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amd ete 3a «| ¥ Cr Phillip E. Johnson : As perguntas certas © 2004, Editora Cultura Crista. Originalmente publicado em inglés com o titulo The right questions ~ Truth, meaning & public debate © 2001 by Phillip E. Johnson, Todos os direitos sio reservados. F* edigdo em portugués — 2004 3.000 exemplares Tradugéio Marisa Kiihne A. de Siqueira Lopes Revisdo Claudete Agua de Melo Madalena Torres Coordenagao de produgéio Madalena Torres Editoragéioe capa Lela Design Johnson, Philip E J686p AS respostas certas/ Phillip F Johnson, [tradugo Marisa Kiihne A § Lopes} Séo Paulo’ Culura Crist 2004. 176p, , 1442 100,92 em, ‘Tradugao de The right questions ISBN: 85-7622-076-8 |. Naturalismo, 2 Refigido 3. Cristianismo, Lohnson, PE. Il Titulo. CD 2Ied. - 239 Publicacao autorizada pelo Conselho Editorial: Claudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, André Luis Ramos, Francisco Baptista de Mello, Mauro Fernando Meister, Otavio Henrique de Souza, Ricardo Agreste, Sebastiao Bueno Olinto, Valdeci da Silva Santos. €DITORA CULTURA CRISTA Rua Miguel Teles Junior, 394 — Cambuci 01540-040 ~ Sao Paulo - SP - Brasil C.Postal 15.136 ~ So Paulo ~ SP ~ 01599-970 Fone (0°*11) 3207-7099 — Fax (0°°11) 3209-1255 www.cep.org.br — cep@cep.org.br Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Claudio Anténio Batista Marra i t Prefacio de Nancy Pearcey... Introdugao: O Trem da Légica. 1. oe . O Verbo de Deus na Educagao. . A Primeira Catdastrofe. . Meu Novo Posto. . A Segunda Catastrofe. . Génesis e Identidade Sexual... . Verdade e Liberdade, . A Pergunta Fundamental SUMARIO Biologia e Liberdade Progressist: OPROJETO GENOMA HUMANO E OSIGNIFICADO DA VIDA. As Perguntas Certas Sobre Ciéncia, Deus e Moralidade 43 As Perguntas Certas Sobre os Fundamentos Religiosos da Educacao DESARMADO EM MEIO AOS DRAGOES DA MENTE As Perguntas Certas Sobre a Logica AESTRADA ADIANTE As Perguntas Certas Sobre o Sentido da Vida OCOLAPSO DAS TORRES DA FE As Perguntas Certas Sobre Religiao e Tolerancia Numa Sociedade Pluralista As Perguntas Certas sobre Génesis LIBERDADE PARA DIVERGIR E LIBERDADE PARA AGIR CORRETAMENTE A Pergunta Certa Sobre Verdade e Liberdade QUAL EO ACONTECIMENTO MAIS IMPORTANTE DA HISTORIA DA HUMANIDADE? t t | I PREFACIO Quando, pela primeira vez, entrei em contato com Phillip Johnson, ele nao estava certo de que queria conversar comigo. Eu tinha acabado de ler o manuscrito do seu primeiro livro, Darwin on Trial ¢ estava ligando para solicitar uma entrevista. A dificuldade é que eu escrevia para 0 Bible-Science Newsletter, uma publicagao assumidamente criacionista (hoje ex- tinta). Como um adulto convertido ao Cristianismo, Johnson esta- va pronto a questionar o materialismo darwiniano, mas nfo estava certo de que estivesse disposto a se associar a criacionistas de- clarados. Ele até mesmo se aconselhou com um amigo sobre con- ceder ou nao a entrevista. Felizmente, esse amigo também era um conhecido meu, Charles Thaxton (Eu tinha encontrado Charlie em 1971, em L’Abri, na Suiga, onde ouvi sua palestra sobre as falhas existentes na teoria da evolugdo,). Thaxton 0 encorajou a ir adiante com a entrevista e, assim, teve inicio uma amizade pessoal e uma parceria profissio- nal que continuam desde entao. Ao apresentar este livro, eu gostaria de fazer um breve retros- pecto dos Ultimos anos e descrever as maneiras inovadoras pelas quais Johnson transformou os termos do debate sobre a teoria da evolugao, Por ter estado envolvida no debate por mais de duas dé- 6 - As Perguntas Certas cadas (desde 1977), escrevendo sobre temas cientificos e ideolégi- cos, posso descrever a sua natureza, tanto antes quanto depois de Johnson ter-se envolvido nele, Para aqueles que acompanham a con- trovérsia evolucionista ha muitos anos, isso explicara.o que é novo e relevante no Movimento do Projeto Inteligente. Para os novatos, ser- viré como uma introdugdo bastante util 4 situagao atual do debate. Além disso, pelo fato de este livro ser a mais pessoal das obras publicadas de Johnson, parece apropriado nos concentrar- mos no préprio autor ¢ na sua influéncia. Sua maneira inovadora de agir pode ser instrutiva para cristdos que também atuem em ou- tras areas, servindo como um modelo positivo para o engajamento cultural em qualquer campo ou disciplina. Fazendo as perguntas certas A contribuicdo singular e mais importante de Johnson foi um brilhante senso de estratégia. Cristaos treinados na area cien- tifica desenvolveram (e continuam a desenvolver) um excelente trabalho, no sentido de trazerem a tona e se aprofundarem nas criticas habituais da teoria evolucionista. No entanto, os cientistas sao tipicamente menos propensos a pensarem de maneira estraté- gica ea mobilizarem uma campanha. O resultado foi que cristaos de todos os tipos discutiam en- tre si, em vez de se unirem para enfrentar a hegerionia da teoria materialista da evolug&o. Tenho vividas lembrangas de acirrados debates entre diversos grupos: criacionistas da terra-jovem, criacionistas da terra-antiga, gedlogos do diltivio, criacionistas pro- gressistas, tedricos do intervalo e evolucionistas teistas.* Eles dis- * Criacionistas da terra-jovem: os que defendem que a terra foi criada ha alguns milhares de anos. Criacionistas da terra-antiga: 0s que atgumentam que a terra foi criada ha bilhdes de anos. Gedlogos do dilitvio: aqueles que pesquisam evidéncias de um dilivio universal. Criacionistas progressistas: os que defendem que a criagao se deu por ctapas. 7edricos do intervalo: aqueles que sustentam que houve um intervalo entre Genesis 1.1 e 1.2. Evolucionistas teistas: os que sustentam que ocorreu uma evolugio sob 0 controle de Deus (N. do E.). Prefacio -7 cutiam sobre a interpretagao dos termos em Génesis e sobre a duragao dos “dias” da criagdo. Eles discutiam acerca da hipdtese do dilavio, em Génesis, explicar as descobertas de fosseis e sobre quantos “processos” Deus teria empregado ao criar o mundo, E, 4 medida que os contendores cristaos se dividiam em grupos antagénicos, os secularistas ficavam satisfeitos em atigar as chamas. Como afirma Johnson, “Todos eles diziam apenas: Dei- xem que nés seguremos seus casacos enquanto vocés lutam”. Os secularistas nao precisavam batalhar pela marginalizagao do Cris- tianismo mediante uma estratégia do tipo “dividir e conquistar”, pois os cristéios estavam fazendo esse trabalho para eles. Quando Johnson entrou em cena, ele imediatamente langou uma nova estratégia. Podemos chama-la de “unir e vencer”. Ele agregou os cristaos em torno do ponto crucial de confronto com o mundo secular —a questéio que permanece no cerne do conflito entre o Cristianismo e a academia secular. E qual seria essa questo? E a questo do naturalismo filoséfico: A natureza é tudo 0 que existe? As forgas da nature- za podem, de forma exclusiva, explicar o universo ¢ tudo o que nele ha? A vida surgiu por meio de processos darwinianos obs- curos, materialistas ou a evidéncia aponta para outras forgas? Ao confrontar a cultura secular, essas sao as perguntas certas para servir como ponto de partida; todas as demais sdo secun- darias. Os cristéos podem discutir sobre os detalhes de como Deus criou 0 mundo ou sobre quanto tempo ele levou para cria- Jo, mas todos eles concordam com o fato de que o universo é a obra de um Deus pessoal. Por outro lado, de forma semelhante, os evolucionistas podem discutir sobre o mecanismo e 0 mo- mento precisos da evolug&o — por exemplo, se a hipotese da selecdo natural precisa ou néo ser complementada por outros mecanismos — mas todos eles s4o unanimes quanto ao fato de que 0 processo, em toda a sua extensao, é ininteligivel, ndo- direcionado e sem propésito. Fazer as perguntas adequadas sig- nifica agrupar as quest6es periféricas, com a finalidade de se concentrar no ponto crucial a respeito de o universo ser um sis- 8 - As Perguntas Certas tema aberto ou fechado — e, portanto, se a ciéncia deveria limi- tar-se as teorias naturalistas ou considerar qualquer teoria que explique de forma adequada a evidéncia, até mesmo uma que invoque a ago de um ser inteligente. De muitas maneiras, Johnson estava empregando, em re- lag&o a ciéncia, o mesmo principio que Francis Schaeffer havia articulado na sua apologética cultural. Um fator que tornou Schaeffer to eficaz foi o fato de que ele elucidou a busca da verdade, apresentando, num esquema simples e direto, as op- gdes que eram basicas. Quando se discute princ{pios basicos, nao ha na verdade muitas opgdes vidveis — de fato, existem so- mente duas. Ou o universo é um sistema fechado de causa e efeito ou ele é um sistema aberto. Ou ele é produto de forgas naturais, impessoais e ndo-direcionadas ou é produto das maos de um agente pessoal. Schaeffer costumava dizer que toda cosmovisio tem de partir de algum ponto, e podemos partir do tempo, somado ao acaso e ao impessoal, ou podemos partir de um ser pessoal que pensa, delibera e age. Como estudante em L’Abri, assisti a uma de suas palestras mais conhecidas, “Res- postas possiveis para as questdes filoséficas basicas”, em que ele argumenta que se um ponto de partida impessoal é inadequa- do para explicar a realidade, conseqiientemente nés descarta- mos uma ampla variedade de sistemas filoséficos, sem termos de discutir a miriade de detalhes que os distinguem. De modo semelhante, Johnson neutralizou os argumentos conflitantes de uma ampla gama de correntes sobre a origem do universo ao demonstrar o papel crucial desempenhado pelas pos- turas filoséficas iniciais: ou a natureza é tudo o que existe e a ciéncia é permitido considerar apenas teorias naturalistas —e en- tao, nesse caso, a ciéncia é pouco mais do que o naturalismo apli- cado — ou ha algo que transcende a natureza e devemos definir a ciéncia em termos que permitam que ela siga a evidéncia para onde quer que esta conduza. Prefacio - 9 Unindo os cristéos em torno das “Grandes Idéias” Uma das belezas da abordagem de Johnson esta no fato de que ela detém o potencial de unir cristaos de varias tendéncias. Pode ser que eles tenham divergéncias sobre detalhes, como a idade do universo, mas todos 0s cristos ortodoxos podem concor- dar quanto a rejeigéo de um mecanismo obscuro, sem propésito e materialista para explicar a origem e a evolugao da vida. A abor- dagem de Johnson é algumas vezes descrita como um meio-ter- mo ou uma solugao conciliatéria, mas isso é um equivoco. Na verdade, 0 que ele propés niio é, de forma alguma, mais uma po- sig&o concorrente; ele propés uma anilise légica das idéias funda- mentais que unem fodos os cristaos, a despeito das minucias de suas posi¢des. Tendo se agrupado em torno desses principios definidores, oscristéos podem perfeitamente encontrar um novo espirito de unidade e benevoléncia para novamente retomar as antigas diver- géncias. Agora eles podem tratar as questdes que antes os dividi- am como temas de amigdveis debates internos. Eles podem se engajar em discussdes amistosas sobre a interpretagdo do Génesis, a idade do universo, o alcance ¢ os limites da micro-evolugao e da descendéncia comum e assim por diante. E desse tipo de debate vibrante que a ciéncia trata. De fato, nao constitui um exagero afirmar que o Movimento do Projeto Inteligente atingiu essa unidade em grande escala. Ele se transformou numa “grande tenda”, sob a qual se retinem crist&os origindrios de um vasto espectro de disciplinas e posigdes, desde criacionistas da terra-jovem a evolucionistas teistas (pelo menos aqueles, dentre estes iltimos, que reconhecem um papel para o propésito divino). Ao longo da caminhada, o movimento tem rece- bido a adesio de aliadose de combatentes (com quem temos em comum a [uta pela mesma causa) dentre judeus, mugulmanos e até mesmo secularistas, que desejam desafiar a hegemonia da teoria da evolucdo naturalista. 10 - As Perguntas Certas Dividindo a oposicao O outro lado da estratégia de Johnson é dividir a oposigao— e uma vez mais 0 ponto de partida é a questo acerca do papel desempenhado pelo naturalismo filoséfico. Considere a propria definig&o de ciéncia. A maior parte das pessoas mantém uma imagem idealizada da ciéncia como sendo uma investigagao empirica imparcial e nao-tendenciosa. Na prati- ca, porém, argumenta Johnson, a ciéncia tem sido atrafda para o campo dos naturalistas filosdficos e representa, com freqiiéncia, pouco mais do que um naturalismo aplicado. A conseqiiéncia é que as nicas teorias consideradas aceitaveis sao as naturalistas. Sem essa definigao tendenciosa, argumenta Johnson, a te- oria naturalista da evolug&o nao manteria a posig&o privilegiada de que goza atualmente. Se os evolucionistas sao pressionados a apresentarem genuina evidéncia empirica e observavel em fa- vor de sua teoria, eles inevitavel mente recorrem ao mesmo batt etiram dele os mesmos exemplos de mutag&o em pequena es- cala, coisas como diferentes ragas de c&es ou a variag&o no tamanho dos bicos de pequenos pdssaros ou as mutagdes induzidas por radiag&o nas moscas-das-frutas ou o desenvolvi- mento de resisténcia a inseticidas. A que equivalem, precisamente, essas mutagdes? Elas sio adaptagdes em pequena escala que possibilitam aos organismos so- breviverem sob condigSes adversas — em outras palavras, peque- nos ajustes que tornam possivel que eles continuem sendo cées ou pequenos passaros ou moscas-das-frutas ou 0 que quer que eles id sejam. Sob nenhuma hipotese essas variagGes insignificantes demonstram que o organismo esteja se transformando em algo novo ou que ele originalmente se desenvolveu a partir de algo diferente. Como afirmou Johnson, a tinica razao pela qual as pessoas conside- ram convincente esse tipo limitado de mutagao esta no fato de elas jAterem sido persuadidas por outros fundamentos — fundamentos filos6ficos —-de que o naturalismo € verdade ou, pelo menos, a Unica perspectiva admissivel do ponto de vista da ciéncia. E uma vez | | Prefacio - 11 tendo assumido esse tipo de pastura, as pessoas podem ser influen- ciadas por evidéncia relativamente insignificante. O bidlogo Richard Lewontin, da Universidade de Harvard, entregou 0 jogo num artigo altamente revelador, que Johnson cita com freqtiéncia, publicado no New York Review of Books, alguns anos atras. Lewontin escreve que a propria ciéncia foi convertida numa maquina para produgao em série de teorias estritamente ma- terialistas (Nas palavras dele, a ciéncia foi transformada “num apa- rato de investigagao e um conjunto de conceitos que produzem ex- plicagdes materiais”.). A razaio pela qual a ciéncia foi assim redefinida, escreve Lewontin, é “que assumimos uma postura pré- via a favor do materialismo”. Essa assombrosa admissao confirma aquilo em que Johnson vem insistindo ha tempos: €a filosofia que dirige 0 espetaculo, nio os fatos, Contudo, essa nao é, com certeza, a imagem de ciéncia acalen- tada pela maioria das pessoas comuns, razo pela qual a estraté- gia de Johnson é t&éo devastadora. Seu objetivo ¢ dividir os evolucionistas de acordo com essas definigdes opostas de ciéncia, para forcar a revelagao dos idedlogos doutrinarios — aqueles que definem a ciéncia como uma maquina para produgio em série de teorias que se adaptem a sua “postura prévia” em favor do mate- rialismo —e separé-los dos cientistas genuinos, que estéio dispostos a seguir os fatos para onde quer que estes os conduzam, a despei- to das implicagées filoséficas. Essa fissura na comunidade cientifica é 0 alvo do que Johnson denomina de “estratégia de cunha”. Ao provocar essa abertura numa instituigao ideologicamente fechada, ele espera criar uma nova atmosfera de liberdade, livrando a ciéncia das cadeias do materialismo filoséfico. Trazendo a “religiado” de volta 4 discussao A maneira inovadora pela qual Johnson delimita o debate tem sido surpreendentemente efetiva em ganhar uma audiéncia 12 - As Perguntas Certas atenta, em meio ao mundo secular — com certeza muito mais do que quaisquer tentativas anteriores de desafiar a teoria naturalista da evolugao. Uma das raz6es para seu sucesso esta no fato de que sua critica surge do interior da prépria ciéncia, em vez de vir de uma fonte externa. No século 19, o Romantismo surgiu como uma reag%o con- traa ciéncia materialista e mecanica do Mluminismo. Desde entéio, criticas e protestos tém brotado de uma ampla variedade de pers- pectivas por parte de artistas, fildsofos, tedlogos ¢ outros. Contudo, a maioria dos cientistas facilmente as desconsiderou, porque os argumentos vinham de fontes externas a ciénciae, para a menta- lidade modernista, 0 que quer que esteja fora do campo da ciéncia nao se qualifica como conhecimento genuino. Assim, nem 0 criacionismo tradicional ou 0 evolucionismo teista tiveram qualquer avango significativo em relagéo 4 comuni- dade cientifica. O criacionismo partiu da pergunta: Como os ensinamentos da Biblia se relacionam coma ciéncia? Essa é uma pergunta perfeitamente valida, da mesma forma que os cristaos deveriam se perguntar como a Biblia se relaciona com a economia, a politica ou as artes, Porém, esse nao é o modo de se elaborar uma mensagem que sera ouvida pelos secularistas. Os criticos poderiam facilmente caracterizar 0 criacionismo como uma declaragao nua e crua de que “Deus criou~e ponto final”. O apelo a Biblia foi posto de lado como algo que representa um “obstaculo a ciéncia” —algo que pde um fim a investigagao e enfraquece a ciéncia. Cientistas importantes poderiam ignorar até mesmo criticas persuasivas e elo- qiientes sobre a teoria evolucionista se a tinica alternativa Ihes pa- recesse ser um salto da ciéncia para a teologia. Os evolucionistas teistas adotaram um percurso diverso — mas colheram resultados semelhantes. Eles se contentavam em permitir que os secularistas definissem 0 conhecimento cientifico, contanto que fosse permitido a teologia fornecer sua propria ver- sao sobre 0 que quer que a ciéncia estabelecesse como verdade. Eles abriram mao da alegagao de que a existéncia de Deus faga qualquer diferenga cientifica e aceitaram as teorias cientificas Prefacio - 13 propostas pelos materialistas ¢ ateus, pedindo apenas para sugerir aexisténcia de um sentido teoldgico por tras de tudo isso—o qual, admitia-se, nao era verificavel por meios cientificos, mas conheci- do pela fé. Nesse caso, porém, a que equivaleria esse sentido teoldgico? A teologia nao mais é reconhecida como uma fonte auténoma de conhecimento; ela é meramente uma versio espiritual de um relato materialista diferente, fornecido pela ciéncia. Uma vez que essa abordagem néio ameaga a hegemonia da ciéncia materialista, a co- munidade cientifica geralmente se predispde a tolerd-la como uma fantasia inofensiva, para os que necessitam desse tipo de muletas. Assim, de diferentes modos, tanto 0 criacionismo tradicio- nal quanto o evolucionismo teista foram desacreditados como “re- ligiosos”, expresso que representa, nos circulas seculares, um ter- mo pejorative com significado de mito e fantasia. O que tornaa Teoria do Projeto algo novo ¢ 0 fato de que ela nao parte da per- gunta sobre o que a Biblia ensina; ela parte da pergunta sobre o que se pode conhecer através dos meios cientificos: os sinais do projeto podem ser verificados empiricamente? E assim ela liga novainente a teologia cristé ao mundo empirico, devolvendo-the o status de uma proposta ao conhecimento cognitivo. A teologia nao mais representa uma questao de “crenga” meramente subjetiva, mas uma proposta de conhecimento genuina. Desenvolvendo uma defesa do projeto Enquanto os cristéos permanecem presos num emaranhado de discuss6es sobre Génesis 1, Johnson redireciona 0 debate para caminhos mais produtivos, ultrapassando Génesis e focalizando em Joao 1.1. No principio era o Verbo” — 0 Logos —a palavra grega para razao, inteligéncia, racionalidade, conhecimento. O grande con- fronto na ciéncia atualmente ocorre entre os que alegam que a vida pode ser explicada sem que se recorra 4 razo ou a inteligénciae a- queles que afirmam que a vida manifesta o conhecimento—o Verbo —edeve ser explicada como 0 produto de um agente inteligente. 14 - As Perguntas Certas A evidéncia mais dramatica a favor do projeto inteligente vem da descoberta do DNA. A biologia molecular desvendou que ha, no cerne da vida, um cédigo, uma linguagem, uma mensagem. Como conseqiiéncia, a origem da vida foi remodelada como sendo a origem de novos e complexos modos de informagao. Como expli- camos a seqiiéncia de simbolos numa mensagem — qualquer que seja ela? A seqiiéncia de letras num livro nao é ocasional, nem segue uma regra ou lei (1.6, ela n&o se constitui num padrao regular, repetitivo, como uma macro no seu computador). Ao contrario, a seqiiéncia possui um terceiro tipo de estrutura, a que os cientistas chamam de “complexidade especffica’ —que significa uma seqiiéncia complexa, que se encaixa num padrao anteriormente selecionado. A complexidade especifica pode ser identificada por meio de rigorosas formulas matematicas (como demonstrou William Dembski em The Design Inference), 0 que significa que agora os cientistas possuem recursos para ir além das criticas meramente negativas do evolucionismo naturalista, por meio da identificagaio dos sinais positivos do projeto. Em todos os casos em que conhe- cemos a fonte da informag&o, como ocorre com livros, programas de computadores ou partituras musicais, a fonte é um agente inte- ligente. E, ent&o, lagica a conclusio de que a fonte de informagaio nos seres vivos € igualmente inteligente. Evidentemente, a andlise da informag&o nao foi introduzida por Johnson, Importantes precursores incluem A. E. Wilder-Smith em The Natural Sciences Know Nothing of Evolution e Charles Thaxton e seus co-autores em The Mystery of Life's Origin (sem mencionar 0 tiltimo capitulo do meu livro em parceria com Thaxton, The Soul of Science). No entanto, Johnson ajudou a deslocar o tema da informagao para o centro do debate, transformando-o na pedra de toque para a construgAo de uma defesa do projeto. Fazendo as perguntas corretas na Teologia Havendo estabelecido Joao 1.1 como o ponto central de contato entre a ciéncia e as Escrituras, na presente obra Johnson Prefacio - 15 se concentra no arduo tema da interpretagao de Génesis. Nova- mente sua estratégia consiste em ultrapassar as alegagSes que di- vergem sobre detalhes e concentrar-se em fazer as perguntas certas. Em se tratando de Génesis, 0 ponto de partida é a questo da historicidade: Os capitulos iniciais de Génesis nos narram even- tos que aconteceram de fato? Génesis foi uma das primeiras segdes da Biblia a cair soba lamina da alta critica do século 19. Os criticos insistiam em que os capitulos iniciais de Génesis nao constituiam Histéria, mas mito — invengdes religiosas. Portanto, antes de examinarmos os detalhes do que Génesis ensina, devemos primeiro estabelecer se 0 texto possui ou nao qualquer contetido cognitivo. “No principio criou Deus os céus ¢ a terra.” Essa afirma- ¢ao é verdadeira ou falsa? Para muitas pessoas, até mesmo fazer esse tipo de pergunta equivale a um erro categérico. Génesis é um documento religioso — pode ser que eles repliquem —o que equivale a dizer que as religides ndo sio verdadeiras ou falsas, elas tratam dos “valores” das pessoas. Até mesmo fiéis sinceros podem se sentir desconfortaveis em empregar categorias diretas como falso ou verdadeiro aos enunciados biblicos. Elas podem prontamente concordar em que a religido tem uma importancia pessoal (“Ela da sentido 4 minha vida”; “Ela é verdade para mim”), mas € ela objetivamente verdadeira? O problema consiste em que muitos cristéos absorveram, na pratica, uma perspectiva naturalista, mesmo que isso nao te- nha acontecido em relacAo a sua fé, Dentre os evolucionistas teistas, isso geralmente ocorre de uma forma explicita. Muitos rejeitam o naturalismo metafisico como sendo uma filosofia ge- nérica, mas adotam o naturalismo