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(CLAUDE. f DEPORT | as. ra a beasifien ss Ng EE Estado ¢ Ideologia Alaor C. Alves A Histéria e o Conceito na Literatura Medieval Katharina Holzermayt-Rosenfield Idéia de uma Histéria Universal de um Ponto de Vista Cosmopolica Immanuel Kant Ideologias ¢ Mentalidades Michel Vovelle Maquiavel Pensamento politico Quentin Skinner Marx, Légica ¢ Politica Vols. 1e2 Ruy Fausto ‘Na Contracorrente da Histaria Filvio Abramo/Dainis Karepovs (orgs.) Sociedade ¢ Estado na Filosofia Politica Moderna Notberto Bobbio / Michelangelo Bovero Colecdo Primeiros Passos O que é Alienagio Wanderley Codo O que é Filosofia Caio Prado Jr. O que é Histéria Vavy P. Borges O que é Ideologia Marilena Chaui CLAUDE LEFORT AS FORMAS DA HISTORIA ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA POLITICA 2% edic¢éo editora brasiliense stado ¢ [i laor C. # Historia iteratura atharina léia de u m Ponto nmanuc leologia: fiche! Ve laquiave ensames Juentin farx, L6 ‘ols. 1 € say Faus Va Cont ilvio A orgs.) jociedac -olitica : Norbert: Savero Copyright © by Claude Lefort, 1979 Copyright © da traducdo brasileira: Editora Brasiliense S.A. Nenhuma parte desta publicacao pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrénicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecdnicos ou outros quaisquer sem autorizacao prévia do editor. ISBN: 85-11-12004-1 Primeira edic¢éo, 1979 28 edicfo, 1990 Traducao: Luiz Roberto Salinas Fortes sae Marilena deSouza Chaui luniosoE: ce Ct Revisao: Renato Nicolai {no cHamaoa Fepf pa: Mario Camerini i of v Ex we, romeorice £9 a0 PROC. 200 200 FRG cD eZ 200. PRECO bata 44504003 TNe CPO SCO Onde FIC | Reotd 654-3( Rua da Consolacéo, 2697 01416 Sao Paulo SP Fone (011) 280-1222 - Telex: 11 33271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL Indice Nota introdutéria — Luiz Roberto Salinas Fortes ..... z + Prefacio . I — A trocae a luta dos homens . Il — Sociedade “sem histéria” ¢ historicidade ... III — A alienagdo como conceito sociolégico . IV — A idéia de “personalidade de base” .. V — Ambigiidades da antropologia cultur: obra de Abram Kardiner . VI — Capitalismo e religido no século XVI: 0 problema de WUE receseins vio vers wane vrnieg suse SIRES Wa » 125 VIL — Maquiavel: a dimensio econémica do politico . 141 VIII — A obra de pensamentoe a historia ....,..... . 155 ™X — Maquiavel e os jovens . 167 X — Reflexdes sociolégicas sobre Maquiavel ¢ Marx: a poli- ticaeoreal . + 183 XI — Marx; de uma visto da histéria a outra .. - 2 XII_ — O nascimento da ideologia e do humanismo .......... 251 XII] — Esbogo de uma génese da ideologia nas sociedades mo- + 295 O problema de Marx, 303 A divisdo social nao est na sociedade, 306 O itnagindrioe a “sociedade histérica””, 308 A ideologia dita “burguesa”, 317 © totalitarismo ¢ a crise da ideologia burguesa, 325 A ideologia invisivel, 334 Nota introdutéria O Ultimo ensaio desta coletinea que agora apresentamos ao ptblico brasileiro — “Esbogo de uma génese da ideologia” — j& havia sido publicado no Brasil pelos Cadernos do CEBRAP, n° 10, em traduciio de Marilena de Souza Chauf. Era, até entBo, o representante Unico, em portugués, de uma obra j& hoje extensa, abrangendo um grande nimero de titulos importantes — que vio da filosofia polftica estética — e que merecia h& muito maior divulgaciio em nosso pais, Reunindo artigos publicados em revistas diferentes num periodo que vai de 1951 a 1974, a presente obra, editada em 1978 pela Gallimard, d4 um visdo global de uma das vertentes da rica trajetéria do autor e da amplitude das preocupaces desse discipulo de Merleau-Ponty, herdei- ro de uma das mais auténticas tradicdes da filosofia francesa contem- Porfnea, que 0 estrépito publicitario orquestrado em torno de ““filo- sofias” de novidade duvidosa tende a relegar ac esquecimento. Através dos ensaios que vamos ler poderemos acompanhar o esforco de uma Teflexfo critica que recusa 0 conforto das ortodoxias no para se ajustar aos imperativos da ultima moda, mas como prolongamento da postura teérica, j& antiga, caracteristica de um pensamento que se nutre do seu fecundo confronto com 0 texto de Marx, interlocutor privilegiado. Trajet6ria longa que niio se confina, aliés, ao espaco da ret6rica académica, pois este autor preocupado com as formas da hist6ria nao 8 CLAUDE LEFORT negligencia as oportunidades de intervencio direta nos chamados acon- tecimentos. Desde a ruptura com 0 trotsquismo, em 1943, a qual se segue a criagio, juntamente com Cornelius Castoriadis, da revista “Socialisme ou Barbarie", responsdvel pela divulgacio pioneira de muitos temas politicos fundamentais hoje banalizados; desde a critica do stalinismo contra o qual se afinam as categorias para a compreensio do fenémeno da sociedade burocratica — cujo movimento transparece na coletinea publicada em 1971 sob 0.titulo de “Elementos para uma critica da burocracia” — e desde a revista “Textures”, passando pelos trabalhos de filosofia politica de maior félego, como a tese de Estado sobre Maquiavel — “Le Travail de l'Oeuvre”, Gallimard, 1972 —, em cuja obra nosso autor acompanha minuciosamente o paciente trabalho do desvendar para além das ilusdes ideolégicas, dos fundamentos do jogo politico, até a pergunta pelo significado de maio de 68 — publi- cada sob o sugestivo titulo de “‘Le Desordre Nouveau” —, a discussio em torno do “‘Arquipélago Gulag”, de Soljenitzin — ‘Un Homme en Trop”, Seuil, 1976 — e a direcfo da revista “Libre”, atualmente edi- tada em Paris, ¢ também o destino do marxismo e seus impasses atuais que se acham em causa através de uma interrogac&o radical sobre a constitui¢o do social ¢ da tentativa de pensar as novas formas de opress&o forjadas pela histéria recente. O que j& € suficiente para justificar nosso interesse. Divisto do social ¢ dissimulacdo desta divisto. Eis a formula algébrica da nossa condic¢fo sécio-histérica, que ganha, desde a ‘Ideo- logia Alem’, um estatuto teérico rigoroso. A Ideologia, cujo “esque- ma de constituigdo”, segundo nosso autor, é desvendado por Marx, organiza-se como processo de mascaramento do real, obedecendo a uma légica da dissimulag&o que opera a “denegacao” sistematica da divisdo presente no real sob trés modalidades diferentes: uma divisio entre classes, decorrente da divisfio do trabalho social, a divisdo tempo- ral entre as diversas formas hist6ricas de ordenagio das relacdes sociais e, finalmente, a diviséo entre o saber e a prética a partir da qual se institui. Simular a unidade, figurar o fim de toda contradic&c tanto no espaco social como no tempo histérico — tendo em vista, neste iltimo caso, congelar a histéria na repetigio do mesmo. a fim de conjurar a ameaca do novo — e, finalmente, promover a supressio iluséria das fronteiras entre o pensamento e 0 ser: eis o essencial do trabalho de dissimulag&o que se cumpre através da Ideologia propria do nosso universo sécio-cultural. O préprio Marx, porém, de acordo com Lefort, nio é inteiramente fiel 4 sua descoberta, comprometida em parte pelo “sociologismo” de que n&o consegue se livrar inteiramente. O que sp ag AS FORMAS DA HISTORIA 9 torna ambiguo e problemtico o percurso marxista — e mais ainda o de certos marxismos ~- é 0 postulado “‘ideolégico” de que o real Na sua totalidade é social e de que essa realidade é, de direito, abso- lutamente transparente a um Sujeito — ao mesmo tempo sujeito cog- noscente e agente transformador do real — o qual disporia da capa- cidade de discriminar na realidade termos positivos que correspon- deriam a um nivel determinante — o das relacdes de produc’o — ea niveis derivados, as esferas juridicas, politica e o universo da repre- sentacdo. Ora, a ilusdo que se acha no “‘corac&o da sociedade moderna” — de que o préprio Marx nao consegue:se livrar — é a de que a “‘institui- gio do social pode dar raz&o de si mesma” — como se afirma no ensaio final desta obra — quando, de fato, achamo-nos diante de uma reali- dade engendrada, instituida a partir de um processo “imagindrio” no limite impensfvel. Para o discurso pré-capitalista que parte da repre- sentapao de uma Transcendéncia como inst&ncia produtora do real, o social ndo existe enquanto tal e pertence A ordem do epifendmeno. Sua configurac4o como objeto especifico do saber supde uma mutagdo no regime do imagindrio social gracgas 4 qual se determina a ambic&o de dar conta do social exclusivamente a partir de si mesmo. E esta ambic&o seria paradoxalmente levada a efeito por Marx, que pretende localizar no modo de produgio a instfincia produtora do real na sua totalidade. E impossivel, segundo Lefort, deduzir das relagdes de produ- ¢&0 a ordem da lei, do poder, do saber, assim como é impossivel reduzir aos efeitos da divisio Capital/Trabalho a linguagem na qual se articula a pratica social, a ordem simbética na qual se inscreve necessariamente toda pratica. Estas relacdes se travam, estes efeitos se desenvolvem em funcfo de condigtes que nfo podemos catalogar simplesmente no registro do real. O préprio real, ao contrério, ou aquilo que aos homens aparece historicamente como tal, “‘ordena-se, torna-se visivel uma vez fixados os pontos de referéncia de uma nova experiéncia da lei, do poder, do saber, uma vez inaugurado um modo de discurso no qual certas oposigées, certas praticas se revelam — isto é, remetem umas as outras, contém virtualmente um sentido universal, permitindo uma troca regrada entre o agir e o pensar” (Vide o capitulo sobre o ‘'Esboco de uma génese da ideologia”). A transformag%o que se opera com o capitalismo, por exemplo, supSe o aparecimento do “Humanismo”, depende de uma alteracZo na ordem imagin4ria e simbélica que torna possiveis discursos especificos sobre a politica e a historia enquanto tais, inaugurando um novo modo do discurso no Renascimento, em ruptura com a ordem da Transcendéncia cujos mecanismos sao esqua- 10 CLAUDE LEFORT drinhados no capitulo sobre “‘O nascimento da ideologia e do huma- nismo”, Mas 0 abandono da perspectiva marxista, nos termos em que nos é proposta, nao implicaria, contudo, em uma reabilitagao da Transcen- déncia? Batizada com um novo nome, mascarada sob o titulo de ordem do imaginério ou ordem simbélica, no seria a velha transcendéncia, embora convertida em uma instfncia inatingivel pelo conhecimento, que voltaria a operar soberanamente por trés dos agentes histéricos aparentes? N&o cabe, porém, nos limites desta nota aprofundar o -questionamento desta obra polémica: compete ao leitor julg4-la, uma vez travado o didlogo com o autor. O que importa assinalar, no momento, é 0 estilo mesmo dessa interrogacdo radical, assim como suas conseqiléncias polfticas mais gerais. O que devemos reter, por enquanto, neste reconhecimento da ambigiidade na instituicio do social, processo complexo, no limite impossivel de ser determinado plenamente, nesta aceitagio de uma opacidade irredutivel e da impossibilidade de se fixar de uma vez por todas as fronteiras entré o real e o imaginério, é a viruléncia antidog- matica em que se inspira este pensamento. Pensamento essencialmente critico, que nos aponta para as antinomias da reflexio dogmatica sobre o social e sobre a hist6ria e parte da exigéncia do reconhecimento de uma cisdo irredutivel a que nenhuma unidade pode ser substituida — ao contrério do que pretendem os sonhos de transparéncias pacificado- tas. O social ¢ divisdo: € desta exigéncia que deveremos partir — como nos mostra magistralmente o autor em funcdo do exemplo de Maquia- vel, no capitulo intitulado “Maquiavel, a dimensio econémica do politico” — se n&o quisermos recair nas ilusdes da ideologia. Renun- ciemos ao mito do saber total, j4 que é ilus6rio pretender ocupar uma posi¢&o que nos permitiria envolver a totalidade das relacdes sociais, assim como sobrevoar a totalidade do desenvolvimento hist6rico: eis a que nos convida 0 autor. Para estas divisées inscritas no coracio mesmo do social, duas “solugdes" politicas sho possiveis: ou se aceitam as divisdes, se reco- nhece o Outro, se convive com a diferenca e a ela se permite um livre desenvolvimento — temos ent&o a democracia; ou o poder ambiciona suprimi-las definitivamente, ou se busca a uniformidade a qualquer prego — temos, ent&o, o totalitarismo. Falar em “democracia” nio significa, porém, proceder simplesmente a reabilitac&o da democracia “burguesa”’, nfo significa jogar fora com a Agua do banho a critica ao formalismo democratico, tal como foi fixada pelo marxismo. Significa reconhecer na convivéncia de forma democratica o regime politico cujo AS FORMAS DA HISTORIA sy “gesto inaugural” consiste no “‘reconhecimento da legitimidade do conflito na sociedade”, segundo formula lapidar do autor, em texto que nao figura nesta coletinea, publicado pela revista “Textures”, 2/3: “Sur la démocratie, le politique et l’institution du social”. Nao se trata de mascarar a realidade do poder dos grupos econdmicos atuando, no modo de producao capitalista, sob as aparéncias da igualdade univer- sal perante a lei; trata-~se de reconhecer a questio que “veicula a democracia: a de uma sociedade que acolhe o conflito de classe, a fragmentacfo das experiéncias do mundo, a heterogeneidade das cul- turase dos costumes, a coexist€ncia de normas e de valores irredutfveis” (“Un Homme en Trop”, Seuil, p. 197). Assim como se trata de denun- ciar, inversamente, a ambicio totalitéria, presente em sistemas de producio diferentes ¢ inscrita como virtualidade permanente no capita- lismo, que busca a homogeneizac&o a outrance do campo social, de que oséculo XX fornece ilustragées abundantes. Pensamento revitalizante, como vemos, e extremamente atual para nés brasileiros, que tanto necessitamos de subsidios capazes de nos ajudarem a despertar de nosso intermindvel pesadelo autoritario. LUIZ ROBERTO SALINAS FORTES Prefacio Com excegio de um estudo inédito, consagrado a Marx, osensaios reunidos neste volume j4 apareceram em diversas publicagdes. Alguns dentre eles so antigos ¢ mesmo bastante antigos, ji que remontam a mais de vinte ou de vinte € cinco anos. Em uma época em que a produgio intelectual parece carregada pelo “movimento febril-e verti- ginoso” que Marx ja julgava caracteristico da sociedade burguesa(e hoje o € muito mais), deveriamos sentir-nos intimidados perante a idéia de submeter a novos leitores textos escritos para outros que nao haviam ainda alcancado as ultimas ondas da modernidade. Mas, ousemos dizé-lo: nfo é af que se acha nossa reserva. O fato é que jé h4 algum tempo escutamos um discurso homicida diante do qual nada da Tra- digdo é tido como capaz de resistir. A filosofia ou, mais geralmente, a teoria parece o subterfigio inventado pelo “Senhor” para impedir a revolta ou satisfazer ao desejo de servidio. Marx ¢ Freud siio apresen- tados como encarnagdes desta Poténcia invisivel e ardilosa, ocupados que estariam em nos fazer acreditar que hd algo de preferéncia ao nada e em nos precipitar nas redes da Ciéncia e da OpressAo. A Historia é denunciada como sendo um engodo. A prépria Sociedade como um artefato que o Génio Maligno denominado Estado destina A funcao de produzir e reproduzir as condigdes de uma dominag&o do homem sobre o homem — isto quando o Estado n&o 6, por sua vez, enviado para o 4 CLAUDE LEFORT dominio da ficgio € 0 artefato reduzido 4 combinag&o de uma multipli- cidade de relagdes de poder... Seria necess4rio, verdadeiramente, ter medo de ndo falar a lingua destes contemporfneos? No espaco de alguns anos viram-se idolos destronados. Por yezes, por aqueles mesmos que os veneravam. Mas a agitac&o inces- sante que acompanha este grande tumulto j4 comega a engendrar 0 tédio. O assassinio da Verdade é sobrecarregado com um ritual tho pesado, a reivindicago do prazer j4 tio enfatica que, na maior natura- lidade, passado e presente se recolam: o tempo da afirmacao pedante eo da destruicio pedante. Os textos que republicamos estio af para testemunh4-lo: nunca adoramos a divindade Histéria, nem contribuimos para o fantasma da totalidade, emprestamos a Marx um saber infalfvel, nem muito menos partilhamos as esperangas que outros colocavam nas Gitimas figuras da cientificidade. Quando comecamos a escrever foi para colocar em questo a idéia de uma Historia universal, a de um devir da huma- nidade, regido por leis ou consagrado ao sentido que a sociedade moderna conduziria A expressio; ou entio foi para por em evidéncia os. limites do estruturalismo e denunciar a ilus%o que haveria em se reter das relagdes sociais apenas aquilo que se prestaria a uma sistematiza- ¢4o para, em Ultima instncia, rebaix4-las ao plano da realidade fisica. A obra de Marx nés a abord4vamos convencidos de que era necesshrio preservé-la do mito da “teoria marxista”, recusar a antitese entre objetivismo ¢ subjetivismo na qual a aprisionava o comentfrio da posteridade, fazer justiga 4 indeterminag&o que, de uma obra para a outra, minava o edificio de suas respostas e, em especial, escrutar a oposic¢fo que esbocava entre a histéria da sociedade burguesa ¢ a de todas as outras formagées sociais. E verdade que de Merleau-Ponty aprendéramos bem cedo que n&o é menos vio querer encontrar num suposto real a origem do conhecimento e da linguagem quanto em uma ordem suposta das idéias o principio da génese do mundo real. Ambas tal como ele nos fizera compreender — sio representacdes ciimplices que remetem uma A outra. O ponto de vista da natureza e o da consciéncia supdem a ocupacaio de um lugar imagindrio de onde as coisas se desvelariam tais como s&o para um observador que nao seria nada, nao teria que assumir o fato de que existe e pensa — que existe aqui e agora e que pensa sempre a partir de um j& pensado. Ora, a critica de um “‘pensa- mento sobrevoante” ou de um “saber que sobrepaira”, segundo os termos de Merleau-Ponty, n&o atinge apenas a idéia de totalidade, mas AS FORMAS DA HISTORIA b poe também em causa a de objetividade, na medida, pelo menos, em que sob sua cobertura é a natureza da relacdo social ou a da representa- gio social que acreditamos atingir, é a instituicfo humana que tro- amos sub-repticiamente contra a légica do sistema. Seria ainda preciso dizé-lo? A empresa da ciéncia — nos limites da sociologia, da etnologia, da economia politica ou da histéria — no se acha, em funcio de tudo isso, de forma alguma desacreditada, sendo apenas mantida nas condigdes que lhe asseguram sua validade. Mais ainda: uma interrogagdo sobre a hist6ria, sobre a sociedade, que ndo assumisse a tarefa de interpretar os dados postos em forma pela ciéncia ndo seria capaz de abrir para si prépria um caminho. A filosofia se extingue quando nao vive mais do contacto com esta tarefa. O recolhimento das ciéncias humanas no interior de suas pré- prias fronteiras constituia, porém, a nossos olhos, o perigo maior, uma vez que tem como efeito proibir-nos de refletir sobre nossa experiéncia e converter o conhecimento em uma “poténcia independente que se ergue acima dos homens”, como diriamos de bom grado parafraseando Marx. Nao hé sociologia digna deste nome — continuamos a pensar — que nfo carregue em germe uma interrogagio sobre o ser do social, que nao requeira o deciframento, seja qual for o objeto de andlise, do fenémeno de sua instituictio, da maneira segundo a qual uma humani- dade se diferencia ou, mais fortemente, se divide para existir como tal, da maneira pela qual disponha de referéncias simbé6licas para figurar 0 que lhe escapa: sua origem, a natureza, o tempo, o ser mesmo. O que é, pois, interrogar? Em um sentido é fazer o enterro do seu saber. Em um outro sentido, aprender gracas a esse enterro. Ou ainda: renunciar A idéia de que haveria nas coisas mesmas — ou seja, tanto faz na Hist6ria, nas sociedades primitivas, em uma reptiblica do Re- nascimento, na sociedade burguesa tal como se institui sob o reino do capitalismo industrial ou ainda nas ideologias ou, enfim, nas