por ‘uma venda nos olhos, para que nao saiba aonde vamos. Ao ouvir estas palavras, Babé Mustafé franziu © brolho: — Para que é isso, pequena? A tua proposta 6 deso- — Aquilo que tem de fazer nto é agradavel — expli- cou a rapariga —, mas nao fard nada que va contra sua hona, ‘Vamos, eu acredito em ti — disse ele, E pelas ruelas sombrias onde a Lua dava aos terra c08 um tom azul, a javem canduzin o velho pela ma com um lengo amarrado sobre os olhos. Meee tenon eon Peete nok Sree er nnn eons Babé Mustafa sentiu um enorme calafrio ao descobrit eee eee Pere en cn Ls eee err ko Peet cre eet coun Reece omen On nay Peeeer ask cme cs Peron 4 Feito 0 servigo, Morjana, & luz suave e cinzenta do amanhecer, reconduziu 0 velho a sua casa. O funeral de Qassem podia seguir 0 seu curso, Durante a manha, as mulheres da casa entregaram- -se as ablugdes que so devidas a um morto. Os vizi- nnhos reuniram-se Id fora. Quatro deles, subindo a0 quarto, carregaram 0 caixao aos ombros. No patio for- ma-se 0 cortejo fiinebre para se dirigir & mesquita, onde o ima diré as preces. Atrés do defunto caminham All Babs e 0s seus filhos, Depois os amigos de Qassem, 0 criados, os clientes. Ali s6 se veem homens. Xainaz, por seu lado, como manda o costume, chora 0 marido is € as outras mulheres, todas veladas de branco. Feiruz.e Morjana estao entre elas, Durante os meses que se seguiram, Feiruz e Xainaz, conheceram-se melhor e as duas cunhadas travaram, amizade, ‘Um dia, Ali Baba fol visitar Xainaz. —Na nossa tradigiio — disse-Ihe ele — uma vitiva en: contra refiigio em casa cle um dos irmaos do seu marido. ‘A nossa religido, como sabes, permite que o homem te- nnha quatro esposas, se tiver com que manté-las. Tu nao tens falta de nada, e eu agora também nao. Se queres ser a minha segunda mulher, Feiruz nao tera citimes, ela propria me garantiu, — Sinto-me honrada com a tua proposta, Ali — res- pondeu Xainaz. — Aceito de boa vontade. Mas a tua casa 6 modesta e nao poderia alojar-me a mim e aos meus criados. Visto que os nossos bens se juntarao, vem viver para aqui, com Feiruz ¢ 0s teus filhos! Viveras aqui como vive o teu irmao. 36 26 Acomodaram-se assim. E como Xainaz nao tinha fi- hos, quando Nuredine, 0 filho mais velho de Ali Babé, terminou a sua aprendizagem, passou a encarregar-se da loja de Qassem. Entretanto, 0 que era feito dos nossos quarenta la- droes? Perpetravam as suas malfeitorias longe dos mon- tes de Qaf, onde se passa a nossa historia. E Ali Babé, entregue & sua nova vida, tinha-se esquecido completa- mente deles. ‘A inquietante aposta de Mustafa Chegou 0 dia em que os nossos bandidos tinham, reunido de novo bastantes riquezas para levarem para Entio, a0 fazer com que a rocha se abrisse, consta: taram que 0 corpo de Qassem tinha desaparecido. Le- vantou-se entre eles um grande burbus — Avesta aquilo que nés receévamos. Mais alguém, além de nés, entra e sai daqui quando Ihe apetece! — Alguém que sabe o nosso segredo! — Depressa ficaremos arruinados se nao o desco- brirmos. — em breve seremos enforcados = Voces tem razao. Reme mente — disse Qoja Hussein calmamente. — Abando- heros 0s nossos outros projetos. £ preciso encontrar esse intruso e dar-Ihe mesmo castigo que ao primeiro. smos 0 caso imediata- Todos concordaram e cada um tentou encontrar a melhor maneira de proceder. Decidiram que um deles descesse & cidade sem armas e vestido como mercador para descobrir, para comecar, quem era aquele que ti ham matado