metodolégico como algo ade- quado a ciéncia, Eles argumentam que os crist&os devem jogar segundo regras da ciéncia — e a regra é a de que somente as teorias naturalistas necessitam de aplicagao. Johnson reage de forma pungente — “Por que devemos permitir que os naturalistas fagam as regras? Por que devemos aceitar 0 pressuposto de que Deus nunca agiu de maneiras que fossem acessiveis a in- 16 - As Perguntas Certas vestigagao cientifica? Por que nao desafiarmos as regras ¢ in- sistirmos em que a ciéncia siga os dados, para onde quer que estes a conduzam?” Novamente podemos tragar paralelos entre o trabalho de Johnson e o de Francis Schaeffer, que utilizou a metafora das duas cadeiras. Se nos sentassemos na “cadeira” dos naturalistas, veriamos 0 mundo através de determinadas lentes; sentando-nos na “cadeira” dos sobrenaturalistas, nds, crist&os, vemos o mundo através de uma lente muito diferente. Estamos cientes da existén- cia de uma dimensio invisivel além da dimensio visivel. Na pratica, porém, os cristaos nem sempre sao coerentes. Eles podem estar intelectualmente convictos da perspectiva cris- ti, contudo exercem a propria profisséio com base numa perspec- tiva naturalista. E precisamente isso o que ocorre quando os cris- tos adotam o naturalismo metodoldgico na ciéncia. Isso nao é tudo. Quando se adota o naturalismo na ciéncia, as implicages disso espalham-se como um virus para outras areas. Por exemplo, o pressuposto de que os seres humanos sAo resulta- do de um processo natural de evolugdo conduz, de forma inexoravel, aconclusdo de que a religiao ¢ a ética desenvolveram-se da mes- ma forma — que elas sto meros produtos da mente humana, as quais surgiram quando o sistema nervoso havia se desenvolvido, atingindo um certo nivel de complexidade. No estilo direto de Johnson, a escolha é simples: Ou Deus nos criou ou nds criamos Deus — isto é, criamos 0 conceito de Deus a partir de alguma necessidade emocional ou experiéncia pessoal. Assim, o naturalismo conduz ao que normalmente édenomi- nado de dicotomia entre fatos e valores — uma mentalidade que concede autoridade a ciéncia para se pronunciar sobre o que ¢ real, verdadeiro, objetivo ¢ racional (“fatos”), enquanto relega a éticaea religido ao campo da opiniao subjetiva e da experiéncia nao-racio- nal (“valores”). Essa diferenciagdo acaba se tornando muito Util para os fildsofos naturalistas. Em vez de afirmarem que a religido é falsa, o que provocaria protesto puiblico, eles somente a relegam ao campo dos valores—o que mantém a questio sobre o verdadeiro e Prefacio - 17 falso completamente fora da discuss&o. Como Johnson escreveu no seu livro anterior, The Wedge of Truth, a religiao é restrita “A esfera privada, em que crengas ilusdrias sao aceitaveis desde que elas funcionem para vocé”. Dessa maneira, 0 filésofo naturalista pode mostrar-se tolerante e reverente em relagao a crenga religiosa, sem que lhe conceda o status de conhecimento real. Na medida em que o Movimento do Projeto Inteligente de- safia o naturalismo na ciéncia, ele desafiara o naturalismo na teo- logia, assim como em outras areas, tornando possivel devolver a religido e 4 moralidade o status de conhecimento genuino. Citan- do mais uma vez a obra The Wedge of Truth, nds devemos “afir- mar a existéncia desse territério cognitivo e estarmos preparados para defendé-lo”. Devemos levar a teologia de volta a esfera do conhecimento ptiblico, objetivo. Elaborando uma nova abordagem para o compromisso cultural Se os crist&os precisam abandonar a cadeira dos naturalis- tas em relagao as suas convicgdes profissionais, eles precisam abandond-la também no que se refere as suas praticas e estraté- gias cotidianas. Aqui novamente Johnson mostrou o caminho, por meio da elaboragiio de um novo estilo de lideranga. Por exemplo, Johnson cultiva ativamente amizades entre os evolucionistas ateus. Outros lideres crist&ios podem até falar sobre provocar um impacto na cultura em geral, mas, em muitos casos, a propria vida deles é circunscrita a subcultura evangélica. Eles orga- nizam um amplo grupo de assessores e voam pelo pais afora, apre- sentando-se em conferéncias e gastando a maior parte de seu tem- po com adeptos ou mantenedores. Diferentemente, Johnson nao tem assessores ¢ permanece na vanguarda dos contatos com 0 mun- do secular, cultivando amizades pessoais com diversos intelectuais evolucionistas de projecaio. Um video “Darwinism: Science or Naturalistic Philosophy”) apresenta um debate, na Universidade de Stanford, entre Johnson e um evolucionista radical de Comell, William 18 - As Perguntas Certas Provine, que surpreende a audiéncia ao comentar que os dois eram, na verdade, grandes amigos e que, depois do término do debate, eles iriam sair juntos para tomar um drinque. Ao mesmo tempo em que Johnson alcanga uma posig&o de destaque em meio ao evangelicalismo, ele continua a desenvolver um auténtico trabalho de vanguarda ao confrontar a cultura secular. Paralelamente, Johnson est4 elaborando um movimento do- tado de recursos adequados para levar a causa adiante, para a proxima geragao. No livro Boiling Point, os pesquisadores George Barna e Mark Hatch comentam que, atualmente, muitas organi- zag6es paraeclesiasticas sio construidas em torno de pessoas fa- mosas. Quando a celebridade sai de cena, suas organizagdes en- tram em declinio e acabam junto com ela. Johnson, porém, recu- sou-se a seguir o paradigma das celebridades. Como ele mesmo disse recentemente numa conferéncia: “Uma das coisas pelas quais o mundo crist&o é notorio é seu estilo de lidar com as questdes, o qual se baseia em celebridades. Isso coloca uma carga enorme sobre os ombros de uma tinica pessoa. Eu jamais desejei um mo- vimento desse tipo”. Em vez disso, Johnson desenvolveu uma estratégia que pode ser sintetizada na metafora da cunha, que se tornou sua marca. Devido a sua posi¢ao na Universidade de Berkeley e aos seus considerdveis talentos intelectuais, Johnson tem agido como 0 fio da lémina afiada de uma cunha, provocando uma primeira racha- dura no “tronco” do naturalismo cientifico. Porém, desde 0 inicio, ele teve consciéncia de que o fio da lamina nao poderia fazer todo 0 trabalho sozinho. Para que sua cunha obtivesse éxito, a penetra- Ao inicial tinha de ser seguida pela parte mais espessa da ldmina — um crescente grupo de cientistas, académicos ¢ escritores, 0 qual fosse se propagando atras do lider, E possivel que uma inica celebridade famosa obtivesse éxito em atrair recursos financeiros e aatengio da midia, mas é necessdrio um movimento de grande escala para provocar uma revolugao intelectual. Como alguém deve agir para construir esse tipo de movi- mento? O repérter religioso Terry Mattingly publicou um artigo | Prefacio - 19 sobre Johnson que sintetiza bem seu modus operandi. Para co- megar, “Johnson escreve seus préprios livros” (ao contrario de muitos cristaos famosos que colocam seus nomes em obras es- critas por outras pessoas), Aléin disso, ele empresta seu nome e sua reputacdo para ajudar companheiros no movimento a alcan- garem destaque e voz propria. Como escreve Mattingly, Johnson esta constantemente “promovendo (livros) escritos por seus co- legas” e “continua cedendo espa¢o” a eles em eventos puiblicos. Johnson até mesmo busca fundos para os livros e projetos de pesquisa de seus colegas e ajudou a fundar o Discovery Institute como uma base institucional para o movimento. Ele reconhece a importancia de se levantar a maior quantidade possivel de vozes, cada qual valida por si mesma, para abordar os varios aspectos do projeto inteligente. Isso é verdadeiramente revoluciondrio e merece ser citado como um modelo mais auténtico de lideranga crista, uma aplicagaio pratica da doutrina do corpo de Cristo: aqueles que so os lideres naturais nfo receberam de Deus dons de lideranga para constru- irem um legado pessoal, mas para desenvolverem os demais, que so parte do corpo de Cristo, Nossos dons nao se destinam a servir Anossa propria imagem e reputagao, mas, sim, aos nossos compa- pheiros e irmaos em Cristo. Johnson seguiu essa nova trilha por estar sentado na cadei- ra sobrenaturalista; sua visdo foi posta acima da ambicio e da reputacao pessoais. Como ele mesmo afirma, ele é motivado pela “verdade e justiga”. No entanto, acrescenta com um sorriso ma- roto, ele também “quer vencer”. Ea vitéria envolve um movimen- to de grande escala. Ao rejeitar o modelo da celebridade —ao de- senvolver os demais, em vez de buscar se apossar de seus dons e chamados para ele mesmo — Johnson esta nutrindo um movimen- to que iré evar a causa adiante, para a proxima gerag4o. Como descreve Mattingly, ele “esta convencido de que apontar os refle- tores na direg&o de outros é uma boa estratégia. Ele quer que, depois de sua partida, sua causa floresca”’. 20 - As Perguntas Certas Demonstrando autenticidade espiritual A decisao de Johnson de ocupar a cadeira sobrenaturalista, tanto em relagao ao contetido, quanto ao método do seu ministé- rio, no é resultante de um discernimento intelectual superior. Ela brota da sua humildade e do seu quebrantamento espirituais. Nes- se ponto, nds tocamos no cerne de quem é Phil Johnson como pessoa. E facil para os crist&os, na arena publica, mascararem suas vidas privadas, a fim de manterem uma imagem exterior invencivel. Quem pode se dar ao luxo de ser espiritualmente que- brantado, ou de encarar erros ou falhas, quando tem de manter em funcionamento a engrenagem das relagdes publicas? Quando precisa levantar fundos? Ou impressionar mantenedores? Johnson, poréin, trilhou um caminho diferente—ou, mais pre- cisamente, Deus lhe concedeu uma chance de crescimento espiri- tual que ele nao poderia recusar. Nas paginas que se seguem, Johnson relata uma crise espiritual pela qual passou recentemente, quando um derrame 0 colocou frente a frente com a possibilidade da per- da de algumas de suas faculdades mentais. Isso foi potencialmen- te devastador para um homem que vive do seu intelecto, que ga- nhou prémios no mundo académico por sua inteligéncia e cujas maiores conquistas se deram na arena da mente. Ele escreve: “Eu me perguntava se algum dia iria novamente proferir uma pa- lestra ou escrever algo”. Essa é a forma pela qual as crises espirituais normalmente ocorrem —sob a forma de desapontamento e perda, acrescidos do medo e da angistia que as acompanham. Nos raramente deposita- mos em Deus nossa confianga, até encararmos a perda daquilo com que mais contamos. As Escrituras chamam a isso de morrer para o mundo, Podemos acreditar em tudo 0 que é correto. Pode- mos, de forma consciente, fazer tudo o que é certo. Podemos reunir todos os recursos para 0 sucesso ou mesmo estar envolvidos no ministério cristo. Contudo, nao iremos experimentar verdadeira transformagao interior até que seja destruido aquilo pelo qual real- mente vivemos, 0 que quer que isso seja ¢ até que estejamos dis- Prefacio - 21 postos a morrer — dispostos a abrir mao de tudo o que amamos e pelo que vivemos e nos submeter completamente ao Senhor. Para Johnson, isso representava acima de tudo suas conquis- tas intelectuais. “Eu havia sempre me regozijado em ser autosu- ficiente e meu cérebro era aquilo com que eu contava para isso”, ele escreve. “De todas as coisas ruins que poderiam acontecer co- migo, o dano cerebral era a que eu mais temia.” Nas paginas deste livro, podemos descrever 0 despertar de Johnson para o fato de que a mio do Senhor esta agindo mesmo no sofrimento e na perda. Ele comega a entender de que forma o sofrimento pode ser, como fora para J6, um episddio no conflito invisivel, nas regides celestiais, en- tre Deus ¢ Satands. Quando somos “peneirados como trigo”, pode- mos por fim alcangar uma fé mais sdlida, mais resistente. Ao lidar com a perda, percebemos como tudo neste mundo é temporal, im- perfeito, incompleto e relativo ~e experimentamos o despertar de uma nova ansia pelo transcendental e eterno. Com freqiiéncia, Deus tem de causar a ruina dos nossos prdprios planos antes que possa- mos enxergar que ele tem para nés planos muito maiores do que qualquer coisa que esperavamos ou sonhavamos. Essa é a esséncia do crescimento espiritual, mas é preciso serum homem de coragem para admiti-lo publicamente. Em vez de lustrar e exaltar sua personalidade publica, Phil escreve de forma aberta sobre suas preocupages e fraquezas. Ele relata com hones- tidade admiravel os medos, as incertezas ¢ o sentimento de impo- téncia que experimentou com seu derrame. Ele fala francamente sobre acessos de raiva e frustragao. Acima de tudo, ele revela sua crescente compreensiio da sua propria necessidade espiritual. Ele percebeu que, desde sua conversio, ele tinha sido 0 que se pode chamar de “um racionalista convalescente” —alguém que é “mais um cético em relagao a tudo do que um fiel em Cristo”. Que frase apropriada e, sem diivida, aplicavel a muitos de nds! Certamente, por um periodo depois da minha prépria conver- sho, tudo o que eu mais queria era ler livros sobre apologética e critica cultural. Como Johnson, eu era uma “racionalista conva- lescente” que permanecia em oposi¢do aos sistemas intelectuais 22 - As Perguntas Certas concorrentes, mais do que em defesa do Cristianismo em toda a sua plenitude. Normalmente, é apenas por meio de crises pesso- ais que somos levados com maior profundidade a uma fé viva no Deus pessoal, que ansiamos tanto em proclamar. Concentrando-se nas perguntas certas Ao fazer com que as pessoas se concentrassem nas per- guntas certas -- sobre ciéncia, teologia, estratégia, fé —- Johnson transformou uma disputa estéril num didlogo produtivo. Este livro pode servir perfeitamente como um guia para cristaos das mais diversas areas e disciplinas, na medida em que eles também apren- dam como formular as perguntas certas. Nancy Randolph Pearcey Junho de 2002 INTRODUCAO O TREM DA LOGICA Ao longo de toda uma vida de estudos e participacao em debates, eu aprendi que a melhor maneira de se abordar um pro- blema de qualquer espécie é, normalmente, no falar ou mesmo refletir muito sobre a sua solucao, até que se esteja seguro de estar fazendo todas as perguntas certas, na ordem certa. Quando estou muito ansioso para encontrar a solugao, posso negligenciar algu- mas das perguntas preliminares, pelo simples fato de nao parar para refletir sobre sua importancia e assumir, precipitadamente, que ja devo té-las respondido. Da mesma forma, quando quero, numa palestra, convencer minha audiéncia, devo ser bastante cuidadoso em me certificar de que as pessoas compreendam corretamente a pergunta, antes de tentar lhes fornecer uma resposta. Sou freqiientemente mal com- preendido, pois algumas pessoas, ao ouvir que estou proferindo uma palestra sobre a evolugao, concluem, a partir do tema, que eu devo estar incitando minha audiéncia a acreditar na Biblia em vez de na ciéncia. Eles foram ensinados, durante toda a vida, que ja- mais alguém questionou a teoria de Darwin, exceto ignorantes ¢ obtusos defensores da Biblia e acham muito mais facil continuar com essa suposi¢ao do que se esforcarem para aprender que existe uma outra maneira de se abordar o tema. Por conseqiiéncia, eles 24 - As Perguntas Certas nao prestam atengao na minha cuidadosa explicagao de que esta- rei discutindo apenas a definigao de ciéncia e os pontos fortes e fracos da evidéncia cientffica, que é citada na literatura como base das alegaces darwinianas. Na primeira oportunidade, essas pes- soas, que nao prestaram atengao a minha descrig&o do assunto, comegarao a afirmar que a Biblia nao é um livro cientifico, que a Terra tem bilhdes de anos € que toda essa controvérsia comegou em 1925 ,com o julgamento de John Scopes, o qual eles conhe- cem somente por meio da pega Inherit the Wind, numa aborda- gem completamente ficcional. Meu problema no é convencer os leitores ou os ouvintes de que eu tenho as respostas certas para as perguntas que estou fazendo. Minha dificuldade é, antes, convencer esses ouvintes e leitores de que as perguntas que estou fazendo sao as mesmas que eles deveriam fazer e que sua educacao, até esse momento, Os preparou para fazer as perguntas erradas, em vez das certas. Se eu comegar uma dissertacao tentando expor as respostas, an- tes de estar certo de que meus leitores entenderam as perguntas, s6 posso culpar a mim mesmo se eles nio me compreenderem. Da mesma forma, se um leitor parte do pressuposto de que ele entende a pergunta antes que tenha lido minha explicag&o sobre o motivo de eu comegar com algumas perguntas em vez de outras, esse leitor nao esta dando a si mesmo uma chance justa de apren- der com 0 que ele esta lendo. Tentar encontrar a resposta antes de ter compreendido todas as perguntas adequadas é uma fonte primordial de erro nas polémicas humanas. Se eu comegar coma pergunta inicial certa e permitir quea resposta dessa primeira pergunta indique a proxima pergunta e assim sucessivamente, através de cada passo seguinte, ent&o, o poder irresistivel da légica ird, finalmente, guiar-me até a conclusao correta, mesmo se, a principio, essa conclusao parega estar muito distante. Eu recorro 4 metéfora da ferrovia para explicar como isso acontece. Se um trem esta se locomovendo a toda velocidade e se encontra nos trilhos da logica, nada pode impedi-lo de chegar ao fim da linha, exceto um descarrilamento. O trem da légica também pode Introdugao - 25 ser irresistivel quando os trilhos apontam para a diregdo errada eo destino, ao final da linha, é algo que ninguém quis ou jamais previu alcangar no momento em que os trilhos foram colocados eo trem comegou a se mover lentamente para frente. Por exemplo, na década de 60, quando os legisladores apro- vara a lei do divércio, eles transformaram, nesse processo, 0 casamento (pelo menos a forma como ele é legalmente conside- rado) de um vinculo sagrado num mero contrato civil, anuldvel pela vontade de qualquer dos cénjuges. Embora os legisladores nao tivessem a intengao de autorizar 0 casamento entre pessoas do mesmo sexo e, provavelmente, nem mesmo conceberam essa possibilidade, uma pessoa com um pouco de vis&o poderia perce- ber que os trilhos estavam voltados para essa diregdo. Provavel- mente, os legisladores teriam repreendido essa pessoa por ser contraria a liberag&o do divércio com base em motivos tao capci- osos. Agora que o trem ja adquiriu bastante velocidade, qualquer um pode ver que ele esta voltado para a diregao da aprovagao do casamento homossexual. O trem ira, por fim, chegar a esse desti- no, quer a maioria goste disso ou n&o, a menos que algum esforgo muito intenso seja feito para mover os trilhos e direciona-los para um destino diferente. Tentar parar o trem colocando-se no seu caminho é uma excelente forma de acabar atropelado. Outra coisa que se deve ter em mente é que aquilo que parece ser um retrocesso, ou mesmo um desastre, pode ser, de fato, uma béngio disfargada, se isso nos forga a reavaliar a di- reco que escolhemos e a nos certificar de que os trilhos apon- tam para a dire¢ao que pretendemos alcangar. Essa é a razio pela qual cada crise é também uma oportunidade para aprender € 0 motivo pelo qual é possivel que ndo saibamos, antes de al- cangarmos 0 fim da linha, se alguma experiéncia em particular que tivemos foi, no final, para o melhor ou para 0 pior. Sempre que as surpresas da vida nos forgam a fazer as perguntas cer- tas, em vez das erradas, a experiéncia provavelmente sera be- néfica, mesmo quando é dolorosa. Neste livro explicarei como aprendi essa verdade. 26 - As Perguntas Certas Os capitulos iniciais estabelecem um padrao, iniciando com um texto e, em seguida, discutindo trés “perguntas certas” a res- peito dele. Porém, eu nem sempre sigo esse padrao nos capitulos seguintes. As experiéncias que me ensinaram a fazer as pergun- tas certas surgiram, freqiientemente, de surpresa, e um pouco desse efeito surpresa est contido no formato dos capitulos. 1 BIOLOGIA E LIBERDADE PROGRESSISTA O PROJETO GENOMA HUMANO E O SIGNIFICADO DA VIDA AEmenda Santorum Em 13 de junho de 2001, 0 Senador Rick Santorum (Partido Republicano, Pensilvania) propés uma emenda de duas frases ao projeto de lei para a educacaio, apresentado pela Casa Branca e que estava sendo apreciado pelo Congresso, A Emenda Santorum simplesmente afirmava que “o Senado entende que (1) uma boa educacao cientffica deve preparar os estudantes para distinguir as informag6es ou teorias comprovaveis da ciéncia das alegages filo- s6ficas ou religiosas, que sao feitas em nome da ciéncia; e(2) onde aevolugao bioldgica seja ensinada, o curriculo deve ajudar os estu- dantes a compreenderem 0 motivo pelo qual esse tema gera tama- nha polémica incessante e deve prepard-los para que sejam partici- pantes informados de debates ptiblicosa respeito desse tema”. O Senador Santorum a apresentou como uma mera resolu- Ao baseada no “entendimento do Senado”; a emenda nfo inclufa medidas para sua implementagao ou observancia e, conseqiiente- mente, nao iria exigir ou habilitar os educadores a fazerem algo especffico. Ela meramente reconhecia a existéncia de desenten- dimentos e controvérsias a respeito de teorias cientificas, em es- pecial a da evolucao biolégica e aderia 4 conclusao de que a edu- 28 - As Perguntas Certas cacao cientifica seria mais eficaz se preparasse os estudantes para compreenderem essas controvérsias. Entfo, o Senador Santorum cedeu a tribuna ao Senador Edward Kennedy, que era o lider dos Democratas na discussao do projeto. O Senador Kennedy concordou entusiasticamente com o Senador Santorum, conclamando todos os senadores a votarem a favor da emenda porque “‘nds desejamos que as criangas sejam capazes de discor- rer sobre conceitos diversos e que o fagam de forma légica, com base na melhor informagao que esteja ao alcance delas”. Depois de outros pronunciamentos favordveis por parte de outros sena- dores, a emenda foi aprovada por ampla maioria bipartidaria, com uma votagéio de 91-8. Era de se esperar que importantes organizagGes de cientis- tas e educadores cientificos adotassem a mesma perspectiva que o Senador Kennedy havia expressado e recebessem favoravel- mente a emenda como um convite para educar o publico a com- preender a ciéncia da mesma forma que os cientistas. Embora eu tivesse elaborado a emenda para o Senador Santorum, seu texto nao conferia qualquer privilégio aos que, como eu, discordavam da ortodoxia Darwiniana, portanto, os atuais educadores cientifi- cos teriam tido plena liberdade para apresentar o tema da forma que melhor Ihes conviesse. Em vez disso, essas organizagdes se opuseram veementemente a emenda e exerceram toda a sua in- fluéncia, numa tentativa de convencer os legisladores no sentido de que a retirassem da verso final do projeto. Eles quase obtiveram éxito: a Camara dos Deputados apro- vou 0 projeto sem a inclusao de uma resolugio paralela “a Cama- ra entende”, mas a emenda atraiu 0 apoio tanto de deputados como de senadores, membros do Comité de Discussio, que ti- nham a missio de conciliar os projetos da Camara e do Senado. A objecao principal e explicita dos educadores cient{ficos 4 Emenda Santorum era a de que a emenda havia destacado a evolugdo biolégica como um tema de controvérsia. Eles insistiam em que no havia qualquer controvérsia cientifica a respeito da evolu- go, salvo uma mera resisténcia, com base religiosa ou politica, Biologia e Liberdade Progressista - 29 em relacdo ao conhecimento cientifico, que nao devia ser exalta- da pela permissao de ser mencionada nas aulas de ciéncia. Sua légica parece ter sido a de que as diversas pessoas, detentoras de impressionantes credenciais cientfficas, que haviam declarado seu ceticismo em relagAo a teoria da evolugao nfo de- viam ser, de fato, cientistas, uma vez que expressaram ceticismo em relagao a essa teoria. Sobretudo, os educadores darwinistas nao foram capazes de reconhecer, tanto diante de seus