obras como as de um Marx ou de um Maquiavel — um sentido inteiramente positivo ou uma determinacdo em si prometida ao conhecimento, como se isto que analisamos ndo se tivesse j& formado sob 0 efeito de um deciframento do sentido, em resposta a um questionamento da hist6- ria, da sociedade, da coexisténcia, da natureza, como se nao féssemos interpelados por estas questdes escondidas em um mundo-outro ou um discurso-outro e como se 0 “objeto” nao devesse nada a nossa propria interrogacao, ao movimento de pensamento que nos faz ir até ele e as condi¢des sociais e histéricas nas quais se exerce. Renunciar, pois, a uma tal idéia e, em conseqiléncia, apontar nas coisas, na histéria, na 16 CLAUDE LEFORT vida social ou nas obras de outrem, as discordancias, as contradicdes, as fraturas que so sinais da indeterminag&o do sentido ¢ nos constran- gem a avancar fazendo a experiéncia da impossibilidade de uma clau- sura do saber. Nesta experiéncia, a hist6ria niio se desvanece, mas volta como questiio da histéria; a sociedade, do mesmo modo, volta a nés na forma de uma questiio sobre a instituicio do social. Mas, observemos entre parénteses que a vida é Arida, pois a interrogag&o esté sempre por ser refeita, seu ponto de partida nfo sendo nunca assegurado e seu termo indefinidamente diferido. De maneira que niio h& discurso possivel sobre o discurso interrogativo. Ao contrario, o discurso da destruigio tem de prestigioso o fato de que se retine sob a forma de tese, de que é discurso sobre a destruic&o: é este o sinat de que & ideologia, cuja fungdo é sempre recobrir as questdes do tempo, seguindo seu movimen- to, e de concluir. Significaria isto que entregamos nossos antigos ensaios a um novo piiblico, sem reticéncias? Certamente n&io. Sio miltiplas e seu motivo é bem fundado. Além do fato de que sua confecciio nos decep- ciona, descobrimos que esta bem longe de se aproximar de seu objeti- vo. Frageis nos parecem os dados que os escoram. Como nos parece restrita, por exemplo, nossa informagao sobre o dom. Auferida intei- tamente em. Mauiss, teria sido necessArio enriquecé-la explorando tra- balhos etnolégicos recentes tais como os de Sahlins ou ent&o os mais antigos de Benveniste sobre o mundo indo-europeu e de Gernet sobre a Grécia arcaica. Enfim, trata-se de ensaios, no sentido o mais trivial do termo, de questdes lancadas ao invés de verdadeiramente meditadas, Relendo-os depois do esquecimento surpreendemo-nos em pleno desejo de refazé-los. Pensamento absurdo: a gente sonha em vio ser diferente do que foi e sé-lo diferentemente, Mas pensamento apaziguador pois que a eles nos sentiamos ligados. O fato é que neles se desenha uma problematica, cuja persist€ncia verificamos em escritos mais recentes. S&o estes primeiros textos que podem melhor convencer o leitor — tal é pelo menos nossa esperanga — de que nao lhe fazemos a entrega de um conjunte dispar, que a despeito da diversidade dos temas abordados nao deixamos de nos interrogar sobre as formas da histéria: sobre a disting&o de uma histéria regida por um princfpio de conservac&o ou de repeticiio e de uma hist6ria que por principio abre lugar para o novo; sobre a distincZo de uma histéria indefinida qual pode ser referido todo encadeamento de acontecimentos ou toda transformagio das es- truturas sociais e de uma hist6ria de algum modo inscrita no tecido das relag6es sociais; afinal, sobre a distin¢ao de uma hist6ria visivel, aquela AS FORMAS DA HISTORIA. v7 que faz ler a mudanga, sob todas as suas formas, e de uma histéria invisivel que, em tal ou tal sociedade dada, subtende o ordenamento das instituigdes e constitui a dimens’o temporal da vida social. E impossivel encerrar a troca por meio de dons nos limites de uma estrutura: era o que sustentdvamos em nosso primeiro ensaio. "Mauss nao permite a confusSo entre o drama da socializaco e os mecanismos da reciprocidade. O dom néo é apenas o efeito da regra da troca, regra universal que comandaria o funcionamento do sistema denominado cultura. Nao é A toa que se efetua sob a ameaca da ruptura. Ele pde em jogo a identidade do Sujeito, individuo ou grupo — a qual, identidade, no pode, de certo modo, senio retornar a cada um a partir do lugar do Outro. A assimetria das posigdes dos parceiros assim como os prazos € as permutagées da troca siio essenciais. A busca do reconhecimento é constitutiva da vida social. A oposi¢io é “encena- da” a fim de ser ultrapassada, do mesmo modo que a perda 6 encenada a fim de ser reparada. E, pelo efeito de um duplo risco, de um duplo desvio pelo invisivel, se institui e se figura uma ordem social em ruptura com a ordem da natureza, Neste sentido, 0 potlatch no é um caso limite ou até mesmo aberrante da troca: ele nos faz ler 0 seu sentido ao mesmo tempo em que nos faz entrever a possibilidade de sua transfor- magio. Impossivel falar da Hist6ria no singular, eis o que pretendiamos mostrar no segundo ensaio. Impossivel imaginar um curso tinico da humanidade no qual se situariam as sociedades humanas, cujas mu- dangas seriam mais ou menos precipitadas em. fungao de fatores supos- tamente objetivos (desenvolvimento das forcas produtivas, da divisio do trabalho, das trocas, etc.). Nao menos impossivel, contudo, seria fixar o ponto de partida da hist6ria no momento em que nasceriam com 0 Estado as condicdes de uma meméria coletiva e de uma articulagio do futuro com o passado. Ha sociedades cuja forma se manteve, indubitavelmente, durante milénios e que, a despeito dos acontecimen- tos os mais variados de que foram teatro, de sua diferenciacio interna, dos progressos técnicos e cientificos, ordenam-se em func4o de uma tecusa do histérico, Nés as denomindvamos “sem histéria”, no para dizer que nao conheciam mudangas, mas para pér em evidéncia sua. tendéncia a neutralizar os efeitos da mudanca. B em um modo de organiza¢&o social — julgavamos — que a temporalidade se imprime. As sociedades “‘estagnantes” ndo se situam aquém da era do desenvol- vimento histérico: elas elaboram as condi¢ées de sua estagnacdo. Do mesmo modo, as sociedades hist6ricas n4o s&o o produto de um desen- 18 CLAUDE LEFORT volyimento, mas preparam a sua possibilidade e, inclusive, sem deixar de resistir 4 mudanga e de tentar denegar a histéria. Quanto ao terceiro ensaio, interroga o uso de um conceito-chave do pensamento hegelo-marxista: o de alienagio. Quisemos denunciar a abstrag&io que a ele se liga quando o convertem em categoria universal e, a partir de indicacdes de Marx, exploré-lo a servigo de uma distingao entre duas formas de sociedades e duas formas de histérias. Escolhen- do o caso de uma sociedade africana tradicional (os Nuers), cuja organizacio é inteiramente centrada sobre um objeto (as vacas) no qual so condensados 0 interesse, o poder, 0 prestigio e que, em uma andlise superficial, pareceria fornecer um exemplo notavel de alienacio, esfor- gamo-nos por ressaltar, por contraste, os tragos do sistema social capitalista, em mostrar que a ai alienagao se designa nao pelo sinal de uma projecio da relag&o social em um objeto — mercadoria ou dinhei- ro —, que asseguraria uma socializacio efetiva das pessoas, como acontece entre os Nuers, mas pelo sinal da divisio dos setores de atividade, de uma autonomizag&o de cada um dentre eles, sob o efeito da qual cada categoria social faz a experiéncia de uma realidade e de uma histéria que a torna estranha aos outros. As sociedades ditas primitivas, como se vé, ou mais geralmente aquelas que se agenciam sob 0 poder da Tradicg&o, forneceram, em parte, a matéria de nossas primeiras reflexdes. Elas pareciam langar um desafio a representag&o classica e moderna da Histéria. Foi tam- bém esta a razdo de nosso interesse pelos trabalhos de Abram Kardi- her, aos quais consagraramos um breve estudo, desde 1952, e que, em seguida, deviamos interrogar longamente, por ocasido da traducio de The Individual and his Society, que Pierre Nora nos havia amistosa- mente incitado a introduzir aos leitores franceses. No campo da antro- pologia cultural americana, Kardiner reteve particularmente nossa atengao, porque tinha em vista a idéia de uma génese da cultura. Recorrendo a meios inéditos este psicanalista, trabalhando em colabo- racgéo com etnélogos, tentava exumar o que chamamos de histéria invisivel, tramada a partir de condigdes objetivas, em fun¢go de esco- lhas inconscientes. Nas primeiras técnicas de aprendizagem da vida, nas relagdes entre os sexos e entre as geracdes, na divisio do trabalho, nas instituigdes, nos ritos, nas crencas, nos mitos, ele nos fazia notar um sistema advindo, em resposta a imperativos de adaptacdo ao meio e de coesao interna da personalidade. Sistema que testemunhava aqui e acolé uma selegio e uma conformagio de certos possiveis, com a exclusdo de outros possiveis, de um ajuste de conflitos fundamentais ao preco, pago de maneira mais ou menos cara, de tensdes ou desordens AS FORMAS DA HISTORIA 19 “secundérias”. A despeito dos limites da teoria funcionalista, que sublinhamos enfaticamente, a nogdo de “personalidade de base” for- necia o indice de uma diferenca de matrizes das relacdes sociais e da mudanga. Mas, nao menos notdyel nos pareceu a impoténcia de Kar- diner em conservar a agudeza da anilise freudiana e em enfrentar o problema de outros tipos de cultura e de outros tipos de personalidade, em fungiio de uma experiéncia que nao seria admissivel inscrever em um universo objetivo sob o titulo de simples variante, Examinando sua. tentativa, redescobriamos a ilusio de uma ciéncia que pretende sobre- voar as diferencas a fim de abragar a totalidade de um campo e a maneira pela qual ela se duplica: o relativismo cultural aparecendo-nos como o complemento ¢ 0 reverso do etnocentrismo sociolégico ou psicanalitico. Destas andlises aos textos que tratam de Maquiavel, Marx ¢ ‘Weber e depois aos dois estudos sobre o nascimento do humanismo e a génese das ideologias, a distancia é aparentemente grande, o campo de interesse se desloca. Terlamos muito menos razées para dissimulé-lo, quanto mais estamos certos de que se uma compilag%o como esta nossa tem algum mérito é o de tornar sensivel a constancia de uma intencdo, ou melhor, de um procedimento no curso de itinerfrios que nao haviam sido combinados de antemao. Uma vez que jé tentamos esclarecé-los, fagamos somente estas Gltimas observagdes. A Maquiavel consagramos, em outra ocasiaio, uma obra que teria podido nos dispensar de lhe dar lugar neste volume. Interessava-nos, todavia, reinscrever certos tracos de nossa interpretagio sobre a hist6- tia e, além disso, fazer aparecer um laco entre nossas reflexdes sobre Maquiavel e sobre Marx. Existe uma sé maneira de interrogar, como observamos, quer se trate da realidade social, da histéria ou entdo das obras de pensamento: tornar patente a interrogagaic naquilo mesmo que interrogamos. Acrescentamos agora que a realidade, a historia se dao de alguma maneira nas obras, assim como cada obra de alguma maneira nelas. Assim, o mesmo movimento de pensamento nos induz a desfazer as representagées estabelecidas para despertar a indetermina- ¢4o do sentido em uma obra e a afastar a ficcfo de uma esséncia da hist6éria ou da sociedade a fim de despertar a indeterminagio do sentido nas coisas. Entreviramos a diversidade das formas da histéria no decorrer da leitura de Maquiavel e de Marx, na medida em que faziamos esforco para nos desprender da representacfio de uma teoria maquiavelista e de uma teoria marxista. Do mesmo modo, quando nos arriscamos a procurar na Floren¢a do Quattrocento os sinais de uma mutacdo, que fazia aparecer da melhor maneira possivel a relagio que 20 CLAUDE LEFORT mantém o nascimento de um discurso propriamente histérico — huma- nista, polftico, literdrio e “cientifico” — com a de um discurso ideolé- gico — feito para conjurar a ameaca do novo — ou ent&o, quando nos arriscamos a esbocar uma génese da ideologia, a assinalar nas suas transformagées um movimento historicamente determinado pela exi- géncia de uma ocultacao do Aistérico (entendamos, daquilo que se faz sinal de uma ruptura com as praticas e as representagdes instituidas), € ainda o pensamento de Maquiavel e de Marx que continudévamos a questionar. Tratamos pois da ideologia na ultima parte deste volume, Seria pouco dizer que ela constitui um objeto privilegiado de interpretacao. Ela é 0 elemento do qual esta se extrai ou tenta extrair-se e nunca acabou de se extrair para encontrar seu caminho. Se hé uma represen- tagdo ideolégica, tanto da ordem social ou da histéria quanto das obras (notadamente a de Marx), ela nado é simplesmente interposta como uma tela entre nés e as coisas, mas se acha impressa no fundo de nossos pensamentos e todo esforgo para desvelar o que é implica em um desvelamento de si para si mesmo. Mas, resta o fato de que, ao querer tomar a ideologia como tema explicito de reflexiio, ao querer decifrar as condigdes de sua formacdo, a diversidade de suas figuras e as cumplicidades que mantém, fomos confrontados com questdes que Jevavam para além das fronteiras de nossas antigas andlises. Assinalan- do as vias pelas quais o discurso ideolégico se ocupa em dissimular a divisdo social e a divisio temporal — o que nos pareceu, na esteira de Marx, sua fung&o primeira —, abandonamos a crenca — ela sim marxista —- de que a divisio poderia ser localizada no espaco ¢ no tempo empiricos. Persuadimo-nos de que esta crenga achava-se tam- bém sob as peias da ideologia com a qual parecia romper. Enquanto concebiamos a ideologia como uma formacdo imagin4- ria especffica, ligada ao desenvolvimento de uma sociedade na qual a divisio social parecia, pela primeira vez, como puramente social, pri- vada de um fundamento natural ou sobrenatural, torndvamo-nos aten- tos ao fantasma de uma humanidade que coincidiria consigo mesma, deixar-se-ia apreender nos seus limites ou de uma histéria liberada da indeterminagao do futuro e do peso do passado. Fantasma — desco- briamos — no qual a dimensio do Outro se acha anulada e que, afinal, 86 oferece uma inversdo deste primeiro fantasma, desse fantasma mile- nar em virtude do qual o Outro, materializado em poténcias invisiveis — ancestrais, heréis miticos ou deuses —, parece impor ou reter em si aleido social. I A troca e a luta dos homens* A influéncia de Marcel Mauss! foi sem divida essencial para os antropélogos e os socidélogos contemporineos; ela se acha presente em toda parte, como Lévi-Strauss mostrou, nos trabathos da nova escola americana. Podemos nos espantar, todavia, com o fato de que nio ultrapassou mais cedo o circuls estreito dos especialistas, que nao tenha atingido com maior freqiéncia 0 psicélogo, o historiador ou o filésofo, que estes dltimos confundam ainda a sociologia francesa com as tendéncias “redutivas”, causalistas, estreitamente racionalistas de Durkheim. Ao ler seus ensaios sobre as relacdes entre a psicologia ¢ a sociologia ou sobre a Idéia da Morte e principalmente seu Ensaio sobre o Dom, a justo titulo o mais célebre, Mauss se revela, contudo, um dos autores dos mais representativos de nossa época, isto é, dos mais interessados em definir um novo racionalismo no sentido de Hegel, Marx ou Husserl. Sua preocupacio constante nao é explicar um fend- meno social partindo de um outro fen6meno considerado como causa, mas ligar todos os tracos econSmicos, juridicos, religiosos, artisticos de (*) Publicado em Les Temps Modernes, 64, 1951. (1) Sociologie ¢ Anthropologie de Marcel Mauss, precedido de uma importante introdugio de Claude Lévi-Strauss, PUF, 1950. 22 CLAUDE LEFORT uma dada sociedade e de compreender como conspiram em um mesmo. sentido. A identidade de pensamento e mesmo de expressio entre o jovem Marx de Economia politica e filosofia e 0 autor de Ensaio sobre o Dom € resplandecente e tanto mais significativa quanto se sabe que Mauss ignorava Marx?. Ambos falam do “homem total” portador de uma verdade social e histérica e combatem toda teoria que trataria a sociedade como uma abstragao. Assim como Marx procura elucidar — para além das regras de propriedade e das ideologias proclamadas — as relacgdes que mantém entre si os homens concretos, Mauss se propde a atingir “as préprias coisas sociais, no concreto, como elas sao” ¢€ afirma que “nas sociedades captamos mais do que idéias ou regras; captamos homens, grupos ¢ comportamentos”. Nao podemos, igual- mente, nos impedir de evocar o método da fenomenologia quando vemos Mauss esforgar-se por derrubar as barreiras artificialmente eri- gidas entre a sociologia ¢ a hist6éria ou a sociologia e a psicologia e afirmar uma reciprocidade de perspectivas sobre um real em si indefi- nivel. Nao resta divida de que Mauss é um sociélogo, preocupado antes de tudo em descrever os fendmenos concretos e nao em definir.a condicio do homem ou refletir sobre o sentido da Histéria, mas sua descrig&o mesma conduz, a cada momento, & colocagao de problemas propriamente filos6ficos. Poderiamos acaso duvidar que ele préprio tenha consciéncia de que sua descri¢fo do potlatch e das relagdes de rivalidade entre os homens primitivos acaba se convertendo em reflexio sobre a intersubjetividade, quando ele escreve, no fim do Ensaio sobre o Dom: “E considerando 0 todo no seu conjunto que pudemos perceber oessencial, o movimento do todo, o aspecto vivo, o instante fugidio em que a@ sociedade assume, em que os homens assumem consciéncia Sentimental de si mesmos e de sua situacdo face a outrem” (p. 275). O Ensaio sobre o Dom ao qual queremos voltar é, de fato, um ensaio sobre os fundamentos da sociedade. A questio critica: “Em que condicdes uma sociedade é possivel?” acha-se constantemente suben- tendida no decorrer da interpretac%o das formas primitivas da troca. Isso significa que o autor traz uma solugdo satisfatéria aos problemas (2) Gurvitch, com muita razio, fez esta aproximagho em sua Sociologie du Jeune ‘Marz (in Vocation actuelle de la sociologie, p. 583). (3) A expressio é com freqiéncia vaga e aproximativa. Parece-nos que o autor entende por “consciéncia sentimental” a consciéncia nfo intelectual ou nko refletida; 0 que os contempordneos exprimem por consciéncia nfo tética. Somos, em contrapartida, bem impressionados pela escolha de certos termos como os de “situago", “comporta- mento”, “totalidade", que Mauss emprega em um sentido bastante maderno. AS FORMAS DA HISTORIA 23 postos? N&o parece, pelo menos quando ele acredita fazé-lo; sua teoria do “hau” — poder espiritual que residiria ng coisa trocada — parece — e aqui concordamos com Lévi-Strauss — fabricada sobre a estreita base de uma crenga indigena. Mas quando Mauss se preocupa menos em explicar e mais em descrever, quando retine os tracos da troca e do potlatch para indicar o seu sentido universal, ele nos parece ir até o mais profundo do saber sociolégico. Desta vez, é contra a interpretacio de Lévi-Strauss que é preciso defendé-lo: o “verdadeiro” Mauss, que inaugureria uma era nova para a sociologia, anunciando sua matema- tizag&o progressiva(XXXV, XXXVI), pensamos que foi construfdo pelo autor das Estruturas elementares do parentesco. A tentativa para “reduzir” os fendmenos sociais a sua “natureza de sistema simbélico” (XXXID), longe de constituir o carfter revolucion4rio do Ensaio sobre o Dom, parece-nos estranha a sua inspiragio; € a significacio que Mauss visa, n’o o simbolo; é para compreender a intengio imanente as condutas que ele tende, sem deixar o plano do vivido, nfo para estabe- lecer uma ordem simbélica em relag&o a qual o concreto nio seria mais do que aparéncia. A nocio de troca suscita, a justo titulo, uma reflexio sociolégica radical. Ela designa um “fato social total”, segundo a feliz expressio de Mauss, cujo sentido é ao mesmo tempo econémico, juridico, moral, religioso, estético; ela revela pois que a sociedade é totalidade e que o econdmico e 0 ideolégico que temos 0 habito de pensar separados na realidade s&o apenas valores exigidos pelo conhecimento. Os fend- menos de troca nos ensinam pois a ler os fenédmenos sociais em geral, bastando para isso que os estudemos em toda sua amplitude. Se Mauss tem o mérito de ter esclarecido seu sentido, os fatos que relata jé tinham sido cuidadosamente descritos antes dele, notadamente por M. Davy e Malinowski‘; foram constantemente reestudados desde ent&o e sua universalidade é incontestavel. Longe da troca propriamente dita constituir a forma mais antiga do intercimbio, parece propria a uma sociedade j4 bastante evoluida. O intercmbio primitivo n&o recai exclusivamente sobre “bens, rique- zas, méveis e iméveis, coisas iteis economicamente”, mas “antes de tudo” sobre “‘manifestagdes de-polidez, festins, ritos, servicos mili- tares, mulheres, criancas, dancas, festas’’, etc. (151); de outro lado, este intercfimbio é realizado sob a forma de dons. Nao resta diivida de que o (4) G, Davy, La foi jurée, 1922; Malinowski, Argonauts of the Western Pacific, 1923. . 