na gruta, — anossa tinica pista, mas ela hé de conduzir-nos ‘once queremos — disse Qoja Hussein. — Aquele que neste momento procuramos s6 pode ser alguém proxi- ‘mo do morto, visto que partilhavam um segredo! Para terminar, o capitdo recordou a regra que tinham, entre eles: — A nossa lei, todos aqui a conhecem. Aquele que vai conduzir este inquérito sabe a sentenga em que in- corre se cometer 0 minimo erro. Esse erro pode ser fa~ tal para nés, nao lho perdoaremos. Depois de um pesado siléncio, langou, quase em tomde desafio: — Entio, companheiros, quem vai ter a honra? Varios bandidos quiseram disputar 0 lugar. A as sembleia designou aquele que achava mais valoroso, € cele sroferiu as palavras rituais: — Se eu falhar, serei morto pelo mais velho de nés! No dia seguinte, 0 bandido, vestindo a sua capa, com um turbante amarrado na cabega, adquirit 0 as- pets do mais honesto dos viajantes. Ao penetrar na 9 40 cidade, apenas encontrou uma loja aberta aquela hora, que era a loja de Mustafé. 0 sapateiro estava com a sovela na mio a fazer uma sandélia Da soleira da porta, o outro deu-Ihe os bons di — Comega a trabalhar muito cedo! — disse ele para meter conversa. — Estraga os olhos a trabalhar assim com pouca luz! Nao te preocupes comigo, meu rapaz! Os meus olhos ainda nao estao assim tao mal! — respondew Mustaféi com algum humor. E logo a seguir o velho tagarela jé estava a contar como tinha cosido um morto num quarto finebre mil vezes mais escuro do que aquela tenda. O bandido adi- vinhow a sua sorte mas, ocultando a curiosidade, repli: cou com ar indiferente: ~ Quer dizer que coseu a mortalha onde 0 morto cestava deitado? disse Mustal —Nao, nao: rispido. — Quero dizer aquilo que disse! Falo de ter cosido uma cabeca ao seu troncol... Mas isso nao te diz respeito! Recomegou a fazer furos na forma de couro. — 0 qué? — exclamou 0 outro, encostado a ombrei- ta da porta, — Coser um mortol Voeés tém costumes bizarros nesta terra! — Nao acredites em tolices, jovem pateta, isto nao é nenhum costume! 0 caso aconteceu no maior segredo. Eu nem sequer sei a casa de quem fui! somo foi isso feito? — Conduzitam-me até Id de olhos vendados, muito inuou Mustafa inclinado para 0 simplesmente — con seu trabalho. — De modo a nao ser capaz de encontrar a casa! — lancou o bandido, num tom inocente. — Isso ainda esté para se ver! — murmurou o vetho. — Facamos uma apostal — sugeriu 0 outro ‘como que a brincar, — Eu tapo-Ihe os olhos € 0 se hor tenta descobrir o percurso. Esta moeda & para si, se 0 conseguit! Se nao, ficamos quitest ‘A moeda desapareceu no seu bolso tao depres: Je a fizera rolar entre os dedos. Mustafa ‘num relampago. — Nao custa nada tentar — disse ele levantan- ei que, depois de passar a porta, fo mos para a esquerda, Depois... Pega neste lengo € ‘amatra-o sobre os meus olhos. “ sem se nganar uma ica Ali Baba. “nme —Parece me qu € aul ~ ds ee ainda de oes vendados ‘am geno arto, homer fer um snl com brancompntra al da pequena ended sere depois desis vondade Masta mueda jb. or pauiten! Bem o merce Bo andi, aprtnto de qualquer cosa gente a toe deo alo seu compan "No pos estar ‘trata-se por certo da casa que procuramos!" : en pes lei aid pov exalts geen zia até a caverna. . “ 6. A caravana do mercador de azeite ‘Teria 0 nosso ladrio razbes para se alegrar? Isso era ‘nao estar'a contar com Morjana. Esta, ao voltar do merca~ do, no deixou de reparar no sinal de giz.na porta, “Tera ‘alum mitido feito