alunos, quanto do publico, o fato de que existe uma diferenga entre os dados e as teorias comprovaveis da ciéncia de um lado, e as ale- gag6es filosdficas e religiosas feitas em nome da ciéncia de outro. Toda a propaganda darwinista se baseia em ofuscar essa diferen- ¢a, de modo que um publico crédulo é ensinado a aceitar o natura- lismo/materialismo filoséfico como algo inerente a definigao de “ciéncia”. Com base nessa premissa, 0 conhecimento cientifico é considerado o mecanismo naturalista mais plausivel paraa cria- cao de formas de vida evoluida e, portanto, verdadeiro. Por vezes, os darwinistas dizem que seu naturalismo é meramente metodoldgico e nao fazem quaisquer alegagGes sobre a realidade, mas é dbvio que o método é tido como valido, pois se considera que ele reflita a realidade. Pesquisas de opiniao publica demonstram consistentemen- te que uma parcela bastante substancial do ptblico norte-ameri- cano questiona a teoria da evolugdo — ao menos quando esta é apresentada como a explicago final para a historia da vida —um questionamento que as organizag6es cientfficas condenam. Como 0 questionamento publico sobre a evolugao sera algum dia abor- dado, a menos que os educadores admitam sua existéncia e se empenhem ao maximo para educar o publico quanto aos erros que existem em sua maneira de pensar? A educagao em outras areas tem por objetivo ajudar os estudantes a compreenderem a matéria da forma mais plena possivel. Contudo, a educacao na area da evolugao biolégica (darwinismo) deve objetivar manter confusos os estudantes e o publico em geral, de maneira que eles continuem a aceitar a filosofia como ciéncia ea nao perceberem 30 - As Perguntas Certas que a evidéncia cientifica nao é consistente com a filosofia cien- tifica (naturalismo), na qual os lideres metafisicos da ciéncia que- rem que eles acreditem. Darwinismo e clareza de pensamento esto em miituo conflito. Por fim, a emenda sobreviveu virtualmente intacta no rela- tério do Comité de Discuss&o, que foi aprovado por ambas as Casas do Congresso, juntamente com a versio final do projeto da educacao, assinado pelo presidente Bush, em janeiro de 2002.0 relatério do Comité de Discussfo nao é, em si mesmo, uma clau- sula eficaz da lei, mas representa uma fonte primaria da historia legislativa, 4 qual um juiz ou um administrador poderia recorrer, ao interpretar o significado de termos essenciais, como ciéncia e educagdo, os quais possuem eficacia na lei. O que eu esperava alcangar com 0 texto da emenda era, primordialmente, tornar bas- tante dificil que autoridades do ensino publico justificassem a de- miss&o ou a puni¢&o de um professor que ensina seus alunos so- bre as falhas na teoria darwiniana, em vez de ensina-la da forma autoritaria e dogmatica, a qual os darwinianos tém conseguido tornar obrigatdria até esse momento. Além disso, 0 efeito que a emenda pode ter depende da atitude do piiblico em relagao a ela. Se pessoas do povo atuarem no sentido de levantarem objegSes ao dogmatismo darwiniano, a emenda lhes dard o respaldo da lei. Se as pessoas se deixarem intimidar pela autoridade dos atuais senhores da “ciéncia”, ent&éo o dogmatismo darwiniano ira conti- nuar do mesmo modo que antes da aprovacao da emenda. Para entender 0 motivo pelo qual os educadores acham a evolucao biolégica um tema tio dificil de ser tratado, sera util anali- sar as diversas interpretagdes na midia sobre os primeiros resulta- dos do imenso Projeto Genoma Humano, provavelmente o esfor¢o de pesquisa biolégica mais ambicioso da Histéria. A menos que as pessoas mantenham seu bom senso encoberto, a maioria quase ins- tintivamente reconhecera que uma inteligéncia sobrenatural deve estar agindo nos prodigios da biologia. Foram necessarios anos de doutrinamento para aprender a ignorar a evidéncia do projeto inteli- gente, que esta tao patente diante dos nossos proprios olhos. : | | | Biologia e Liberdade Progressista - 31 O Projeto Genoma Humano eo que significa ser humano Em 26 de junho de 2000, o Presidente Clinton anunciou que o esforco cientifico para seqiienciar o genoma humano haviaal- cangado seu primeiro sucesso substancial. Os cientistas adverti- ram que poderia levar muito tempo antes que se alcangassem beneficios tangiveis, como a cura para certas doengas, mas a con- quista, mesmo assim, gerou um misto de alegria e desconfianga. A eliminagao de doengas genéticas, como a fibrose cistica, era evidentemente algo que se desejaria, se fosse possivel alcancar, mas 0 projeto dos mais ambiciosos magos da genética vai muito além da cura ou prevengaio de doengas especificas. Eles aspiram criar pessoas mais perfeitas, por meio da reestruturagZo do genoma humano, 0 qual eles consideram como um complexo emaranhado, resultante de processos aleatérios de evolugao natural e formado, em grande parte, de “DNA lixo” somado a uma quantidade me- nor de genes que contém 0 cddigo genético para as proteinas. Qualquer tipo de tecnologia que os cientistas inventem sera, inevitavelmente, posta 4 venda no amoral mercado internacional, em que a imposi¢gao de quaisquer restrigdes éticas pode ser extre- mamente dificil. Por exemplo, pais que possuam condig&o de pa- gar poderao, algum dia, ser capazes de adquirir tratamentos gené- ticos que os habilitem a ter “filhos geneticamente modificados”, que sejam mais saudaveis e inteligentes dos que os de seus vizi- nhos menos abastados, perpetuando, assim, um sistema genético de castas. As prometidas maravilhas da biotecnologia podem ain- da demorar, mas num futuro muito proximo, informag6es proveni- entes de testes genéticos poderao ser utilizadas para tornar pes- soas inadequadas para determinados empregos ou inelegiveis para contratos de seguro. O Presidente Clinton tentou fornecer alguma seguranga contra esses riscos bastante reconhecidos, afirmando que “ao re- fletirmos sobre a maneira de utilizar as novas descobertas, nao devemos também nos distanciar dos nossos valores humanos mais 32 - As Perguntas Certas tradicionais e estimados”. Mais especificamente, o Presidente dis- se que “todos nés somos criados iguais, com direito a igual trata- mento perante a lei”. Criados? A alegagao de que todos os seres humanos sao criados iguais ¢ uma nog&o criacionista, que sugere a inferioridade de outras espécies, presumivelmente devido ao fato de que somente os seres humanos refletem a imagem do Criador. O Presidente Clinton nao mencionou a possibilidade, hoje ampla- mente divulgada ou mesmo tida como certa nos circulos da elite cientifica e filosdfica, de que o que os bidlogos estao nos relatando sobre a vida e a evolugao tornou obsoletos nossos mais tradicionais ce estimados valores. Exemplificando, varios cientistas e fildsofos dizem hoje que conferir um status especial aos seres humanos (isto é,a“nés”) é um pecado antropocéntrico denominado especiesismo, comparavel ao racismo eo sexismo. A mensagem central da bio- logia evolucionista é a de que os seres humanos nao foram, de for- ma alguma, criados, muito menos criados 4 imagem de Deus, mas so apenas produtos casuais da evolugao, como todas as demais espécies. Nesse caso, afirmar que os seres humanos possuam al- gum status Gnico, superior ao de outras espécies, pode ser tao arbi- trério quanto declarar que uma raga humana é superior as demais. Esse desafio as pretensdes de superioridade humana tem origem na teoria da biologia evolucionista, porém suas implica- Ges filosdficas estéo causando imensa complicagao para os bid- logos ao inspirar a expansaio de um movimento em defesa dos direitos dos animais, o qual contesta a legitimidade de seu uso em experiéncias cientificas. A questao do uso de animais em experi- éncias cientificas surgiu, originalmente, em relacao aos animais que s&o mais semelhantes ao homem, como os chimpanzés, mas 0 raciocinio tem se estendido até mesmo aos ratos de laboratério e além. Como conseqiiéncia, os laboratérios que utilizam animais em experiéncias tiveram que se transformar em verdadeiras for- talezas e os cientistas temem pela prépria vida. Nada disso é sur- preendente, se encararmos com seriedade a premissa de que a experiéncia com animais equivale moralmente a realizagao des- sas mesmas experiéncias em seres humanos. Biologia e Liberdade Progressista - 33 Até onde o projeto genoma levar a futuras descobertas de semelhangas entre seres humanos e animais, ele pode ter 0 iréni- co efeito de encorajar atos futuros de terrorismo contra os bidlo- gos. Como quer que essa histéria se desenrole, a comemoragaio oficial do sucesso inicial do seqtienciamento genético forneceu prova de que as premissas criacionistas permanecem influentes, mesmo em meio a cultura radicalmente materialista da biologia.O Presidente Clinton exultou com o fato de que “hoje, estamos apren- dendo a linguagem com a qual Deus criou a vida; estamos adqui- rindo sempre maior fascinio pela complexidade, pela beleza e pelo milagre do dom mais divino e sagrado de Deus”. O Doutor Francis S. Collins, diretor cientifico do Projeto Genoma Humano, desen- volvido pelo governo, usou palavras semelhantes ao dizer, “Sinto- me humilde e me inspira reveréncia 0 fato de perceber que conse- guimos 0 primeiro vislumbre do nosso préprio manual de fabrica- Go, anteriormente conhecido apenas por Deus”. Aparentemente, essas declaragdes parecem afirmar que a pesquisa do genoma, na verdade, apdia a perspectiva de que uma mente sobrenatural elaborou os principios que governam os alta- mente complexos processos bioquimicos da vida. Colocando o mes- mo ponto de forma negativa, Clinton e Collins pareceram estar repudiando a alegacéio central da teoria naturalista da evolucao de que exclusivamente as causas naturais, como o acaso € as leis da fisica, produziram todos os aspectos da vida, inclusive quaisquer “principios” que estejam contidos no DNA. Qualquer que seja o pensamento de Clinton e Collins sobre isso, entretanto, a vasta maioria dos bidlogos, especialmente aqueles de maior prestigio, nega enfaticamente que Deus tenha qualquer relagao com a evo- lug&o e cinicamente descartam o que eles denominam “criacionismo do projeto inteligente”, como algo inerentemente inaceitavel para a ciéncia, apesar da evidéncia. Porexemplo, o Doutor David Baltimore, ganhador do prémio Nobel e presidente do California Institute of Technology, escreveu no New York Times que o projeto genoma revelou que “nossos genes guardam grande semelhanga com os genes das moscas-das- 34 - As Perguntas Certas frutas, dos vermes e mesmo das plantas”. Baltimore argumenta que essa descoberta sugere que “descendemos todos da mesma origem humilde”, o que, pensou ele, “deveria ser, mas nao sera, o fim do criacionismo” (David Baltimore, “50,000 Genes, and We Know Them All [Almost],” New York Times, 25 de junho de 2000). Devido ao fato de a atual doutrina cientifica alegar que os genes contém uma espécie de receita para a criag&o do ser hu- mano, a légica do Doutor Baltimore parece implicar que a desco- berta dessas semelhangas genéticas deveria por um fim a idéia de que os seres humanos (ou os demais seres vivos) foram criados e A nogao de que o Homo sapiens seja suficientemente diferente dos demais seres para merecer algum status exclusivo. Eo que basta para descartar a visdo tradicional, baseada na teologia, de que os seres humanos sao criados em posig&o de igualdade entre sie de superioridade em relagao aos demais seres, Outro pesquisador do genoma escreveu no New York Ti- mes que as meng6es feitas pelo Presidente Clinton a uma lingua- gem na qual Deus criou a vida “nado poderiam estar mais distantes da verdade” e que essas palavras iriam apenas “fornecer mais munic4o aos criacionistas, para que incrementassem seu destrutivo programa social e politico” (“Eureka! A Key to the Code of Life”, New York Times, 28 de junho de 2000). O cientista nao disse que programa destrutivo seria esse, mas ao levantar essa obje¢ao, ele deixou implicita a possibilidade de que os bidlogos possam rejeitar o conceito do projeto inteligente na biologia por desaprovarem as possiveis implicag6es religiosas, politicas ou morais, e nao pelo fato de que seus dados os forcem a essa conclusio. Nesse caso, o restante de nés pode se perguntar de onde os bidlogos tiraram a idéia de que deveriam possuir autoridade sobre a religiao, a politi- caoua moralidade e se nao pode acabar sendo eles os que esto levando adiante um destrutivo programa social e politico. Alguns cientistas se mostraram muito mais abertos a idéia de que a evidéncia resultante do projeto genoma aponte para um cria- dor inteligente. Gene Myers, um cientista da computagiio que con- tribuiu para a montagem do mapeamento do genoma paraa Celera Biologia ¢ Liberdade Progressista - 35 Corporation, disse a um repérter cientifico do San Francisco Chronicle: “O que me deixa realmente maravilhado é a arquitetura da vida. O sistema éextremamente complexo. E como se ele tives- se sido projetado .. . Ha nele uma inteligéncia imensa. Eu nao encaro isso como sendo nao-cientifico, Outros podem pensar as- sim, mas nao eu” (Tom Abate, “Human Genome Map Has Scientists Talking About the Divine: Surprisingly Low Number of Genes Raises Big Questions”, San Francisco Chronicle, 19 de fevereiro de 2001). Abate também ficou surpreso ao descobrir que os geneticistas estimavam que o contetido total do genoma humano possuia somente cerca de trinta mil genes, aproximadamente o mesmo que 0 genoma de um rato, Desde ent&o surgiram estima- tivas maiores, mas permanece o problema basico: é interessante o fato de que nossos genes se assemelhem tanto aos genes das moscas-das-frutas, dos vermes ou mesmo das plantas, mas isso em nada explica porque os seres humanos sao tio diferentes des- ses seres. Se diferengas geneticamente identificaveis n&o expli- cam a singularidade das nossas caracteristicas humanas, ent&o, talvez, a verdadeira li¢&o do Projeto Genoma Humano seja a de que os genes nao s&o, nem de perto, to importantes como fomos levados a crer. Essa possibilidade deve ser muito inquietante para investidores que anteciparam lucros enormes a partir da explora- Ao de tecnologias voltadas 4 manipulagao de todos esses genes humanos, tinicos e exclusivos, que nao foram encontrados. Conhecimento e crenga Era de se esperar que houvesse, nos circulos intelectuais, um debate construtivo sobre a possibilidade do surgimento do projeto inteligente, na biologia, ser algo real ou ilusdrio e de que forma a evidéncia bioldgica pode sustentar a proposta de que os seres humanos sejam criados iguais uns aos outros e superiores as outras formas de vida. A razao pela qual esse debate nado acontece é pelo fato de que a cultura intelectual do nosso tempo forga uma disting&o entre crenga e conhecimento e entre fé e 36 - As Perguntas Certas razdo, que torna praticamente impossivel que sejam feitas as perguntas certas. A diferenga entre crenga e conhecimento é facil de se es- tabelecer, mas é, normalmente, de sutil aplicagdo. O conhecimen- to é objetivo e valido para todos; a crenga é subjetiva e valida somente para aquele que nela eré. Uma forma rudimentar de ex- pressar essa diferenga é a de que o conhecimento pode ser ensi- nado nas escolas ptiblicas e universidades ou utilizado como fun- damento para a elaboragaio de leis, enquanto as crengas ficam restritas 4 vida privada —a menos que sejam crengas que gozem da aceitacao pela elite do conhecimento, que alega ter o poder de estabelecer a fronteira entre a crenga e o conhecimento, A ilustragao paradigmatica da diferenga é dada pelo decla- rado contraste que ha entre conhecimento cientifico e crenga religiosa, complementado pelo contraste paralelo existente entre razdo e fé religiosa, a qual os racionalistas assumem ser a crenga sem fundamentos racionais. A regra fundamental do modernismo cognitivo é a de que toda pessoa racional aceita o conhecimento cientifico pelo fato de este ser, por definig&o, baseado na razio e em evidéncias, mesmo quando a evidéncia nao possa ser produzi- da os fundamentos racionais parecem a muitos nada razoaveis, enquanto a crenga religiosa 6, no maximo, opcional, pois pressu- posta, de forma conclusiva, como sendo meramente baseada em preferéncias subjetivas ou doutrinamento. As pessoas que incor- poram essas diferengas automaticamente classificam referéncias a Deus como algo nao racional e que nfo devem, portanto, ser levadas a sério como alegagdes da verdade, embora possam ter de ser tratadas diplomaticamente, por raz6es politicas, Dentro dessa mesma ldgica, orientagdes para 0 ensino da ciéncia nas escolas piiblicas especificam, rotineiramente, que a ciéncia se compromete a explicar todos os fendmenos apenas em termos de causas naturais. Numa légica estrita, isso deixa em aberto a possibilidade de que alguns fendmenos (como o manual do DNA) sejam, de fato, produtos de causas sobrenaturais e, por- tanto, ndo possam ser totalmente explicados por uma ciéncia com- [ t | i F | Biologia e Liberdade Progressista - 37 prometida de antem&o com o naturalismo. Na pratica, os intelec- tuais modernistas sao extremamente relutantes em admitir essa possibilidade, pois para a perspectiva naturalista essa conclusdo importa em “desistir da ciéncia” e adotar a ignorancia. Pelo fato de o naturalismo filosdfico estar, assim, incorpo- rado a propria definigao de ciéncia, a maioria dos bidlogos consi- dera que tanto é um fato cientifico que o genoma seja o produto exclusivo de causas naturais, quanto o fato de que o DNA seja composto de substancias quimicas organicas. Conseqiientemen- te, a ciéncia nao pode reconhecer a existéncia de um manual de programacdo no genoma, a nao ser num sentido metaforico, por- que seria sobrenatural uma inteligéncia primitiva capaz de elabo- rar essas programagées. Como um ingénuo professor de biologia explicou numa carta ao Nature, o jornal cientifico mais famoso do mundo: “Mesmo se todas as informagées apontarem para um cri- ador inteligente, essa hipdtese é excluida pela ciéncia, pois nao é naturalista” (Scott C. Todd, “A View from Kansas on That Evolution Debate”, Nature, 30 de setembro de 1999, pag. 423). Bidlogos mais sofisticados politicamente nao se expressam com tanta franqueza, pois sabem o que os abomindveis criacionistas fariam da admissio do fato de que os bidlogos, por vezes, descar- tam a informagao, se esta aponta para uma diregdo que eles con- siderem filosoficamente inaceitavel. Com maior freqiléncia, os naturalistas cientificos simplesmente invocam o poder cultural da “ciéncia”, para confirmar a alegacao de que a evidéncia sustenta sua posicao filoséfica, mesmo quando a evidéncia consiste em nada mais do que semelhangas entre os varios tipos de organis- mos. Alguém poderia empregar a mesma Iégica para provar que as nove sinfonias de Beethoven nao tiveram um compositor, uma vez que todas utilizam elementos musicais semelhantes. Eaconselhdvel que os cientistas que créem numa realidade sobrenatural sejam cuidadosos em manter sua religiéo seguramente separada de suas responsabilidades cientificas. A mentalidade profissional nesse aspecto foi sintetizada com maestria numa re- portagem da revista Scientific American sobre © Dr. Francis 38 - As Perguntas Certas Collins, o diretor do Projeto Genoma Humano, que compartilhou com 0 Presidente Clinton o foco da atengao. Collins é um cristao evangélico que se identifica publicamente como tal, o que é, de fato, uma raridade para um cientista de tamanho prestigio. No que os editores provavelmente pretenderam que fosse de uma demons- trag&o de tolerncia, eles elogiaram Collins porque ele “se esforga “para evitar que seu Cristianismo interfira na sua atitude em rela- go a ciéncia e A sua opgao politica”. E claro que os mesmos editores jamais iriam escrever algo semelhante sobre um ateu, algo como “Richard Lewontin se esforga para evitar que seu ate- ismo, sua condi¢ao de judeu e seu marxismo interfiram na sua atitude em relagao a ciéncia e a sua op¢io politica”. Lewontin, um professor de genética em Harvard, que ocupa uma posigaio elevada na piramide cientffica, demonstra abertamente seu ateis- mo, sua etnia e sua preferéncia politica. E melhor que um membro de um grupo recriminado nao pense que possa agir impunemente do mesmo modo. Pode parecer que Collins tenha, de fato, permitido que seu Cristianismo interferisse na sua posi¢&o cientifica, quando ele se referiu Aquele “manual de instrug&o anteriormente conhecido ape- nas por Deus”, mas as circunstancias eram excepcionais. Em solenidades, os diretores de programas cientificos dispendiosos gozam de maior liberdade para dizer 0 que for necessario para agradar os contribuintes que tém de pagar a conta. Se Collins fosse fazer uma palestra sobre o manual de instrugao divino num encontro cientifico, alegando que a informago contida no genoma aponta para um autor, a reagdo seria violenta. As perguntas certas sobre ciéncia, Deus e moralidade 1. F errado associar a ciéncia a religiao ou essa asso- ciacgao é inevitavel? Em 1981, a Academia Nacional de Ciéncias dos Estados Unidos determinou que “religiao e ciéncia sao duas areas separa- | | | | | | Biologia e Liberdade Progressista - 39 das e mutuamente exclusivas do pensamento humano, cuja apre- sentagao num mesmo contexto leva a ma compreensiio tanto da teoria cientffica quanto da crenga religiosa”. Do mesmo modo que se deu com a suposta “descoberta cientifica” de que os seres humanos n&o possuem qualquer status espiritual ou moral exclu- sivo, os cientistas pretenderam que a determinagao fosse nada mais do que uma arma para combater os criacionistas. Aparen- temente, cles sequer consideraram as inferéncias maiores — se é mesmo possivel evitar, totalmente, as implicagdes religiosas, quan- do se trata de explicar as origens da vida humana. Na verdade, cientistas de prestigio constantemente publicam livros que associ- am tao plenamente esses dois temas que a expressao deus ou deu- ses aparece até mesmo no titulo, uma estratégia que é bastante conhecida por aumentar as vendas e os conseqiientes royalties. Veja, por exemplo, 0 livro The Genetic Gods: Evolution and Belief in Human Affairs, do Dr. John C. Advise (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2001). O Dr. Advise, um cientista mate- rialista que pensa ser sua filosofia um requisito da “ciéncia”, escre- ve no prefiacio: “Eu espero diminuir a hostilidade entre esses dois diferentes enfoques epistemoldgicos (a teologia e a biologia evolucionista), [e também ] espero resolver uma questio central na minha propria vida: como reconciliar as exigéncias € os prazeres intelectuais do pensamento cientffico critico com o senso de propé- sito ¢ realizagao que uma vida espiritual plena pode proporcionar”. Quando um materialista propde uma reconciliagao da cién- cia com a religido, os termos da proposta de paz normalmente resultam numa exigéncia de rendig4o incondicional. Os tedlogos sao forgados a aceitar os deuses da genética em substituig&o ao Deus tradicional, cuja mengao é banida nfo somente da ciéncia, como também do discurso ético, inclusive da ética de utilizagao de tecnologia genética. Segundo Advise: Os muitos desafios éticos motivados pelas novas tecnologias genéticas so, ao mesmo tempo, complexos € profundos. Em resposta a eles, ndo apenas cientistas, 40 - As Perguntas Certas tedlogos ¢ legisladores, mas também toda a sociedade, devem se sentar a mesa de discussGes para refletir so- bre formas racionais e humanitarias de ago. Nessas deliberagdes, talvez a Gnica forma de argumentagao a ser firmemente censurada ~ a Gnica abordagem “erra- da” — é aquela em que se afirma a autoridade moral de um deus. A se julgar pela diversidade de opinides sus- tentadas por pessoas responsaveis com relago as ques- t6es éticas inerentes a condig¢ao humana, qualquer di- vindade sobrenatural tem se mantido estranhamente calada sobre essas questdes ou tem comunicado men- sagens bastante diferentes a diferentes ouvintes. 