2 CLAUDE LEFORT dom nilo é livre; as transagdes sfio “no fundo rigorosamente obriga- t6rias” (id.), mas o que é importante & que as aparéncias da liberdade no interc&mbio sejam respeitadas. Isso implica, por outro lado, o erédito, a confianca do homem no homem, a crenga de que o dom sera feito com interesse embora nenhum compromisso o garanta. O valor magico do intercimbio é certo. Acha-se com freqtténcia ligado a acon- tecimentos da vida considerados essenciais: casamento, nascimento das criangas, circuncisio, doenca, puberdade da donzela, ritos funerdrios, grandes expedicdes; Malinowski nota que nas ilhas Trobriand os brace- letes trocados so providos de caracteres sagrados; para curar o doente, eles so friccionados sobre seu rosto e seu yentre (181). Os presentes, alids, sao objeto de um culto (222). O intercémbio tem principalmente um valor moral no sentido de que os homens retiram dele a razJo de seu acordo e de seu prestigio pessoal. Aquele que nao da, que recusa aceitar ou entregar é imediatamente tido por inimigo. De resto, com muita freqdéncia o intercambio nao se traduz em nenhum beneficio para as partes respectivas. “Apés as festas de nascimento, relata Mauss, apés ter recebido e dado os oloa ¢ os tonga — por outras Palavras, os bens masculinos e os bens femininos — o marido e a mulher nao ficavam mais ricos do que antes. Mas tinham a satisfacio de ter visto o que consideravam como uma grande honra: massas de propriedade reunidas por ocasiao do nascimento de seu filho” (155). E Malinowski observa, no mesmo sentido, que nas ilhas Trobriand ocorre por ocasido dos grandes periodos de intercimbio “que coisas que adquirimos ¢ demos nos voltam no mesmo dia, idénticas” (190). O valor de prestigio que se liga ao intercimbio é evidente em certos casos em que os clas lancam uns aos outros desafios de dons e procuram explici- tamente a submissio do adversdrio, dominando-o por meio de presen- tes. Chega-se até a destruig&éo das riquezas, ‘'sio queimadas caixas inteiras de éleo de siba ou de dleo de baleia, casas e milhares de cobertores sio queimados, os cobres os mais caros sio quebrados, so atirados n’gua para esmagar, para “‘acachapar” o rival...” (202). Em certos casos deve-se até mesmo despender tudo e n&o conservar nada: aquele que soube tudo consumir e tudo destruir é que sera olhado pelos outros como chefe. Estas praticas foram primeiramente constatadas entre as tribos indias do noroeste norte-americano e designadas sob o nome de “‘potlatch”. O mérito de Mauss foi o de mostrar que em graus diversos elas existem em todas as regides do mundo. Seria falso concluir apressadamente que o intercambio nao tem sentido econémico. Mauss diz expressamente o contrario. Mesmo no potlatch no s&o as coisas, trocadas ou destruidas, estimadas como AS FORMAS DA HISTORIA BB valor em fungao de uma regra que permite seu confronto? Nas ilhas Trobriand os cobres desempenham o mesmo papel de moeda e as trocas poderiam ser estudadas apenas do ponto de vista econdmico. Mais ainda, podemos dizer que nao ha exemplo de intercambio que nao tenha algum sentido econémico: no casamento os servicos de toda espécie prestados pelo marido 4 mulher devem ser considerados como uma espécie de salario do servico sexual prestado (190, 268). Mauss. teprova, desta forma, a Malinowski 0 fato deste ter querido edificar uma classificagZo na qual a troca pura e o dom puro teriam um lugar (267). Todo intercimbio tem uma pluralidade de significagdes. O erro consistiria em querer aplicar 4 sociedade primitiva uma andlise unica- mente justificdvel para o estudo da sociedade moderna. A Marx, que teduz as teorias individualistas de Smith ¢ de Ricardo sobre a troca primitiva a robinsonadas inventadas a partir da sociedade burguesa do século XVIII5, € preciso objetar que a teoria da troca primitiva que defende juntamente com Engels® corresponde ainda a uma proje- ¢ao do presente sobre o passado. E po. que na sociedade capitalista moderna discernimos uma ordem econén.ica que funda os outros fe- némenos sociais que imaginamos serem na realidade as trocas huma- nas primeiramente econdmicas. Qual é o sentido da troca por meio de dons? Ao invés de colocar esta verdadeira questéo, Mauss pergunta por que o presente recebido & obrigatoriamente devolvido. ‘Que forga haveria na coisa que é dada e que faz com que o donatfrio a devolva?” (148). A questdo est4 mal colocada, pois nado seria possivel encontrar uma tal forga na coisa: esta forga é uma representag4o. Nao corremos entio o risco de tomar por realidade a crenga do homem primitivo? 7 Mauss, com efeito, conten- ta-se em relatar esta crenca sem critica. A coisa dada nao é inerte, mas carrega a alma do doador, é representativa de seu cl e de seu solo (159). Os Maoris tratam alguns de seus bens (os taonga) como seres vivos echamam “hau” o espirito que os anima. Os habitantes das ilhas Trobriand e os indios do noroeste dos Estados Unidos atribuem igual- mente uma individualidade propria a seus presentes preciosos, seus cobres falam, soltam grunhidos, pedem para ser dados ou destruidos (225). O poder espiritual que reside no dom é que, uma vez transmitido, (S) Marx, Contribution a la eritique de l'economie politique. (6) A teoria se encontra, especialmente, na Ideologia alemd ¢ na Origem da Familia, (7) Actitica de Lévi-Strauss é neste ponto excelente: p. XXXIX. 26 CLAUDE LEFORT exige de seu detentor que volte ao lar de origem. Conservar uma coisa do outro sem devolver seria pois conservar o outro em si mesmo. “Compreende-se claramente ¢ logicamente, neste sistema de idéias, que seja necessfrio devolver a outrem © que na realidade é parcela de sua natureza ¢ substancia” (161). A explicagio € menos clara, como veremos, do que afirma Mauss; ela parece de fato dar conta da obrigac&o de restituir. O que, em compensacio, fica injustificado, é a obrigagfo de dar. “Dé-se, diz ent&io Mauss, porque a isto se é forcado. Porque o donatério tem uma espécie de propriedade sobre o que pertence ao doador” (163). Nao é 0 mesmo que dizer que nunca h& dom, que cada individuo est4 dentro de uma rede de obrigacdes que dele faz sempre um devedor? A explicagiio seria artificial, pois suporia que os homens que trocam tenham sempre algum laco particular entre si. Ora, Malinowski mostra como, nas ilhas Trobriand, aqueles que yisitam uma tribo estrangeira procuram seus Parceiros e devem provocar o primeiro dom (vaga) que abrird a série de trocas. Mauss deve, ent&o, alargar sua teoria: na falta de lagos con- cretos, vé-se forcado a estabelecer lagos misticos entre todos os homens. Se existe dom é porque hé participaciio entre os homens e as coisas, & Porque todos os seres tém entre si lacos espirituais (163). “A gente se d ao dar e se a gente se dé € porque deve” (227). O intercdmbio nao é assim, nada mais do que a expresso da “mistura” universal. Subsiste, porém, 0 fato de que uma mistura nao é uma troca. Dizer, para fundara troca, que “tudo se liga e tudo se confunde" (226) 6, precisamente, torn4-la ininteligivel. Ao contrério, seria necessdrio dizer que o intercimbio supte seres separados: se dou ao outro é Porque “‘ponho” 0 outro como outro e esta coisa como minha para o outro. & ento que nos escapa o sentido da obrigacfio de dar e, ao Mmesmo tempo, da obrigacao de devolver, Porque a coisa uma yez tecebida é ainda apreendida como coisa de outrem e porque assume ao mesmo teinpo um valor ameagador? Porque é necessério restituir a outrem sua substancia uma vez que esta substancia, como foi dito desde 0 infcio, nfo lhe pertence e no é mais do que um modo da substancia universal? De resto, a teoria do “hau” é no detalhe incompreensivel. Da- quele que oferece peixe seco em retorno de uma esteira diremos que distinguiu a esteira, que conserva, de seu hau, que devolve sob a forma de peixe seco; mas, que o presente de peixe seco venha a ser, por pouco que seja, insuficiente, dir-se-4 que o hau ndo foi restituido ou que uma Parte dele foi conservada? Por pouco que seu valor seja, ao contrario, superior ao da esteira, sera preciso dizer que o hau da esteira foi a AS FORMAS DA HISTORIA 27 aniquilado pelo do peixe seco? E preciso admitir, de fato, que o hau ndo est na coisa e que o valor do dom depende de outros fatores que restam por determinar, Em suma, 0 maior erro é o de querer tratar o intercambio como um fato. E porque visa o social como um sistema fisico que o autor fala de “‘mistura”; na perspectiva adotada, somente uma interpretagio “coisista”’ é possivel. “Tudo vai e vem, diz ele, como se houvesse uma troca constante de uma matéria espiritual compreendendo coisas ¢ homens”, Mas o “como se” n&o tem aqui nenhum sentido; traduz somente a m& consciéncia do autor. A troca, Mauss sabe disso, & humana ¢ nao natural: é um ato. Pode-se reconhecer ¢ definir este ato na perspectiva que propde Lévi-Strauss? E 0 que, de inicio, acreditariamos. Ele desvela o coisismo da teoria do hau; acusa, a justo titulo, Mauss de se ter deixado abusar por uma crenga indigena, a dos Maoris, de ter assim adotado a repre- sentacdo consciente que os homens fazem do intercimbio ao invés de prosseguir em seu esforgo “para transcender a observac4o empirica atingir realidades mais profundas"’ (XXXII). Mas o que é que se deve entender por “‘realidade mais profunda’’? O sentido vivido que tem a troca para a coletividade humana, anteriormente a toda reflexdo? Lévi-Strauss dé as costas para uma anilise fenomenolégica. A realidade mais profunda é, segundo ele, a realidade matematica. Seguimos o autor quando afirma que “‘a troca constitui o fendmeno primitivo, nao as operacdées discretas nas quais a vida social a decompde” (XXXVHD, que sua estrutura nao podera ser reconstruida a partir dos fragmentos esparsos que nos oferece a experiéncia, isto é, a partir das obrigagdes de dar, de receber e de devolver (id.). Espantamo-nos ao aprender, em compensagao, que esta estrutura, este fendmeno primitivo é um con- junto de relagdes constantes entre fatos, uma lei de tipo mecfnico de onde derivam séries de ciclos de reciprocidade (XXXVI). Para com- preender, pois, as trocas que regem o nascimento, o casamento, a iniciagdo ou a morte, é preciso despoja-las de seus caracteres qualita- tives, reduzi-las a sua natureza de operacdes. ‘As intermin4veis séries de festas e de presentes que acompanham o casamento na Polinésia, colocando em causa dezenas sendo centenas de pessoas e que parecem desafiar a descrig&o empirica, podem ser analisadas em trinta ou trinta e cinco prestagdes efetuando-se entre cinco linhagens que estdo entre elas em uma relacgdo constante e decomponiveis em quatro ciclos de reci- procidade entre as linhagens Ae B, AeC, AeDe AcE.” Lévi-Strauss explicara, no entanto, muito bem, anteriormente, que o social nao é 0 fisico, que oferece a particularidade de ser ao 28 (CLAUDE LEFORT mesmo tempo sujeito e objeto e que aqui toda apreensdo externa deve se fundar sobre uma apreensio interna (XXVII). Como ¢ que se chega, ento, a esta visio puramente cientifica do universo humano? E porque — nos diz ele — o subjetivo é nele mesmo objetivavel no sentido de que é em sua esséncia um conjunto de operagées inconscientes e o inven- tario destas operacdes possivel uma vez que elas fundam as leis empfricas da troca. Embora apenas o termo inconsciente seja aqui empregado, seria antes o de consciéncia transcendental, em seu sentido kantiano, que impor-se-ia em boa légica. Hi, pois, o jogo empirico das trocas, infinitamente variado, cuja descric¢fo no tem valor sendo ane- dético € as leis que as determinam e que o socidlogo deve descobrir quando se dé conta de que so a expresso das formas de atividade do espirito. A dificuldade, aqui como alhures, esté em compreender a telacdo entre o transcendental e o empirico, ou, o que d4 no mesmo, de conciliar com a idéia de um sujeito coletivo constituinte a de uma Pluralidade efetiva de sujeitos individuais. “O inconsciente, diz o autor, seria o termo mediador entre eu ¢ 0 outro” Pois que nos fornece “formas de atividade que sio ao mesmo tempo nossas e outras, condi- ges de todas as vidas mentais de todos os homens e de todos os tempos.” Mas isto redunda em esquecer que na perspectiva de uma tal consciéncia coletiva a nogdo de outrem, como, alids, a de eu, nfo tem mais nenhum sentido. Quando substituimos ao intercimbio vivido, & experiéncia da rivalidade, do prestigio ou do amor, o intercimbio Ppensado, obtemos um sistema de ciclos de reciprocidade entre linha- gens A B C D: os sujeitos concretos do intercimbio desapareceram. A pluralidade das consciéncias é reduzida a uma pluralidade de simbo- los, isto é, € negligenciada. ‘‘O social, diz o autor, nfo é real a nfo ser integradoem sistema” (XXV) e por sistema ele entende func&o matemé- tica. Apenas esquece que o sistema s6 é obtido pelo preco da negacio do social. As matematicas, certamente, podem permitir dar uma repre- sentac&o exata de fenémenos sociais, mas esta exatidio & tio pouco a realidade que nao a adquiro a nao ser por uma redug&o: ponho um conjunto de sinais comparaveis e transponiveis no lugar do mundo de sujeitos constituindo-se mutuamente como objetos-sujeitos. Nao devo, pois, perder nunca de vista que a matematizacio que opero visa somente a uma expresso parcial da realidade e permanece neces- sariamente subordinada a uma compreensao totalizante. De resto, esta subordinacao se exprime constantemente na rela- ¢ao do sistema matemético com a experiéncia. Lévi-Strauss parece conceber esta relacgaio como a da realidade com a aparéncia. Nao resta divida de que a descricéo empirica das trocas é Para o autor impor- aed Ns AS FORMAS DA HISTORIA 29 tante — basta ler as andlises concretas das Estruturas elementares para se persuadir disso — mas ela vale somente tendo em vista a edificacio de uma légica simbélica. Parece-nos, ao contrario, que esta légica nao pode ser estabelecida visto que designa uma realidade distinta dela e cujo sentido nos é fornecido por outras vias, que a racionalizac&o s6 é obtida a partir de nogdes elaboradas ria experiéncia e que procedem de uma apreens&o imediata, nfo refletida, do espaco, do tempo e da vida coletiva, tais como as nocdes de sociedade maori ou kwakiutl, de nascimento, de morte, de alimento ou de produto manufaturado, de objetos religiosos ou estéticos, etc. Em suma, o que censurarfamos em Lévi-Strauss é de apreender na sociedade ‘“‘regras” ao invés de “comportamentos”, retomando expressdes de Mauss; é de dar a si artificialmente uma racionalidade total a partir da qual os grupos e os homens s&o reduzidos a uma - fungio abstrata ao invés de fund4-la sobre as relagdes concretas que venham a travar entre si ®. B justo dizer que a argumentacdo de Lévi-Strauss se funda sobre uma critica da experiéncia. Esta nos parece, porém, pouco convincente. (8) Preocupamo-nos principalmente em criticar o racionalismo de Lévi-Strauss. Este racionalismo aparece, de fato, sob duas formas teoricamente opostas, praticamente idénticas. E um idealismo, o mais freqhentemente de tipo kantiano, como o revelam as paginas consagradas ao Inconsciente (XXX, XXXI), como o indica de resto a escolha das expressdes: “forma de atividade”, ou, rotomadas de Mauss, “categoria inconsciente”, “categoria do pensamento coletivo”. Segundo este idealismo convém buscar “os itine- rhrios inconscientes... tragados uma vez por todas na estrutura inata do espfrito humano ena historia particular ¢ irreversivel dos individuos e dos grupos” (XXXI). Ou ainda, em um estilo mais espinozista do que kantiano, trata-se de fundar uma nova psicologia intelectualista, “expresso generalizada das leis do pensamento humano cujas manifes- tagdes particulares em contextos sociolégicos diferentes nao sio mais do que modalidades” (LI. Grifo nosso). Mas este realismo é também estritamente objetivo ou cientista quando 0 autor da a entender que nfio h& distingllo entre o objeto e a representaglio © que a ciéncia poderia dar conta 20 mesmo tempo da “‘estrutura propria (do objeto) e das representagbes por intermédio das quais apreendemos suas propriedades.” Seria apenas por motives praticos que a cincia se contentaria em estudar esta estrutura do objeto (?). “Em teoria isto 6 verdade: uma quimica total deveria explicar-nos nfio apenas a formae a distribuic8o das moléculas do morango, mas como resulta deste arranjo um sabor tinico. A histéria prova, contudo, que uma cigncia satisfatéria ndo tem necessidade de ir tho longe ¢ que pode, durante séculos, ¢ eventualmente milénios (posto que ignoremos quando chegaré até 1d), progredir no conhecimento de seu objeto ao abrigo de uma dis- tinco eminentemente instavel, entre qualidades préprias ao objeto que exclusivamente procuramos explicar € outras que so funcdo. do sujeito ¢ cuja consideragia pode ser deixada de lado” (XXVII, XXVIII. Grifo nosso). Assim, a experiéncia que temos da cigneia ¢ da verificagio cientifica ¢ aqui sacrificada a um {dolo de ciéncia absoluta. ci) CLAUDE LEFORT Ele precisava mostrar que a troca é uma sintese imediatamente dada, que os homens nio constituem as trocas, mas que s&o antes termos postos pelas operagdes de intercimbio. A prova é tirada de fatos lingiisticos, “Papu e Melanésio, escrevia Mauss, s6 tem uma palavra para designar a compra e a venda, o emprestar ¢ o tomar emprestado. As operacdes antitéticas sto expressas pela mesma palavra.” “Toda a prova af est — acrescenta Lévi-Strauss — de que as operacdes em questo, longe de ser antitéticas, ndo so mais do que dois modos de uma realidade” (XL). O alcance destes fatos €, contudo, limitado e é facil opor-lhes outros cujo sentido é contrario. Nas ilhas Trobriand, segundo Mali- nowski, cada momento da troca traz um nome diferente: distingue-se os “pari”, presentes que sio feitos para solicitar o primeiro dom que abrira o contrato; este primeiro dom, “vaga” (opening gift); afinal, 0 ~ dom obrigatério que responde a este, “Yyotile”, que Malinowski traduz Por clinching gift, “dom que aferrolha”’. A oposigdo expressa na troca 6 tornada mais visivel ainda pelo nome de “kudu”, “‘o dente que morde”, que é também o do dom que é feito de volta. E a significacao subjetiva do dom é atestada pela diferenca que estabelece o Trobrian- dés entre o dom que libera efetivamente, que morde e o dom que nao pode mais do que aquietar, ao qual ele atribui ainda um novo nome: “basi”, “aquilo que sé fura a pele” (184, 186). Estes termos implicam que os parceiros da troca se apreendem de fato como advers4rios. De resto, em civilizacbes extremamente diversas, como nos indica Mauss, ° dom é ambiguo: “E ao mesmo tempo o que é preciso fazer, 0 que é Preciso receber € o que é perigoso aceitar” (249). Os homens que trocam pensam que estabelecem entre si uma relaco de mitua depen- déncia, sinal de cooperaciio, mas também ameaca de morte. £0 caso para a moral hindu