isto para se divertir? Mas o sinal est ‘muito alto para ser de uma criangat Os ladroes também ‘marcam por vezes as casas, para lé voltarem..” Se esta ideia estava certa, pensou ela, mais valia baralhar as pis- tas. E entao repetiu o mesmo sinal de giz em quatro ou cinco portas de um lado e do outro da casa de Ali Babs. Eniretanto, o ladrao tinha voltado para junto dos sous € todos o felicitavam por ter sido to répido a ‘cumprir a sua misao. O capitao explicou entao a con- tinuagao do seu plano: — Descemos todos, desta vez bem armados, mas declarou. — Entramos na ci- dissimulando as armas ~ dade em grupos de dois ou tiés, para nao atrair as ‘atengoes. Ao meto-dia encontramo-nos todos na praca grande! Eu vou fazer 0 reconhecimento da casa. De- pols digo-vos o que é preciso fazer. Um pouco mais tarde, o bandido que fizera de bate- dor conduzia o seu chefe até a rua onde ficava a casa de Ali Bab. — E aqui — disse ele quando passavam junto da primeira porta que Morjana tinha marcado. 0s dois homens continuaram a andar, como se nada fosse, para nao chamarem a atengo, Mas, na porta se- guinte, 0s seus olhares foram atraidos pelo mesmo si- nal, no mesmo sitio do batente. Depois voltaram a reconhecé-lo por diversas vezes na rua. ‘© jovem bandido tinha difienldade em manter a ccaima e dava voltas & cabega para tentar compreender alguma coisa. Mas teve que desistir. — Todos os sinais sao idénticos — admitiu ele — nao sei qual deles € 0 verdadeiro, Alguém me enganou! — Nao tomaste as devidas precaugoes! — sibilou 0 cepitao entre dentes. E sem mais comentirios regressou & praga grande, onde abordou o primeiro dos ladroes que encontrou: — O negécio falhou, Ordena a todos que voltem a0 nosso esconderijo até & noite, 0 culpado jé se preparava para morrer. Quando che- gou a noite, diante dos seus companheiros silenciosos —Nos préximos dias, vamos percorrer a regido. Nos 49 mercados, uns de nés compram uma mula nesta al- dela, outros duas mulas naquela. Escolham animais robustos ¢ de bom tamanho. Paguem 0 prego conve: niente. Precisamos de vinte no total. Outros de nds te~ io como misstio adquirir desses grandes odres que 7 servem para transportar azeite. Sao precisos quarenta, para fazera carga de cada mula: um odre de cadalado... f/ 48 © graves, ofereceu sem tremer o pescoco aquele que erguia 0 sabre por cima da sua cabega. Dois outros bandidos estavam jé a abrir a sua sepultura, No dia se- sguinte, 0 capitao reuniu os seus homens e disse-Ihes: — Eu proprio vou ter com 0 velho sapateiro. Veret essa casa com os meus prdprios olhos e tirarei dai o plano conveniente. E assim fez. Quando chegou diante da casa de Ali Babé, nao fez. qualquer sinal, mas gravou na mente to- dos os pormenores para ter a certeza de a reconhecer, 6 se afastou quando jé estava inteiramente seguro de si. No caminho de regresso ia pensando em como cas- tigar 0 dono da casa, @ quando chegou ao rochedo 0 ‘seu projeto estava tragado. Encontrou o seu bando ins. talado a comer debaixo das arvores e pediu a atengao de todos para expor o caso: ge O capitéo falou durante muito tempo e cada qual fi- cou a saber aquilo que tinha a fazer. Uma semana de- pois 0s ladroes tinham reunido tudo o que Ihes fora pedido, Cada um deles foi responsabilizado por um dre, que arranjou de modo a caber lé dentro. O capi- tao, por seu lado, tinha outros preparativos: cortou a barba de uma certa maneira e vestiu-se ao modo dos mercadores. ‘Quando tudo ficou