2. Se Deus esta morto, tudo é permitido ou o julga- mento moral continua como antes, mas agora numa base secular? Os primeiros racionalistas modernos assumiam que a mor- te de Deus representava meramente a morte da supersticao. Com base nessa premissa, o homem moderno, guiado pela ciéncia, po- deria preservar o melhor da moralidade tradicional (ou “os valores humanos mais tradicionais e estimados” do Presidente Clinton) num cédigo moral revisado, fundamentado na sélida base da ra- Zo secular iluminista. Mais recentemente, muitos vieram a duvi- dar de que a razfio humana possa suprir a falta do padrao trans- cendente, pelo qual diferentes crengas morais humanas possam ser avaliadas. De um ponto de vista cientifico, a moralidade — como a religiao — é uma questao de crenga subjetiva, em vez de um conhecimento objetivo. Isso a torna, efetivamente, uma ques- tao de preferéncia pessoal. Com isso nao se quer dizer que cédi- gos morais deixarao de existir (mesmo um bando de ladrdes ou terroristas possui um), mas significa que esses cddigos serao ba- seados nas preferéncias dos detentores de poder locais ¢ nao nos principios universais da raz&o e do conhecimento. O que é certo ou errado depende da preferéncia de quem quer que possua o poder para impor sua vontade. Biologia e Liberdade Progressista - 41 Talvez ninguém devesse possuir esse poder e cada indivi- duo devesse possuir um direito absoluto de optar. Essa foi a alter- nativa que parece haver adotado trés moderados juizes da Supre- ma Corte norte-americana em 1992, quando confirmaram a exis- téncia de um direito constitucional ao aborto. No que é chamada pelos advogados de a “stimula do mistério”, os juizes escreveram: “No coragao da liberdade esta o direito da pessoa definir seu pré- prio conceito sobre a existéncia, 0 significado, o universo e 0 mis- tério da vida humana. Crengas a respeito dessas questdes nao poderiam definir os atributos da personalidade, fossem eles cons- tituidos sob a imposig&o do Estado” (Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 [1992], 851 [parecer proferido pelos Juizes O’ Connor, Kennedy e Souter]). Entretanto, nenhuma lei americana, inclusive as leis que proibem oaborto, buscam impor “crengas a respeito dessas quest6es”, A Unica questo posta pelas proibigdes do aborto é se a pessoa tem o direito de agir com base nas suas creng¢as quando essa agao envolve a subtragdio de uma inocente vida humana. Uma resposta positiva a essa pergunta pareceria justifi- car o homicidio e até mesmo o exterminio em massa. E obvio que os juizes nao tiveram a intengao de permitir uma proposta t&o ampla, portanto eles imediatamente particularizaram a lin- guagem genérica, dizendo que o direito de agir com base nessas crengas fundamentais se aplicava somente a uma mulher que estd decidindo sobre ter ou n&o um filho ou sobre a interrup¢ao da gravidez. Nesse caso, “o destino da mulher deve ser tragado, em grande parte, sobre sua propria concepg¢ao de seus deveres espirituais e de seu lugar na sociedade”. Assim, uma corte, in- fluenciada ou intimidada pela ideologia feminista, conferiu—so- mente a um tipo de pessoa, numa situagao especifica —o direito de agir segundo suas crengas, mesmo ao custo da vida humana. Os leitores irdo imediatamente imaginar, entretanto, que muitos outros considerarfo essa restrig&o arbitraria e desejardio esten- der a mesma ldgica, de modo a alegar um privilégio mais amplo para si mesmos. 42 - As Perguntas Certas 3. Deus esta definitivamente enterrado ou devemos esperar uma ressurrei¢ao? A pergunta nao é se alguma forma de “crenga religiosa” continuard a existir, pois isso certamente ocorrera, mas se Deus sera sempre excluido da drea do conhecimento e permanecerd, assim, confinado na terra-do-nunca da crenga subjetiva, onde se encon- tram Zeus, Thor e Papai Noel. Se Deus nao passa de um conceito na mente humana e nao possui qualquer poder para agir ou falar por si mesmo, ent&io pode parecer que o homem criou Deus e tem 0 poder de prescindir de sua propria criag&o. Portanto, a pergunta certa nao é tanto se Deus existe, mas se o Verbo de Deus existe e se esse Verbo fez algo que aqueles que buscam a verdade nfo podem se dar ao luxo de ignorar. Essas quest5es foram discutidas no meu livro anterior, The Wedge of Truth (Downers Grove, IIl.: InterVarsity Press, 2000), especificamente no capitulo sete. Espero que haja muito mais discussdo sobre essas questdes, 4 medida que aqueles que buscam a verdade se beneficiem dos principios liberais da Emenda Santorum, uma vez que eles percebam, de forma plena, as dimensdes religiosas e filosdficas da filosofia niilista, que tomou conta da nossa cultura em nome da ciéncia. 2 0 VERBO DE DEUS NA EDUCACAO Visitas a duas universidades Até recentemente, os educadores assumiam que a contro- vérsia sobre a evolucao biolégica fosse coisa do passado, mas agora o tema estd ressuscitando, tanto nos cémpus de universida- des crists quanto de seculares, Eu presenciei isso em primeira mao, em novembro de 2000, quando fiz palestras numa faculdade crist& e numa universidade estadual do centro-oeste. Eu fui a South Dakota State University para proferir a Palestra Harding, promo- vida por essa universidade, o que para mim é uma rara oportuni- dade de aceitar o tipo de honra e prémio que, normalmente, sfio conferidos apenas a uma celebridade, geralmente alguém cuja mensagem ou motivo para a notoriedade se ajuste aos preconcei- tos dos arbitros do estilo académico. Entre os palestrantes anteri- ores dessa apresentacdo incluem-se nomes como Ralph Nader, o antigo primeiro-ministro britanico sir Haro!d Wilson, John Dean, Betty Friedan, Molly Ivins e o Senador Tom Daschle. Eu me per- mito declinar esses nomes nao porque esteja lisonjeado pelo fato de ser classificado ao lado de anti-herdis como o conspirador de Watergate, John Dean ou 0 icone feminista, Betty Friedan, mas para ressaltar o fato encorajador de que se tornou possivel a um 44 - As Perguntas Certas notorio “criacionista do projeto inteligente” ser escolhido, por um comité universitario de uma instituigao secular, para uma palestra de prestigio, ainda que a universidade em questo esteja longe do topo da hierarquia académica. Os membros do comité me disseram que um dos motivos pelos quais eu tinha sido escolhido foi pelo fato de que a freqiién- cia a essas palestras tende a ser vergonhosamente baixa ¢ eles sabiam que a minha mensagem iria despertar interesse suficiente para encher o auditorio. Esse é um ponto importante. Evidente- mente, espera-se que uma mensagem seja verdadeira, mas a ver- dade nao sera ouvida a menos que 0 orador seja suficientemente interessante, nao s6 para atrair uma audiéncia, mas para desmon- tar alguns de seus preconceitos, de forma que eles prestem aten- ¢40 ao que est&o euvindo e, entao, reflitam sobre isso posterior- mente. Quando fago palestras, meu objetivo nao é convencer as pessoas de que a minha posigao é a correta, mas fazer com que elas deixem 0 auditério dizendo algo do tipo: “Ha mais coisas en- volvidas nessa controvérsia do que eu havia imaginado. Nés de- vemos discutir esses temas em sala de aula”. Na esperanga de abrir um pouco o ambiente ideologica- mente hermético das salas de aula, pego aos grupos ou as pessoas que querem que eu profira palestras numa universidade em parti- cular que tentem conseguir um convite oficial que tenha 0 apoio de um departamento académico, bem como uma apresentacao por parte de algum professor ou administrador bastante respeita- do. Eu tenho consciéncia de que o rétulo “orador cristio convida- do”, por si sd, significa para os professores seculares que “esse é 0 tipo de orador que toleramos no cémpus para demonstrar nossa mentalidade liberal, mas nao alguém que levariamosa sério”. Uma vez no palco, porém, eu normalmente considero relativamente fa- cil despertar o interesse apropriado, mesmo se as autoridades aca- démicas se recusem a cooperar. Em toda universidade ha diversos professores e estudantes que se sentem asfixiados pelos dogmas dominantes do materialis- mo cientifico ou pela postura politicamente correta, mas que qua- O Verbo de Deus na Educagao - 45 se nunca tém uma chance de ouvir algo diferente disso. As condi- ges para uma reforma so propicias, mas alguém tem de tomar a iniciativa de introduzir novas idéias em uma cultura profissional, que quer, desesperadamente, manté-las de fora. Esse proprio de- sespero cria uma tensdo quando alguém consegue, finalmente, superar as barreiras e levar os conceitos discriminados por meio de uma linguagem que faca sentido em meio ao ambiente acadé- mico. Na verdade, eu uso praticamente os mesmos argumentos contra o darwinismo ¢ 0 materialismo cientifico, que foram utiliza- dos pelos darwinistas do século 19 contra os preconceitos domi- nantes de sua época. “Vocés devem prestar atengéio 4 nossa evi- déncia cientifica”, diziam eles, “mesmo que ela seja contraria as suas Escrituras e aos seus pressupostos filosdficos”. Os darwinistas n&o podem concordar com essa proposta, porque seu pressuposto essencial é, como sempre foi, afirmar que € contraditério se falar em evidéncia cientifica contra o materialismo, uma vez que um compromisso para com o materialismo, como metodologia, é ine- rente a propria definigao de “ciéncia”. Por outro lado, eles sen- tem-se embaragados em alegar que uma doutrina filosofica tenha precedéncia sobre a evidéncia empirica, pois essa afirmagao tam- bém contradiz a esséncia da ciéncia. Otratamento de primeira classe que recebi na South Dakota State contrastou com a recepgao cortés, mas cautelosa, que rece- bi por volta da mesma época, numa faculdade crista (pertencente A greja do Nazareno). A universidade secular havia me convida- do para proferir uma palestra promovida pela instituig&o porque o comité de palestras estava aberto 4 expectativa de um desafio aos padrdes de pensamento aceitos. A faculdade crista, contudo, aceitou-me apenas de forma relutante, pela insisténcia de um jo- vem e dedicado professor de ciéncias, que se ofereceu para co- brir as despesas de seu préprio bolso. As faculdades crist&s geral- mente no dao as boas-vindas a um orador convidado que trate do conflito entre criagao e evolugéio. Hd exceg6es. Porexemplo, numa faculdade crist&, em Indiana, os professores de biologia tomaram a iniciativa de providenciar para que eu fosse convidado para pas- 46 - As Perguntas Certas sar dois dias com todo 0 corpo docente no seu retiro de inicio de ano. No entanto, um convite que envolva uma discuss&o embasada, entre professores universitarios, a respeito de criacdo e naturalis- mo, € bastante incomum. A maioria dos professores universitarios crist&os é tao hostil 4 “direita religiosa”, quanto seus colegas se- culares. Eles querem o menor envolvimento possivel com contro- vérsias sobre a evolugao, encarando o tema como algo inerente- mente vinculado a um fundamentalismo ignorante, que tem impe- dido as instituigdes cristas de melhorarem sua qualidade e sua posig&o académicas. O problema da posi¢&o académica surge, primordialmente, do fato de que os professores ateus, que controlam a cultura aca- démica, tendem a possuir uma péssima opiniao a respeito de tudo 0 que seja rotulado como “crist&o”. Isso coloca os professores em faculdades cristas sob pressao para que se distanciem de tudo 0 que soe, mesmo que remotamente, como “fundamentalismo” —o que representa, virtualmente, a expresso mais negativa do voca- buldrio académico. Nada soa tanto como fundamentalismo quan- to um desafio a teoria da evolugdo. Os professores universitarios cristos tém de servir a dois senhores bastante exigentes e contraditérios. Por um lado, os ad- ministradores da instituigao e os pais, que pagam as mensalidades, tendem a pensar que os professores devem ensinar de forma a reforgar as doutrinas crist&s ortodoxas e, assim, manter os estu- dantes firmes na fé que aprenderam no Jar e na igreja. Por outro lado, os mesmos pais e administradores querem que as faculda- des sejam razoavelmente bem classificadas no mundo académi- co, de modo que os titulos que elas concedam possam ser valori- zados para fins de continuagdo dos estudos académicos em ou- tras instituigdes. Esses dois objetivos permanecem em consideravel tensio, pois a classificagao académica é conferida por agéncias secula- res de validag&o e associagdes académicas para as diversas dis- ciplinas. Os professores crist’ios com as melhores credenciais te- rao recebido seus titulos em universidades nas quais naturalismo e O Verbo de Deus na Educagéio - 47 racionalidade s&o considerados como inseparaveis e, dai para fren- te, ocuparao uma posigao mais ou menos elevada na hierarquia académica, dependendo de sua permanéncia ao lado da maioria de seus colegas seculares. HA todo estimulo para que eles reco- nhegam que a fé cristé é nada mais do que um verniz, uma fina camada sobreposta ao tipo de aprendizagem que experimentaram nas universidades e que praticam nos encontros académicos se- culares. Se os pais e administradores das instituigdes compreen- dessem com precisao 0 que esses professores esto pensando e ensinando, poderiam suspeitar que os estudantes estavam sendo ensinados a crescerem fora da fé de sua infancia, em vez de cres- cerem nessa fé. Talvez fosse mais realista dizer que suas presen- tes suspeitas seriam enfaticamente confirmadas. A tensio entre a fé cristae o racionalismo académico esta presente em cada matéria, mas o curriculo de biologia é 0 alvo principal. Os professores crist&ios tém de ensinar a teoria da evo- lug&o sem qualquer restrig&o, se quiserem manter alguma credibilidade diante dos bidlogos seculares; porém, devem afirmar que acreditam na criagao divina, para convencer sua comunidade crista de que eles no so apenas cristéos nominais. Para recebe- rem seus salarios, eles normalmente tém de assinar “declaragdes de fé” que digam, com maior ou menor detalhe, que eles acredi- tam na criagdo, segundo ensinada pela Biblia. Mesmo se a decla- ragao for vaga, a maioria de seus adeptos cristdos assume que a criagdo implica, no minimo, alguma influéncia sobrenatural na natureza, um conceito que é veementemente rechagado nos prin- cipais circulos cientificos. Ocaminho da resisténcia minima representa fingir que nao ha qualquer conflito entre o naturalismo evolucionista ea crenga cristd, por meio da redefinigdo do conceito de evolugao, para que signifique algum tipo de mera mudanga gradual, ignorando a exi- géncia de que essa mudanga seja incontrolada e sem propésito. Como disse um professor universitario cristéo num artigo que pre- tendia acalmar os fiéis, os bidlogos evolucionistas estéo apenas dizendo que “Deus criou o mundo por etapas”. Isso € totalmente 48 - As Perguntas Certas enganoso, é claro, pois os bid]ogos estio ensinando, na verdade, que Deus nada teve a ver com a evolucao. Para ser aceito nos circulos seculares, um bidlogo deve afirmar —ou, pelo menos, nao discordar—que a evolucao é um processo aleatério, o qual produ- ziu seres humanos por acaso e no por designio. E facil perceber por que a maioria dos professores crist4os nao quer que 0 conflito implicito seja trazido a tona. Abrindo a Mentalidade Evangélica As press6es sobre as faculdades cristas por parte das insti- tuigSes académicas seculares foram ilustradas num artigo de au- toria do socidlogo Alan Wolfe, na edicgdo de outubro de 2000 da Atlantic Monthly, entitulado “The Opening of the Evangelical Mind”. Wolfe comega, de modo bastante direto, fazendo a obser- vacio de que, no século 20, os protestantes evangélicos ficaram “em ultimo lugar, em termos de status intelectual”. Recentemen- te, no entanto, ha sinais de renovada atividade mental nas faculda- des evangélicas. Sinais que so encorajadores para Wolfe seriam, no entan- to, vistos por muitos evangélicos como bandeiras que avisam que as instituigdes estao oscilando a beira da total apostasia. O primei- ro exemplo de Wolfe foi uma aula de ciéncia politica ministrada no Wheaton College (geralmente tido academicamente como 0 car- ro-chefe no meio das faculdades evangélicas). A aula discutiu uma decisio da Suprema Corte, a qual sustentava ser inconstitucional que um rabino fizesse uma oragdo nao-sectaria ~ agradecendo a Deus “pelo legado da América, onde a diversidade écelebrada ¢ os direitos das minorias, respeitados” — numa ceri- mOnia de formatura de uma escola publica. Todos os estudantes de Wheaton se posicionaram de acor- do coma linha “dos muros de separagdo”, relata Wolfe, “como era de se esperar de uma geraco ensinada a crer que a toleran- cia é o valor moral supremo” (Na comunidade académica liberal, Deus sempre é associado a intolerancia, mesmo quando ele apdia O Verbo de Deus na Educagio - 49 a diversidade e os direitos das minorias.). Quando um estudante tentou criticar a opiniao da maioria, os demais “discordaram, rindo de forma desdenhosa”. Wolfe considerou essa atitude de demons- tragdo de uma postura politicamente correta como sendo um de- bate “vibrante, inteligente e informado”. Em termos ideolégicos, se nao em termos de sua sofisticag4o, ele pareceu ser idéntico ao que alguém iria ouvir numa escola de direito secular ou numa reu- nido da Associag4o Americana das Liberdades Civis. A descrig&o de Wolfe do Southern California’s Fuller Theological Seminary é semelhante. Tem-se a impress&o, com base no relato de Wolfe, de que a caracteristica mais relevante da Escola de Psicologia do Fuller sejaa sua admiragao, até mesmo a sua veneragdo, pelo autor da Nova Era, M. Scott Peck. Segundo Wolfe, os escritos de Peck retratam simpatia por uma ampla vari- edade de religides orientais e “defendem uma compreensao am- pla da religiao, a qual nao necessita nem mesmo incluir a crenga em Deus”. Nas aulas do professor Jim Guy, as idéias de Peck e praticamente todas as demais idéias eram aceitas sem qualquer senso critico. Segundo Wolfe: A discuss&o raramente ia além de uma troca de clichés. Porém, 0 ambiente da sala de aula era tao cordial ¢ empatico quanto 0 texto encorajador de Peck. Cada comentario de um estudante, nao impor- ta quao trivial fosse, era tratado como uma profunda reflexdo sobre a condigao humana. (Minha impres- sao, com base naquilo que eu confesso ser uma amos- tra nao representativa das aulas, é que a mentalidade do Fuller torna inconcebivel que qualquer professor, alguma vez, possa dizer que um comentario de um estudante esteja simplesmente errado.) . . . Os estu- dantes com os quais falei depois da aula, dos quais todos planejavam se tornar pastores ou profissionais da area de satide mental, tinham adorado a aula e 0 professor Guy. Suas atividades profissionais iriam exigir que eles mantivessem uma visao otimista do 50 - As Perguntas Certas mundo ¢ 0 espiritualismo de Peck viria a calhiar, quan- do estivessem atormentados pelas dividas. Seria interessante saber quanta tolerdncia um estudante do Fuller encontraria, se argumentasse que o Fuller deveria estar ensinando as tradicionais doutrinas crist&s, em vez de um espiritualismo pés-crist&o da Nova Era. Talvez as anedotas de Wolfe n&o retratem o ensino de Wheaton ou do Fuller, mas representantes dessas instituigdes ndo ofereceram quaisquer outros exemplos contrarios, ao responderem ao artigo de Wolfe pela Internet. O que quer que esteja ocorrendo nessas institui¢es, o artigo aparentemente favoravel de Wolfe en- viou uma mensagem bastante clara sobre o que as faculdades cris- tais devem fazer para alcangar qualquer reconhecimento por parte dos intelectuais seculares. A mensagem foia de que os professores crist&ios podem esperar por aprovagao, por parte do tipo de pessoas que escrevem para a Atlantic Monthly, mas apenas contanto que caminhem na diregao do liberalismo secular ou do relativismo pés- modernista. Nos circulos intelectuais seculares, distintamente cris- t&o quer dizer distintamente inferior, enquanto um ambiente cordial ¢ indefinido, em que os estudantes jamais esto errados — a menos que demonstrem “intolerancia’’— é prova de que as coisas esto, no minimo, caminhando na direc&o correta. As faculdades cristés também enfrentam pressdes da ala mais conservadora. Isso normalmente envolve temas como as normas de comportamento estudantil. No entanto, em questdes intelectuais, a evolugao bioldgica é onde o conflito tem maior pro- babilidade de surgir. Deveria ser exigido que os professores de faculdades cristéis ensinassem que a criagao ocorreu mais ou menos da forma como esta descrita nos trés primeiros capitulos de Génesis? Muitos dos pais que pagam as mensalidides provavel- mente acham que sim e ter de encarar essas exigéncias é um pesadelo para os professores, os quais desejam ensinar o tipo de ciéncia que a corrente dominante da comunidade cientffica consi- dera como valida. Pouco depois da minha propria palestra, o cor- O Verbo de Deus na Educagao - 51 po docente do Nazarene College ficou traumatizado com um fa- moso criacionista da terra-nova que insistia em que a criago ter ocorrido literalmente em seis dias é uma questio de fundamental importancia para a fé cristé. Ele deu a sua audiéncia a clara im- pressao de que deveriam estar a caminho de abandonar totalmen- te a fé crista, se questionassem a veracidade do relato de Génesis. Eu encontrei muitos criacionistas da terra-nova e respeito 0 posicionamento deles, a despeito do que o mundo possa pensar disso. Eles sio pejorativamente chamados de “literalistas do Génesis”, mas isso é uma caricatura. Eles sabem que o Génesis contém figuras de linguagem, como a que faz referéncia a Deus andando no jardim. Os criacionistas léem Génesis nao com um literalismo estipido, mas mediante um principio de interpretagao que era um padrao geral antes do surgimento das inovagdes pés- modernistas, como a desconstrugao € a teoria bascada na reac¢o do leitor: um texto deveria ser lido da forma como o autor preten- dia que o fosse. Os crist&os tém a sua disposi¢0 um modelo ideal de leitor: 0 préprio Jesus. Onde Jesus citou Génesis, 0 significado que ele extraiu das palavras é normativo para todos os cristaos. Dizer que Jesus nada sabia sobre a ciéncia moderna ja é um argu- mento suficientemente ruim, mas dizer que ele nem mesmo en- tendia Génesis é fatal para o Cristianismo se isso for verdadeiro, e uma blasfémia, se falso. Portanto, reconhe¢o prontamente que Génesis é importante e que a questiio de seu valor histérico no pode ser evitada indefinidamente. “O que devemos pensar de Génesis?” Essa é uma das perguntas certas e vou explora-la no capitulo seis, embora nao seja o local certo por onde comegar. Como interpretar Génesis é matéria de debate muito ani- mado, mesmo nos circulos mais conservadores do movimento evangélico. Dizer aos professores que todos eles «levem aceitar uma posi¢ao a priori é dizer a muitos deles que devem ensinar aquilo que acreditam ser falso e dizer a todos eles que devem abandonar toda esperanga de serem respeitados no mundo aca- démico. Dificilmente essa é a maneira de encoraja-los a levantar esses temas complexos em sala de aula ou a se envolverem em 52 - As Perguntas Certas discuss6es intelectuais com outros professores. Se desejarmos que os professores cristéos confrontem essas questdes complexas em vez de evita-las, temos de assegurar a eles que no terfio a cabe- ga cortada se disserem algo que ofenda um ou outro dos membros da instituigao. A liberdade académica nao é um luxo, mas uma necessidade, na educagao superior. A quest&o implicita é se a verdade surge de uma observagao justa e imparcial da evidéncia ou dos pronunciamentos de quem quer que detenha o poder. ‘Tentativas de controlar o pensamento de cima para baixo so, afinal, indteis. Estabelecer respostas antes de uma discussio livre produz apenas a aparéncia de concordancia por parte dos professores, que irdio enviar aos estudantes uma mensagem impli- cita