antiga e para a moral anamita (256). Mas, indubi- tavelmente, @ experiéncia lingiistica nao é em lugar nenhum mais significativa do que nas sociedades germanicas que dAo ao termo de gift o duplo valor de dom e de yeneno. , Desde que estudamos, com efeito, a troca, tal como é vivida imediatamente pelos homens, antes que elaborem a sua teoria, encon- tramos a relag&o antitética do sujeito e de outrem, quer esta relacfo esteja no singular, como no caso de dois individuos ou, mais freqien- temente, no plural, como no caso de dois clas, duas tribos ou duas familias. Esta relagao aparece na consciéncia do risco e da rivalidade, J& dissemos que havia um artificio em substituir ao sentimento de obrigacao da troca um pretenso fato da obrigacio; este artificio de que usam de maneira diferente Mauss e Lévi-Strauss, um recorrendo a uma necessidade metafisica e o outro a uma necessidade matematica, pare- AS FORMAS DA HISTORIA 31 ce-nos tanto mais visivel quanto na experiéncia os homens tém cons- ciéncia de que o contrato pode ser rompido. Mauss nos diz, ele proprio, que as prestagdes sfo “no fundo rigorosamente obrigatérias sob pena de guerra privada ou publica”; admite pois a possibilidade de que o compromisso seja desrespeitado. Os exemplos que dé mostram que os homens apreendem, efetivamente, a troca como a ser estabelecida por eles, como “‘aberta”, nao como uma realidade que os ultrapassa e os constrange rigorosamente. Entre os Pigmeus, um casamento estabelece uma série de obrigagdes entre os pais dos dois cdnjuges; estes devem trocar perpetuamente presentes, mas é para eles ao mesmo tempo proibido, até o fim de seus dias, ver-se e dirigirem a palayra uns aos outros (173). Em outras palavras, mais os homens se sentem depen- dentes uns dos outros, mais experimentam a necessidade de tomar suas distancias para eliminar o risco de quebrar 0 laco que os une. Veremos mais adiante que este risco d& testemunho de um perigo mais profundo que nao concerne mais ao individuo enquanto tal, mas A verdade social e humana que representa. Basta por enquanto estabelecer que existe na troca um ato que separa os homens e os coloca frente a frente. O carter antitético da troca € evidente no caso do potlatch. Segundo Mauss a originalidade deste reside na necessidade de que os dons sejam devolvidos com usura (155, nota 5 e 212). E preciso que 0 chefe do cla afirme sua independéncia por sua capacidade de devolver sempre mais do que recebeu. Sob essa condicfio é que é tido como chefe por outrem, enquanto que através dele a tribo ou o cl& pde em risco sua independéncia (152). Mauss fala da honra, como Hegel na Estética, dela fazendo um momento constitutivo da subjetividade (200 e segs.). Aquele que é desafiado a dar uma festa nfio é ameacado em algum dos seus bens, mas na idéia que se faz de si mesmo. Enquanto nao oferecer uma festa, em troca, é alienado, é objeto do dom e movido por outrem. Devolver o dom é para ele tomar de novo a iniciativa, colocar o outro sob seu olhar, reconquistar seu nome, sua “face”, sua pessoa (206). O potlatch deve pois ser descrito como uma guerra; entre os Kwakiutl a faca na ponta do bast&o é o seu simbolo; entre os Tlingit, é a langa levantada (207, nota 2) e estes ultimos chamam pelo mesmo nome a dan- ga da guerra e a do potlatch (201, nota 2). E para uns e outros esta guerra 60 meio de se fazerem “‘reconhecer” como seres aut6nomos. Distanciamo-nos assim da interpretagio do dom como necessi- dade de fato. Nao somente é um ato, mas 0 ato por exceléncia pelo qual o homem conquista sua subjetividade. De resto, tentando descrever 0 potlatch como uma obrigacdo objetiva, o préprio Mauss relata como ele pode ser artificialmente provocado. “Quando um chefe quer ter 2 CLAUDE LEFORT uma ocasido para o potlatch ele manda de volta sua mulher para a casa do sogro a fim de ter um pretexto para novas distribuigdes de ri- quezas.”” Mas o potlatch nao é somente afirmagio de si para o doador; & negacdo das coisas, destruigdo das riquezas “‘oferecidas”. Para dar conta desta destruig&o, permanecendo no quadro de sua interpretacio, Mauss se viu constrangido a edificar sua teoria fragil da troca com os deuses. A destruigéo seria somente aparente. A substincia da coisa, seu “hau”, seria comunicada aos espiritos ou aos deuses, colocados assim na necessidade de dar em troca alguns beneficios aos vivos. Mas é claro que esta teoria acomoda-se mal com o carfter de competicao aguda entre os chefes de que se reveste o potlatch. Mauss procura, ent&o, uma outra explicacao. Destruir ao dar €, diz ele, colocar 0 outro na impossibilidade de restituir. A idéia é tanto mais interessante quanto arruina retrospectivamente toda a teoria do dom fundada sobre o ser da coisa oferecida e no, como aqui, sobre o ato. Ela anuncia a idéia mais profunda de que no potlatch a riqueza é mesmo negada. 0 autor do potlatch destréi para n&o receber, mas principalmente pie o outro diante do desafio de, como ele, negar a riqueza. Os Haida dizem textualmente que ‘‘matam” a riqueza ou, melhor ainda, que matam a propriedade (152, nota 3). Afirma-se, em conseqiéncia, aquele que sabe se elevar acima daquilo que possui. Rasga os tecidos preciosos, joga colares no mar, queima suas casas e manifesta, desta maneira, que no é estes tecidos, estes colares, estas casas. E certo que o potlatch Prova muito bem a tendéncia do homem em se identificar com sua propriedade (pois lhe é necessArio se destacar dela), mas 6 em si mesmo negacdo. O homem se desfaz de sua aparéncia e se pde gracas a um “eu nao sou isto”. Para encontrar a verdade da dominac&o, despoja-se dos atributos exteriores de sua poténcia. Ou entio, retomando a termi- nologia hegeliana que se impée evidentemente, a confrontac%o com outrem se efetua pela mediac&o da confrontacdo com a natureza. No quadro desta confrontag&o, que tentaremos precisar posteriormente, nao parece que o ideal seja colocar o outro na impossibilidade defini- tiva de restituir o potlatch (212, nota 2), pois o objetivo perseguido nao é apenas a submiss&io de outrem, mas a submiss&o da natureza, 0 que esti sempre por ser reefetuada. Sera o potlatch diferente da troca por dons? Mauss parece pri- meiramente distingui-los dando-lhes o nome de “prestacdes” simples e de “prestagdes agonisticas”. Em varias ocasiées, potém, confunde-as e, a0 contrério, declara que toda prestagio é em um certo grau ago- nistica, Alids, em certas tribos, dom e potlatch sio expressos pelo mesmo termo (214). E nao hesita em escrever: “O préprio potlatch, tio AS FORMAS DA HISTORIA 33 tipico como fato e ao mesmo tempo to caracteristico destas tribos (do CanadA), nada mais € do que o sistema dos dons trocados. Nao difere deles a nio ser pela violéncia, o exagero, os antagonismos que suscita, de um lado, e, de outro, por uma certa Pobreza dos conceitos juri- dicos...” (id.). Por conseguinte, 6 0 autor que nos propde implici- tamente esclarecer um pelo outro, Apercebemo-nos entio de que nossa andlise nos conduz a uma realidade mais profunda do que a das relacdes individuais: a realidade social propriamente dita, A troca por dons parece-nos em primeiro lugar oferecer, com efeito, o duplo carfter de oposi¢&o entre os homens € de oposi¢fio dos homens a natureza que descobrimos no potlatch. Em um primeiro sentido, é 0 ato pelo qual o homem se revela para 0 homem e pelo homem. Dar é tanto pér outrem sob nossa dependéncia quanto nos pormos sob sua dependéncia.ao aceitar a idéia de que devolveré o dom. Mas esta operaio, esta iniciativa no dom supde uma experiéncia primordial gragas 4 qual cada um se sabe implicitamente vinculado ao outro; a idéia de que o dom deve ser restituido supde que outrem é um outro eu que deve agir como eu; e este gesto em retorno deve me confirmar a verdade de meu préprio gesto, isto é, minha subjetividade. O dom 6, assim, a0 mesmo tempo 0 estabelecimento da diferenga ¢ a descoberta da similitude. Separo-me do outro € 0 situo defronte a mim dando a ele algo, mas esta oposiciio no se torna real a nao ser quando o outro age da mesma forma e, por conseguinte, em certo sentido a suprime. Deste ponto de vista, a disting¢io que Mauss estabelece entre a obrigagdo de devolver ¢ a de dar seria artificial. Nao que seja necess4rio reduzir a segunda A primeira, como ele parece constantemente pretender, mas, ao contrério, porque em tudo convém ver o dom. Nao se dé para receber; dé-se para que o outro dé. Eo que aparece nas ilhas Trobriand onde a troca ultrapassa os individuos; onde pouco importa que um parceiro responda a um parceiro contanto que ambos déem. Por tras da luta entre os homens por um “reconhecimento” miituo desenha-se assim o movimento de uma coletividade que tenta se comportar como um “Eu” coletivo, Mas este “‘N6s”, Jonge de abolir a pluralidade de sujeitos, s6 existe na medida em que cada qual afirma sua subjetividade pelo dom. O comportamento dos sujeitos empfricos nilo se deduz de uma consciéncia transcendental; esta, ao contrério, constitui-se na experiéncia. Nao saberiamos, entretanto, descrever esta experiéncia consti- tutiva da sociedade se nilo a apreendéssemos na sua oposicao a reali- dade natural. A troca por dons é, com efeito, na sua esséncia, como 0 Ey CLAUDE LEFORT potlatch, negagio. Na soliddo, o individuo sente-se investido pelo real; ele esth, como mostra Mauss depois de Lévi-Bruhl, perdido nos seus pertences. Dando, ele quebra o laco que o une a coisa, mas esta negacdo s6 é verdadeira na medida em que outrem a reconhece ao efetu4-la, por sua vez. O universo humano s6 se desenha assim gracas a uma contemporanea desafeicio da realidade; os homens, em uma operacio idéntica, a do dom, confirmam-se uns aos outros que n&o sic coisas. O laco com outrem e a ruptura com a natureza testemunham um cogito coletivo. E o que permite compreender o cardter sagrado do dom sem precisar fazer apelo a uma interpretag&o mistica. No pode ser tolerado que o dom no seja restituido nio somente porque um individuo se sente insultado a titulo privado, em virtude desta recusa de comunicaciio, mas porque atr-vés dela é a sociedade que se acha ameacada ou, melhor dizendo, « propria realidade humana. “Durante ‘um tempo considerAvel e em um ndmero considerdvel de sociedades, os homens se abordaram em um curioso estado de espirito de temor e hostilidade igualmente exagerados... nfio hé meio termo: confiar intei- ramente ou desconfiar inteiramente, depor suas armas e renunciar 4 sua magia ou dar tudo... E que eles n&o tinham escolha. Dois grupos de homens que se encontram sé podem se afastar — ou entio, se manifestam uma desconfianga ou lancam um desafio, s6 podem se ‘bater — ou ent&o negociar.” O erro do autor € de adotar uma lin- guagem psicolégica: se os homens s6 tém escolha entre guerrear e dar é por nao terem outra possibilidade além da de serem homens. Somente o homem pode revelar ao homem que é homem, assim como somente ele pode pér esta verdade em perigo. E promessa de humanidade ou ameaga de alienag&o. A formula espinozista segundo a qual ‘‘o homem é um deus para o homem” tem o seu corolério negativo. E o que explica, indubitavelmente, o sentido metafisico da festa nas sociedades que evocamos. A passagem da feta 4 guerra — como diz Mauss é a todo momento possivel (278). A comunhao humana pressentida é procla- mada com frenesi; por pouco que aparega uma ameaca, s6 o massacre pode liberar do malogro. Estas observacées, que pretendem situar-se no prolongamento da andlise de Mauss, teriam a vantagem de permitir um confronto entre o social e o histérico. E notével que a troca por dons sob sua forma generalizada e a instituicfo do potlatch predominem e se mantenham em sociedades incapazes de desenvolver uma hist6ria. No potlatch, indica Mauss (269), se estabelecem e se desfazem as hierarquias; mas se trata de uma oscilac&o, nao de uma dialética no seio da qual surgiria o novo, As condicées de uma histéria, contudo, nao estariam postas AS FORMAS DA HISTORIA 35 nas relagdes de rivalidade entre os homens e 0 esforgo para ultrapassar a natureza? Nao se pode nem mesmo dizer que as sociedades evocadas por Mauss se desviem do trabalho, da transformaco da natureza. Sabe-se que os Indios do Alasca, com freqiéncia mencionados, pos- suem uma indistria desenvolvida (196). Nem por isso seus costumes so diferentes dos de certos grupos cuja atividade principal se reduz a pesca e a caga. A producdo vale por algo diferente dela e nao revela ao homem nenhuma verdade. Tudo se passa nestas sociedades como se os homens estivessem unicamente Preocupados em se situar uns com relag&o aos outros e repetir febrilmente o cogito desnaturante da troca por dons. Nao que nao haja competicao humana, mas se trata de uma competi¢ao imediata, na qual os homens se encerram tanto quanto na cooperacio imediata. ; Deste ponto de vista n4o seria tanto gragas a sua mudanca de situagao, mas A condigao de uma nova Percep¢ao de sua relacio com a natureza, que os homens transformariam sua competic#io em anta- gonismos geradores de uma histéria; que se desenyolveria uma dia- lética no trabalho, que se estabilizaria um universo humano ¢ que se diferenciaria, com o aparecimento de uma nova natureza, a ordem econdmica, a ordem juridica, a ordem moral... II Sociedade ‘‘sem histéria” e historicidade* Sabe-se que para Hegel a Histéria universal nao recobre o curso empirico da humanidade. A Hist6ria propriamente dita nasce apenas com o Estado, quando a vida social ganha uma forma sob o efeito desta instancia que confere a seus elementos express&o publica ¢ consciéncia. Somente ent&o é assegurada a permanéncia do sentido. Mas o que é a sociedade que ainda nfo chegou até a histéria? Questdo vi, uma vez que, do ponto de vista do filésofo, o real sé se institui no elemenfo da consciéncia de si. A sociedade anterior a Hist6ria ou sociedade ‘‘sem historia” ndo tem segredo. Nao fala de si, nao se deixa conhecer, pois no tem nada a dizer: ela ndo é. Para infelicidade de Hegel, todavia, ela tem alguma existéncia e nao pode ser reabsorvida na Hist6ria a titulo de momento abstrato, tal como a intuigao sensivel da percepgdo. A questo volta, pois: o que é esta humanidade silenciosa, mas “‘agitada”, que se altera, mas é impotente para o devir? O que é a India, pergunta, por exemplo, o autor das Ligdes sobre a filosofia da Histéria, esta vasta comunidade cujas diferenciacdes sociais nfo podem se converter em oposigdes, que se petrificou em sua desordem e, apesar da variedade de suas mani- (*) Publicado nos Cahiers internationaux de sociologie, 12, 1952. 38 CLAUDE LEFORT festagdes religiosas, artisticas e até juridicas, nao tem consciéncia de si mesma? “Nela — escreve ele — uma fantasia profunda, sem duvida, mas inculta, rasteja no solo, incapaz de histéria, privada que est4 de um fim préprio A realidade assim como A liberdade substancial”!. Logo que oferece a si mesmo o espetdculo dessa fantasia, entre- tanto, julga-a tao profunda que descobre ai a primeira figura da Historia universal. A India, distinguida primeiro da China, vai forne- cer em seguida a primeira expressio da substancialidade do fator moral. A dificuldade, para Hegel, esté com efeito em relegar para fora das fronteiras do real uma humanidade que nao foi capaz de ter acesso 4 cultura a nao ser se desarraigando do mundo da animalidade pela dialética do reconhecimento das consciéncias e do trabalho. E preciso, pois, para ele, que a India e a China, embora nao sendo histéricas, no sentido pleno do termo, fagam parte de algum modo do devir da razio. Podemos admiti-lo se compreendemos que o Espirito nao tem o calmo movimento da vida, que conhece o dilaceramento, uma alienacZo sempre repetida até a sua realizagao final. Deste modo nao deveria mais provocar escandalo a imagem de um mundo no qual 0 sentido ora parece impotente para se reunir, ora para se fixar, ja que é em oposic¢ao aesta figura que se engendrara uma nova figura do Espirito. Mas seria preciso ainda mostrar em que o imobilismo nao é mais do que aparente € quais forcas trabalham subterraneamente na irrupcao do novo. Ora, ao afirmar que a India e a China, embora inaugurando a Histéria, nfo sio em si mesmas histéricas, Hegel se priva desta investigacao. A dialética, afinal, s6 recupera estes povos submetendo-os a uma fina- lidade transcendente: conserva-os em si mesma como corpos estranhos na impossibilidade em que se acha de assimil4-los. As contradigdes da filosofia hegeliana somente nos retém na medida em que permitem entrever as de toda teoria racionalista da Histéria. A todas o fendmeno da sociedade “‘estagnante” coloca o Mesmo enigma ou oferece o mesmo paradoxo: uma cultura que se caracteriza por durar sem devir; povos que fazem parte da Historia, j& que vieram a ser o que s&o, mas que nao tém hist6ria, jf que suas aventuras sio impotentes em recolocar em jogo o sentido do seu patri- ménio, E sempre eludindo este paradoxo que o pensamento racionalista preserva sua idéia da Hist6ria. Enquanto Hegel oscila entre duas representacdes da India, excluindo-a do curso da Historia universal e (1) Hegel, Lipdes sobre a filosofia da histéria, trad. francesa, Paris, Vrin, 1946. AS FORMAS DA HISTORIA 39 nele reintroduzindo-a, Marx afirma a continuidade do desenvol- vimento da humanidade, mas no pode fazer a economia de uma descontinuidade radical. Ele encontra nas sociedades primitivas as condigdes elementares de toda vida social. Estas condigdes siio, a seus olhos, naturais e, enquanto tais, histéricas, pois a natureza do homem — homem social — é a de se produzir produzindo. Natural, a Hist6ria encontra sua origem com a da humanidade. Ela segue desde sempre o seu curso, com o crescimento das forcas produtivas, entre as quais se contam os préprios produtores e suas capacidades intelectuais, com o progresso da divis&o do trabalho, a multiplicaco das necessidades, a extensiio das trocas, etc., e, no entanto, a histéria como tal se reduz a da luta de classes. S6 0 encadeamento desta luta, s6 o das contradigdes que acompanham cada modo de produciio, nos fazem captar o sentido, a unidade do drama humano, o qual, em nosso tempo, caminha em diregdo a seu desfecho. Quanto a Husserl, se 6 verdade que reconhece um parentesco entre todas as figuras espirituais da humanidade, sua reflexio sobre o destino da Europa como adyento do homem a Razio, como realizacio da Idéia cujas tarefas s&o infinitas, tem como efeito rejeitar no dominio do irracional, ou para fora da verdadeira hist6ria, toda a humanidade nao européia?. Com Marx, somos colocados em presenca de uma mudanca que segue um curso inelutavel, mas o seu motor é de tal natureza — 0 desenvolvimento das forgas produtivas — que nao somos capazes de ver como é que uma formacio social pode resistir a ele, conservar-se ao abrigo de seus efeitos, instalar-se, por uma duracdo indeterminada, na estagnacao. Com Husserl, somos sensiveis A oposig#o da humanidade cuja essncia é de se ultrapassar perpetuamente, na perseguigio de um fim situado no infinito e de uma humanidade fechada sobre si, encer- rada dentro de “‘horizontes aferroihados”, mas ignoramos em que a sociedade acabada é ainda sociedade humana, presente a si, ou cons- ciente de si, sem uma cultura. Ora, se é preciso abandonar a perspectiva racionalista, nfo so- mente reconhecer o fendmeno da sociedade estagnante na sua singula- ridade, mas em conseqiiéncia forjar uma representagfio do devir coleti- vo bastante compreensiva para abranger formas sensivelmente dife- rentes, o problema é de saber se nao é a Hist6ria que assume uma (2) Husserl, “A crise da humanidade européia”, Revue de métaphysique et de morale, julho-setembro de 1950. 