preparado, os homens enfiaram- -se dentro de sacos. Qoja Hussein atou-os solidamente ‘um apés outro, para que nao se notasse nada daquilo que eles continham. Depois 0 capitio, segurando a pri- ‘meira mula pela rédea, pos a caravana em marcha, que seguiu em fila. O animal que ele conduzia era o tinico ‘que transportava odres que continham azeite de ver- dade. Mas todos tinham 0 mesmo aspeto: cada bandi- do teve 0 cuidado de humedecer a pele do seu esconderijo com um tampao de azeite, para fingir que 0 liquido tinha transbordado em alguns lugares. 7. Alamparina de Morjana est4 seca Para favorecer o seu plano, Qoja Hussein tina cal culado chegar a cidade de noite. Metendo pelas ruelas, fez com que a sua caravana passasse diante da casa de ‘Ali Bab. Como ele previra, este, depois de jantar, esta- ‘vano patio a fumar o seu narguilé. E como os dois ba- tentes do portao estavam abertos de par em par, 0 ladrao saudou-o da entrada. — Muito boa noite, meu senhor! — disse ele, — Co- nnhece algum albergue com uma cavalariga onde eu pos saguardar as minhas bestas? Tenho all um carregamento de azeite para vender amanha de manba no mercado. — 0 senhor chega demasiado tarde para encontrar ‘oque procura! — disse All (0 seu interlocutor ficou em siléncio, manifestando embaraco. Por isso o bravo Ali continuou, com benevo- lencia: 32 —Se Ihe serve, pode abrigar as suas bestas debaixo da galeria do meu patio. Leve para ali a sua caravana, e fique alojado aq Chamando imediatamente um dos seus criados, encarregou-o de repartir a récua e prender os animais 0s pilares: — Para terminar, Abdalé, dé uma ragao de cevada a esses animals. E nao te esquecas de por um balde de gua para cada um, com algumas magas cortadas em bocados. Sem diivida caminharam o dia inteiro ao calor e& poetrat (Depois, dirigindo-se a Qoja Hussein:) A nossa criada vai ocupar-se de si. Peca-the tudo aquilo de que possa precisar. Nao quero que Ihe falte nadat Na cozinha, onde ele entrou, Morjana estava a fazer as arrumagdes depois do Jantar. — Esta 4 um estranho para passar a noite, Morja- na, Aquece-Ihe qualquer coisa para comer € depois arranja-lhe uma cama. Como era seu costume, acrescentou as suas reco- ‘mendagées para o dia seguinte. — Eu vou aos banhos antes do nascer do dia — dis se ele. — A minha roupa de banho deve estar prepara~ dal Prepara-me também um caldo para eu tomar bem quente quando voltar. st E retirou-se para se deitar. Entretanto, debaixo do alpendre, quando Abdali se afastou, Qoja Hussein deslizava por entre as mulas, repetindo em voz baixa: — Daqui a pouco, companheiros, quando toda a casa estiver a dormir, eu levanto-me. Passo entre voces ce desato os vossos odres. Infiltramo-nos por todo o lado €, sob 0 efeito da surpresa, degolamos todos os mora- dores da casa nas suas camas, Estejam vigilantes! Depois foi & cozinha para jantar. Quando acabou de ‘comer, Morjana conduziu-o ao quarto, onde ele se dei- tou sem se despit. Mas, para fazer crer que ia dormi apagou a lamparina, Entretanto Morjana voltou para cozinha, onde acabou de cozer 0 caldo. Estava a tirar-lhe a espuma, quando o seu candeeiro se apagou. “Acabou-se 0 azeite’ diz ela, Procu- rou azeite para lhe por, endo encontrou: a sua reservaesta- ‘va seca. Entdo lembrou-se de que os odres das mulas estavam cheios. “Vou buscar um pouco para alimentar a 1a lamparina e terminar 0 meu trabalho — diz-ela asi mesma, —Issondo tem mal nenhum, eamanha entendo- -me com 0 mercador” Saiu