de que “nds somente ensinamos isso porque somos obrigados e se tivéssemos liberdade, iriamos ensinar a vocés algo melhor”.” A maneira de se lidar com a timidez ¢ 0 auto-engano na educagio crista no esta em tentar impedir que idéias ruins sejam ensina~ das, mas, antes, em assegurar que as idéias ruins sejam contesta- das com eficacia por idéias melhores, numa atmosfera de debate aberto. Pressdes conflitantes lamentavelmente criaram um dese- jo compreensivel, entre os académicos, de manter a paz por meio da tolerancia de todos, exceto daqueles que teimam em sacudir o barco. Eu quero sacudir vigorosamente esse barco, mas de um modo que torne a educacdo crista mais confiante e menos teme- rosa, que diga as pessoas que est&o se agarrando a esse barco que “entrem, pois a 4gua esta boa”. * © aspecio da educagao crist que incorre na mais intensa reprovagao por parte dos académicos seculares é a exigéncia das “declaragdes de £6”, como mencionado anteriormente. As faculdades seculares fazem exigéncias quanto a seus préprios compromissos doutrindrios, mas estes so impostos pelos propri- os professores, por meio da crilica e da divulgagao de publicagées dos colegas, ¢ nao pelos administradores. A existéncia dessas declaragdes (ki: fé crista nao signi- fica que as faculdades cristas valorizem menos a liberdade académica do que suas contrapartes seculares, O que isso significa é que, deixados por conta prépria, os professores cristaos iriam se distanciar de quaisquer doutrinas cristds que fossem inconsistentcs com os pressupostos fundamentais do mundo académico secular. O Verbo de Deus na Educagao - 53 Unir o casal ha tanto tempo separado Por onde comegar era a divida em minha mente, enquanto eu me levantava para falar sobre criagao e evolugdo para a as- sembléia matinal, no Nazarene College, que segue a tradig&o de Wesley. Senti-me encorajado ao descobrir que 0 capelao da fa- culdade, que iria me apresentar, compreendia com tamanha pro- fundidade o que eu estaria falando, que havia alterado suas obser- vagGes introdutdrias, para que se adequassem aquilo que ele ha- via captado, a partir de nossa conversa preliminar. Melhor ainda, eu vi, escrita na parede da frente do auditorio, uma sintese elo- qiiente da tese que eu pretendia apresentar. O lema dessa facul- dade, que havia sido escrito por Charles Wesley, é: “Unir 0 casal ha tanto tempo separado, o conhecimento ea fé vital”. De fato, esse é 0 ponto de partida perfeito: como unir 0 conhecimento ea fé, partindo-se do pressuposto de que eles deveriam ser unidos? A maioria das minhas audiéncias académicas pensa que ja sabe do que trata o debate entre criagao e evolucao e sua incompreens&o mantém separados o conhecimento ea fé. Elas pensam que o debate trata do livro de Génesis e do conflito entre ciéncia e religido, ou entre razao e fé. Estio enganadas. A maio- ria das pessoas incorporou uma defini¢ao preconceituosa do con- flito, uma definigao que assegura que os naturalistas cientificos irdo ganhar todos os argumentos importantes. Quando fago palestras, o primeiro problema que encaro nao é convencer a audiéncia de que tenho as respostas certas, mas convencé-los de que eles vém fazendo as perguntas erradas. O conflito n&o é primordialmente sobre Génesis, nem envolve um choque entre ciéncia e religiao, ou entre razo e fé. Seria muito mais preciso dizer que ele envolve o choque entre duas religides e duas definigdes de ciéncia. Uma vez que possamos definir corre- tamente as perguntas, as respostas correspondentes surgem com a mesma naturalidade com que uma maga cai de uma 4rvore ou uma chave entra na fechadura. O problema esta em ultrapassar a barreira do falso entendimento, 0 que nos ensina que 0 abismo 54 - As Perguntas Certas entre os pontos de partida naturalista e teista pode ser ultrapassa- do por meio de uma concessiio superficial. E de grande ajuda se eu puder transmitir minha mensagem numa linguagem que a audi- éncia ja compreenda, linguagem essa que lhes permita ouvir o contetido, sem o fardo de traduzir palavras desconhecidas em conceitos familiares. A linguagem de Charles Wesley era perfeita para essa finalidade. Conhecimento e fé: como se pode unir esse casal separado e deveriamos de fato aspirar a sua unio? Aqui esta a esséncia do que eu disse: Todo entendimento parte de uma compreensao da criagaéo. O conhecimento foi separado da fé por- que se entende que os dois se baseiam em relatos da criagdo radicalmente diferentes. Por um lado, a Bi- blia ensina que fomos criados por um ser inteligente edotado de um propésito, que se importa com a ma- neira pela qual vivemos nossa vida e que se comuni- cou conosco por meio de sua Palavra. Na nossa cul- tura, isso é definido como religiao. Por outro lado, o mundo secular, alegando autoridade cientifica para sua doutrina, ensina que fomos criados pela natureza, por meio de um mecanismo sem qualquer propésito, que combinou a alterag&o genética aleatéria com o prin- cipio da reprodugao diferencial. Essas duas doutri- nas da criac4o sao fundamentalmente opostas uma a outra. Qual é a correta? Se essa é a pergunta certa a se fazer, ent&o, a maneira erra- da de respondé-la é comegar pelo livro de Génesis. Conduzir as pessoas nessa dire¢o leva a, no minimo, trés erros fundamentais, Primeiro, as pessoas assumem que a controvérsia envolve primordialmente a escala de tempo de Génesis. Isso leva muitos cristéios bem-intencionados a acharem que podem solucionara con- trovérsia se interpretarem os “dias” de Génesis como sendo eras geoldgicas de duragdo indefinida. Contudo, a primeira pergunta nfo é se os detalhes histéricos de Génesis so verdadeiros, mas se O Verbo de Deus na Educagfio - 55 €verdadeiro o significado fundamental de Génesis. Se nos volta- mos para os detalhes historicos, antes de entendermos os significa- dos fundamentais, estamos fazendo um convite a incompreensao. Segundo, os crist&ios bem-intencionados tendem a assumir que a teoria da evolugao ameaga somente os capitulos iniciais do livro de Génesis. Se isso fosse tudo 0 que estivesse em questiio, que importancia teria? Talvez os cristos possam se permitir adap- tar Génesis a ciéncia, da maneira que puderem, porque ha na Bi- blia outros 65 livros que tratam de temas mais importantes, como 0 pecado, a salvacdo e a ressurreicao, Porém, esse tipo de recon- ciliag&o superficial 6 inutil. Se os naturalistas evolucionistas esto certos a respeito da criacgao, a Biblia esta errada do primeiro ao Ultimo versiculo, tanto figurativamente quanto literalmente. Terceiro, os cristios normalmente acham que a controvér- sia ¢ primordialmente um questionamento sobre fatos cientificos €, portanto, ficam presos a armadilha da argumentago de porme- nores cientificos, em vez de se concentrarem nos pressupostos fundamentais que deram origem ao relato evolucionista. Eles de- veriam perguntar, antes de tudo, se fomos criados por um ser so- brenatural que se importa com aquilo que fazemos, mas, em vez disso, eles se perdem em debates técnicos sobre datagao radiométrica ou camadas geoldgicas. Em poucas palavras, os cristaos tém perdido porque nao encontraram a melhor maneira de formular a questo. Eles tém escolhido ceder demasiadamente ou lutar em bases que favore- cem os agnosticos e religiosos liberais e, portanto, estao sempre na defensiva. Se tivessem a percepgao necessdria, poderiam se posicionar de forma ofensiva. Para se transformarem de perdedores em vencedores, eles precisam comegar por uma ou- tra parte das Escrituras. No principio era 0 Verbo A passagem mais importante das Escrituras sobre a cria- ¢o nfo nos ensina sobre detalhes histéricos, mas sobre o sentido 56 - As Perguntas Certas da criagdo. Vamos comegar somente com os quatro primeiros versiculos do primeiro capitulo de Joao: No principio era o Verbo, e 0 Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no principio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermé- dio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. “No principio cra o Verbo.” Isso é verdadeiro ou falso? E um fato ou um cliché religioso? Descobri que muitas pessoas inte- ligentes, até mesmo devotados cristos, ficam surpresas quando Ihe fazem essa pergunta. Eles foram ensinados a assumir que “no principio era o Verbo” pertence a categoria da religiao e, portanto, éuma espécie de enunciado nao-cognitivo, ao qual nfo se aplicam termos de avaliaco como verdadeiro e falso. Pessoas que foram educadas na metafisica naturalista po- dem iniciar um culto com os versos de abertura do Evangelho de Joao, mas jamais lhes ocorreria iniciar uma aula de biologia ou de administragdo com as mesmas palavras. Elas sup6em que uma maneira de pensar regula os tépicos religiosos e outra diferente regula os t6picos seculares. Esse é 0 motivo pelo qual o conheci- mento ea fé tém estado tio separados. Ha uma historia da criagdo nao reconhecida, que se encon- tra na raiz de todo o aprendizado secular, a qual é, em todos os aspectos, justamente 0 oposto de Jodo I.1. Provavelmente, vocé jamais ir ouvir essa histéria da criagdo ser contada de forma franca e direta em Harvard ou Berkeley, porque expressar seus elementos de maneira explicita seria revelar que ela nao passa de uma versio da criag&o e que é possive] se conceber uma outra. Uma histéria fundamental é muito mais poderosa quando é presu- mida, impregnada de tal modo que seus elementos jamais sejam avaliados e ela aparente ser, em si mesma, uma inevitavel inferéncia racional. A histéria materialista é a base de toda a edu- cacao, em todos os departamentos de todas as universidades se- culares, mas elas néio deixam isso claro. E algo como: O Verbo de Deus na Educacfio - 57 No principio eram as particulas ¢ as leis impesso- ais da fisica. E as particulas, de algum modo, se transforma- ram em matéria viva. E a matéria criou Deus. Mas, entao, descobriu a evolugao. Essa é a hist6ria-base do naturalismo evolucionista ou do materialismo cientifico. Nao ha “Verbo” algum—nenhuma inteli- géncia ou propdsito— no principio. Existiam apenas as leis e as particulas e essas duas coisas, somadas ao acaso, tiveram de exe- cutar toda a criag&o. Sem elas, nada do que foi feito se fez. As particulas se combinaram de modo a se transformarem em maté- ria viva complexa, por intermédio de um processo de evolugao que envolveu apenas reagdes quimicas, controladas pelo acaso e pela lei natural. Deus nao criou o homem; foi justamente 0 oposto. Havendo evoluido a partir dos animais, por meio de um processo natural aleatério, mas nao tendo a ciéncia para lhes dizer 0 que havia acontecido, os seres humanos primitivos contaram com sua imaginag&o néio-instrufda para criar Deus. Assim como ocorreu com o homem, o conceito de Deus evoluiu. Uma versio influente dessa historia é a de que povos primitivos idealizaram muitos deuses que estavam presentes nos varios atributos da natureza — deuses dos rios, das florestas e das montanhas. Finalmente, uma mitologia mais avancada — apropria- daa uma sociedade patriarcal e pastoril - combinou essas divin- dades numa figura tinica e todo-poderosa, que era, de fato, so- mente uma projegdo de seus ancestrais terrenos. O Deus de Abra, de Isaque e de Jaco era precisamente isto: a personifica- ¢4o de um ancestral tribal. Essa historia monoteista da criagado permaneceu até o século 19, principalmente porque os intelectu- ais que queriam rechaga-la nao tinham uma alternativa vidvel. A descoberta da evolucio tornou finalmente possivel a “mor- te” de Deus, havendo Charles Darwin fornecido a arma indispen- sdvel para o assassinato. Essa era a teoria da selegao natural, a 58 - As Perguntas Certas qual tornou Deus desnecessario como criador da vida. O pressu- posto geral no mundo universitario, por todo o século 20, tem sido o de que a crenga religiosa, como uma atividade puramente hu- mana, pode persistir em meio a pessoas educadas, desde que essa crenga esteja de acordo com os ensinamentos naturalisticos da ciéncia. Entretanto, a crenca num criador pessoal e sobrenatural esta progressivamente restrita aos que nao tém instrug&o e pode- se esperar que desapareca gradualmente, 4 medida que a educa- ¢4o se torne cada vez mais universal. Mesmo que as pessoas instruidas fiquem insatisfeitas com o materialismo, elas tendem a se voltar para alguma convengaio nao-biblica, como a teologia do processo, na qual Deus evolui com o mundo. A Luz que veio ao Mundo A histéria do evangelho conta que no Verbo vivo “estavaa vida, ea vida era a luz dos homens”, A metafora da luz é repetida diversas vezes. A luz resplandece nas trevas, e as trevas naio prevaleceram contra ela; a verdadeira luz, que ilumina a todo ho- mem, estava chegando ao mundo. A luz é algo visivel e porque existe luz, vocé pode ver tudo o mais. Se vocé estiver perdido numa caverna escura e vir uma luz se aproximando, vocé sabe que esta chegando alguém para resgata-lo. Porém, ainda mais importante é 0 fato de que quando a luz surge, vocé sera capaz de enxergar onde esta e como deve agir para estar seguro. Esse é um dos temas biblicos mais importantes. Se é verdade que toda criago se realizou por meio do Verbo e se esse Verbo criador realmente se tornou carne ¢ habitou entre nés, ent&o esses fatos so de extrema relevancia e deveriam iluminar todos os demais. Se os homens ignorarem a realidade do Verboe seguirem, em seu lugar, uma histéria baseada em particulas, essa rota equivocada deve leva-los ao erro e A confus&o, de volta a escuridao da caver- na, em vez da saida para a luz. As pessoas que comegam a partir de uma base equivocada nao cometem apenas um erro; elas cons- troem uma torre de erros. O Verbo de Deus na Educagao - 59 A histéria das particulas tem um conceito paralelo de luze trevas, mas os conceitos sio, obviamente, contrarios. Segundo a historia agnéstica das particulas, a luz que veio ao mundo é a luz. da ciéncia. As trevas que a luz dissipou foram as trevas da su- perstig&o, que brota da historia do Verbo. Como coloca o gene- ticista de Harvard, Richard Lewontin; “O problema primordial [para a educagio cientifica] n&o esta em proporcionar ao publi- co o conhecimento sobre a distancia que existe até a estrela mais proxima ou sobre aquilo do que sao feitos os genes... An- tes, o problema esta em levar as pessoas a rejeitar explicagdes irracionais e sobrenaturais do mundo, os deménios que existem somente na imaginagao delas e a aceitar um aparato social e intelectual, a ciéncia, como 0 unico gerador da verdade” (Vide meu livro, Objections Sustained [Downers Grove, Il.: InterVarsity Press, 1998], pags. 67-70.). Em sintese, para Lewontin a educagao cientifica se resume a divulgar o agnos- ticismo ¢ 0 cientificismo. Especialistas em relagdes publicas, contratados pela National Academy of Science, podem dar um verdadeiro show ao refutar a andlise de Lewontin, mas eu duvi- do que eles estariam dispostos a repudia-la enfaticamente e de maneira obvia. Talvez Lewontin tenha feito essa afirmagao de forma mui- to direta. Um divulgador mais cauteloso da filosofia materialista teria dito que a ciéncia é um modo de gerar verdade, deixando implicito que ha outros modos. Mas se vocé perguntar quais so esses outros modos, ira descobrir que eles sao formas de sentir, e nfo de conhecer. Uma pessoa cientificamente educada pode ter sentimentos de surpresa e admiragao diante das maravilhas da natureza e pode até sentir devogao por uma causa sagrada. Po- rém, essas sao inclinagdes subjetivas que nao tém qualquer status como conhecimento objetivo. A ciéncia é sempre o caminho do conhecimento, a unica trilha que conduz ao conhecimento objetivo que é valida para todos. A crenga religiosa pode continuar a exis- tir na era da ciéncia, mas subsistira somente nas sombras da ca- verna, onde a luz da ciéncia ainda nao tenha penetrado. 60 - As Perguntas Certas A tarefa da teologia moderna é se manter em paz com a ciéncia, fazendo com que Deus — ou algo que soe vagamente como Deus —se adapte a histéria das particulas. Isso nao ¢ dificil de ser feito se vocé se contenta com coisas superficiais. Por exem- plo, Deus pode ter, antes de tudo, fornecido as leis e as particulas. Ele pode ter deixado que as particulas se desenvolvessem por si mesmas depois disso, talvez porque quisesse deixar a criag&o li- vre de toda influéncia exterior. Alguns evolucionistas teistas supdem que Deus sabia quea vida inteligente iria finalmente evoluir, em algum lugar do universo ¢ isso foi suficiente para satisfazer seus propdsitos. Os tedlogos modernos geralmente se contentam em pensar na religiio como uma atividade puramente humana de qualquer modo; portanto, o fato de que “a matéria criou Deus” n&o os ameaga. Pelo contra- rio, a idéia de que o homem tenha criado Deus a sua prépria ima- gem tem um certo apelo para eles, uma vez que implica no fato de que Deus pode ser recriado, a cada geragiio, de forma a se adap- tar A conveniéncia dos tedlogos. Conseqiientemente, é possivel encontrar tedlogos modernos aderindo 4 historia das particulas n&o com relutancia, mas com entusiasmo pela tese de que essa versio retrata um Deus humilde que deixou a natureza livre para realizar sua prépria criagao. No entanto, na universidade moderna, a teologia moderna é to desprezada quanto o criacionismo, porque nado conduz ao co- nhecimento. Uma vez que os cientistas tenham descoberto algo a respeito de como o mundo funciona, os tedlogos podem dar um nome a isso e inventar algum principio teolégico para revesti-lo. Porém, os tedlogos nunca descobrem coisa alguma e sua ativida- de é totalmente parasitaria, A luz do que é fornecido exclusiva- mente pela ciéncia, Contanto que seja assim, as instituigdes cris- ts sero afortunadas em se manterem no mundo da educagao, mesmo que numa posi¢do marginal. Os intelectuais cristios de- vem encontrar uma forma de escapar da pris&io mental que ajuda- ram aconstruir oua fé crista ira sofrer a lenta morte intelectual da crescente irrelevancia. i i 1 [ t O Verbo de Deus na Educagiio - 61 As perguntas corretas sobre os Fundamentos Religiosos da Educacao 1. A educagio universitaria deveria preparar os estu- dantes para que entendam o sentido ou propésito funda- mental pelo qual se deve viver, e para que escolham corre- tamente dentre as opgdes disponiveis? Alternativamente, esse tema deveria ser deixado fora do curriculo com base em que a escolha entre propésitos fundamentais envolve somente preferéncias subjetivas e nao conhecimento? E trivial os cientistas e filésofos contemporaneos renderem gragas ao principio de que a ciéncia decide apenas a respeito das questées sobre como as coisas se dio, deixando as questdes dos porqués para a religiao. Se isso fosse literalmente verdade, ent&o qualquer resposta dada 4s questdes dos porqués seria consisten- te coma ciéncia. Na pratica, a autoridade epistémica da ciéncia € tao impressionante e a posigao da teologia tao precaria, que estar “fora da ciéncia” significa efetivamente estar “fora da realidade” e apremissa de que a ciéncia seja inadequada para determinar se o mundo tem um propésito é tomada como algo que impSe a con- clus&o de que o mundo nao tem propésito algum. Um propésito nao-detectavel é, efetivamente, inexistente; como poderiamos sa- ber do propésito, se a ciéncia nao pode descobri-lo? O conceito de propdsito fundamental é provavelmente inseparavel do conceito da revelacao divina. Essa é a raz&o pela qual esse capitulo se intitula “O Verbo de Deus na Educagao”, em vez de “O Conceito de Deus na Educagao” (muito mais civiliza- do). A pergunta correta nao é se Deus existe, mas se Deus reve- loua natureza do propdsito fundamental do mundo. Além disso, as quest6es do porquée como nao sio solucio- nadas com facilidade. A resposta crista para a quest&o do “fim supremo do homem” procede da premissa de que Deus nao sé existe, como também se importa com aquilo que fazemos e, ainda, que a vida eterna existe para ser usufruida. Muitas pessoas, ale- 62 - As Perguntas Certas gando falar em nome da “ciéncia”, iriam insistir veementemente no fato de que essas premissas s4o falsas ou mesmo absurdas. Segundo o influente darwinista Richard Dawkins, o universo que observamos “tem exatamente as propriedades que deveriamos esperar que tivesse se néio houvesse basicamente designio algum, nenhum propésito, nenhum mal ou bem, nada, exceto a cegae insensivel indiferenga” (River Out of Eden [Nova York: BasicBooks, 1995], pag. 133). Os lideres académicos das nossas universidades podem negar que apdiam o niilismo de Richard Dawkins, mas pode pare- cer que eles de fato o apdiam, se tratam como insignificante a questo da escolha certa sobre 0 sentido da vida. Os materialistas cientificos geralmente admitem que as pessoas podem escolher para si mesmas um sentido de vida, mas eles concebem isso como um processo de invengao de um sentido, e nao de descoberta de um sentido auténtico, o qual existiria quer descoberto ou nao por eles, da mesma forma que os cientistas podem descobrir uma nova verdade sobre o mundo fisico, como a velocidade da luz. Nesse Ultimo caso, a verdadeira caracteristica se encontrava la, para ser descoberta, mesmo quando ninguém sabia o que era e, portanto, os cientistas nao inventaram a caracteristica geralmente aceita, mas a descobriram. A mesma ldgica nao se aplica, necessariamente, a tudo 0 que os cientistas alegam ter descoberto. Quando Richard Dawkins anuncia de forma confiante que o materialismo é uma verdade, isso pode ser comparavel 4 convicgado de Darwin de que os ho- mens sao mais inteligentes do que as mulheres e os europeus mais inteligentes do que os asiaticos ou africanos — um preconceito cultural e nao uma tese cientifica. A Emenda Santorum, discutida no capitulo um, destinava-se a possibilitar que se fizesse esse tipo de disting&o na educagao publica e a presente discussao estende o mesmo tema a educacao superior. Uma das perguntas certas a serem feitas é por que as autoridades das areas cientifica ¢ edu- cacional temem tanto 0 que possa acontecer se as pessoas forem encorajadas a aprender a distinguir entre os dados ou hipdteses O Verbo de Deus na Educagaio - 63 cientfficas comprovaveis de um lado e do outro, as idéias religiosas € filoséficas, por meio das quais se alega a autoridade cientifica. No seu livro The Long Journey Home, Os Guinness for- nece um guia breve para a busca do sentido da vida. Para exemplificar o que falta na nossa educagao moderna, Guinness conta uma anedota, contada pela primeira vez pelo economista E. F, Schumacher. Schumacher estava passeando na bela cidade tussa de Sao Petersburgo, ent&o conhecida como Leningrado, numa. época de sua histéria em que esta se encontrava em declinio, sob o controle comunista. Ele percebeu que o mapa, 0 qual estava diligentemente seguindo, nao correspondia aquilo que ele estava vendo. Bem diante dele se encontravam algumas igrejas ortodo- xas russas, com suas caracteristicas cipulas douradas. Schumacher perguntou ao guia turistico porque as igrejas nio constavam no mapa. “E simples” - respondeu o guia de forma prestativa —“nés n&o colocamos igrejas nos nossos mapas”, Schumacher percebeu que o incidente poderia servir como uma parabola de sua propria educagao. Ocorreu a ele, como es- creveu mais tarde no livro Guide for the Perplexed, que essa nao era a primeira vez que recebera um mapa que n&o mostrava coisas que ele podia ver bem diante de seus olhos. “Durante toda minha vida escolar e universitaria, eu havia recebido mapas e co- nhecimento nos quais mal havia um trago das coisas com as quais eu mais me importava e que me pareciam de extrema importancia para guiar a minha vida” (Guinness explica que Schumacher quis dizer que os mapas mentais que sdo fornecidos a um intelectual europeu, mesmo em paises nio-comunistas, “no tinham espaco para a fé que era para ele tao essencial”.). Todo cristao que tenha freqilentado uma universidade norte-americana