40 CLAUDE LEFORT marcha enigmatica e paradoxal, se a idéia de um existente total — que, como o diz com raz&o Heidegger, todas as visadas do historiador e do filésofo supdem, — pode ser mantida. A etnologia poderia permitir a retomada em termos novos da Teflexdo sobre a historia, desde que buscAssemos nela n&o um acesso a formas primitivas de uma evolugio humana, mas antes os elementos de um confronto entre tipos de devir. Os trabalhos modernos convidam, de fato, a este confronto, pois ensinam que o mundo dito primitivo e o mundo dito evoluido sio compardveis: mais ainda, que nao hA critérios simples que permitam opé-los. Lowie e Herskovits nao chegam até ao ponto de afirmar (nao sem exagero, sem divida, mas com motives bem fundados) que as sociedades européias, até o século XVIII, asseme- lham-se mais as sociedades primitivas do que as nossas sociedades contemporaneas?? Seja como for, as teses adotadas outrora sobre um estado pri- meiro de homogeneidade social, de promiscuidade sexual, sobre o comunismo primitivo, deram lugar a representagfo de uma sociedade diferenciada na qual as relacdes de parentesco sdo estritamente deter- minadas, em que © papel dos individuos depende na maior parte das vezes do sexo a que pertencem, da classe de idade, de uma associagfio entre os homens ou até mesmo de uma confraria secreta; na qual, finalmente, a troca acha-se subentendida As relacdes entre os homens. Deum modo geral, o que os etnélogos procuram apreender e interpretar em contacto com uma sociedade dita primitiva, é uma cu/tura, um conjunto de instituigdes, de praticas, de crengas que tém sentido ape- nas pela relacdo que mantém entre sie que constituem uma formula possivel da coexisténcia humana. Ora, 0 que este procedimento tem de importante é o fato de impedir de nos atermos a uma visdo est4tica do social e de nos cons- tranger a levar em conta um devir por mais indeterminado que seja. Pois ndo basta elucidar as regras explicitas ou implicitas que tornam uma vida social possivel: é preciso ainda mostrar que estas regras representam uma conformagao de relacdes vividas pelos homens e para onde tende esta conformagao. A troca por dons, por exemplo, descrita por Mauss como uma instituig&o chave do’ mundo primitivo, no consiste somente em um sistema de relagdes que poderia ser estudado como um sistema fisico, (3) R. Lowie, Social Organization, New York, 1948, p. 19. Herskovits, The Eco- nomic Life of Primitive People, New York, 1940, p. 6. AS FORMAS DA HISTORIA a na ignorancia da conduta dos homens que se interpelam e se res- pondem pelo dom. Desde que descobrimos nele algo além de um dado social natural, uma férmula instituida procedendo da exigéncia de comunica¢do, ele nos remete ao exame dos comportamentos e das crengas que o acompanham e se deixa conceber como uma solu¢do, advinda e repetida, que os homens elaboram para se situar uns com relag&o aos outros, estabelecer ou restabelecer seu estatuto ou entdo sua posi¢io, fazendo com que seja reconhecida. Enquanto compde uma experiéncia em favor da qual se dispde uma ordem social, se afirmam ou se modificam as condices das pessoas ou dos grupos, este modo de troca implica uma maneira de ser no tempo que reclama elucidagao. E uma tal tengo ao que é da ordem do acontecimento na cultura é requerida cada vez que, para além do funcionamento de um sistema social dado, 0 etnélogo observa a jnadequagdo dos compor- tamentos as regras formalmente impostas ou entio os conflitos que decorrem de sua combinacio. Pensamos, por exemplo, no estudo do parentesco chistoso*, que mostra a hostilidade latente em certas formas de alianca préxima e 0 método empregado para super4-la — a troga injuriosa que figura a oposigéo, mas ao encenf-la, suprime-a; pensamos também na des- crigdo das praticas de contramagia destinadas a destruir os efeitos da magia oficial, que fornecem ao individue um modo de luta organizada contra a ordem estabelecida ¢ lhe permitem subtrair-se as prescricdes sociais mais rigorosas5; ou ainda as observacdes de Malinowski a propésito do mundo melanésio, sobre os conflitos entre o amor paterno € 0 respeito das regras impostas pelo sistema matrilinear, entre os deveres para com o filho que o primeiro inspira e aqueles em relag&o ao sobrinho exigidos pelo segundo®. Em casos deste género, por mais diversos que sejam, aparece a distancia que separa as situacdes de fato de sua ordenag&o racional, as relacdes espontaneas e sua regulamen- tagao — distancia que nos torna sensivel a contingéncia das solugdes sobrevindas. Em outras palavras: nao basta restituir a coes4o de uma cultura, no exame das sociedades primitivas, ou seja, néo basta procurar como (4) Radcliffe-Brown, “On joking relationships”, Africa, XIII, julho de 1940, p.19Ses. (5) Malinowski, Moeurs et coutumes des Mélanésiens, Payot, 1933, p. 72. (6) Malinowski, La vie sexuelle des sauvages du nord-ouest de la Malaisie, Payot, 1930, p. 106. 42 CLAUDE LEFORT foram integrados os diferentes esquemas de comportamento vital em um sistema de valores; trata-se também de compreender sen&o como se efetuou uma transformagaio da natureza a cultura (o que suporia no observador uma impossivel evasdo da condi¢&o humana), pelo menos a operag&o que mantém a cultura fora da animalidade. Os primitivos — diriamos, parafraseando Marx — reproduzem sua vida a cada dia, tal como nés; seja qual for o estilo desta vida, somente quando implica um devir é que pode ser interpretada. Sao de fato numerosos os antropélogos contemporaneos que contribuem para abrir a via a uma tal interpretaco, tornando-se atentos 4 dimensio temporal dos fenémenos culturais. Margaret Mead, especialmente, mostra muito bem como é preciso adotar uma Perspectiva diacrénica se quisermos compreender como as instituicdes formam sentido para os homens que delas sao tributarios e cuja trama da existéncia é por elas urdida’. Trata-se indubitavelmente para este autor de desvelar a eficdcia das instituigdes acompanhando o desenvol- vimento do individuo, desde as primeiras técnicas de aprendizagem corporal até as formas de trabatho e de relagdes dos adultos: no ¢ 0 tempo da coletividade que é explicitamente visado. Mas — e nés teremos ocasido para a isto voltar — o curso de uma vida individual é revelador do devir cultural; ele torna sensiveis as possibilidades mtl- tiplas oferecidas ao homem, a complexidade das relacdes que o ligam ao grupo e sua finalidade e também a maneira pela qual se forma um modo de apreensio do passado e do futuro na érbita de uma cultura. De uma maneira geral, os estudos de aculturaciio — se enten- demos por este termo nao apenas os fenémenos resultantes de contac- tos entre culturas diferentes, mas, como sugere Gregory Bateson®, todos os processos através dos quais um individuo ou um grupo se apropriam da cultura do conjunto de que fazem parte ~ tém o mérito de nos fazer perceber 0 que chamariamos, de bom grado, de cultura culturante, a operacao constantemente repetida pela qual uma socie- dade se refere a si mesma e por esta comunicagSo afirma e confirma (7) M, Mead, “Character formation and diachronic theory”, Social Structure, Studies presented to A. R. Radeliffe-Brown, p. 18 es. Observaremas o uso que M. Mead faz neste artigo do termo Aomogéneo. & exclusivamente tomado em sua acepcdo tempo- ral: "This use of the word homogeneous does not exclude caste sucieties or societies with many different sub-groups, so long as the relationships among such groups are part of the common shared culture and change slowly” (p. 21, nota 1). (8) G. R. Bateson, “Culture contact and Schismogenesis", Man, XXXV, dezem- bro de 1935, n® 199. AS FORMAS DA HISTORIA a sua teleologia. A mesma intengfio se deixa descobrir nas investigacdes dirigidas por Abram Kardiner sobre a “‘personalidade de base’’?. Este conceito ndo serve apenas para fornecer o esquema de todos os condi- cionamentos partilhados pelo conjunto dos membros de uma cultura e das reagdes que suscitam; seu interesse 6 o de denunciar na cultura o equivalente de um Sujeito ou, methor dizendo, de uma experiéncia geral do mundo que seria como a matriz de todas as experiéncias individuais. A distincZo estabelecida entre as instituigdes primd4rias — ou seja, um embasamento cultural constitufdo pelas relacdes as mais constantes ¢ mais gerais que os homens instituem solidariamente com seu corpo, com © meio cultural ¢ entre eles — ¢ as institui¢des secun- darias — costumes, ritos, mitos ou religides, na dependéncia das primeiras, figurando como transposi¢des destas ou solugdes imagind- rias aos conflitos que engendram — implica em uma conformacio temporal da cultura, mesmo quando nao autoriza a conceber uma relagto de sucessdo entre seus elementos. Em suma, a nocio de perso- nalidade de base evoca uma génese, a despeito da impossibilidade de desarticulé-la para produzir um esquema de causalidade assinalando um lugar unfvoco a antecedentes e conseqilentes. Longe de nos pér em presenca de um sistema fechado, cujo funcionamento se ofertaria inteiro na ordem sincrénica, ela s6 se torna significativa por intro- duzir o ponto de vista da diacronia. Seguindo-se Kardiner, s6 6 pos- sivel conceber a coesio de uma cultura em referéncia a tensdes cuja resolugao evoca uma hist6ria, embora seja incapaz de fazé-la conhe- cer. E, em casos privilegiados, em que uma mudanga cultural é obser- vivel, podemos até mesmo entrever o encaminhamento das modifi- cagdes da personalidade. Assim, o estudo dos Tanala de Madagascar, cuja tradicdo foi aparentemente modificada pela introdugio de uma nova técnica de produgio do arroz, revela a elaborac4o de um sistema de compensac&o em resposta as coercdes experimentadas e as tensdes que engendram. Aqui, a extensio do remanejamento do sistema simbélico informa a respeito das condicdes do equilibrio da personalidade e sobre a conexdo dos seus elementos. Sejam quais forem as objegdes contra as quais poderiam se chocar, as andlises desse tipo, tomadas nos seus pormenores, sfo de natureza a nos persuadir de que a realidade social nao é nunca plena- {9) A. Kardiner, The individual and his Society, New York, 1939 (traduglo fran- cesa L individu dans sa société, Gallimard, 1969); The psychological frontiers of society, New York, 1945. “4 CLAUDE LEFORT mente inteligivel nos limites do presente. A ordem manifesta na sin- cronia contém sempre uma discordancia entre seus elementos e a configuragdo aparentemente a mais estdvel assinala ainda uma solu- ¢4o advinda, o sucesso de uma série de Tespostas concordantes dadas a situagdes passadas — mesmo quando o sentido destas situacdes escapa ¢ estamos condenados a ignorar a que é que houve Tesposta. Reconhecamos pois que o passado das sociedades primitivas, mesmo quando se revela indecifravel, nao é como se fosse nada: o presente faz sinal em direcSo a ele. Sua auséncia mesma sugere um estilo de devir que pode, pelo menos, ser descrito, Nao ser4 preciso, porém, dizer mais do que isto? Sera que nao Podemos, as vezes, inferir um desenvolvimento histérico a partir da consideragao dos dados presentes? Nao seria Ppossfyel, por exemplo, como dizia Sapir, “ler a perspectiva temporal sobre a superticie plana da cultura americana (indigena) como lemos o espaco sobre a super- ficie plana da fotografia”"°? Este autor respondia pela afirmativa, mostrando que especialmente a andlise da linguagem permitia a re- constituicdo parcial de transformacdes culturais passadas. Nao se tra- tava, evidentemente, de restituir este passado nos seus pormenores, de estabelecer uma cronologia dos acontecimentos, O erro, dizia Sapir, pode recair sobre anos, séculos ou até mesmo milénios desde que se trate de épocas muito recuadas, Se julgamos, todavia, que o essencial da hist6ria nao reside em uma ordenacao minuciosa dos acontecimen- tos, no deveremos concluir que nao hé entdo diferenga entre o devir de uma sociedade dita primitiva e o da sociedade pretensamente his- torica? Melhor ainda, o etnélogo teria o privilégio de ter acesso dire- tamente a verdadeira histéria. Tudo se passa, com efeito, como se, em seu caso, o penoso trabalho de depuracdo do secundario, do anedé- tico, que cabe ao historiador da sociedade “histérica’, se achasse economizado gragas a sua ignorfincia dos acontecimentos ou entio gracas ao siléncio do homem primitivo, de que a referida ignorancia nao é mais do que o corolério. Assim € que, refletindo sobre o método da etnologia e compa- rando-o ao da ciéncia hist6rica, Evans-Pritchard e Claude Lévi-Strauss acabam por identificé-los, no essencial!, Ambos os métodos, de acor- (10) Ed. Sapir, “Time perspective in aboriginal american culture” (1916), Selec- ted writings of Ed. Sapir, Univ. California Press, 1949, p. 392, (1D) Evans-Pritchard, “The Marett Lecture”, Man, setembro 1950, n? 198. Lévi- Strauss, “Histoire et Ethnologie”, Revue de métaphysique et de morale, julho-outubro de 1949, p. 363. AS FORMAS DA HISTORIA 45 do com o etnélogo britanico, teriam o mesmo objetivo: “distinguir pela andlise a forma latente que est& subjacente em uma sociedade ou uma cultura”. O historiador do Renascimento nao procederia diferen- temente do etndgrafo das sociedades polinésias: ambos buscariam ultrapassar o fato para obter a visto de uma totalidade ideal que desse sentido as atividades singulares dos homens e@ a0 modo de mu- danga observado. Se quisermos, todavia, no seio de uma inteng&io Yinica, manter uma diferenga de abordagem, diremos com Léyi- Strauss que a “‘histéria organiza seus dados em relagao as expressies conscientes, a etnologia em relag4o as condicgdes inconscientes da vida social" !2, Como as expressdes conscientes s6 tém sentido uma vez vinculadas aos fenémenos inconscientes que os condicionam, sugere- se com isso que o método mais fecundo é o da etnologia que revela para além dos pormenores das representagdes e da sucessiio dos acon- tecimentos a estrutura subjacente. | Por mais justa que seja, entretanto, a aproximacio assim opera- da entre a perspectiva do historiador e a do etnélogo corre o risco de dissimular a diferenca que desejamos interrogar entre dois esquemas de devir: o das sociedades “‘estagnantes” e o das sociedades “hist6ri- cas”. Parece-nos impossivel reduzir esta diferenca a um efeito de 6tica. Como nos determos, de fato, diante da distingfio de dois Pontos de vista sobre 0 social, como se dados inconscientes e conscientes fossem rigorosamente dissocidveis e como se a partilha dependesse das intencdes do observador? Se queremos dizer que pertence ao cons- ciente o dominio dos discursos e das representacdes que os homens fazem dos acontecimentos e de suas.acdes, devemos na verdade convir que a hist6ria nao se reduz a isso. Uma guerra ou uma revolucdo, por exemplo, séo, nas sociedades modernas, algo diferente do encadea- mento dos acontecimentos percebidos e nomeados pelos contempo- raneos e seu sentido n’o é o mesmo que lhe emprestavam os atores. Eis ai, porém, algo que ndo nos autoriza a julgar que haja aquém destes dados outros dados, desta vez inconscientes, que teriam uma consisténcia prépria independentemente dos primeiros ou ainda que haja uma ordem estrutural suscetivel de ser subtraida ao jogo dos acontecimentos. A hist6ria do movimento operario, manifesta através da formagio de associagdes, de sindicatos, de partidos, através das. mudangas nas formas de luta, dos episédios revoluciondrios, do apa- tecimento de novos 6rgdos tais como a comuna, os comités de fabrica, (12) Lévi-Strauss, ibid. , p. 383. % CLAUDE LEFORT conselhos: como inscrevé-la no registro do consciente ou do incons- ciente? E certo que Marx fala do desenvolvimento de uma “cons- ciéncia de classe”, mas sua teoria faz antes reconhecer uma hist6ria em profundidade no seio da qual o consciente nao ocupa senéo um estreito setor. E estes fenémenos, contudo, nfo sio da ordem do inconsciente se com isso entendemos um conjunto de relagdes que escapa necessariamente a representacio dos homens. Nao € somente enquanto personificam uma categoria do capital que os operdrios estdo incluidos em uma hist6ria, mas também enquanto apreendem o sentido da situacZo na qual os coloca seu trabalho e formam um Projeto de organizacdo e de luta. , Evans-Pritchard e Lévi-Strauss observam com exatidaio que a histéria econdmica é amplamente a de operacdes inconscientes e que, neste sentido, ela vai ao encontro das teses da etnologia. Mas devemos perguntar ainda se em uma sociedade moderna a histéria econémica pode ser destacada da histéria social, se as estruturas econémicas nao s4o em si mesmas contingentes em relagdo aos fendmenos de classe, de modo que sua anélise ndo possa ser efetuada sem constantes referén- cias A mentalidade dos grupos dirigentes, ao modo de resisténcia dos trabalhadores, ao papel das ideologias, ete. Em suma, poderé um esquema de desenvolvimento ser descrito de maneira que os aconte- cimentos sejam apenas a matéria que Preenche a forma ou que esta determine rigorosamente os efeitos daqueles? Ao contrario, 0 aconte- cimento hist6rico propriamente dito no interessa a edificagio da estrutura? Ou, em outras palavras, a colocacéo em evidéncia de uma estrutura, Por parte do historiador, nado é comandada pela leitura da- quilo que advém, subordinada a necessidade de dar raz4o ao devir social naquilo que ele tem de inovador? Em compensac4o, o modelo da organizago dualista!3 que se mantém entre diversos Ppovos da No- va-Guiné a despeito de miltiplas vicissitudes — guerras, migracdes, ete. —, se depende de uma forma indiferente ao contéudo dos aconte- cimentos nfio € a de uma estrutura histérica; ou, se preferirem, nao d& a ler sentio uma histéria repetitiva, Coloquemos o problema em outros termos: admite-se que haja, em toda sociedade, acontecimento, transformagio cultural e reto- mada vivida do passado pelo presente; é possivel dizer, porém, que a relag&o ao acontecimento, a transformacao, a retomada do Passado tenha sempre a mesma significag’o? O proprio de uma sociedade (13) Lévi-Strauss, ibid., p. 387. AS FORMAS DA HISTORIA 47 “histérica”, segundo nos parece, é que ela contém o principio do acontecimento e tem o poder de converté-lo em momento de uma experiéncia, de modo que ele figura um elemento de um debate que se processa entre os homens. Deste modo, nela a transformacao nao é essencialmente a passagem de um estado para outro, mas o enca- minhamento deste debate que antecipa sobre o futuro referindo-o ao passado. O que significa ainda dizer que o histérico nfo reside no acontecimento enquanto tal ou na transformagao enquanto tal, mas em um estilo das relagdes sociais e das condutas em virtude do qual _ h& colocagéo em jogo do sentido. A conquista de uma nova técnica de produgao, a descoberta de um poyo desconhecido tém perfeitamente um sentido para uma socie- dade primitiva, podendo engendrar um remanejamento do sistema cultural ou suscitar um reequilibrio da ‘‘personalidade de base”; as- sim, segundo Linton, as modificagdes sobrevindas entre os Tanala de Madagascar quando passaram da cultura seca para a cultura imida do arroz, afetaram nao apenas o modo de propriedade, mas a orga- nizagio da familia, ag relacdes sexuais, a competicdo social e o regime politico e esta transformagio se operou nao ao acaso mas em fungdo de um certo esquema estrutural imposto pela personalidade de base. Resta, contudo, a conclusio de que o acontecimento, sejam quais forem seu impacto sobre a sociedade e a cultura e a difusio dos seus efeitos, nfo desencadeia uma dialética de mudanga. Nao é portador de um sentido; é antes em assimilaé-lo que os homens parecem ocu- pados, em favor de compromisso entre os imperativos da adaptacdo € 0 desejo de conservac4o, do que em ceder a atracao do novo. A descoberta da América nao é para os Europeus um aconte- cimento hist6rico porque pode, ao mesmo tempo, ser referido as ques- tdes mais ou menos explicitamente formuladas na Europa do século XV, procedendo de um abalo da imagem medieval do mundo provo- cado pelo surgimento dos Estados, a crise religiosa, o desenvolvimento cientifico e téenico e marcando um episddio da concorréncia comer- cial e da expansiio do capitalismo; e porque, ao mesmo tempo, seus efeitos contar’o na instauragao de novos equilibrios econémicos, na elaboracdo de um novo mito do império e na evolug’o do Huma- nismo. Em compensagio, para os Indios da América, 0 encontro com os Europeus nao € mais do que um acidente ou fatalidade e isso nao somente porque é passivamente vivido, mas porque nao pode se inserir na continuidade do tempo, ndo vem atualizar possiveis, que ja estariam presentes; em uma palavra, revela-se destituido de sentido. 