e aproximou-se da primeira ‘mula que, de cabeca baixa, o dorso recurvado pela sua car- ‘82, procurava descanso, com um casco pousado na pont. ‘Quando Morjana se preparava para desataro lago do odre, ‘ouviu lé de dentro um murmiirio abafado: Aiinteos Quran chegoua hora? ‘Morjana ficou paralisada pela surpresa, mas 0 seu. espirito estava bem vivo. “Ha aqui uma conspiracao, pensou, ea nossa casa corre grande perigo. E de espe- rar o pior se eu nao fizer 0 que é preciso!” — Ainda nao, mas falta pouco! — replicou ela num, sussurro, pela boca do odre. Vai ao outro flanco da mula e, @ mesma pergunta {que Ihe fazem, “Chegou a hora?’ ela percebe que tam- lo, Entdo repete a sua ‘bém ali esta um homem escone resposta. E, circulando de uma mula a outra, em breve fica a saber que hé ali trinta e oito bandidos que se pre- param para qualquer coisa muito estranha. "De todos estes odres, s6 dois contém azeite! Mur- ‘mura ela. £ melhor no perder a calma! Vamos reme- diar isto e repartir a carga como deve ser!” No patio havia um enorme caldeirao assente sobre um tripé. Com uma vasilha retirou azeite dos dois ‘odres cheios, que foi despejando na cuba de ferro fun- dido até esvaziar toda a carga da mula. Acendeu uma fogueira debaixo do tripé e atigou-a 0 mais que pode. “Agora esté tudo preparado, Ea sua Gnica arma é um, ‘grande jarro, Pela boca de cada odre, ela despeja de re- pente o bastante para escaldar o homem que se encon- tra ld dentro, antes que ele conseguisse perceber aquilo 55 que the ia acontecer. Os bandidos sentem a azafama & ‘sua volta, mas nao adivinham 0 que se passa e ainda por cima estao obrigados ao silencio absoluto em obe- diéncia ao plano que montaram, Entao Morjana repete sua manobra trinta e oito vezes, e em breve debaixo da galeria nao ha ninguém vivo... Depois, como se nada fosse, acriada volta paraa co- sinha, reabastece o candeeiro e recomega a tirar @ es puma ao caldo. Mas, quando termina, em vez de se ir ¢, colocando-se atrés da jane- deitar apaga a lamp: la, fica’ espera, curiosa por ver 0 que se vai passat. Nao tem que esperar muito, Uma sombra perfila-se debaixo da galeria: Qoja Hussein levantou-se da cama. *Bacontinuagao do seu plano! — pensa ela, — Masele vai ficar muito surpreendido com o que eu the prepareit” ‘Qoja Hussein passa entre as mulas, que se mostram muito nervosas. Estremecem, agi- tam © pescogo, apoiam-so ora numa pata ora na ou tra... F ha outra coisa: aquele cheiro desagradvel 3 volta delas! Aquele fedor a azeite queimado!... Ele ‘murmura: “Chegou a hora’; mas o silencio é a tinica resposta. Perturbado, desata um lago. Fica com os de- dos engordurados. Pela abertura, as emanagdes tor- ram-se mais fortes, mais acres. Em breve Qoja Hussein 56 tem que constatar a evidéncia: 0 homem que ali esta encolhido nao dé o menor sinal de vida. “Tudo isto ¢ inconcebivel 6 parece que nio acor- del! — vocifera o bandido. — Adormeci em cima desta cama maldita e ainda estou a sonhar 0 mais horrivel dos pesadelos!..” 