moderna enten- derd essa questao. Levando mais adiante a parabola de Schumacher, podemos imaginar como as autoridades soviéticas poderiam reagir, caso tivessem recebido queixas de visitantes demasiadamente nume- rosos ou influentes para que se ignorasse que os mapas eram inadequados. Provavelmente, elas teriam feito um outro mapa, 64 - As Perguntas Certas disponivel apenas nas lojas que atendiam aos estrangeiros, que incluisse as igrejas — que seriam classificadas como prédios de interesse histérico. Entao, elas poderiam dizer de boa fé que “as igrejas constam dos nossos mapas agora”, porém os mapas nao as mostrariam como locais destinados 4 adorag4o, mas como museus de uma fé superada. Talvez as nossas préprias autorida- des intelectuais fagam algo semelhante quando revestem 0 mate- rialismo com a autoridade da “ciéncia” e marginalizam o teismo como “religido”. O efeito seria praticamente o mesmo se eles rotulassem o materialismo como “conhecimento moderno” e 0 teismo como “superstigao pré-moderna”. Deveriamos empregar mais alguma terminologia imparcial? O local de adora¢ao oficialmente designado como tal na Unido Soviética, nao (obviamente) sob esse nome, é 0 timulo de Lénin, em Moscou. Quando a autoridade que est no poder decla- raa religio tradicional irrelevante para a vida moderna, deixa um vazio espiritual que atrai alguma nova ideologia a ocupar 0 espago deixado pela partida do Transcendente. O sepulcro do ditador morto como um santuario para adorag4o ¢ um fendmeno totalmente con- trario ao marxismo, porém algo deve permanecer como simbolo do propésito supremo de todo 0 resto. Se o tamulo de Lénin tives- se de ser eliminado, ent&o, provavelmente teria de ser substituido por algo, com conseqiiéncias incalculaveis. Podemos nos perguntar se a América contemporanea é completamente diferente. Deixo ao leitor a tarefa de imaginar qual reparo possa ser algum dia proposto, em relagdo aos monumentos em Washington, D.C. Quanto aos monumentos da fé, em Nova York, esse € um tema ao qual devo retornar no capitulo cinco. Seguindo ainda mais adiante no mapa da parabola, suponha (diferentemente do ocorrido) que 0 trisavé de Schumacher tenha visitado as famosas cidades russas, em 1900. Ele admira as gran- des igrejas ortodoxas, mas também nota uma igreja protestante bastante freqiientada, assim como uma mesquita e um prédio com aparéncia de igreja, com uma placa que o identificava como a “Igreja da Razio”, onde socialistas unitarios se reanem para dis- O Verbo de Deus na Educagao - 65 cussdes de teoria politica. “Por que essas outras igrejas nao cons- tam também no mapa?”, ele pergunta aos oficiais czaristas. “Nao consideramos esses lugares como igrejas genuinas”, respondem eles, “mas como locais de encontro para traidores da causa. Fariamos a policia fecha-los e prender seus lideres, mas isso apenas faria com que surgissem martires e causaria mais proble- mas do que os resolveria. Tentamos lhes dispensar a menor aten- go possivel, porque ha muitos jovens facilmente influenciaveis na nossa igreja ortodoxa, especialmente entre os estudantes universi- tarios, e eles so atraidos para essas casas de heresia ¢ freqiientemente seduzidos pelos argumentos insidiosos que ouvem dentro delas. O melhor que podemos fazer é preservar essas men- tes imaturas de cair em tentacdo e esperar que nfio descubram como encontrar as falsas igrejas, pelo maximo de tempo possivel”. O ancestral ficticio de Schumacher iria certamente con- cluir que a igreja ortodoxa russa esta a caminho de uma crise. O fato de uma crenga dominante depender, para sua sobrevivéncia, de impedir que seus seguidores explorem as alternativas existen- tes é uma estratégia fadada ao fracasso a longo prazo, especial- mente quando as oportunidades de aprendizagem estfio crescen- do e o poder dominante teme a opiniao publica e, portanto, nao esta disposto a empregar toda a forga de que dispde. Esse dilema também é caracteristico da extensa subcultura crist& americana. Se os pais cristaos enviam seus filhos para cs- colas cristas, sobretudo para adiar o dia mau, quando eles toma- r4o contato com o poder plenamente sedutor da cultura secular, ent&o, esses pais esto, no maximo, adiando a inevitavel apostasia e poderao nao obter éxito em adid-la por muito tempo. O que eles precisariam fazer era ensinar-lhes a respeito dos conceitos erra- dos, de forma que os estudantes pudessem avalia-los racional- mente (A probabilidade de que essa abordagem seja bem-sucedi- da depende da possibilidade dos conceitos serem, de fato, err6- neos.). Por outro lado, os materialistas cientificos podem, da mes- ma forma, estar meramente adiando 0 inevitavel, se est&o contan- do com seu controle sobre os livros académicos e a midia domi- 66 - As Perguntas Certas nante, para desencorajarem jovens curiosos de explorarem for- mas de pensamento alternativas. Essa estratégia é particularmen- te mfope, numa época em que novas formas de comunicagio e ensino s&o cada vez mais importantes, 2. Certos compromissos, feitos a priori, sio indispen- sdveis como base para 0 didlogo racional e a tolerancia mu- tua, caracteristicas essas que definem a educagao liberal? Quais so esses compromissos e qual é 0 seu pressuposto? Os intelectuais seculares tendem a ser altamente criticos em relagao As instituigdes cristas que exijam que seus professores afirmem sua ades&o as doutrinas fundamentais da igreja mantenedora, tal como a da autoridade da Biblia e a da ressurrei- ¢40 fisica de Jesus, Esses sio0 compromissos feitos a priori, 0 que significa que nao estao sujeitos a continuo reexame, a luz de nova evidéncia ou de alteragdes no meio intelectual. Os secularistas afirmam que os compromissos religiosos obrigatérios sao incon- sistentes com a liberdade académica. Eles tém objecdes, em prin- cipio, quanto a compromissos feitos a priori ou somente quanto ao carater religioso dos compromissos, nas escolas cristas? O que dizer quanto a um compromisso feito a priori em relagio a liber- dade académica ou a existéncia de padrées interculturais e objeti- vamente mensuraveis de mérito artistico ou intelectual? Que pres- supostos ideoldgicos justificariam esse tipo de compromisso? Para entender o problema, imagine um curso de literatura numa de nossas melhores universidades. O professor (ainda as- sistente, que espera ser promovido a titular em um ou dois anos) indica a bibliografia e, conseqiientemente, estabelece o programa para discuss&o em sala de aula, mas, dai em diante, a discussao em si prossegue com base na premissa da igualdade social e inte- lectual. Os estudantes nao hesitam em desafiar afirmagdes feitas pelo professor ou que constam nos textos indicados. Agora, supo- nha que trés alunos, que alegam representar muitos outros, levem esse dialogo um passo a frente. O primeiro estudante planeja se formar em estudos étnicos, o segundo, em estudos sobre a mulher O Verbo de Deus na Educagaio - 67 ¢ oterceiro, em teoria da homossexualidade. Os trés discordam em varios pontos, mas para 0 propésito presente, eles se juntaram para elaborar uma declaracdo conjunta, a qual intitularam “Um Sumario por Justica”. A seguir encontra-se uma pardafrase de sua declaragao, que foi lida em voz alta na sala de aula, para seu jovem professor (professor assistente Robert Elegant), num tom de voz respeitoso, porém incisivo. Bob, a bibliografia deste curso demonstra um im- plicito grau inaceitavel de racismo e discriminagdes referentes ao sexo e 4 homossexualidade. Ela esta repleta de autores europeus, a maior parte com ante- cedentes ligados 4 elite, sendo todos do sexo mascu- lino, ou heterossexuais ou ambos. Trata-se de uma selegao tendenciosa e precisa ser alterada. Como de- monstracao de que vocé esta lidando conosco de boa f6, exigimos que retire estes trés nomes: Dante, Shakespeare e Jane Austen. Isso ainda deixaré na lista, em sua maioria, europeus heterossexuais. E as substituig¢des devem representar (1) minorias raciais oprimidas, (2) mulheres que possam expressar com eloqiiéncia sua ira ante a vitimizagdo que sofreram por parte de uma sociedade patriarcal, em vez da- quelas que sejam descritas como mulheres submis- sas, 4 procura de casamento com maridos que as oprimirao ainda mais e (3) gays e lésbicas capazes de criticar a oportunamente chamada “camisa de forga”, que é hegemGnica por toda a nossa dita soci- edade. Gostamos de vocé, Bob, portanto queremos Ihe proporcionar toda chance de corrigir seus erros, para o seu proprio bem. Vocé sabe que as normas para os processos de promogao e avaliagao de titularidade para professores, que negociamos no ano passado, especificam como uma prioridade funda- mental um “compromisso por diversidade em cada aspecto da vida universitaria” e estabelecem que se- 68 - As Perguntas Certas jam consideradas avaliag6es escritas dos estudantes no processo de promogao. Ha mais uma questao, Bob. As normas dizem que éresponsabilidade do professor responder prontamente quaisquer queixas sobre observagées feitas em clas- se, por qualquer pessoa, que sejam ou possam ter sido ofensivas a qualquer membro pertencente a qualquer grupo que seja uma minoria na universidade, ou que tenha sofrido discriminagdo. Vocé pessoalmente ain- da nao disse nada errado, Bob, mas riu diante de algu- mas brincadeiras ofensivas e nada fez quando alguém da classe reclamou que “parece que hoje em dia as garotas mandam em tudo”. Achamos que vocé deve ler essa norma em voz alta novamente para a classe e se certificar de que vocé se pronuncie quando algum direitista demonstrar sua insensibilidade. Vocé pode escolher os trés autores substitutos entre essa lista de op¢Ges que preparamos. Reflita sobre isso, Bob, e faga © que acha que é certo. Nés 0 veremos em sua audi- €ncia de titularidade, depois de vocé haver complemen- tado seu periodo de experiéncia. Na aula seguinte, o professor Elegant anunciou que havia aceitado todas as exigéncias e agradeceu enfaticamente aos trés lideres estudantis “por lhe terem proporcionado o desejavel direcionamento”. Vocé diria que esse cendrio hipotético ¢ total- mente irreal, ou é apenas um exemplo das tendéncias ja visiveis nas nossas universidades atuais? As nossas universidades possu- em compromissos suficientemente firmes em relag&o aos tradici- onais valores académicos liberais, que um drama desse tipo nao poderia acontecer? Que compromissos sao esses? O caso hipotético anterior pretende retratar um possivel re- sultado da deteriorag&o do compromisso da universidade, frente aos valores tradicionais da educag4o liberal pds-Iluminista, 4 me- dida que cresce a consciéncia de que nao ha mais qualquer base universalmente aceita para esses compromissos. Os valores po- O Verbo de Deus na Educagiio - 69 dem persistir por um tempo sem alguma base de apoio, como uma casa cujos alicerces estejam sendo devorados por cupins, mas eles desmoronam, quando os ventos da mudanga sopram com forga suficiente. Nossas maiores universidades redirecionaram todos seus recursos, em apoio aos esforgos de guerra, de 194] a 1945. Por que nao deveriam elas abrir mao de algumas idéias ultrapassadas, para apoiar grandes campanhas atuais em prol da diversidade e da justiga social? 3. Que contribuigdes caracteristicas os educadores cristaos ou agentes universitarios paraeclesiais podem pro- porcionar 4 educacio universitaria? A fim de proporcionar essa contribnigao de forma mais eficaz, devem eles admitir que os principios cristéos sAo validos somente para cris- tos ou devem prosseguir com base no pressuposto de que as doutrinas crist&s mais basicas so verdadciras tanto para os crédulos quanto para os incrédulos? Alguns professores seculares sao abertamente cinicos em relacdo a fé cristé e buscam oportunidades para embaragar es- tudantes cristéos. Com maior freqliéncia, até mesmo professo- res ateus tém empatia pela fé auténtica, se esta é relegada ao culto privado ou as atividades extraclasse, como grupos de estu- do biblico ou servigos voluntarios. Os professores podem até encorajar essas atividades, com base no fato de elas contribui- rem mais para um ambiente académico sadio do que varias ou- tras atividades nas quais os estudantes possam estar envolvidos. No entanto, é bastante provavel que duras criticas aguardem qualquer estudante ou professor cristo que assumam essa iden- tidade de forma muito visivel (dai a relutancia da maioria dos professores crist&os em assim se identificarem publicamente). As restrigdes mais importantes so que os cristaos néo devem ter aspiragdes de alterar a visdo naturalista de mundo, a qual governa toda a atividade académica e, sobretudo, que eles nao devem se identificar com o “fundamentalismo” ao criticarem a teoria da evolugao. 70 - As Perguntas Certas De modo geral, os cristéos académicos se submetem a essas restrigdes, pois acreditam parcialmente que elas se justificam. Os crist&os, em seu estado mais confiante, acreditam que o Cristianis- mo seja Verdade (a primeira letra maitiscula quer dizer que se trata de uma verdade universal, no nivel de um fato cienttfico) e os cris- tdos, no seu espirito mais defensivo, acham que sua fé é benéfica a -eles e que precisa ser modernizada, protegida contra os “fundamentalistas” ea qual deve evitar, a todo custo, o tnico peca- do imperdodvel na universidade pés-moderna, o pecado da intole- rancia, Temos, portanto, um choque entre pessoas parcialmente crédulas. Os crist&ios acreditam parcialmente no seu proprio credo e os académicos seculares créem em parte nos valores do racionalismo iluminista, incluindo a liberdade académica ¢ os pa- drdes objetivos de mérito, Os inicos verdadeiramente crédulos, paradoxalmente, sdo os apéstolos da diversidade, do multicultu- ralismo edo relativismo epistemoldgico. Eis porque eles levam van- tagem atualmente. Os crist&os podem ter um papel fundamental na solugdo desse impasse, mas apenas se ousarem desafiar a arrogan- ciae aelite intelectual, para afirmar, sem constrangimento, que Joao 1.1-14 6 realmente Verdade. Finalmente, mesmo professores secu- lares irao perceber que os valores do racionalismo iluminista e da liberdade intelectual se baseiam no Verbo. 3 A PRIMEIRA CATASTROFE DESARMADO EM MEIO AOS DRAGOES DA MENTE Pouco antes do acontecimento Quando comemorei meus 6] anos, em julho de 2001, minha vida parecia perfeitamente em ordem e era bastante provavel que continuasse desse modo. Eu estava cerca de onze quilos acima do peso, com a press&o um pouco elevada, mas considerava essas condig6es praticamente normais para um homem com a minha idade ¢ profisséo. Suponho que eu tivesse assumido que a saide perfeita que sempre tive iria continuar indefinidamente. Estava muito feliz com meu casamento e com uma aposentadoria confor- tavel e ativa, apds minha carreira como professor de Direito. Eu estava descansando numa casa de praia alugada, em companhia de amigos e de seus filhos pequenos. O que poderia dar errado nesse ambiente tao relaxante e livre de stress? Embora aposentado das obrigagdes universitarias oficiais, eu nao estava de maneira alguma “fora de circulagao”. Muito pelo contrério, meu trabalho como autor e conferencista itinerante me absorvia muito mais do que qualquer coisa que eu tivesse feito antes do crucial ano de 1988, quando explorei, pela primeira vez, a profunda falha légica que ha no darwinismo. Com a primeira pu- blicagao do livro Darwin on Trial, em 1991, assumi a lideranga 72 - As Perguntas Certas de um reduzido grupo de académicos, por vezes chamado de Mo- vimento do Projeto Inteligente, cuja estratégia denominavamos de a Cunha (que é explicada na introdugao do meu livro The Wedge of Truth). Nossa audaciosa alegagao era que a evidéncia cientifi- ca, quando avaliada sem uma esmagadora tendéncia em relagao ao materialismo, néo comprova a historia da criagdo de Darwin, que efetivamente se transformou numa religiao oficial na cultura moderna. Pelo contrario, na verdade a evidéncia comprova a vi- sao, supostamente desacreditada, de que um criador inteligente que no era parte da natureza tinha de estar envolvido no proces- so de criagao biolégica. Nosso maior obstaculo nao era descobrir a evidéncia, mas fazer com que nosso argumento ultrapassasse a barreira filos6fica, criada pelo ser humano e embutida na prépria definigao de ciéncia, a qual proibe a apreciagdo de evidéncia que possa apontar para o papel de uma causa inteligente na criagao biologica. Apesar disso, a evidéncia esta [4 e precisamos apenas de uma oportunidade justa para expor nosso ponto de vista. A principio, muitas pessoas do meio universitario (inclusive crist4s) assumiram que nosso projeto estava to fadado ao fra- casso quanto a revolta de Satands, no livro Paradise Lost, consi- derando a ciéncia t&o poderosa no nosso mundo quanto era Deus, no enredo de Milton. Eu discordava, pois estava convencido de que o poder cultural do darwinismo nao se baseava em genuina verificagao empirica, mas num truque audacioso, sustentado por meio da intimidagao. Os darwinistas haviam imposto 4 ciéncia uma camisa de forga filosdfica. Tudo que precisavamos fazer era estabelecer uma distingao entre o naturalismo/materialismo, como filosofia e a verificagdo empirica, como metodologia. Uma vez que essa distingdo fosse admitida como premissa para posterior discussao, entéo o préprio poder da légica, assim como a pressao que a Agua congelada exerce no interior de uma rocha partida, iria levar adiante 0 nosso argumento. Aarmaditha mais potente que os filésofos modernos tém empregado para desarmar nossa cautela intelectual é apelar para nossa vaidade ou para nosso medo do ridiculo. Freud, por exem- A Primeira Catastrofe - 73 plo, prometeu a seus disc{pulos que eles iriam adquirir uma com- preensao profunda do motivo pelo qual os seres humanos se com- portam da forma como o fazem, ao oferecer-lhes a chance de se tornarem mestres sobre as forgas do inconsciente por meio da psicandlise, ou de serem manipulados por essas mesmas forgas e pelas pessoas que, de fato, as compreendam. Nesse mesmo sen- tido, os ativistas homossexuais alcangaram uma esmagadora vité- ria na area da propaganda quando a midia comegou a utilizar o termo homofobia, assim implicitamente caracterizando a oposi- ¢4o ao programa politico dos homossexuais como uma forma de doenga mental, possivelmente ligada ao medo (fobia) da propria inclinag&o homossexual. Uma vez estabelecido na cultura um ter- mo abusivo, este pode ser usado para distinguir os criticos perigo- sos, que em principio rejeitam a proposta ideoldgica, daqueles cri- ticos moderados ou contritos, que aceitam a esséncia filosdéfica da proposta para evitarem parecer ignorantes ou irracionais. Os pri- meiros s&o execrados, enquanto que, em relagao aos ultimos, de- monstra-se que temem seguir as implicagdes logicas daquilo que jahaviam admitido. Richard Dawkins notoriamente escreveu: E absolutamente seguro dizer que se vocé encon- trar alguém que alega nao acreditar na evolugaio, essa pessoa é ignorante, estiipida ou insana (ou perversa, mas eu prefiro desconsiderar isso). (“Ignorance Is No Crime,” Free Inquiry 21, n° 3 [2001}). A estratégia de intimidagao intelectual caracteristica de Dawkins alcanga seu ponto maximo com a insinuagao de que nao existem céticos verdadeiros, somente dissimulados, que fingem nao acreditar. O truque esta em induzir o cético a imaginar que pode escapar da condenagfio ao dizer que admite a “evolugao”, mas que tem algumas dividas a respeito da teoria neodarwinista dominante. Obviamente, Dawkins tira vantagem da concessfo, ressaltando a incoeréncia que ha em se aceitar o principio ¢, ao mesmo tempo, refutar suas decorréncias necessarias. 74 - As Perguntas Certas Praticamente o mesmo tratamento é dispensado ao infeliz evolucionista religioso que aceita o darwinismo como ciéncia, mas tenta se ater a uma fé no Deus da Biblia. Os materialistas podem argumentar, com persuasao, que a mesma légica (naturalismo epistémico) que leva ao darwinismo, também conduz a inferéncia de que Deus deva ser uma mera projegdo da mente humana. Por que nao aceitar a conclusao légica, se vocé aceita a premissa? De que serve Deus, se ele nunca faz algo que possamos detectar? Numa conversa por e-mail, Dawkins tentou aplicar em mim uma variante dessa manobra do “reconhecimento fatal’’, insistindo em saber se eu admitia que os seres humanos e as lagostas com- partilhavam de um ancestral comum. Se eu tivesse concordado com essa espantosa proposicao (0 suposto “fato” da evolucao), nao teria me restado qualquer fundamento légico para duvidar de qualquer outra alegagao darwinista e Dawkins teria tido motivos para insinu- ar que eu devia estar apenas fingindo nao acreditar. Dawkins tinha preparada uma série de perguntas subseqiten- tes, destinadas a apertar 0 cerco, mas eu mudei de assunto, pergun- tando: “Com base em que vocé tem tanta certeza de que o hipoté- tico ancestral comum as lagostas e aos seres humanos nao seja um mero produto da teoria da evolugao, mas tenha realmente vivido na Terra? Segundo meu entendimento, sua confianga se baseia na filo- sofia, especificamente na sua crenga no materialismo e no reducionismo. F isso 0 que lhe permite proclamar 0 “darwinismo universal”, isto 6, que algo como a evolugaio darwinista deva ser a explicagao para a existéncia de vida complexa, mesmo em planetas distantes, onde n&o possamos fazer quaisquer observagées. Estou correto ou vocé tem evidéncia cientifica, derivada do seu conheci- mento especifico como zodlogo, que possa convencer alguém que ainda nao compartilhe da sua crenga do fato de que a existéncia desse ancestral seja uma necessidade filosdfica?” Dawkins respondeu que: “a razao pela qual sabemos com certeza que todos nds, inclusive as bactérias, temos uma origem comum é a universalidade do cédigo genético e de outros elemen- tos bioquimicos. O compromisso filoséfico para com o materialis- A Primeira Catastrofe - 75 mo eo reducionismo é verdadeiro, mas eu preferiria caracteriza- lo como compromisso cientifico para com a explicagao real, em oposigao a absoluta falta de explicagao que vocé defende”. Entdo, eu tive a certeza de que tinha invertido a situagao com Dawkins e que conseguira induzi-/o a aceitar uma premissa fatal, a qual deve enfraquecer sua posig&o em qualquer debate ptiblico amplo. A de que o “cédigo genético universal” nao é ver- dadeiramente universal, porém, o ponto mais importante, que as semelhangas bioquimicas, assim como as semelhangas musicais nas sinfonias de Beethoven, podem ser a evidéncia de um criador comum, em vez de um ancestral fisico comum. Ao apelar para a questio filosdfica do que constitui uma real explicacéo, Dawkins admitiu que a questéio fundamental estava fora da area profissio- nal da biologia. E dbvio que os reducionistas materialistas desejam dar uma explicag4o reducionista para tudo, mas isso n&io passa de uma preferéncia subjetiva, com a qual nem filésofos, nem cida- dos em geral tém qualquer obrigagdo de concordar. Com a ques- t&o equacionada dessa maneira, o Movimento da Cunha precisa- va apenas conscientizar o pliblico a respeito das verdadeiras per- guntas, a fim de preparar o terreno para uma derrota. Nosso objetivo desde o inicio foi ganhar, na arena publica, respeitavel atengao como um movimento cientifico, assim evitan- do a dispensa automatica que aguarda qualquer hipétese rotulada como religido. Eu definia sucesso, nessa primeira fase, como a publicacao de um artigo sobre nds no New York Times (ou em uma midia de influéncia semelhante), nao necessariamente favo- rvel, escrito por um jornalista cientifico, e nao por um religioso. A reportagem de que precisévamos foi publicada em 8 de abril de 2001 e nao sé havia sido escrita por um escritor cientifico, com uma abordagem respeitosa, como também estava estampada na primeira pagina da edig&o de domingo, o melhor lugar concebivel para servir ao