48 CLAUDE LEFORT Impossivel, pois, subestimar o fendmeno da meméria hist6rica. Se uma sociedade se preocupa em interpretar seu passado e se.situar em relag&o a ele, se formula explicitamente os principios de sua orga- nizagao, se procura dar sentido e valor a suas atividades de fato e a tudo o que Ihe acontece, é por seguir um certo esquema do devir. £ certo que toda sociedade comunica com seu passado e se acha de alguma forma por ele investida; mas tematiz4-lo é apreendé-lo como produg&o de um sentido, abertura ao presente e, simultaneamente, descobrir neste presente os sinais do novo; é, ndo fazer corpo com 0 passado tomado como totalidade cohfusa, mas, discernindo-o, arti- culando-o, introduzir-se no coragdo de uma intengiio presumida e, assim, antecipar sobre os acontecimentos. Haveria, em conseqiéncia, uma dupla tarefa: recolocar no cir- cuito da hist6ria a sociedade “‘estagnante”, exigir da filosofia que dé conta dela do mesmo. modo como pretende dar conta da sociedade “histérica” ¢ diferenciar seu modo proprio de devir, assumir seus tragos especificos. Seria necess4rio ao mesmo tempo criticar a teoria racionalista que se desinteressa por este tipo de sociedade porque nao € capaz de lhe dar um lugar no seu esquema ideal de desenvolvimento € uma concepgio puramente empirista que nao lhe reconhecesse nenhuma caracteristica particular senio a de apresentar uma mudan- ¢a mais lenta. Ou ainda: assim como se trata de situar-se no coragiio da sociedade histérica para apreender o movimento do sentido, a pluralidade dos possiveis, o debate sempre aberto, seria conveniente compreender como a sociedade primitiva se fecha para o futuro, extravia-se sem ter consciéncia de se transformar e, de algum modo, se constitui em fungfo da sua reprodugio. Dever-se-ia, em suma, Procurar que género de historicidade revela a sociedade estagnante (designando-se com este conceito a relag&o geral que os homens man- tém com o passado e com o futuro). Limitemo-nos a algumas indicagdes, tomando como ponto de partida as reflexdes que inspiram a Gregory Bateson a descrigho de uma sociedade imével (“‘steady stade”"*), E verdade que este autor nfio se propde de’ modo algum a pintar a partir do exemplo de Bali a (14) G. Bateson, “The value system of a steady state: ‘Ethos’ and ‘Schismo- genesis’, Social structure, op. cit., p. 37 es. E, em colaboragio com M. Mead, Balinese character. A photographic analysis, New York, 1942, AS FORMAS DA HISTORIA 4 fisionomia da sociedade primitiva. Muito ao contrrio, insiste a res- “peito da originalidade de um sistema de cultura que the parece dis- tinguir-se de todos aqueles que estudou alhures. Pensamos, todavia, que pde evidéncia tragos que nao so particulares a Bali e que estes, consideravelmente acentuados no caso desta sociedade, sio apropriados para esclarecer o fendmeno geral da estagnacio. A singularidade de Bali esté em que todos os conflitos ou, mais geralmente, todas as oposigdes que vemos alhures desenvolver-se, 14 so ultrapassadas e reduzidas tendo em vista preservar um equilibrio social fundamental. Tudo se passa como se a vida balinesa obedecesse a um imperativo essencial: manter a estabilidade. Nenhum traco aqui de uma competi¢ao aberta entre os grupos e os individuos, mas ao contrério a imagem de um esforgo combinado para impedir toda relagio dinAmica entre os homens. A subordinagio de todas as con- dutas conservacéo de uma forma estavel faz pensar, segundo o autor, no funcionamento de um organismo vivo: “it seems that the Balinese extend to human relationship ‘attitudes based upon bodily balance’"S. Numerosos exemplos sustentam esta interpretagao, Sem duvida nenhuma, o mais significativo é observado no método que os Balineses empregam para resolver seus conflitos. Dois homens que disputam fardo registrar oficialmente sua situagdo e se comprometem @ pagar uma multa caso venham doravante a dirigir a palavra um ao outro; assim, impedem deliberadamente que o conflito se desenvolva, limitando-o a um estado de fato. Na escala coletiva, 0 conflito é tratado da mesma maneira: uma guerra é concebida como a cessacio de toda relagio entre os grupos rivais; cada qual se cerca de fortifi- cages que tornam o combate impossivel. E, segundo nos diz 0 autor, esta representag4o encontra-se de tal forma enraizada na cultura que JA se acha presente nas relacdes infantis. Outros aspectos da vida social confirmam esta auséncia de opo- sigdes dindmicas. A troca de palavras é mais freqilentemente reduzida 4s necessidades da comunicag4o: nao h4 verdadeiros diflogos compor- tando frases longas, nem narrativas ou discursos propriamente ditos que exigiriam uma atencdo continua dos interlocutores. A musica e a danca que desempenham um papel de primeiro plano se abstém de desenvolver um tema continuo e apresentam um encadeamento de motivos separados, estritamente decompostos, que nunca se ordena em fungdo de um crescendo. Este comportamento coincide com uma (15) G. Bateson, ‘The value System of a steady state", op. cit., p. S1. 50 CLAUDE LEFORT concep¢io geral do mundo exterior estritamente definida: o homem nao visa o espaco de outrem a nio ser situando-se precisamente com relag&o a eles. Esta concepcao no difere, de fato, daquela da maioria das outras sociedades primitivas a n&o ser por sua extrema sistemati- zagdo, mas é nisto que ela é instrutiva. O tempo € repartido de uma maneira particularmente complicada e artificial: hi uma série de se- manas de dois a dez dias e também varias categorias de meses de trinta e cinco, aento e cinco e duzentos e dez dias, de tal maneira que um acontecimento se acha simultaneamente fixado com relacio a varios sistemas de referéncias e, de algum modo, multideterminado.’ Observa-se por outro lado uma incapacidade geral para imaginar um futuro indeterminado. O que ainda nao 6, 6 o que ainda nado se produziu, mas o futuro é fixado tal como o passado; ou, melhor dizendo, é visto como o que seré passado e nfo se distingue deste Ultimo a nao ser como 0 confuso do claro. A relagio ao espaco oferece as mesmas caracteristicas. Bateson observa que as agdes dos indivi- duos se manifestam em um espaco concreto em que certos pélos, o mar, o interior das terras, o este, o oeste, desempenham um papel essencial, determinam a orientaciio dos edificios principais (a casa do chefe, o templo, o cemitério) ou a posigdo dos que dormem na casa. * To rigido € este quadro que um individuo, transportado rapidamente para um lugar distanciado, perde o sentido de sua conduta, perdendo suas coordenadas espaciais e pode apresentar perturbacdes patolégi- cas. Ora, o mesmo acidente sobrevém quando um balinés se encontra em um vilarejo cujos costumes nao conhece e em presenca de homens com os quais nunca manteve relacdes: considera-se entio que ele esta “paling”, termo que designa o homem bébado ou em transe, de al- guma maneira fora de si. As relagdes entre os homens sido, de fato, minuciosamente regulamentadas. Os individuos se repartem em cas- tas; a func&o e a posicfio exata de cada um sao conhecidas na aldeia; emprega-se uma linguagem particular para a comunicag4o com os homens da casta superior, a qual no apenas contém construcdes diferentes da lingua vulgar, mas também um vocabulario especifico; e, finalmente, esta linguagem se faz acompanhar por uma mimica corporal cuidadosamente regulamentada. Por ocasido das festas, a contribuicéo de cada um e a reparticao de bens dao lugar a cAlculos de uma extrema complicag&o, inspirados por um cuidado meticuloso com a hierarquia. Em que consiste, pois, a singularidade de Bali? Bateson liga os diversos tracos que enumeramos, vinculando-os, além disso, ao modo de educagio das criangas. Acredita poder mostrar que a atitude da mie AS FORMAS DA HISTORIA 51 para com a crianga, o hdbito que tem de interromper toda relag&o com ela e, em especial, toda excitacdo sexual no limiar de um crescendo, de colocé-la subitamente a distincia no momento em que se acha empe- nhada em uma forma temporal dinfmica, tém conseqiiéncias em todos os dominios da vida dos adultos. Neste sentido, Bali se diferenciaria de toda sociedade cismogenética na qual as oposic¢des que surgem nao sto abafadas, mas se desenvolvem segundo sua dinfmica prépria até um crescendo. Seja qual for, contudo, o interesse da descrig&o da situac3o infantil, devemos perguntar se ela permite explicar o fendmeno geral da estagnaco ou se nfo fornece antes uma explicagao sem diivida significativa, mas ainda parcial. A verdadeira questo, na nossa opi- niZo, acha-se esquivada: que tipo de sociedade torna possiveis tais telagées entre os individuos, como interpretar 0 modo de resolugao dos conflitos e a busca tio deliberada da estabilidade? Ora, Bateson e Margaret Mead vao, segundo nos pareceu, até o mais profundo, quando observam: “orientation in time, space and status are the essential of social existence”. Os Balineses s6 podem, com efeito, pensar a si mesmos como estritamente situados, ancorados no espaco e no meio social. Nao tém a nogio de um espaco no qual nao habitariam ou de um tempo abstrato, irredutivel A duracSo vivida, tanto quanto nao tém a de um homem cujas relagdes de parentesco ignorassem. Sua recusa do conflito é apenas um efeito extremo e bastan- te notdyel desta representacio do mundo: 0 conflito implicaria um risco, a possibilidade de uma recolocag&o em questo dos dados pre- sentes, que nado é compativel com as exigéncias de uma tal aderéncia ao meio. O erro, contudo, seria julgar esta atitude natural. Bateson sabe muito bem que esté usando uma analogia quando compara o ritmo da vida social ao de um organismo. Ele préprio mostra como as relacdes sociais procedem de uma elaborac&o complicada. De acordo com ele, é por exemplo um problema permanente para os Balineses tratar outrem segundo manda sua posic&o social e exigir dos outros as justas marcas de respeito. A etiqueta é tio complicada que ele se sente constan- temente em perigo de cometer um erro. Em especial por ocasiaio das festas, 0 cflculo das contribuicdes de cada membro da aldeia e, em seguida, a reparti¢fo dos bens sfio objeto de incessantes recriminagdes por parte dos interessados. Bali nfo é, pois, uma sociedade cooperativa Propriamente dita e o essencial nos escaparia se sublinhAssemos- a primazia da comunidade sobre o individuo. A rivalidade, 0 apego (16) Balinese chabacter, op. cit., p. 11. 52 CLAUDE LEFORT ciumento de cada qual a suas prerrogativas ou apenas a vontade de fazer reconhecer seu lugar, observam-se em numerosas ocasides. A divisio em castas, a estratificago dos individuos evocam, alifs, um conflito latente. Se o caso de Bali é significativo, isso no se deve ao modo de resolugao dos conflitos, mas ao fato de que a colocacfo em forma cultural de um devir ndo criador ou a inibig&0 do histérico coincide com um estado no qual os homens se acham o mais estrita- mente situados uns com relagio aos outros, definidos Por seus lacos de dependéncia. A este respeito, Bali no faz mais do que levar ao seu ultimo grau uma tendéncia sensivel em quase todas as sociedades primitivas. Seu exemplo convida a ligar um modo de historicidade e um modo de socialidade. O que dissemos da constituicdo do espago, do tempo e de outrem em Bali pode, com efeito, em grande parte ser generalizado, Como escreve Lévi-Strauss, formulando um juizo de conjunto sobre o mundo primitivo: “Os observadores ficaram freqiientemente impressionados com a impossibilidade para os indigenas de conceberem uma relacio neutra ou, mais exatamente, uma auséncia de relacdes”’!”. Os indi- viduos estio ligados entre si por uma série de direitos e deveres que decorrem de sua posicdio na aldeia, seu parentesco, sua idade e seu sexo; assinalam o que s&o, uns para os outros, através de uma conduta, uma linguagem ¢ uma mimica apropriadas & sua condig&o. O desco- nhecido deve ser classificado em uma categoria e, em conseqiéncia, interrogado sobre sua genealogia e suas aliancas para ser aceito. Se permanece desconhecido, sé pode ser tratado como inimigo. Quanto ao branco, inclassificavel, foi freqientemente considerado, no momento de sua aparicio, nao como um homem mas como um fantasma. Tudo se passa, em suma, como se os homens nfo pudessem fepresentar a prépria existéncia a nao ser exibindo-se uns diante dos outros, do mesmo modo como no descobrem seu sentimento, de acordo com 0 que foi muitas vezes observado, a nao ser exprimindo-o segundo um ritual e sob o olhar dos outros. Deste estilo de existéncia, a troca por dons, tio profundamente descrita por Mauss, fornece uma ilustrag%o essencial. A provocagiio a resposta pelo dom, o risco de nio ser entendido ou ser negligenciado, a obrigagdo de nao devolver menos do que se recebeu ou até mesmo de devolver mais, a busca do laco de dependéncia e o temor de ser vitima dele compéem uma situagdo ambfgua por figurar ao mesmo tempo a competic&io e a cooperacio, (17) Lévi-Strauss, Les Structures éiémentaires de la parenté, PUF, 1940, p. 597. AS FORMAS DA HISTORIA 53 mas cujo sentido principal é instituir um reconhecimento do homem pelo homem. Nio é 0 objeto, por mais util ou precioso que seja, que se acha visado na troca, mas, como o significa o cerimonial do dom, a Telagao que permite estabelecer entre sujeitos ou ainda o sistema de comunicago que faz dos individuos os membros de uma humanidade definida. Afinal de contas, dizer que nao existe relacZo neutra ou que o outro deve ser a qualquer preco percebido como parceiro posstvel, ligado a parceiros possiveis ou sendio como adversério, que no ha lugar Para quem esteja fora do circuito da troca, é dizer que cada um ndo pode se perceber enquanto si sem a mediag&o de outrem, que toda atividade é subordinada 4 relag4o com outrem. De um tal ponto de vista no hé distingdo firme a estabelecer entre competigaio e cooperacdo, entre a sociedade que profbe o conflito e aquela que deixa que ele se desenvolva. Na troca por dons vemos as duas possibilidades simultaneamente oferecidas, conforme 0 acento seja posto na luta pelo reconhecimento ou sobre o mituo parentesco no seio de um conjunto humano. Onde os conflitos se exasperam e sem cessar so recolocadas em questo as relacBes de fato entre os grupos e os individuos, mantém-se um esquema geral de socializag3o que as oposigées pressupdem. O conflito opera um simples remanejamento _ dos dados no seio de uma forma de coexisténcia estavel. A proximidade dos individuos, sejam quais forem seus efeitos — asolidariedade ou a guerra — poderia, pois, fazer compreender melhor 9 sentido da estagnacao, Se os horizontes est&io fechados, se nem o Ppassado nem o futuro sito visados como diferentes é em primeiro lugar porque os homens tornam impossivel uma distfncia entre si ou uma experiéncia da alteridade, porque estdo obnubilados por seus paren- tescos e seu enraizamento social. Assim, no mundo melanésio, 0 cos- tume de acordo com 0 qual o bisavé é assimilado ao bisneto mostra o condicionamento do esquema temporal pelo esquema social: o yelho, que nao exerce mais funcio na organizag&o presente nao pode ser apreendido no seu lugar no tempo; ele é artificialmente convertido em bisneto, um pouco como é convertido em irmdo 0 estrangeiro que nado Se quer ou nao se pode combater. Em suma, a incapacidade de repre- sentar uma auséncia de relagéo é da mesma ordem que a de imaginar um passado ou um futuro a distfncia do presente. A estagnagfo nilo & um fato de natureza, mas um fato de coexisténcia; acha-se implicata na maneira pela qual os homens se percebem e se referem uns aos outros, isto é, em uma praxis coletiva. Para nés seria, pois, uma tarefa filoséfica, a de buscar através da multiplicidade das fotmas de cultura e de personalidade o estilo tinico SM CLAUDE LEFORT que aparece nas relacdes humanas, nos acontecimentos e na elaboragao do espago e do tempo, a fim de mostrar como um tipo de humanidade n&o engendra uma hist6ria. No se trata — repitamos — de apresentar sociedade estagnante ¢ sociedade hist6rica como de esséncia diferente, mas antes de tornar possivel sua comparacio distinguindo-se dois modos de historicidade. A sociedade estagnante n&o figura uma humanidade singular na huma- nidade; descobre-se nela uma constelac&o de tracos que podem se reconstituir de outra fotma. Se é verdade que a estagnacio ¢ estabe- lecida por uma coletividade, que os horizontes desta ndo s8o natural- mente limitados, mas que esta finitude revela uma intengo humana, podendo ser reinterpretada como expresstio de uma elaboraco cul- tural, nio deveriamos ent&o perguntar se um desenvolvimento hist6rico a horizontes infinitos nao é o préprio de uma humanidade inteiramente diferente? Nao ha, com efeito, instituigdes primitivas que nfo evoquem instituigées histéricas. E possivel ver na troca por dom o esbogo do contrato ou no mito a antecipagao do conhecimento histérico ou ainda no sistema de relagdes de dependéncia uma prefiguraciio da divisio social. E até mesmo poss{vel aplicar parcialmente nossas categorias econémicas ao mundo primitivo embora sejam dele ignoradas. Isso porque o sentido de certas praticas e de certas representagdes, ainda que nao percebido pelos interessados, acha-se implicado na sua expe- riéncia social. Como nao perceber, alias, que o parentesco das socie- dades primitivas e das sociedades hist6ricas acha-se constantemente subentendido no trabalho do etnélogo, uma vez que ele interroga as primeiras em comparag&o com o mundo em que habita ¢ procura pér em evidéncia um sentido das condutas e das instituiges que interessam o sentido de seu préprio mundo. As observagdes que formulamos sobre a dialética do reconhe- cimento inter-humano na sociedade estagnante incitavam a colocar um problema da hist6ria. Nao tiramos agora a conclus&o de que as condi- gdes de uma abertura para a histéria sio também as do fechamento para a hist6ria, Na sociedade estagnante, as coisas se passam como se 0 fim ultimo do homem fosse o de se confrontar com o Outro e de se situar, assim, fora da natureza, em um sistema de parentesco que exprime um nés humano; de se desvencilhar, gracas A troca, da depen- déncia das coisas para instituir uma dependéncia das pessoas na qual esteja significada a independéncia da ordem humana. De um tal ponto de vista, todas as atividades parecem subordinadas a esta dialética do enraizamento social na qual o homem é imediatamente para outrem e AS FORMAS DA HISTORIA 5S mantém com ele uma relacdo estritamente definida. O fato de que nao haja um dominio de atividade econdmica separado, como foi freqden- temente observado, que toda atividade de alcance econémico tenha também uma significagio moral, juridica, religiosa e estética, mostra que nao h4 em principio disting&o entre o homem e sua operacio, entre 0 objetivo e o subjetivo, a exterioridade ¢ a interioridade. Do mesmo modo, a impoténcia em desvincular da pratica social regida pela tradi- g&o valores que teriam um fundamento auténomo vai junto com a impoténcia em conceber uma relagdo neutra: toda conduta é poliva- Jente porque é como um gesto, significante para todos os espectadores e oferecida a um comentério indefinido. Em compensagao, & quando a atividade se faz trabalho que fixa sua significag&o, que procura a dimensio da objetividade e da exterioridade tornando sensivel o enca- deamento em si de uma intengio e de um resultado e, finalmente, afasta-se de um debate centrado na