57 Corre de uma mula para outra e de cada vez ¢ 0 mesmo horror. Nao esté a sonhar, nao! Todos os seus homens estéo mortos, a sua companhia esta dizimadal Hei de vingar-me de tudo isto! Mas para jé trate- mos de salvar a vida! — pensa ele. Pois quem é 0 inimi- go aqui? Esta casa parece sossegada! Onde esta cle escondido?” Com mil precaugdes, caminha ao longo do muro do. patio, proc fa um lugar propfeio para subir. Quando encontra, foge pelos jardins vizinhos e chega a rua. No se a toda a labirinto da cidade, a sua sombra escap: pressa, num movimento longo e silencioso. Fm casa de Ali Rahé, Morjana, sa feta, foi para a Na manha seguinte, ao regressar dos banhos, Ali Babé retém a sua criada quando ela Ihe vem servir 0 caldo: Diz-me, Morjana, onde esta o nosso héspede? Pelo que vejo ele nao deixou sa, porque as mulas, cestio la fora & espera. _ Patrao, isso & uma longa histéria. Eu nao quis aler- tuo esta noite, e de resto estava demasiado ocupada paca o fazer. Mas chegou 0 momento de Ihe conta. E Morjana revela-Ihe tudo, em pormenor, sobre a ca:ga das mulas ¢ a fuga do falso mercador. — Fram entao trinta e oito bandidos que estavam nos acires! — repete Ali Bab, atordoado, — E tu fritaste-05 a todos, até ao tiltimo.. & eurioso — balbueia ele ¢ acaba aa esfregar 0 queixo —, 0s meus bandidos da montanha eram quarenta, contando com o chefe! Nao seria omes- mo bando de malfeitores? — Nao tenha diividas — responde Morjana, que tema sua ideia firme acerca do assunto. — Disseram la para com eles que quem tinha tirado 0 corpo de Qas- sem conhecia 0 segredo deles e estavam mesmo deci didos a vingar-se em toda a sua familia! ‘Ali Babs olhou para a rapariga, cheio de admiracao. — Onde é que se encontra uma criada tao esperta? disse ele, enternecido, — Tu salvaste as nossas vidas, Morjana. Nao hei de morrer sem antes te recompensar devidamente. Eu sei aquilo que queria para ti... mas ainda é cedo de mais. Por enquanto — acrescenta ele levantando-se — é preciso enterrar toda aquela esedria, sem que os vizinhos percebam! Ali Babé mandou chamar o seu escravo Abdali deu-Ihe ordens: — Arranja dois ou trés homens de confianga. De- pois leva-os ao pomar, Ii mesmo ao fundo, na parte das laranjeiras. Levem pas e enxadas e, sem mandriar, cavem daqui até & noite, junto ao muro, uma fossa ‘comprida e larga. Temos que la deitartrinta e oito ban. didos de estrada, Mas diz a esses servos que pagardio caro se Ihes der para falarem sobre isto na cidade! 8. Nuredine arranja um amigo Qoja Hussein caminhava de um lado para o outro na caverna, Estava desolado. *Ah —lamentava-se —, meus bravos companheios! _vunea mais voltaremosa viver aventuras juntos! Coma vou eu defender sozinho 0 nosso magnifico tesouro? que Ihe acontecera se eu morrer? Tenho que pensar em arranjar herdeiros para ele! Mas quando consegul- zi eu formar um grupo tao valente como o vosso!..” claro que a primeira coisa que desejava era vin- arse de Ali Baba, Adormeceu a dar voltas no espirito a0 projeto que estava a amadurecer. Na manha se- guinte, ao montar no seu elegante cavalo negro, tinha maquilhado o rosto e cortado a barba de outra manei- raainda, ‘Uma vez chegado cidade, alugou um quarto na es- talagem. 2 —Tenho alguns negécios a tratar — disse ele ao es- talajadeiro. — Penso ficar por aqui uns quinze di E todas as manhas, antes de sais, informava-se das f noticias da cidade junto do seu estalajadeiro. Pergun- tava asi mesmo se 0 ouviria falar da morte dos tinta e oito bandidos. Mas 0 homem, que Ihe relatava até os mexericos mais mitidos, nunca fez alusto a isso. “E porque Ali Baba enterzou os meus companhei ros as escondidas — pensou Qoja Hussein. — Nada transpirou para fora da sua casa, Esso 6 de facto muito prudent: prefere manter em segredo a existéncia da caverna! Essa é a melhor prova de au ele conhece a férmula magica!” Durante dias, Qoja Hussein espiou Ali Babs. Andava pelas proximidades da sua casa