nosso propésito. Esse éxito foi seguido de outros, incluindo a aprovagao da Emenda Santorum, descrita no primeiro capitulo, pelo Senado dos Estados Unidos. Nesse momento parecia certo que iriamos 76 - As Perguntas Certas conseguir ser ouvidos pelo publico norte-americano, uma audi- éncia que jamais concordaria com a exigéncia darwinista de que eles definissem racionalidade e materialismo como sendo prati- camente a mesma coisa. Iriamos ganhar o debate que se aproxi- mava, nao porque fossemos oradores mais talentosos do que os darwinistas, mas porque estavamos persuadindo o mundo a fa- zer a pergunta correta. A evidéncia cientifica realmente susten- tava a conclusao filoséfica (em outras palavras, o naturalismo), que os darwinistas desejavam que aceitassemos ou o naturalis- mo, como uma cosmovisao, poderia sobreviver somente enquanto barreiras filosdficas dogmaticas o protegessem da evidéncia que aponta para um criador? Os darwinistas poderiam manter a per- gunta correta fora do debate somente se pudessem manté-lo restrito 4 comuntdade cientffica profissional, onde as normas naturalistas sao estritamente impostas. Nés ja haviamos esca- pado desse cativeiro. Meu maior temor Depois de anos de estudo e debate, eu conhecia todas as artimanhas darwinistas e estava confiante de que a verdade pre- valeceria se a pergunta correta fosse debatida com imparcialida- de, num forum n&o-tendencioso. Quando fui tirar um cochilo de- pois do almogo, na sexta-feira de 13 de julho de 2001, eu tinha plena convic¢&o na légica do nosso argumento. Porém, havia algo que eu nao tinha previsto. Enquanto eu tentava adormecer, um codgulo entupiu a artéria que levava o sangue para o lado direito do meu cérebro. Quando me levantei, minha esposa, Kathie, viu que havia algo errado e logo eu estava numa ambulancia e, a seguir, num quarto de hospital, com o lado esquerdo do meu corpo sem qualquer sensibilidade e sem que eu pudesse controla-lo. Eu tinha perdido 0 controle motor do meu brago esquerdo e nao per- cebia praticamente nada do que se passasse 4 minha esquerda (Um derrame do lado direito do cérebro afeta o lado esquerdo do corpo e também as fungdes generalizadas, como a capacidade de A Primeira Catastrofe- 77 organizar informagao.). Mesmo os rostos familiares pareciam di- ferentes e eu estava cercado pela confusao e depressao. De todas as coisas ruins que poderiam acontecer comigo, a les&o cerebral era a que eu mais temia. A morte parecia quase agradavel, em comparacao com a vergonha da invalidez eo temor de que meus familiares se recordassem de mim nado como uma fonte de auxilio ¢ sabedoria, mas como um invalido fisico e mental, que havia sido um fardo em suas vidas, durante os Ultimos anos de vida. Nos meus piores momentos, eu me peguei desejando que nos tivéssemos médicos como dizem que ha na Holanda, que proporci- onam uma morte sem sofrimento aos pacientes que eles julgam haver se tornado um fardo para a familia. Esse era um pensamento tolo, é claro, e nao foi o ultimo que eu vima ter. Naqueles primeiros dias de recuperag4o do derrame, meus companheiros constantes eram os “dragdes da mente”, terrores exagerados que possuiam algum fundamento na realidade, mas que perdiam sua forga quando enfrentados com as armas espirituais fornecidas pela fé. Nesse momento, meu maior temor parecia ser realidade; porém, meu quarto de hospital também se encontrava repleto de amigos amorosos, que oravam por mim e comigo. Enquanto ord- vamos, nossa amiga Kate cantou um hino singelo. Eu sempre ha- via ficado encantado ao ouvir a voz melodiosa e afinada de Kate, mas, dessa vez, foram as palavras da miisica que penetraram as profundezas da minha alma: “Em Cristo, a rocha solida, eu me apdio; qualquer outro fundamento é como areia movediga”. Eu nao podia pensar em outra coisa, a nao ser no homem descrito no Sermo do Monte (Mt 7.24), que edificou sua casa sobre a areia. Quando sopraram os ventos e transbordaram os rios, a casa desa- bou com grande ruina. Suponha, entretanto, que o homem insen- sato tivesse sorte e o mau tempo houvesse somente danificado sua casa, sem destrui-la totalmente. Nesse caso, ele deveria ser grato pelo estrago e pelo medo, pois essas aparentes calamidades, terriveis no momento, o haviam ensinado que ele devia reconstruir sua casa sobre um fundamento mais sélido e, portanto, o haviam salvado de algo muito pior. 78 - As Perguntas Certas Enquanto ouvia, eu dizia a mim mesmo, Eu sou esse ho- mem insensato, Haviam-me ensinado algo sobre a diferenga en- tre a rocha sélida e a areia movediga, mas eu nao tinha prestado suficiente ateng4o ao ensinamento. Eu edifiquei minha casa e, em alguns aspectos, era uma Casa muito boa, mas ela no estava totalmente apoiada na rocha. Eu sabia da importancia de se fazer as perguntas certas, como por exemplo: “Quo sdlido é o meu fundamento?” Muito freqiientemente, contudo, eu tinha me dis- traido com as perguntas erradas, como: “Quantos quartos a casa deve ter?” Ou “Como posso fazer a casa parecer magnifica, para que seja admirada pela vizinhanca?” A tempestade veio e balan- gou o fundamento. Felizmente, minha casa foi apenas danificada e nao destruida, e eu passei por um susto que me ensinou uma ligdo, a qual eu jamais teria aprendido de outra forma. Estou fa- zendo as perguntas certas? Vocé esta? Isso é 0 que qualquer edu- cagao, digna desse nome, deveria nos ensinar a fazer. Porém, com muita freqiiéncia, nossa educagao formal negligencia as ques- t6es mais importantes, ou mesmo as mascara e, entao, temos de aprender as li¢des mais importantes por meio da experiéncia, muitas vezes uma dura experiéncia. A misica de Kate estava fazendo a pergunta correta! Qual eraarocha sélida em que eu me apoiava? Eu sempre me vanglo- riava de ser autoconfiante e era em meu cérebro que eu deposita- va minha confianga. Nesse momento, o ego, juntamente com seu cérebro, fora exposto como 0 precario instrumento que sempre havia sido. Eu era um cristo até mesmo fervoroso, segundo meu padr&o secular, mas nesse instante toda fumaca se dissipara e eu enxergava a Verdade de perto. Ev nao me reconheci como al- guém cuja fé estivesse em Cristo, mas muito mais como um céti- coem relagao a tudo, como um racionalista em recuperacao, que havia perdido a fé na definicao secular de razao, mas que conhe- cia apenas o Jesus secular. Esse Jesus parecia algo excessiva- mente sentimental para ser capaz de sustentar todo o peso de uma vida, que passava por seu momento de maior desespero. A Primeira Catastrofe - 79 Um novo compromisso Por muito tempo eu havia sido um explorador, mas o tempo da busca havia passado. Como Don Giovanni no climax da opera, eu tinha de decidir agora, de uma vez por todas, em que se base- ava a minha esperanga, ou mesmo se eu tinha alguma. Ao menos, eu sabia que meu proprio cérebro nao era uma rocha sélida, Mes- mo a medicina moderna parecia ser algo muito incerto, quando me vi frente as incertezas da recuperagao de um derrame e dian- te da possibilidade de outros derrames. Nao ha cura para um der- rame, apenas tratamento e disposig&o para enfrentar o problema. Eu sabia que meus neur6nios estavam irremediavelmente danifi- cados. Com o tempo, por meio de uma terapia rigorosa, eu recu- peraria um certo grau de normalidade, Ninguém poderia dizer por antecipagdo quanto tempo demoraria a recuperag&o ou até que ponto ela iria. O que eu precisava era da unica rocha sdlida, o Cristo verdadeiro, o Verbo encarnado. Essa rocha tinha de me sustentar, ndo apenas durante meu tratamento, mas também no aprendizado para viver com fé, pelo resto da minha vida, qualquer que fosse a seqiiela que pudesse resultar. Quando Kate terminou de cantar, eu soube que tinha en- contrado a rocha sélida e que eu jé estava me apoiando nela. Meus irmdos e irmas em Cristo oraram comigo pelo milagre de uma cura ¢ eu senti que o milagre comegava a acontecer. Como me recordei um pouco mais tarde, eu dissera que “se o céu é uma eternidade de amor, entao eu ja havia usufruido uma hora dessa eternidade”. Isso j4 era um milagre suficiente para o primeiro dia; eu havia deparado com 0 primeiro drag&o da mente e o havia derrotado. Ainda haveriam de surgir muitos outros dragSes, mas eu sabia que nao os iria enfrentar sozinho ou desarmado. Eu me recordei das conhecidas palavras do salmo 23: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, nao temerei mal algum, porque tu estas comigo”. Eu disse a Kathie: “Para mim, isso sempre foi apenas um lindo poema, mas agora eu sei o que ele significa”. Eu havia caminhado pelo vale da sombra da morte ¢ esse salmo era 80 - As Perguntas Certas agora a minha propria historia. Senhor, eu creio; por favor, me ajude na minha incredulidade! Essa sobreposigdo nao é paradoxal para aqueles que ja passaram por isso. As Perguntas Certas Sobre Légica 1. Qual é a premissa fundamental, o ponto inicial a partir do qual a légica deve se originar? Em grego, 0 “Verbo” é 0 Logos, a raiz da légica. Essa pa- lavra abrange tanto 0 raciocinio humano quanto a base divina de onde a ldgica deve brotar. A nossa ldgica ndo pode fornecer sua propria origem. A ldgica é somente um modo de se raciocinar corretamente, que parte de premissas para conclusdes. As pre- missas devem surgir de uma origem diferente. O racionalismo é inerentemente autodestrutivo, pois 0 racionalista deve assumir que suas primeiras premissas se derivam do raciocinio ldgico, o qual, por sua vez, sempre se baseia em outras premissas. O empirismo enfrenta o mesmo dilema quando se torna um sistema integral, pois o empirico sempre precisa saber mais do que é capaz de observar. Filosofias baseadas em premissas evasivas, como 0 positivismo ldgico ou o materialismo cientifico, duram apenas até © ponto em que o dilema se torna evidente demais para ser enco- berto e, ent&o, elas murcham. Essa é a razo pela qual os defen- sores desses sistemas, quando estio sob pressio, normalmente se transformam em fandticos, que tentam impor um controle tirani- co. Proibir a andlise das premissas é a tinica forma pela qual eles podem continuar no comando. 2. Podemos encontrar solugdo para premissas conflitantes por meio da argumentacio? Alguns escritores dividem a apologética crist# em duas correntes: os evidencialistas e os pressuposicionalistas. Quando me perguntam a qual corrente me filio, respondo que essa dife- renciagdo é intitil em relagéio ao meu trabalho. Meu problema nao se encontra nos pressupostos em si, mas em pressupostos masca- A Primeira Catastrofe - 81 rados, que se apresentam camuflados como fatos. Quando um darwinista dogmatico, como Richard Dawkins, admite que sua crenga se baseia fundamentalmente na filosofia, ele enfraquece sua propria autoridade. Em principio, ele ainda poderia se apegar ao materialismo como premissa fundamental, mesmo se 0 resto do mundo descartasse o darwinismo como uma teoria falha, mas ele agiria assim por desespero e acredito que logo viria a desistir. Premissas fundamentais nao cedem a argumento ou evi- déncia, porém, uma premissa que aparenta ser fundamental pode afinal nao vira sé-lo. Acredito que isso acontecia com Dawkins. Entretanto, se houvesse algo que eu pudesse dizer para convencer um materialista a escolher uma premissa fundamental melhor, esse algo provavelmente nfo seriam meus argumentos, mas a histéria do que se passou comigo naquele quarto de hospital e com tantos ou- tros, em momentos de tribulag4o. Cristo éa rocha, a qual alguém pode se agarrar quando estiver no vale da sombra da morte, ou mesmo quando o mundo ridiculariza e humilha a Cristo. Foi isso 0 que aconteceu com aquele pequeno e desorientado grupo de disci- pulos, depois da ressurreig&o. Eu nao acredito que qualquer crenga secular ou deus humano possa proporcionar algo comparavel. Note que estou escrevendo sobre a premissa fundamental ou 0 compromisso de fé, a partir do qual a vidae a logica devem se originar. Portanto, nado estou falando de alguma doutrina que necessite de prova. Tentar comprovar uma premissa fundamental éuma incongruéncia. Essa tentativa de comprovagao teria de pro- ceder de algo que fosse mais fundamental e mais verdadeiro do que “no principio era o Verbo” e “o Verbo se fez carne e habitou entre nds”. Nessa hipétese, nossa premissa fundamental seria esse algo mais e com o tempo irfamos aprender, a duras penas, como acontece nesse momento, que esse algo mais nao consegue su- portar o fardo. “Deus cria” e “Deus cuida” retratam a premissa de forma abstrata. Jodo 1.1-14 a retrata como uma metanarrativa, a supre- ma histéria do mundo. Se vocé é um racionalista iré provavelmen- te se encolher diante do pensamento de uma premissa aceita, de 82 - As Perguntas Certas uma proposi¢ao fundamental que venham no inicio e, nao, ao final de uma cadeia de raciocinio légico. No entanto, o racionalista tam- bém possui uma primeira premissa: a confianga em uma mente au- ténoma e nos seus poderes de raciocinio, poderes esses que, segun- do o materialismo cientifico, se resumem a nada mais do que uns tantos neur6nios que ativam 0 cérebro. Eu me pergunto se alguém ja se apegou a essa crenga depois de ter sofrido um derrame. Relativistas epistemolégicos pés-modernos rejeitam, em principio, todas as metanarrativas, pois sua propria metanarrativa fala de comunidades hermenéuticas independentes ou culturas que declaram sua independéncia de todos os valores ou padrdes de racionalidade universais. Os racionalistas iluministas imaginaram que a morte de Deus deixaria a razo humana no controle, assim como os ingénuos anarquistas pensaram que poderiam aumentar a liberdade ao abolira autoridade. Os racionalistas prepararam o terreno para os niilistas que vieram depois deles e os ingénuos anarquistas somente aumentaram a liberdade dos tiranos. 3. O que significa crer na premissa fundamental? Exis- te algo como fé sem obediéncia? Uma pessoa pode crer em Cristo e, ainda assim, hesitar em consagrar sua vida a ele? O que me impressionou naquele quarto de hospital foi o absurdo de se vacilar ou de se hesitar em abrir mao de algo pura- mente temporal, quando lhe é oferecido algo de valor eterno. O chamado de Jesus se exprime como “siga-me”, e no “pense no assunto € entre em contato comigo”. E claro que eu havia refleti- do sobre isso e, talvez, essa seja a razao pela qual eu pude ouvir o chamado. Contudo, no seu momento final, Don Giovanni deve se arrepender ou ser condenado, pois nao ha mais tempo para refle- tir. Esse momento final chega quando o Espirito Santo convence o pecador de que “o tempo é agora”, mesmo que os reldgios e ca- lendarios deste mundo mostrem que ainda resta muito tempo, Eu havia passado pelo vale da sombra da morte e havia me decidido por Cristo, no momento final. Aqueles que estiveram por 1d j4 sabem como é essa experiéncia. Aqueles que nao estiveram por A Primeira Catastrofe - 83 14 devem estar preparados. Porém, o que acontece depois do auge dessa experiéncia? Se vocé permanecer comigo, eu lhe contarei o que aconteceu para mim. 4 MEU NOVO POSTO A ESTRADA ADIANTE O Ponto Mais Baixo Provavelmente, o ponto mais baixo da minha vida foi o peri- odo logo depois da minha primeira hospitalizag&o por causa do der- rame. Fui enviado, por uma a duas semanas, para a Unidade de Recuperagao Rounseville, em Oakland, na California, para aguar- dar por uma vaga no Hospital Kaiser Vallejo, proximo dali, que é famoso por seus programas de tratamento neuroldgico e de reabili- tagéio para pessoas que sofreram derrame. A limitada terapia dis- ponivel em Rounseville era, na verdade, absolutamente correta para um primeiro passo, mas eu estava impaciente por mais e a aparén- cia do local me deixava deprimido. Muitos dos pacientes eram ido- sos ¢ era evidente que jamais voltariam a ter uma vida normal. Uma das coisas de que me recordo ter ouvido, por volta daquela época, era que 0 fato de ter tido um derrame aumenta em dez vezes as chances de vocé softer um outro, uma perspectiva que fazia meu futuro parecer desolador. Eu enfrentava terrores imagindrios, que eu passei a chamar de “dragdes da mente”, to- dos os dias ¢ especialmente durante as noites, quando eu perma- necia deitado, insone, esperando o dia amanhecer. Apesar da mi- nha decis&o de descansar na rocha solida das promessas de Deus, 86 - As Perguntas Certas eu constantemente imaginava o pior. Eu me perguntava se algum dia voltaria a dar palestras ou a escrever. Eu tive até mesmo preocupagées financeiras, embora 0 seguro estivesse cobrindo todas as despesas e os nossos recursos fossem mais do que ade- quados para nossas modestas necessidades. Também houve momentos em que as nuvens de preocupa- ¢4o se dissipavam, especialmente quando recebia a visita de ami- gos ou quando Kathie aparecia logo cedo, com uma garrafa térmi- ca de café puro. Eu necessitava da presenga dela para me dar confianga, pois me encontrava num turbilhao emocional, alegre, quando as coisas iam bem e, a seguir, explodindo de frustragao, quando eu nao podia enfrenté-las. Esse é um comportamento nor- mal depois de um derrame do lado direito do cérebro, que se tornou mais grave pela percepgao que eu tinha de mim mesmo como o provedor da familia, de quem dependiam os demais membros, mas que nunca havia se imaginado como alguém que pudesse precisar depender dos outros. Até certo ponto, essa determinagéio de ser auto-suficiente era uma qualidade positiva, mas, se levada longe demais, ela somente criava uma dificuldade a mais para os que cuidavam de mim. Somos ensinados a pensar sobre caridade em termos de dar graciosamente, mas eu estava aprendendo que rece- ber com benevoléncia algumas vezes é a melhor forma de doagaio. Fiquei exultante depois de uma semana de permanéncia em Rounseville, quando um telefonema inesperado me comunicou 0 surgimento de uma vaga na Unidade de Recuperagiio de Vallejoe que Kathie poderia me levar para 14, no dia seguinte, no nosso proprio carro. Eu cheguei a Vallejo numa cadeira de rodas, ansio- so para iniciar a tao falada terapia rigorosa, mas as enfermeiras me colocaram na cama e, ent&o, pareceram me esquecer por com- pleto, Eu ainda estava deprimido, naquela noite, quando um jovem cientista do nosso grupo da Cunha chegou inesperadamente, tra- zendo com ele a bela ¢ brilhante estudante de medicina que ele estava namorando. Eles me trouxeram o melhor de todos os pre- sentes, a capacidade de me esquecer das deficiéncias provocadas pelo derrame e me concentrar, por uma hora, no tema muito mais Meu Novo Posto - 87 interessante do amor juvenil, ao encoraj4-los, o melhor que pude, a darem o proximo passo na dire¢do de uma unido que eu estava certo de que seria abengoada pelos céus. Quando voltei a pensar em mim, 0 livro de Jé vinha repeti- damente 4 minha mente, como se estivesse tentando me dizer algo. Minha mente, educada segundo a visio modemnista, sempre havia entendido Jé como um debate filosdfico inconclusivo, confi- nado entre dois livros incriveis. Como o salmo 23, a narrativa tra- zia em si uma linda poesia, mas eu nao podia ver como aquilo fazia sentido em termos de realidade. Deus permitiria que Satands ator- mentasse um homem, apenas para testar sua £6? Como teria sen- tido que Deus concedesse a J6, no final, uma segunda familia, juntamente com outros bens, que excediam aquilo que ele havia perdido? O que dizer sobre as vitimas inocentes? Elas nao passa- vam de coisas que pertenciam a J6? Entretanto, quando me imaginei no lugar de J6, como prota- gonista, as objegdes desapareceram. E obvio que o livro trata da historia de J6, e ndo de todo o seu cla, Nao faz sentido perguntar o que a hist6ria de J6 pode nos dizer a respeito do significado de todas aquelas outras vidas, pois nao é a historia delas. De modo geral, algumas vezes as pessoas recorrem ao livro de J6 com a expectati- va de encontrar a explicagao do motivo pelo qual coisas ruins acon- tecem para gente boa. Naquela altura, eu estava meditando na Bi- blia o suficiente para saber que essa nao era a pergunta certa a se fazer. Como posso saber sobre essa questio to universal ou mes- mo sobre pessoas que sejam incondicionalmente boas? Essa ques- tio fazia parte do meu passado secular, racionalista. Seria mais apropriado perguntar: “Por que essa desgraga em particular me aconteceu justamente agora?” Era essa a pergunta que 0 livro de J6 me levavaa fazer ¢ eu tinha plena certeza de que Deus a estava respondendo, no mesmo momento em que eua fazia. Uma vez que cu me concentrei na pergunta correta, pare- cia de acordo com a circunstancia que Satands pudesse apontar para mim, como ele havia feito com Jé, e dizer a Deus: “E claro que esse Phillip Johnson o louva e lhe é grato; por que ele nao 88 - As Perguntas Certas deveria ser? Ele sempre gozou de prosperidade e boa satide, ape- sar de nao ter feito muito para merecer ou preservar essa boa sorte. Além de satide e conforto, ele foi dotado de uma mente que lhe permitiu alcangar um nfvel elevado no mundo académico, mes- mo enquanto sua ateng&o estava voltada sobretudo para outras coisas. Depois do fracasso de um relacionamento conjugal, Deus lhe concedeu a oportunidade de outro casamento, melhor que o anterior, assim como Deus havia concedido a Jé outros bens e outra familia. Entao, na meia-idade, ele foi abengoado com uma idéia e essa resposta de orago forneceu-lhe o impeto para uma nova vocagaio, na qual empenha plenamente seus dons numa luta que da sentido a sua vida. “Sua gratidfo a Deus é superficial, pois em seu coragaio ele as vezes acalenta o pensamento de que todas essas béngdos sao apenas o que cle merece. Ele jamais saberé quem é de verdade, a menos que vocé me permita colocar um coagulo na artéria carotida dele, para que ele aprenda o quao frageis sao as coisas nas quais ele depositou sua confianga, Talvez entao ele ir blasfemar de ti na tua face.” Nesse ponto, imagino Deus dizendo a Satanas: “Eis que ele esta em teu poder; mas poupa-lhe a vida” (Jé 2.6) e eu imagino a mim mesmo aquiescendo e dizendo: “Sim, nao ha outra forma para que eu conhe¢a a mim mesmo”. Se essa leitura de J6 parece egocéntrica, somente posso dizer que a historia biblica de J6 trata tanto de um homem em particular como, também, de todos nés. Estou tentando explicar o que aprendi ¢ como isso se deu, sendo que a maneira como apren- di sobre o sentido do meu préprio sofrimento foi 4 luz do que a Biblia ensina. HA mais coisas. Deus me ajudou a fazer a pergunta certa e também me forneceu a resposta de que precisava, no momento em que comecei a questionar. Eu ficava imaginando como eu po- deria voltar a ser 0 que havia sido antes do dia do derrame, na posse de todas as minhas faculdades e em forma para dirigir a campanha da Cunha, no momento decisivo da nossa luta. Ao mesmo Meu Novo Posto - 89 tempo, eu tinha motivos para crer que 0 avango decisivo prova- velmente jd tinha sido feito, hipdtese em que outras pessoas iriam provavelmente ter o privilégio de dar os préximos passos. O fe- chado mundo cognitivo da ciéncia evolucionista seria dividido ao meio, quer fosse eu ou outro a fazer isso, pois a esse ponto inime- ras pessoas sabiam do lapso fatal que havia na logica de Darwin. Os recursos intelectuais, necessarios para diferenciar a investi ga- go cientifica do materialismo epistémico, eram agora amplamente conhecidos ¢ os crist&os iriam utilizd-los ou nao. De qualquer ma- neira, eu me dei conta de que o resultado nada teria a ver comigo. Se cristdos esclarecidos dessem seqiiéncia ao que o movimento da Cunha (e outros criticos anteriores) j4 havia conseguido, entao o darwinismo iria se enforcar no lago da sua prépria falta de légica. Se os crist&os esclarecidos continuassem a accitar, com uma atitu- de décil, o entendimento de que 0 naturalismo e a “ciéncia” (isto é, 0 conhecimento) sao praticamente a mesma coisa, entéio, nenhum ser humano poderia salvar essa fé tio covarde. Uma nova situagao A pergunta certa nao era como eu