relacio do homem com o homem para fazer surgir uma finalidade que nao estava dada com sua simples coexisténcia. Em outras palavras: o trabalho supde nas condutas um desvio, uma espécie de colocagdo do outro a distancia ou ainda uma moratéria na confrontac&o entre os homens, gracas 4 qual a elaboracio de algo de novo, que figura em si uma relag&o neutra, pode se realizar. Na sociedade estagnante, a dialética do reconhecimento se repete sem engendrar uma dialética do trabalho, a produgdo permanece subor- dinada a relacio do homem com o homem e a sua inscrig4o em uma forma coletiva. E por uma revolucdo na historicidade que os homens descobrem no fato de produzir um principio de produtividade, se liberam deste investimento por outrem que era sua situacdo primitiva e inauguram uma hist6ria propriamente dita. O verdadeiro problema consistiria pois, uma vez patenteada a historicidade da sociedade primitiva, em investigar como pode ela se transformar, por qual formulag%o nova das relagfes humanas pode uma experiéncia se instituir no tempo, o qual supde uma retrospectiva ativa do passado e uma prospectiva explicita do futuro. Em suma, se admitimos que a histéria, concebida como engendramento do novo, no esté dada com a coexisténcia, seria necessfrio compreender como a coexisténcia se faz hist6ria. O que nao é mais do que virar pelo avesso a dificuldade de que partiramos e que nos parecia inerente a toda filoso- fia racionalista para a qual apenas a estagnac&o era paradoxal, mar- cando um branco no curso da humanidade. Mas esta reviravolta é essencial na medida em que reintegra a histéria ao homem, permitindo conceber a humanidade senio como “‘existente total”, ao menos como uma mesma humanidade, as voltas com as mesmas questdes, embora 56 ‘CLAUDE LEFORT dando a elas solucdes diferentes. Finalmente, nao impossibilita uma reflexio sobre o devir singular da sociedade dita histérica. Muito ao contr4rio, incita-nos nilo apenas a interrogar a respeito de suas condi- ges de possibilidade, mas também a indagar como se processa um desenvolvimento, como nos seus limites renasce a tendéncia para uma conservacao das estruturas estabelecidas e para uma estagnacSo e se refaz contra ela a experiéncia de uma histéria progressiva. III A alienacio como conceito sociolégico* A imagem de um Mars positivista responde a de um Marx meta- fisico. Assim, ap6s tantos outros, M. Bigo numa obra recente! decla- fava que a economia politica marxista era ininteligivel se ndo se reco- nhecesse primeiro sua inspiragio filoséfica: “A chave da economia polftica marxista se acha na filosofia marxista”, escreye nosso autor e precisa que as idéias sobre o valor, a moeda, 0 capital derivam da “tomada de consciéncia de uma contradigfo entre a realidade empi- Tica e a realidade humana e natural”?. Esta tomada de consciéncia originarid — precisa ainda o autor — é a da alienacio humana: eis af, diz ele, o “centro de perspectiva” do marxismo. Ou ainda: “‘A idéia de alienac&o domina toda esta economia politica’?. Sera que deve- rlamos censurar Marx por ser ele filésofo? Bigo; que parece militar por um humanismo cristdo, esté bem longe de fazé-lo; mas fica claro que esta apreciagfo lhe permite arruinar pelo menos parcialmente a {*) Publicado nos Cahiers internationaux de sociologie, 13, 1955, (1) Bigot, Marxisme et Humanisme, PUP, 1953, (2) Id., p. 25. (3) Id, p. 27. 58 CLAUDE LEFORT critica da realidade trazida peio marxismo. Ora, é esta tendéncia que observamos cada vez que os pretensos postulados filos6ficos de Marx so postos em evidéncia. A introdugdo de Landshut e Mayer a Critica da Filosofia do Estado de Hegel oferece, quanto a isto, um car&ter exemplar‘, As obras de juventude revelariam que Marx se colocou no mesmo terreno de Hegel: o do devir do homem através de alienactes sucessivas. “Com uma leve alteracdo — escrevem estes comentadores — a primeira frase do Manifesto Comunista poderia ter a seguinte redacdo: toda a histéria passada é a hist6ria da alienagio prépria ao homem'’’, Ora, do mesmo modo como em Hegel 0 itinerdrio dialético da consciéncia 6 € assegurado porque a Razio é imanente a cada um de seus momentos particulares, em Marx, a historia das alienacdes nao é, no fundo, mais do que a realizac&o da esséncia do homem. Nos dois sistemas, por mais diferente que seja, por outro lado, sua defi- nigdo de alienag&o, encontra-se esta conexdo absoluta entre um pro- cesso de alienacao ¢ um processo de verdade. Alifs, a simples reflexio sobre o termo alienacaio nfo conduz necessariamente a esta conclu- sto? Como falar de uma perda do homem no seu trabalho ou de uma humanidade tornada estranha a si mesma, se no dispomos, em nosso intimo, da idéia de um verdadeiro ser do homem? Aplicada a Marx esta reflexio — ironia imprevisivel da hist6ria das idéias — nfo vi- saria nada menos do que recolocd-lo sobre seus pés. Pensa ele partir da realidade existente, descreve primeiro suas contradicdes empiricas, pér em evidéncia a titulo de fendmeno essencial a cisdio entre o capital €0 trabalho, mostrar, finalmente, para o proletariado a tendéncia e a exigéncia de reconquistar 0 produto e a significagdo de sua atividade? Seu procedimento, na realidade, € o inverso: porque ele parte da idéia de uma certa relagéo do homem com o homem e de um certo tipo de atividade humana, que o trabalho na sociedade capitalista lhe aparece como alienado, que ele pode estabelecer uma contradi¢ao entre a socializacaio do trabalho e o modo privado de producfo, que ele pode denunciar um dilaceramento fatal entre o trabalho morto e o trabalho vivo, que pode, finalmente, julgar a constitui&o politica, o direito, a religiio ou outras esferas de atividade como simples expres- ses da alienac&o. “Sem a nocdo do verdadeiro-ser do homem, a cri- tica da realidade existente deve, pois, permanecer ininteligivel e nao ser nada mais do que uma censura vazia de sentido, uma querela de (4) Oeuvres philosophiques, t. IV, Costes, édit. (S) dd., p. XLII. AS FORMAS DA HISTORIA 59 descontentes”®, Nao resta divida de que um marxismo “cientifico” pode muito bem pér em evidéncia discordncias no funcionamento da sociedade: estas discordaricias podem até mesmo ser julgadas tio ameacadoras quanto se queira para o futuro do sistema atual. Mas no poderiamos deduzir dai uma desqualificagéo da realidade ou, mais simplesmente, descobrir no nivel da simples descrico uma pers- pectiva sobre a realidade social enquanto tal que circunscreva um devir verdadeiro ou uma solugao. Poder-se-ia ao menos pensar que Marx teve o mérito de inau- gurar uma filosofia da realidade. Mesmo que sua interpretacio da sociedade fosse dependente de sua concepgio do mundo, esta teria sobre a filosofia hegeliana a vantagem de pensar o homem nas suas relagdes com o meio social e natural ao invés de construir uma dialé- tica de consciéncia. Mas é que nao terfamgs compreendido que com a idéia de alienacio — como a de verdade que dela é rigorosamente solidéria — a histéria se acha determinada absolutamente; de modo que nao temos uma reflexo filoséfica sobre a hist6ria, mas uma filo- sofia posta em forma de histéria. Landshut e Mayer sentem-se, pois, autorizados a escrever: “Por tras de toda essa construgdo monumental da hist6ria considerada como alienag&o incessantemente crescente da histéria do homem, hé a crenga idealista nao menos monumental segundo a qual a obra da his- t6ria é, contudo, estabelecer a verdade da vida presente”’. E, com efeito, se aceitéssemos sua interpretagio do fendmeno de alienacio, deveriamos conceder-lhes que o marxismo é um idealismo; definindo- se este, no fundo, no como uma teoria que pretende explicar o real pelas idéias, mas como vontade de identificar completamente 0 real eo racional. Interpretado neste sentido, o “‘pretenso realismo” de Marx, Por um curioso paradoxo que Jean Hyppolite também assinala junto com nossos comentadores, viria alimentar um idealismo muito mais rigoroso do que o de Hegel. “‘O filésofo Hegel, dizem estes tiltimos, nao era de forma alguma bastante extravagante a ponto de encarar como racional o que Marx via como sendo a realidade’®. Nao hi divida de que eles esquecem uma certa “dedugio” do monarca here- ditdrio na filosofia do Direito, que vai bem longe na identificagio do racional e do real. Hyppolite observa muito mais profundamente que (6) Id., p. XLI. (7) id, p. XLII. (8) Ibid. ao CLAUDE LEFORT ha uma mistica légica na teoria hegeliana do direito e uma mistifi- cago na transposic&o desta logica para o terreno da realidade empi- tica ¢ reconhece o fundamento de certas criticas de Marx?. Mas chega 4 conclusio de que se Hegel mantém na realidade empirica as tenses que Marx quer abolir, se ele quer resolvé-las apenas no plano do Pensamento, conservando assim o fenémeno no seio da idéia, nem seu idealismo, nem seu conservantismo politico bastam para explicé-lo. Apés ter conhecido a “‘tentagiio” de uma reconciliacdo efetiva do homem com o homem, Hegel teria tirado de sua reflexdo sobre os acontecimentos hist6ricos de seu tempo a conclusio de que a histéria humana pode ser compreendida, mas no pode ser transformada de modo absoluto, Teria renunciado deliberadamente a tirar de seu idea- lismo todas as suas conseqiiéncias. Se devéssemos, pois, observar con- tra Landshut e Mayer que a prudéncia nao tem estatuto filosético no sistema hegeliano e que a extravagancia de Marx reside na sua tenta- tiva em levar a histéria totalmente a sério, isto é, em substituir a “Jégica da coisa a coisa da légica”, também deveriamos convir que a teoria de Marx malogra radicalmente por ser radical; que sua teoria da alienago na medida mesma em que visa o real enquanto tal lhe fecha precisamente 0 acesso. A linguagem algébrica da Fenomeno- logia do Espirito no seria, neste caso, mais fiel do que o pretenso deciframento do Capital? © fato, porém, é que Marx, a despeito dos pesares de seus comentadores, nao escreveu: toda a historia passada é a histéria da alienacho propria ao homem. Além disso, que 0 conceito de alienagao foi utilizado por Marx com acepgies tAo diversas que podemos ao menos nos perguntar se € justo dele reter apenas um sentido, aquele que o aparenta ao pensamento hegeliano. Nao é, precisamente, por construirmos um Marx a partir do modelo hegeliano, conservando os olhos fixados sobre o debate entre cles, que emprestamos a mesma significag&o a seus conceitos? Poderfamos, pelo menos, observar que o jogo de espelho pelo qual se constituem os tracos de um e do outro tém, para ambos, uma fungSio oposta. Pér em 2vidéncia o tema da alienagiio na filosofia hegeliana é insistir sobre a dialética do senhor, do escravo e do trabalho e todas aquelas que na Fenomenologia se apresentam como experiéncias irredutiveis a um desenvolvimento 16- gico, como desvios através dos quais o homem busca ao mesmo tempo resolver e esquivar-se de um “nico problema que ¢ 0 de sua dupla (9) Cahiers internationaux de sociologie, vol. IL. AS FORMAS DA HISTORIA 61 relacZo com o Outro e com a morte. B, retomando-se a expressiio de Jean Hyppolite, revelar a visio pan-tragica do mundo que se opie, ao menos por um momento, a vontade de formalizagao absoluta. A refle- x4o sobre a dialética marxista nao esté ausente desta atenclio conce- dida a certos textos de juventude de Hegel e a seu realismo!°. O para- doxo que, em compensaciio, a reflexdo sobre Hegel s6 se volta para Marx para lhe impor o molde da légica idealista. Existencial, quando observado em Hegel, o tema da alienacfio n&o seria em Marx mais do que a ilustragio de uma distingao rigida entre o verdadeiro ser do homem e sua mAscara, a realidade social e suas formas fenomenais, a histéria ilus6ria do passado e a histéria auténtica por vir. Nao faltam, com efeito, textos de Marx que falam da alienagiio do homem como se a hist6ria consistisse em um processo continuo de exteriorizagao, no curso do qual as forgas objetivadas do corpo social achar-se-iam cada vez mais separadas de suas forcas vivas e no termo do qual, gracas a uma espécie de necessidade, deveria efetuar-se uma reintegracio de umas com as outras. Consideragdes como estas € que fazem parecer convincente a demonstrago de Landshut. Se fic&s- semos, contudo, ai, escamoteariamos aquilo que faz a originalidade do marxismo: nao chegariamos apenas ao resultado buscado que é o de apresenté-lo como idealista, mas o tornariamos ininteligivel. Com efeito, em virtude mesmo de sua andlise da sociedade capitalista como sociedade de alienagao, Marx julga que toda tentativa de hipostasiar a Histéria ou a Sociedade, fixé-las como abstracées, atribuir-lhes ta- refas ou prescrever-lhes uma evolugdo é iluséria e 6 0 indicio de um pensamento alienado. Estas nogdes, de acordo com ele, so categorias do pensamento burgués que s6 pode fazer delas um uso transcen- dente, privado que se acha de um enraizamento efetivo na pratica social e histérica. Dir-se-4 que Marx nao péde deixar de escrever que toda a histéria passada ¢ a histéria da luta de classes; mas é claro que uma tal proposigaéo — verdadeira ou falsa — no pretende ultrapassar © nivel do saber positivo. De resto, mesmo que Marx no tivesse permanecido fiel 4 sua critica do pensamento alienado (e, de fato, a Introdug&o a Critica da Economia Politica apresenta-nos a marcha da humanidade como necessariamente progressiva e o prefacio do Capital fala-nos de leis sociais andlogas a leis naturais, o que nos dois casos reintroduz a idéia de uma humanidade ou de uma sociedade “em si’) (10) As ligdes de Kojéve consagradas a Hegel trazem em epigrafe uma frase de Marx e, de fato, toda a interpretacgio se desenvolve sob 0 signo do marxismo, 62 CLAUDE LEFORT seria absurdo retirar daf uma conclusao além da seguinte: denunciar a contradig&o interna do sistema, chamar a atencdo do autor para as condigdes criticas que enunciou. Contentar-se em interpretar o con- ceito de alienacio em uma perspectiva metafisica (idealista) é tornar- se incapaz de compreender que Marx possa utiliza-la para destruir a metafisica como atividade separada; é nio ver que a tomada de cons- ciéncia da alienac&o circunscreve as condigdes do conhecimento e da ago ¢ faz da revolugio, ao mesmo tempo que uma exigéncia, um cometimento desprovido de garantia absoluta. Fundando no real a dialética da alienagaio, Marx teria, ao que se afirma, efetuado a iden- tificago completa do racional e do real que censurava em Hegel. E precisamente nisto, ao contrério, que pode romper com ele, pois se a alienagio 6 real, o racional nao poderia ser restabelecido em seus plenos direitos, gragas a um passe de miigica hegeliano: as condicdes sociais presentes, 0 tipo de divisiio do trabalho, sio a matriz no seio da qual se elabora todo conhecimento; a propria ciéncia se desenvolve no interior da alienacio: n&io hi mais Raz&o em si. Podemos cons- truir, sem ceriménia, um Marx segundo 0 modelo hegeliano e até mesmo nele integrar todo o contetido positivista de sua obra(o dogma- tismo reconhece seus filhos por toda parte); mas isto porque dele nos esquecemos. Sé retorna a nés concebido na sua separacao de Hegel. Ora, € aqui que se coloca nosso problema: que sentido radicalmente novo a idéia de alienactio assume ou tende a assumir uma vez arran- cada de seu quadro hegeliano? Na aplicagio que dela faz & sociedade capitalista no daria Marx a esta nogio um conteido sociolégico que Geveria impedi-lo de usé-la, alhures, metafisicamente? Raciocinaremos primeiramente a partir de um exemplo cuja andlise nfo pediremos emprestada nem a Hegel, nem a Marx: o dos Nuers, povo africano, ao qual um etnélogo contemporaneo, Eyans- Pritchard, consagrou um estudo admir4vel!!, Escolhemos delibera- damente uma sociedade nio industrial e, além disso, provida de uma cultura material muito simples — o que a torna estreitamente depen- dente do meio natural — para indagar se haveria algum sentido quali- ficd-la como alienada, de um ponto de vista marxista. Os Nuers sao um povo essencialmente pastoral, cuja vida toda acha-se centrada no gado. Até que ponto é a criacdo a atividade mais apropriada ao meio nado € possivel estimar com exatidao. Evans-Pritchard tende a pensar que os Nuers puderam viver exclusivamente da criagdo de gado no (11) The Nuer, Oxford University Press, 1940, AS FORMAS DA HISTORIA 63 passado e que esta atividade era a mais racional nas condicdes dadas. O certo é que atualmente o gado, com freqiiéncia dizimado por epi- demias, nao seria suficiente para a sobrevivéncia da populagdo. A cul- tura do pain¢o traz um complemento indispens&vel embora n&o seja igualmente, por si mesma, capaz de constituir um recurso suficiente, em razao da pobreza dos solos. Além do que a pesca é uma atividade acess6ria, mas importante o bastante para contribuir em assegurar a fusao entre duas colheitas durante um periodo de escassez ou mesmo fazer subsistir integralmente durante semanas grupos desprovidos de gado. O importante é que tanto a agricultura como a pesca e a caca sio abertamente depreciadas pelos Nuers. Embora gostem da carne de peixe, tenham prazer em pescar e fagam desta atividade um meio de subsisténcia, desprezam os povos que vivem da pesca, como, por exemplo, os seus vizinhos Shiluks. Consideram, em geral, que seu modo de vida thes conferem uma incontestfvel superioridade face aos estrangeiros. E sua mentalidade é nisto semelhante 4 do europeu que vé na cultura industrial A qual pertence o sinal de sua preeminéncia. Nosso etnélogo d4 uma lista impressionante dos objetos confeccio- nados a partir da pele, dos ossos, dos chifres, da urina e dos excre- mentos da vaca: objetos dos mais correntes e dos mais indispensdveis na vida quotidiana, mas também ornamentos de toda espécie. Esta descrigdo nio tem apenas o sentido de nos mostrar a importfncia econémica da vaca: revela-nos também-que o homem vive em um universo no qual a quase-totalidade dos objetos que utiliza e a maioria dos procedimentos técnicos que conhece manifestam sua dependéncia em relag&o @ vaca?, Tanto como a mAquina na sociedade industrial, a vaca na sociedade nuer ndo pode ser suprimida sem que se crie para 0 individuo uma espécie de desaculturago ou para a sociedade uma vertigem, todo procedimento de um como da outra fundando-se cons- tantemente, implicitamente ou explicitamente sobre uma instfncia central que confere a eficicia e garante a permanéncia. Como observa ainda Evans-Pritchard, a manuteng&o dos rebanhos comanda o ritmo da vida social. A alternancia de estacdes muito Gmidas ou muito secas implica a transumancia; a pobreza das pastagens, uma mudanca fre- qiiente dos lugares. Os homens se estabelecem, pois, em aldeias, constroem estébulos, deixam em seguida as aldeias para cultivar um campo alhures, abandonam um campo por outro, voltam A aldeia: 6 a Preocupaco com seus rebanhos que determina todos os movimentos. (12) Id., p. 28. 