e, quando o via sair pelo portao, seguia-o onde quer que ele fosse, sem se deixar ver. Ali Babé ia com frequéncia a uma loja onde se demorava por vezes durante longas horas. Enquan- to esperava que ele voltasse a sair, Qoja Hussein discu- tia, sem levantar suspeitas, com os comerciantes da vizirhanga, Tirava as suas informagoes. — Aquela loja? Ede Nuredine —explicou-lhe um de- les sem desconfiar. — Ele sucedeu ao seu tio Qassem, ‘quemorreu hé alguns meses... Aquele homem que vai a sair de lé 60 pai dele, Ali Baba. Visita-o todos os dias ou ‘quase. Fra um simples lenhador, mas tornou-se num doshomens mais ricos da cidadet. Apartir desse dia, Qoja Hussein esperou que houves- se na praca uma loja para alugar. Quando surgiu a oca- sido, foi ele o primeito a procurar o negécio e quase nao discutiu 0 prego que Ihe pediram. Depois transportou para ld um sortido de tapetes, que ia buscar & caverna Fezassim varias viagens, carregando uma carroga atre- Jada a duas mulas, tomando bastantes precaucdes para {que ninguém soubesse nunca de onde provinha a sua mercadoria. Por fim, quando estava instalado, foi-se apresentar, como manda a cortesia, aos outros merca- ores da praca. va eon Que Lior Durante as semanas seguintes, Qoja Hussein culti- ‘vou amizade com Nuredine, que se afeigoou a ele. Os dois homens gostavam cada vez mais da companhia ‘um do outro. ‘Uma manha em que Qoja Hussein safa da loja e Ali Babi entrava, o filho falou longamente ao pai do seu novo amigo, com muitos elogios. — Convida-o para ir um dia a minha casa — propos Ali Baba, — Terei muito prazer em conhecé-lo! Mas & preciso que ele nao se sinta constrangido. Para que tudo parega muito natural, convida-o de um modo ocasional. Ora estévamos na véspera de uma sexta-feira, que é 0 domingo dos muculmanos, o dia em que eles tem a Loja fechada e descansam. — Combinado, pai — disse Nuredine. — Nada mais simples. Vou convidé-lo para dar um passeio, amanha a tarde. Vamos passar diante da tua casa e eu convido-o entrar. — Beu vou avisar Morjana para que prepare o jan- tar —concordou Ali Baba, 9. A danca de Morjana — £ aqui a casa do meu pai — dizia Nuredine, que ‘marcava paso, — Eu falei-Ihe de si. Uma vez que esta- ‘mos aqui, nao quer que eu Iho apresente? Era ahora em que as sombras comecam a ficar mais ongas, ¢ os dos homens estavam parados diante da casa de Ali Babi Qoja Hussein pos um ar de quem se achava a mais; — Por certo que néo! Iria incomodé-lo. Aliés jé€ tar- de, Vi visitar 0 seu pal, eeu continuo o meu caminho. ‘Mas Nuredine jé tinha entrado pelo portao: —Venha, pego-lhe. Isso ha de agradar-Ihe a ele ea mim também. De facto, Ali Babé mostrou-se encantado. Estavam ‘os trés sentados a beber um cha de menta, quando Alt declarou a Qoja Hussei — 0 meu filho disse-me que esta muito contente por té-lo como amigo. Considera-o sébio em muitos dominios e sempre de bom conselho. Isso faz-me ain- ‘da mais feliz porque ele esté numa idade em que tem muito que aprender! Qoja Hussein elogiou-Ihe muito o espitito do filho,, depois falaram um pouco de tudo. Quando o visitante manifestou o desejo de se retirar, Ali Babd reteve-c: — Ir-se embora agora? Porque nao janta cor Qoja Hussein colocou algumas objegbes: —Tenho que voltar para casa. E depois, confesso, sou um conviva ineémodo: nunca ponho sal nos meus alimentos! Pols bem, nado seja por isso! Faremos uma refei- ‘clo a parte em que a comida nao leve sal E dirigiu-se & cozinha para dar ordens a