4 CLAUDE LEFORT O animal nao é, contudo, apenas fonte de riqueza e objeto de cui- dados: d& a seu possuidor a posic¢%io, o estatuto na sociedade. O pres- tigio nio provém somente do nimero de animais possuidos, mas tam- bém de sua beleza, que pode ser estimada gracas a critérios extrema- mente precisos. Os direitos do chefe de familia sobre o rebanho, assim como o da mulher e de cada um dos filhos, a partir do momento em que passam a ter idade de se casar, sdo estritamente determinados. O casamento, além disso, obedecendo a regras exogamicas, implica toda uma série de prestagdes em cabecas de gado de que beneficiam seja o pai, sejam os tios da esposa. De tal modo que os lacos de parentesco acabam se definindo naturalmente em referéncia aos animais dados. Daf resulta, como diz Pritchard, que uma genealogia nuer pode apa- Tecer assim como um inventério de um kraal!3, Mas em virtude do mesmo costume © conhecimento do “pedigree” e da histéria de cada animal fornece 0 quadro de todos os lagos de parentesco e de depen- déncia de seus possuidores. E, com efeito, os homens conhecem todas as particularidades dos animais de seu rebanho e dos rebanhos vizi- nhos, seus ancestrais e sua progenitura; alguns deles podem, assim, remontar até cinco geracdes. O que de melhor poderiamos dizer, parafraseando Marr, & que o sistema das Telagdes pessoais é masca- tado por um sistema de dependéncia animal, achando-se os paren- tescos traduzidos em obrigacdes e estas percebidas como animais de chifre. A dissimulag&o do homem sob o animal revela-se, aliés, me- lhor ainda, no costume de adotar 0 nome do seu boi ou de sua vaca favorita. Basta lembrar das profundas observagdes de Mauss sobreo papel do nome assim como da méscara na socializacio do individuo Para compreender que o Nuer se constitui como membro de seu cla tomando de empréstimo o nome de um animal ou, o que dé no mesmo, torna-se efetivamente boi ou vaca pelo nome que adota ou que recebe de outrem. E muito pouco dizer que a “‘identificacto lingitistica de um homem com seu boi nao pode deixar de afetar sua atitude em relag&o ao animal”: ela manifesta a vontade de uma repre- sentacao da relagdo social através da telagio homem-animal, sendo o individuo reconhecide por outrem Pelo fato de que se objetiva na vaca € reconhecendo 0 outro ao objetivé-lo de modo semelhante. A bem dizer uma tal objetivac&o é no limite impossivel; o humano nao pode se converter em animal ¢ este permanece um “medium” social (mas a isso ainda voltaremos), E com freqiéncia — embora nfo sempre — (13) Zd., p. 18. AS FORMAS DA HISTORIA 65. que o homem assume em seu nascimento ou no momento de sua ini- ciagéo o nome de um animal. Além do mais, 0 empréstimo do nome de animais é um jogo praticado pelas criancas, segundo nos informa o etndlogo: o que nos ensina, melhor do que qualquer outra coisa, que 0 simbolo nio abole a distancia entre o simbolizante e o simbolizado. Nao deixa de ser um fato, contudo, que a vaca é percebida como o ser verdadeiro ao qual esto subordinadas todas as atividades humanas e como modelo que dita a cada qual seu papel social. Este modelo, a crianga 0 reproduz de mil maneiras nos seus jogos, 0 homem o con- templa, aprecia suas menores particularidades, enriquece-o de milti- plos ornamentos, faz dele o tema de todas as suas produgdes artis- ticas, comunica-se, afinal, através dele e gtacas a ritos precisos, com os ancestrais ou os espiritos dos mortos que possulram o animal ou um de seus ascendentes. Mauss teria dito, com todo 0 direito, que a vaca é um fato social total; Evans-Pritchard afirma, por sua vez, que ela é um “fim cultural” em si. O que significa que valores econd- mico, estético, mistico e social esto nela confundidos, que as relacdes entre os homens e as vacas so tecidas em toda a espessura da vida cultural, de modo que seria artificial reduzir a uma fungdo ou a uma série dada de fungdes estas relagdes e definir a parte fins humanos. O observador nilo pode, contudo, se impedir de observar o carter obses- sivo'S do interesse que os Nuers dedicam ao gado ou, o que d& no mesmo, a redugdo de todas as relacdes sociais a um tipo de relagao centrada no gado. “‘Os Nuers, escreve ele, tendem a definir todos os Processos sociais e todas as relagdes sociais em termos de gado” e, de acordo com uma férmula contundente, “seu idioma social é um idioma bovino” 6. Concretamente, as relagdes amorosas, parentais, econémicas ou misticas tendem a se estereotipar e, neste sentido, a se coisificar definindo-se sempre em relacdo ao gado. Esta tendéncia é muito sensivel na vida quotidiana: “Seja qual for o assunto de que partimos (em uma conversacdo com um Nuer) e seja qual for o angulo sob 0 qual o abordamos, acabamos depressa por falar de vacas e bois”, observa com penetracio Evans-Pritchard. Nada evoca melhor a obsessio; mas podemos também medi-la através de uma anélise do vocabulério. A inflag&o dos termos concernindo a vaca nao pode dei- xar de fazer pensar na hipertrofia do vocabulério técnico na sociedade (14) Ia., p. 40. (18) Hd., p. 19. (16) Ibid. 66 CLAUDE LEFORT industrial. Ora, este vocabulério, que permite determinar as particu- laridades da vaca por milhares e milhares de palavras!'’, nao é, como nos precisam, ligado a operacdes especiais, mas é uti vocabulério corrente: manifesta, pois, de um modo objetivo a subordinagio da expressdo e da comunicag&o humana a um tema dominante. A partir destas dltimas observacdes, nfo seria exagerado con- cluir que existe para o Nuer um universo vacal tal como existe para outros um universo maquinal, no sentido preciso de que o homem tenderia a se abolir no primeiro caso diante da vaca, assim como alhures tende a se abolir diante da m4quina. Certas expressdes de Evans-Pritchard autorizariam até mesmo expressamente esta con- clusao. Apés ter assinalado que o Nuer vive como um parasita da vaca, como o bedufno do camelo, retifica: ‘“Poderiamos igualmente dizer que a vaca é um parasita do Nuer’’". B certo nfo ser incom- pativel que a vaca esteja a servigo do homem ¢ o homem a servico da vaca, Nao serf reciproco o beneficio da relagio? Mas a segunda proposig&o vai além desta idéia e desfaz a primeira. Esta s6 tem um alcance limitado: o homem tira da vaca os produtos que lhe permitem subsistir. A outra tem um sentido absoluto: o mundo dos homens se subordina ao mundo das vacas. N&o poderiamos, com efeito, falar dos homens e das vacas situando-os no mesmo plano, mesmo se permane- cermos no quadro estrito da etnologia (nfio h4 etnografia das vacas). A inversfo de perspectiva de Pritchard é puramente ficticia: quer considere o homem, quer a vaca, como parasita, 6 est4 falando, evidentemente, do homem. Em um caso o homem trata a vaca como meio humano, no outro como fim. Nao significa isso dizer que a trata sempre como fim? Nilo se concebe, com efeito, que © mesmo objeto possa ser meio e fim. Pode-se muito bem utiliz4-lo, satisfazer gragas a ele necessidades: na realidade, nfo poderia nunca perder seu cardter de fim, isto 6, deixar de ser um absoluto. E, de fato, se prestamos ateng&o, vemos que é isso exatamente que nos diz o etnélogo: as signi- ficagdes econémicas s&o envolvidas pelas significagdes culturais; po- demos sem dtivida isolé-las — é pelo seu valor nutritivo que definimos a boa vaca — mas com a condi¢io de limitar nossa perspectiva sobre a realidade social. Considerada na sua totalidade esta realidade € “vacal” ou, retomando-se a terminologia de Gurvitch, em cada pa- tamar da realidade encontramos a Vaca. Hé, pois, incontestavelmente (17) dd., p.4les. (18) Id., p. 36. AS FORMAS DA HISTORIA. 67 uma Vaca-utensilio separdvel de uma Vaca-simbolo, de uma Vaca- valor, etc., mas elas nfio se acrescentam umas as outras; slo apenas modos da Vaca social total que s6 através dela ganham um sentido: o leite, por exemplo, no € apenas um alimento que se busca em virtude desta fungao, mas é aquilo que regenera no sentido mais pro- fundo do termo, A criacao do gado nao é uma atividade entre outras, por mais privilegiada que seja: é a esséncia mesma da vida social. Se nos referirmgs a realidade social total e se dermos todo o alcance A afirmagio de Evans-Pritchard segundo a qual a vaca é um fim cul- tural em si poderemos nos perguntar, precisamente, se no hé uma “irrealizacio” nuer ou uma alienacio do homem que faria das vacas a realidade por exceléncia, despojando-o da consciéncia de sua prépria existéncia, Esta questiio se coloca com tanto maior acuidade quanto se sabe que a vaca é objeto de constantes discérdias ¢ de guerras mort{feras seja entre os proprios Nuers, seja entre eles e seus vizinhos. O obser- vador assinala que as préprias familias podem se dilacerar se uma quest&io de gado entra em jogo e que as relacdes ordindrias de con- fianca podem se quebrar. Além disso, as investidas contra os rebanhos de tribos vizinhas so altamente apreciadas ¢ 0 valor combativo dos homens é associado a sua capacidade de defender os animais ou de consegui-los através de meios violentos. O amor que o homem consa- gra as vacas esti, pois, em razo direta de sua hostilidade para com os outros homens. A obsessio do gado parece n&o apenas desviar os homens daquilo que seria uma justa apreciaco de suas Telacdes e engendrar, assim, um mistério da sua sociabilidade, mas também suscitar uma divisio perigosa. O mais notivel é que ha, no seio da Sociedade, um certo sentimento desta dominaco fatal do gado sobre 0 homem. Nao nos arriscaremos a interpretar certos ritos que po- deriam testemunhar uma hostilidade contra a vaca, tal como o do consumo da carne de uma vaca fértil por ocasido de uma morte; somente uma andlise da personalidade nuer, tal como a realizaria, por exemplo, Kardiner, seria suscetivel de nos informar se nos acha- mos ou nfo diante de um fenémeno de compensagio. O que, em troca, é muito claro, é o'sentido de um mito relatado pelo etnétogo, que apresenta a vaca como o inimigo do homem, semeando delibe- radamente a discérdia e decidida a realizar sua vinganca mediante o aniquilamento total dos Nuer!9. Através deste mito, do qual seria (19) Id., p. 49. 68 CLAUDE LEFORT muito facil encontrar equivalentes na sociedade capitalista, transpa- rece uma critica interna do sistema. Indica que os homens niio se identificam com o gado, ja que se interrogam se n&o seria este a causa da sua infelicidade. Seria ent&o permitido nao somente falar de alie- nag&o como evocar uma consciéncia, por mais confusa que fosse, desta alienagtio? A este respeito, o alcance do mito poderia jé ser contestado. Se ele traduz uma hostilidade em relagio ao gado e uma capacidade do homem em assumir uma certa distiincia para com ele, esta distancia 6 ainda inteiramente relativa. A hist6ria especifica que a vaca se vinga do homem porque ele matou sua mae € que, quando a humanidade perecer, o gado desaparecera junto com ela, pois eles no podem passar um sem 0 outro; pressupde, pois, de alguma forma a rela¢io homem-vaca, ou seja, a relacZo mesma que faz a esséncia da vida social atual. Em suma — e seria absurdo fundar uma interpre- tac&o de cardter geral sobre um caso tao particular € mal conhecido por nés — a verdadeira questo é de saber se todas as discordAncias assinaladas pelo observador e os conflitos conscientes desenvolvidos entre os Nuer bastam para fundar uma dissociagio entre a relacdo social e sua projegdo no gado, entre um universo humano nuer e sua forma fenomenal vacal. Se multiplicdssemos os exemplos, provando a obsess&o pelo gado e a dependéncia efetiva por parte dos homens, poderiamos induzir uma irrealizagdo nuer? Nada autoriza semelhante conclus&o. O interesse excepcional da an4lise de Pritchard é que in- siste simultaneamente nas discordfncias, descreve 0 pluralismo ine- rente a vida social, se abstém de estabelecer uma identificacio entre os homens e seu gado e revela uma interconexdo tal entre as ativi- dades dos homens, suas crencas, suas relagdes préprias e suas rela- gdes com os animais que no hé critério nenhum de uma alienagao. A sociedade nuer é 0 que é: sua aparéncia é sua realidade. Nada permite fazer surgir a existéncia social atual como uma figura singular desta- cando-se sobre o fundo de uma socialidade humana possivel. Em outras palavras, todas as atividades so socializantes, todas inseridas em uma s6 trama, produzem ou reproduzem em certo grau o tema total: é o que faz com que o social seja o real, A sociedade pode ser t&o pouco harmoniosa quanto possivel: nao é esta a questo. A con- substancialidade das atividades que evocamos pode ser observada tanto nos conflitos como na harmonia. Quando, por exemple, ° autor escreve que ha entre os homens e o gado uma “relaco simbi6tica”, nao pretende provar que os homens n4o possam ver na rene econdmice ou mesmo, por vezes, odia-la. Mas todas as suas atitudes pressupdem a relacéo a vaca. Da mesma forma, quando AS FORMAS DA HISTORIA 6 utiliza a expresso, que relatamos, de idioma bovine, n&o faz um juizo prévio sobre 0 modo de utilizac&o deste idioma: podemos tocar sobre 0 teclado todas as melodias; 0 jogo, seja qual for, desenvolve-se no mesmo quadro. E somente quando nos colocamos fora da socie- dade nuer, como o observador estrangeiro, Evans-Pritchard, que po- demos considerar o interesse deles pelo gado como uma obsess4o e distinguir o imaginario do real. Mesmo este juizo é impossivel de fundar ¢ todo etnégrafo abster-se-ia de desenvolvé-lo. Pois, se qui- sermos compreender a sociedade nuer em termos absolutos, é preciso penetrar nela e conceder, ent&o, que os elementos aparentemente de ordem imagindria sdo os mais reais, no sentido de que sio eles que fornecem aos homens um quadro de referéncia permanente. A Posi¢zo de estrangeiro dé acesso & descricio, ja que a seus olhos nada é evi- dente, mas impede a objetivacdo pois as signtificagdes s6 se conquis- tam circunscrevendo-se um universo humano estritamente singular, no seio do qual se fundam como realidade. O que é 0 mesmo que dizer que nem do interior, nem do exterior 6 a alienagdo nuer denun- cidvel. Hegel diz que é preciso saber “morar” perto do negativo e que “esta moradia é o poder mAgico que converte 0 negativo em ser” — com acondi¢ao, sem diivida, de nao morar durante muito tempoe de escolher seus pontos de parada. Fora do circuito turistico da filosofia da hist6ria, uma outra magia escamoteia a distincdo entreo negativoe o ser. Poderao juigar estranho o desvio que efetuamos antes de nos interrogar sobre o sentido que reveste 0 conceito de alienag&o aplicado 4 sociedade capitalista. Nao se tratava para nés de comparar duas formas de sociedade, mas de investigar em que condicées seria legi- tima a idéia de alienacao, isto 6, de separar o que, no uso corrente que os marxistas fazem deste termo, pode ser eliminado, como sendo puramente metafisico e o que dé acesso a uma descricao sociolégica. O caso nuer, por ser um caso limite, apresenta-nos aumentadas as dificuldades que encontramos necessariamente quando pretendemos falar em termos absolutos de uma forma de alienacdo humana, assi- nalar na sociedade, considerada como um todo, um momento da ati- vidade humana alienada. E no quadro estrito da descric¢ao sociolégica que devemos fazer aparecer uma estrutura de alienagio; ou ainda, si- tuando-nos no interior da sociedade é que deveremos descobrir 0 fené- meno da alienacao, A este respeito, certas afirmacdes de Marx tidas freqitentemente como as mais caracteristicas de sua teoria da alienacdo seriam as mais contestaveis caso pretendéssemos sobre elas fundar uma sociologia do capitalismo. 70 CLAUDE LEFORT Pode-se tomar como exemplo a andlise do fetichismo, a qual, longe de nos fornecer o modelo da critica de todas as formas da vida social”, seria ininteligivel se nela nos detivéssemos. Toda a demons- tragao visa dissociar uma realidade de uma irrealidade: a realidade da socializagao do trabalho, a irrealidade da forma mercadoria. Os tra- balhos e os produtos, escreve Marx, tém necessidade de revestir uma forma diferente de sua realidade?!. Se prestamos ateng4o, perce- bemos, entretanto, que Marx prova apenas duas coisas: de um lado, que os produtores privados tém uma grande dificuldade em compre- ender o mecanismo do valor e, por conseguinte, as vicissitudes do mercado; de outro, que os homens se sentem dominados por sua relac&o social, que a seus olhos assume a forma fantasmagorica de uma relagao entre objetos. Estas duas afirmagdes esto menos ligadas do que em geral se pensa e ndo tém o alcance que se lhes atribui. Que haja um mistério social ndo significa de modo algum que exista uma esfera de irrealidade separfvel do real. Este mistério, aliis, nao afeta a estrutura da realidade, j4 que esta permanece inalterada quando ele é dissipado pela ciéncia”. Quanto A segunda afirmacio, é em parte insustentdvel se permanecemos ao nivel da explicag&o sociol6gica: a re- lag&o social nao reveste qualquer forma fantasmagorica, nao ha feti- chismo. A existéncia de um sistema de dependéncia “material” é tao real quanto a “‘relagio social que liga os produtores ac trabalho total”. Isso € tio claro, que Marx o diz textualmente logo apés ter definido 0 fetichismo: “Aos olhos destes filtimos (os produtores) as relagdes sociais entre seus trabalhos privados parecem pois o que sdo na realidade, isto é, n&o relagdes sociais imediatas entre pessoas no seu proprio trabalho, mas antes relacdes concretas entre pessoas € relagdes sociais entre coisas”. Mas esta constatacio permanece iso- lada em um conjunto em que o tema da mercadoria-mistério, do dinheiro-véu e do real “‘escondido” predomina. E que neste caso Marx (20) Lefébvre, notadamente, identifica os conceitos de fetichismo ¢ de alienaciio. Segundo ele o fendmeno essencial € 0 fetichismo da troca; o fetichismo do capital é sua conseqGéncia e de la derivam todas as alienagtes, na idéia, na lei, nos ritos sociais, otc. (21) Le Capital, 1. 1, p. 63, Costes, édit. (22) id., p. 59: “Quando a ciéncia descobre mais tarde que enquanto valores os produtos do trabalho sdo apenas a expresso material do trabalho humano necessitado para sua producio, isso marca uma época na hist6ria do desenvolvimento da humani- dade, mas no faz de maneira alguma desaparecer a aparéncia material das formas sociais do trabalho”. (23) Hd., p.$7. AS FORMAS DA HISTORIA aA cede a uma interpretagdo naturalista do trabalho, que vicia sua des- crig&o do trabalho social. Esta interpretago se trai pelo menos em duas ocasides; de um lado, quando funda a determinac&o do valor sobre o desgaste do cérebro humano™%, e de outro, quando confunde a forma particular do trabalho com sua forma natural?5; nesta pers- pectiva, o modo de trabatho capitalista sé pode efetivamente mascarar real ou aparecer como “sobrenatural", Nao tem nenhum sentido, contudo, definir um trabalho natural em si ou considerar que a parti- cularidade é mais natural que a generalidade. Toda a anélise de Marx tende, aliés, a mostrar que o sistema capitalista mercantil é natural, na medida em que é precisamente social ¢ que o trabalho abstrato e quantificdvel que lhe é associado se constitui como tal através da troca universal de mercadorias; é a troca, diz ele, ‘que desenvolve a permu- tag&io do trabalho humano"’?7; é ela que faz depender da producao até mesmo a relag&o quantitativa de valor entre os produtos 8. E certo que a troca, tanto quanto a producdo, nao pode ser considerada como um fator determinante; é contemporaneamente que se instituem a troca universal e a produc&o universal, como diz a Ideologia Alena. O importante é apenas assinalar que a igualdade entre os trabalhos humanos nao existe anteriormente ao sistema de mercado, de modo que este nao a mascara; estabelece-a ou realiza-a de uma certa ma- neira. ‘Vimos como a critica proposta por Marx, neste capitulo, nao se detém af; 0 que lhe parece decisivo & que o “préprio movimento social (dos homens) reveste a forma de um movimento das coisas que nao controlam, mas a cujo controle estio submetidos” 2°, Mas esta coisificag4o da relacdo social, pelo fato de ser apresentada como idén- tica ao processo de socializacio dos homens no quadro considerado, néo passa de uma pseudo-coisificagao: ndo sdo as mercadorias que se (24) Id., p. $5: "... por mais variados que possam ser os trabalhos dteis ou as atividades produtoras, a verdade fisiolégica afirma que so funcdes do organismo hu- mano e que cada uma destas fungbes, sejam quais forem o fundo e a forma, constitui em liltima anélise um gasto de cérebro, nervos, misculos, sentidos do homem”. (25) id., p. 64. No sistema feudal “o trabalho tem como forma social imediata sua particularidade, sua forma natural e no, como no sistema de mercadorias, sua generalidade”. (26) id. p. 3S. Marx se compraz em designar “o elemento puramente social” que representa o valor como “propriedade sobrenatural”. (27) Id., p. 112. (28) fd., p.79. (29) Id., p. 0.

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