Morjana. — Que visitante é esse que ndo come sal! — melin- drou-se de imediato a criada, — Pois nao ¢ 0 sal a mar- ca do prazer partilhado entre amigos? ‘Ao dizer isto, a rapariga repetia uma coisa que toda a gente pensava noutro tempo: que o sal significava ami- zade, porque ele reforga 0 sabor dos repastos, tal comoo faz a felicidade de estarmos juntos enquanto comemos, Abdaldi tinha posto a mesa para os trés homens, € Morjana ainda meditava sobre o assunto. “sem sal! — resmungava ela, contrariada. — Vamos 69, La ver qual é 0 aspeto de um tdo triste convival Deve ter ‘uma cara de desenterrado e ar de velhaco!” 70 Aproximou-se da sala para dar uma vista de olhos. ‘Mas quando avistou 0 convidade, viu que nao se enga nava eo seu rosto ficou bruscamente crispado Esque- ceu-se num instante da histéria do sal: 0s seus pensamentos eram outros! Quando Abdalé levantou os primeiros pratos da mesa, ela disse-Ihe em vor baixa — Escuta, Aquele homem enganou 0 nosso amo, mas felizmente eu tenho a vista mais agucadal f ele, 0 condutor das mulas, 0 capitao dos quarenta ladroes! Eu reconheci-o por baixo do seu novo aspeto! — Sera possivel? — exclamou o eriado, — 6 um amigo de Nuredine — Pobandido tenho certeratE por baixo das rou pas dele entrevi um punbal a cintura Ele esté decidido amatar o nosso amo! — Que dizes tu, Morjana? E como impedi-lo? — Deixa comigo — sussurrou a jovem com o olhar brilhante, excitada com a sua idela. — Mas tens de fa- zer aquilo que eu te pedir. Acaboua refeigao. Abdalé trouxe os licores de tama- ra e retirou-se, Os trés homens saboreiam os licores. Qoja Hussein, descontraido, mantém no entanto 0 es- pirito alerta, Espera que as circunstancias o deixem a s6s com Ali Baba. “Entao — pensa — lango-me sobre ele, apunhalo-o e fujo pelos jardins, como jé fiz, Tudo ‘oisa de um segundo, ¢ quando alguém aqui se Iembrar de reagir j4 eu estarei longe” ‘Agora, no meio das conversas que troca com 0s seus anfitrides, ele ouve, a prinefpio fraco e abafado, o som de um dombak. © tambor aproxima-se. O ritmo soa ‘mais n{tido, No limiar da porta, 0 misico que faz vibrar ‘sob os seus dedos a pele de cabra do instrumento é Ab- daié, Atrés dele avanga uma dangarina em passo segu- 10, ondulando 0 ventre; 6 Morjana. Sobre as vestes intilantes da rapariga, enrolam-se e desfazem-se uns ‘v6as finos como espirais de fumo. — Entra, Morjana, entra! — diz Ali Baba. E todo or- ‘gulhoso, inclina-se para Qoja Hussein: — Nao pense {que mandei vir & pressa uma artista profissional! Mor- jana 6 a rapariga que preparou o jantar, Mas é também ‘uma dancarina notavel! Estou certo de que esta impro- visagao seré agradavel para si. ‘Uma sombra percorreu a fronte do bandido. A sua -vinganga tinha que ser adiada... Mas jé ele contemplava ‘arapariga. Esta, na sua danga, exibia um punhal agu- ado. Por um instante, 0 punhal prolongava os dedos dela, enquanto 0 seu corpo se curvava de lado. Logo, a seguir desenhava um arabesco diante do seu rosto. sitcom uae ‘Ouerguia-se na ponta do seu brago e a lamina reluzia como a lingua de uma serpente a atacar. Os trés ho- ‘meas estavam de espirito exaltado com a beleza. Por fim Morjana aproximou-se do miisico ¢ agarrou no dombak. Agora 0s seus véus tinham deslizado para o ‘cho; ela agitava o punhal com uma mao, e com a outra agitava o tambor. Apresentou o tambor ao dono da casa ‘com parte oca voltada para cima, como fazem as dan

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