poderia voltar a ser 0 que havia sido antes, mas como eu poderia seguir em frente, para viver de acordo com essa nova situagao. E evidente que eu nao tinha a mais vaga nogao do quanto a situa¢4o iria mudar. Escre- verei sobre isso no préximo capitulo. O que Deus parecia estar me dizendo, naquele hospital, era algo como: “Houve uma mudan- ga de planos e vocé assume um novo posto — o lugar onde se esperava que vocé estivesse nessa fase de sua vida. Vocé nao deve se queixar que preferiria estar em seu posto antigo, mas deve aproveitar ao maximo a oportunidade que esté diante de vocé, tirando proveito dos magnificos tratamentos de reabilitagao e en- corajando os outros pacientes e os terapeutas. O propésito desse periodo nao é torna-lo novamente aquilo que vocé jé foi, mas aperfeigod-lo, tornd-lo alguém mais adequado para viver no reino de Deus”. E assim era para ser. 90 - As Perguntas Certas Os especialistas tinham escrito que os sobreviventes de derrame tendem a se tornar centrados em si mesmos e era verda~ de que minha perplexidade, diante do que estava me acontecendo, as vezes me fazia explodir de frustrag4o, mesmo sabendo que os terapeutas e visitantes estavam fazendo o melhor para me ajudar. Minha frustragao era imediatamente seguida pelo arrependimen- to e a determinagao de encorajar a pessoa com quem eu havia acabado de gritar. Era como se Cristo estivesse vivendo dentro de mim e dominando o homem natural e suponho que era exatamen- te isso que estava acontecendo. Minha natureza pecadora ainda agia nas explos6es, mas era prontamente dominada por algo mui- to mais poderoso. Eu ja sabia que o testemunho mais potente é dado, freqiientemente, por aqueles que est&o softendo e lutando, e desco- bri que isso também valia para mim. Eu me recordei da biografia de uma jovem médica brilhante, uma oncologista, criada numa familia que seguia o materialismo cientifico, a qual veio a acreditar em Cristo por meio da fé que ela via em seus pacientes que sofriam de cancer. Eu também vi essa fé no testemunho de amigos que esta- vam morrendo de cancer e tinha consciéncia de que meu proprio sofrimento, se comparado ao deles, nao era grande coisa. Aqueles que pensam nas abstragdes deste mundo e que querem fazer o trabalho de Deus em seu lugar, normalmente, apon- tam para 0 sofrimento de um inocente como uma insuperavel bar- reira para a fé. Para aqueles que conhecem a Jesus, a cruz esta justamente onde € mais provavel que Cristo se encontre, pois 0 sofrimento da sexta-feira da paixaio sempre precede a alegria da Pascoa. Eu acho que absolutamente nao conhecia Jesus, até vir a conhecé-lo no sofrimento e, portanto, eu jamais poderia desejar que esse sofrimento fosse inteiramente anulado, se isso signifi- casse que os seus efeitos seriam arrancados de minha vida. Meu Novo Posto - 91 As Perguntas Certas Sobre o Sentido da Vida 1. Como encontramos a estrada principal na vida, par- tindo de um desvio? A estrada principal para cada um de nds é aquela que Deus planejou, aquela que nos conduz através das experiéncias que dao sentido a nossa vida. Porém, o sentido segundo a perspectiva de Deus pode nao ser o mesmo visto pela ética humana. Enquanto refletia sobre a li¢o do meu novo posto, recebi uma carta de um amigo chamado Mark, um homem mais jovem, com filhos ainda pequenos. Mark enfrentava um tratamento bastante agressivo, em razio de um cancer que ameagava sua vida. E claro que ele orava para ser libertado do softimento e da morte, mas nao consi- derava sem sentido a sua tribulagdo. Ele refletia sobre as experi- éncias de José e de J6. Quando José foi vendido por seus irmaos para ser escravo no Egito (e, depois, injustamente preso por causa da mulher de Potifar), ele deve ter achado que estava sofrendo uma despropositada interrupgao na sua vida que, em diferentes circunstancias, seria produtiva. Pelo contrario, Deus estava co- mecando uma das maiores obras na histéria do seu povo. Pense no que o mundo teria perdido se J6 nao tivesse softido e nao tivés- semos seu exemplo como lic. O que a principio pode parecer um desvio sem objetivo, pode vir a se revelar, no final, como a estrada principal para casa. Foi o que aconteceu no caso do meu derrame. Como José, no Egito ou J6, em sua adversidade, eu aprendi a tempo que minha nova fungiio eraa maneira como Deus estava me ajudando a alcangar um bem maior. 2. Qual é a diferenga que existe entre cura pela cién- cia e cura pela fé e qual o papel da fé e da oracao na cura? Ha uma piada divertida sobre um cientista que mantinha uma ferradura'de cavalo pendurada na porta de seu laboratério. “Vocé acredita realmente que essa ferradura lhe traga boa sor- te?”, perguntou um colega. 92 - As Perguntas Certas “Certamente que néo”, respondeu o cientista, “mas ela pa- rece funcionar, quer vocé acredite nela ou nao”. Essa é realmente a caracteristica que diferencia o medica- mento cientifico: ele funciona, quer se acredite nele ou nao. O remédio ou 0 tratamento curam devido as suas propriedades obje- tivas, e ndo por causa da crenga subjetiva do médico ou do paci- ente. Um placebo pode curar e é provavel que ele faga, pelo me- nos, 0 paciente se sentir temporariamente melhor, mas, uma outra pilula, com uma composi¢ao quimica diferente, funcionara tao bem. quanto, se o paciente acreditar no poder de cura dela. Nenhum pesquisador ateu se surpreenderia ao saber que a oragdo tem um efeito positivo, se o paciente souber orar e acreditar na sua efica- cia. Esse 6 0 conhecido poder do pensamento positivo, que pode influenciar 0 corpo de formas sutis e ndo ha nada inerentemente sobrenatural a respeito dele. Se a oraco, entretanto, funcionar to bem, “quer se acredite nela ou nfo”, entao a orag&o (ou qual- quer outro medicamento alternativo ja desprezado) pode, em prin- cipio, fazer parte dos medicamentos cientificos. Algumas reporta- gens sugerem que pode ser esse 0 caso. O New York Times, em 9 de dezembro de 2001, trouxe uma matéria da autoria do escritor cientifico Jim Holt, intitulada Prayer Works [A fé funciona]. Pesquisadores da Universidade de Columbia ficaram surpresos ao descobrir que mulheres, numa cli- nica de fertilidade da Coréia, apresentavam quase que duas vezes mais probabilidade de engravidar quando, sem que soubessem, pessoas totalmente desconhecidas, em paises distantes, estives- sem orando pelo seu éxito, Segundo a reportagem, as pessoas que oravam tinham apenas fotos das pacientes andnimas, por cuja gra- videz elas estavam orando, e as pacientes nada sabiam sobre a oragéio. “Portanto, a aparente influéncia da oragao nao poderia ser atribuida a suas crengas ou expectativas ou a algum tipo de efeito placebo.” Eevidente que o efeito estatisticamente relevante também poderia ser devido ao acaso ou a alguma falha sutil no projeto de pesquisa, mas isso também seria passivel de ocorrer em relagaioa Meu Novo Posto - 93 qualquer tratamento médico tradicional, que produza apenas uma vantagem estatistica, como a cirurgia que foi realizada na minha artéria carétida, para reduzir a probabilidade de um outro derra- me. Minha prépria reserva em relago a historia nao é, portanto, de ordem cientifica, mas teolégica. Uma oracao que tenha um efeito constante, independentemente do estado espiritual da pes- soa que ora ou da pessoa por quem se esta orando, parece mais um feitigo do que uma oragfo. A histéria de Holt indicava que os céticos continuariam a nao acreditar na intervengao sobrenatural por razées filosdficas, apesar da conclusao das pesquisas, reite- rando, dessa forma, o comentario feito por Jesus sobre os céticos de sua propria época: “Tampouco se deixarao persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos” (Le 16.31). De sua parte, os que acreditavam na eficacia sobrenatural da orag&o ficariam, provavelmente, mais impressionados com ane- dotas dramaticas do que com pesquisas cientificas anénimas. Holt contou uma incrivel histéria: “Recordam-se de algo que ocorreu muitos anos atras, em 1985, quando Pat Robertson orou para que 0 furacdo Gloria, que avangava com violéncia pela costa do Atlanti- co, nao atingisse sua emissora crista de televisdo, em Virginia Beach? Isso de fato ocorreu—e ent&o, o furacdo foi parar em Fire Island, derrubando a casa de veraneio de Calvin Klein”. E evidente que um acontecimento anormal nao constitui uma evidéncia cientffica, mas se eu fosse Calvin Klein, iria esperar que essa experiéncia me le- vasse a pensar seriamente em mudar de vida. Tenho minha propria hist6ria milagrosa que nao é suficien- temente espetacular para aparecer nos jornais, mas que é igual- mente dramatica para mim. A terapia fisica 4 qual me submeti, no renomado hospital de reabilitac&o para derrames, era chamada de Assisténcia Proprioceptiva Neuromuscular (APN) e seu status cientffico ainda era incerto. Os terapeutas respondiam de forma vaga quando questionados sobre estudos de acompanhamento dessa terapia e um deles nos disse que “nao sabemos como, mas sabemos que funciona”. Eu jamais teria concordado em fazer um tratamento invasivo nesses termos tao vagos, porém a APN abran- 94 - As Perguntas Certas gia apenas exercicios para aumentar a fora e 0 equilibrio, portan- to, eu nfo tinha nada a perder. Uma vez comprometido com o tratamento, eu me tomei um entusiasta, de tal forma que, perto do fim de minha permanéncia la, os terapeutas em treinamento me escolheram como assunto de uma aula de mestrado, ministrada por Sue Adler, uma instrutora de APN idosa, mas bastante atualizada e renomada. Ela me acom- panhou por uma série de rigorosos exercicios, por mais de uma hora, os quais desempenhei como se estivesse disputando um lu- gar nas Olimpiadas. Por fim, ela apontou para minha esposa Kathie, que estava do outro lado do gindsio e sugeriu calmamente que eu caminhasse até ela. Até esse ponto, eu havia dado somente al- guns passos hesitantes, com o auxilio de um andador, mas nesse momento eu segurei a mao de Sue e andei com confianga pelo ginasio, até onde Kathie estava. Entéo, Sue pediu a Kathie que estendesse sua mo, para que eu pudesse segurd-la e caminhar, junto com ela, por toda a extensio do gindsio, o que nds fizemos. Vocé conhece a historia de Jesus pedindo a Pedro para que cami- nhasse com ele sobre as Aguas? A experiéncia, no nivel psicolégi- co, foi exatamente como se Kathie ou eu féssemos Pedro, salvo pelo fato de que a nossa fé nao falhou. Havia uma explicacao naturalista? E evidente que havia e Sue prontamente a forneceu aos alunos alemies em treinamento, os quais (temendo a cruel legislagao americana sobre responsabilidade civil médica) imagi- navam como ela ousara assumir tamanho risco. Ela explicou que havia me observado atentamente durante os exercicios e (dife- rentemente dos alunos em treinamento), tinha experiéncia sufici- ente para confiar no seu julgamento sobre a minha capacidade. Essa explicagao implica dizer que n&io houve milagre algum? Acre- dite se puder e zombe, se achar que deve, mas nao me pega para duvidar. Agora, quando leio sobre Jesus e Pedro andando sobre as Aguas, eu no acredito, eu sei como é, pois passei por isso. Mais tarde, passei por uma cirurgia de desobstrugao da carétida, para reduzir 0 risco de outro derrame. Estudos sobre essa cirurgia demonstravam que ela era eficaz, mas também que i : [ t [ | i Meu Novo Posto - 95 uma pequena porcentagem dos pacientes sofria um derrame, na mesa de cirurgia ou durante o arteriograma preliminar. Aqui cu confiava na ciéncia, mas é evidente que eu mesmo nfo li os estu- dos. Eu confiava no talento e na reputagao da equipe cirurgica. O primeiro cirurgiéo com quem conversei tinha um jeito rispido que nao inspirava confianga, e eu me recusei a ir adiante. O segundo cirurgiao falou comigo como se falasse com um cole- ga de profissdo e eu pensei comigo mesmo: Se tiver de colocar a minha vida nas maos de algum cirurgido, quero que seja nas mdos desse homem e de nenhum outro. O anestesista me ligou um dia antes da cirurgia e me passou seu confiante prognéstico. Na manhi seguinte, eu segurei no seu brago e caminhei até a sala de cirurgia, tao calmamente quanto se estivesse apenas indo me deitar e em minha lembranga seguinte, eu estava rindo e brincan- do com as enfermeiras na sala de recuperagao. Tudo foi feito dentro dos melhores padrées cientificos e, ainda assim, também era um exemplo de cura pela fé. Se eu viver até os 90 anos, pro- vavelmente muito mais do que eu teria vivido sem o avivamento proporcionado pelo derrame, entio, isso também sera produto de fé — fé no poder de cura do corpo, se o tratarmos como Deus espera que ele seja tratado. 3. Qual é a principal finalidade do homem e por que precisamos conhecé-la? O Catecismo Menor de Westminster afirma que “o fim Ultimo do homem € glorificar a Deus e goza-lo para sempre”. Ha uma resposta melhor para essa pergunta? Essa pergunta é inevi- tavel? Nossos sistemas educacionais, tanto o publico, quanto o privado, geralmente evitam essa pergunta, poisa classificam como religiao e, portanto, assumem que qualquer resposta deva perten- cer a area da preferéncia pessoal, e nao a area do conhecimento. Ha motivos compreensiveis para essa desculpa, mas pense sobre 0 que se perde em conseqiiéncia disso! Qual seria a resposta de um de nossos mais brilhantes formandos (como 0 jovem Phillip Johnson) sobre a principal finalidade do homem? Ganha 0 jogo da 96 - As Perguntas Certas vida “aquele que morre com o maior numero de pegas?” O obje- tivo éa acumulagao de prazeres, de conhecimento, de experiénci- as marcantes e de triunfos mundanos? Quando era jovem, eu te- ria concordado com isso. Morrer como um respeitado juiz da Su- prema Corte, ou como um her6i militar que salva a nagao ou ainda como um gigante entre os ganhadores do prémio Nobel — uma dessas op¢Ges devia ser a principal finalidade do homem, pensava eu. A finalidade era glorificar a si mesmo e, portanto, ser famoso para sempre. Esse é 0 objetivo do lutador imaturo e acho que, provavel- mente, ha algo de distintamente masculino nisso. As mulheres nao tiram qualquer proveito do fato de serem ensinadas a imitar os objetivos da imaturidade masculina. Eu possuia impressionantes credenciais académicas, mas era totalmente ignorante em rela- go a matéria mais importante de todas. O mapa da minha cidade nao mostrava as catedrais. Se nossas institui¢gdes educacionais sao incapazes de ensinar aos estudantes como encontrar o fim ultimo da vida, ent&o elas sao incapazes de ensinar a unica coisa que orienta todas as demais que s&o ensinadas e alguém deve encontrar um modo de complementar esses ensinamentos, suprindo essa falha. Essa é a razdo pela qual optei por dedicar meus anos de aposentadoria a tornar possivel que se ensine a matéria indis- pensavel que a metafisica da modernidade coloca de lado. I t t | ' a A SEGUNDA CATASTROFE O COLAPSO DAS TORRES DA FE, Resposta aos Ataques Levantei-mecedo em 11 de setembro de 2001 ¢ liguei meu computador para checar as noticias na Internet, Assim, assisti a pri- meira cobertura dos ataques, dos avides seqtiestrados, as torres gé- meas do World Trade Center e a terrivel destruigdo que se seguiu. Qualquer pessoa familiarizada com a Internet sabe que no- ticias enganosas sfo abundantes, c, assim, é prudente nao repetir nenhuma dessas noticias sensacionalistas até se ter absoluta cer- teza do que realmente aconteceu. No momento em que fiz uma pausa para ter certeza de que meus olhos nao estavam me enga- nando, eu me lembro de ter pensado: eu certamente espero que esta noticia seja o maior dos sensacionalismos ja divulgados pela Internet. Quando a realidade e a extensfo da devastaco tornaram- se claras, as horas que se seguiram foram em grande parte dedicadas ao espanto e a preocupagao sobre o que viria a seguir. Muitos livros ainda serao escritos (e na verdade alguns ja foram) sobre 0 ataque terrorista e sobre a guerra que se seguiu. Minha inteng&o nao é fazer uma narrativa do que aconteceu. Antes, meu objetivo é descrever algumas das perguntas corretas que esto 98 - As Perguntas Certas comecando a emergir a medida que 0 publico tenha tempo para reagir a esse novo cenario. O primeiro pronunciamento ptiblico de que me recordo ter ouvido, depois do colapso das torres, partiu do ministro cristo de extrema direita, Jerry Falwell, que disseram ter atribuido a tragé- dia ao descontentamento de Deus por causa da perversidade dos ativistas do movimento liberal pelos direitos civis, alvo costumeiro de Falwell, particularmente os homossexuais e os defensores do aborto. Essa grosseria foi imediatamente condenada em toda a extensio do espectro politico, incluindo a direita religiosa. Entre- tanto, a reac&o dos jornalistas, em muitos casos, “extrapolou” de forma impressionante o comentario inicial, sendo que varios deles sugeriram que Falwell (e talvez todos os fundamentalistas cris- tos) pertenciam 4 mesma categoria que os terroristas islimicos que tinham seqiiestrado os avides. Assim como Falwell tinha en- carado 0 desastre como uma oportunidade para culpar seus cos- tumeiros bodes expiatérios, os principais jornalistas aproveitaram a oportunidade para fazer o mesmo em relagao aos seus proprios ¢ prediletos bodes expiatérios — os fundamentalistas cristaos. Provavelmente, jamais Ihes ocorreu que estivessem fazendo exa- tamente a mesma coisa pela qual condenavam Falwell. Na midia, convencionou-se que os “fundamentalistas” religiosos (numa de- finig&o genérica) sao o que se pode chamar de bodes expiatérios, os quais podem ser responsabilizados por praticamente qualquer coisa, a qualquer momento. Homossexuais e defensores do aborto, porém, pertencem a uma classe protegida e raramente se 1é algo desfavoravel sobre eles nos jornais. Do outro lado do Atlantico e do lado oposto ao espectro metafisico de Jerry Falwell, o arquidarwinista Richard Dawkins viu uma oportunidade de usar o desastre como uma arma para atacar seus alvos costumeiros, as pessoas religiosas de modo ge- ral, especialmente as crist&s. A causa fundamental do fanatismo, pensou Dawkins, era a crenga na vida apés a morte, a qual pode transformar uma pessoa comum num missil autoguiado, capaz de cometer alguns atos terriveis, tais como 0 ataque suicida que havi- A Segunda Catastrofe - 99 amos acabado de assistir pela televisdo, na esperanga de receber uma recompensa no paraiso. Ocomentario de Dawkins foi patentemente absurdo apés um século em que uma filosofia materialista denominada Marxis- mo tinha sido responsavel por mais de cem milhdes de mortes. Dawkins nao foi alvo de ataques ptiblicos como aconteceu com Falwell, porque muitos dos jornalistas famosos compartilhavam do seu preconceito, mesmo que de forma amena. Minha propria tendéncia nao é a de enfatizar o absurdo de se culpar crist&os pelo extremismo isl4mico, mas antes me concentrar num ponto sobre o qual Dawkins tinha razao. E verdade que um homem, que acredita em algo que é mais importante para ele do que a sua propria vida, é um homem potencialmente perigoso. Ele é capaz de fazer coisas que uma pessoa com propésitos mais mundanos jamais pensaria em fa- zer. Isso é valido tanto para crengas seculares como religiosas. Considere-se, por exemplo, 0 herdi da Revolucéo Americana, Nathan Hale, um patriota conhecido por lamentar o fato de ter apenas uma vida para dar pelo seu pais. Esse tipo de pessoa pode ser capaz de um ataque suicida, desde que o propdsito seja valido o bastante (Eu gostaria de perguntar a Dawkins se ele seria capaz de sacrificar sua propria vida, num ato de violéncia assassina, se estivesse convencido de que essa medida tao ex- trema era necessaria para salvar a ciéncia do dominio por fundamentalistas religiosos.). Pessoas que nao se importam com nada além de seu préprio conforto s&o mais cautelosas, embora sejam muito menos inspiradoras que pessoas capazes de arris- cara propria vida. Deveriamos desejar, portanto, que o mundo se livrasse de todas as causas € propdsitos que s4o maiores do que a vida, de forma que pudéssemos contar com pessoas que agissem mais como cordeiros, satisfeitas em repousar em pas- tos verdejantes? Nao. Aconclusao correta a se tirar do ataque terrorista nado éa de que ninguém deva ter uma causa pela qual valha a pena mor- rer, mas, antes, a de que é extremamente importante que essas 100 - As Perguntas Certas pessoas tao altamente motivadas se dediquem a uma boa causa, em vez de uma causa ma. Essa conclus& assume que temos um critério capaz de distinguir o bem do mal e que o mesmo pode ser colocado em divida numa era de relativismo moral, quando aque- les, para quem o valor supremo é a “tolerancia”, consideram mais repreensivel identificar o mal do que pratica-lo. Se a ciéncia for nossa Unica fonte de conhecimento e se ela nos proporcionar o conhecimento apenas dos fatos e nao dos valores, ent&o distinguir entre o bem e o mal pode ser apenas uma questao de preferéncia arbitraria. Uma multiddo de jovens chegou precisamente a essa conclus&o, na proporgao em que sua educagao os tem encorajado nesse sentido. Dawkins fez uma caricatura da fé religiosa, apresentando- a como se ela fosse um outro tipo de tecnologia, assim como a hipnose, que se prestasse 4 manipulagdo de pessoas. Os terroris- tas podem ter acreditado em algo semelhante. Eles acreditaram que sua fé e sua determinagao, em comparagao com a indoléncia espiritual e a decadéncia moral que atribufam a seus inimigos, eram grandes o suficiente para suplantar a imensa superioridade mate- rial e tecnolégica da naco que estavam atacando. Num sentido restrito, eles alcangaram seu objetivo. O que quer que possamos. dizer sobre o massacre ou sobre 0 que possa vir a ser seu efeito residual (além da destruigao do governo Taliban no A feganistao), oataque foi um sucesso tatico brilhante dos terroristas, pelo uso de alguns dos equipamentos tecnolégicos mais avancados do migo para alcangar um efeito destrutivo espetacular, que as viti- mas jamais imaginariam ser possivel. Os terroristas jamais pode- riam ter construido um aviao a jato, mas foram habilidosos e im- placaveis na velha pratica secular da pirataria. A primeira licdo a ser tirada dessa catastrofe é que os inte- lectuais americanos ¢ europeus tém sido muito ingénuos ao tratar a fé com um desdém condescendente, como um resquicio do pen- samento pré-modernista, que esta fadado a perder importancia, na medida em que a humanidade se torna mais evoluida tecnologicamente. Espero que nado ougamos mais esse tipo de A Segunda Catastrofe - 101 ilus&o condescendente. As crengas dos terroristas, ainda que no- civas ou voltadas para um propdsito equivocado, eram suficiente- mente poderosas para torna-los muito perigosos. Um dos resultados do ataque terrorista certamente sera um aumento bastante significativo do interesse pelo Islamismo em par- ticular e pela religiao em geral. Esse nao é um tema que possa continuar a ser ignorado, mesmo por uma nagdo rica e tecnologicamente avangada. Pessoas que acreditam em coisas que os racionalistas consideram impossiveis podem também ser capazes de fazer coisas que os racionalistas consideram impossi- veis. Sea fé tornou os terroristas perigosos, ent&o ela é algo que devemos aprender a compreender, para que possamos aplica-la para bons propésitos. Existe um outro lado da quest4o que Dawkins estava ten- tando expor. Uma fé maior do que a vida, se mal dirigida, pode inspirar o fanatismo homicida; porém a fé também pode produzir a coragem necesséria para superar esse tipo de fanatismo. Ha um ditado popular que diz que tudo o que é preciso para o mal triunfar é que os bons homens permanegam de bra¢os cruzados. O mal pode triunfar se as pessoas inclinadas para o mal tiverem uma grande determinagao e habilidade; ele também pode triunfar se as pessoas potencialmente boas forem indolentes, voltadas para si mesmas e€ nao estiverem dispostas a pér em risco a propria vida, mesmo que por uma causa nobre. Os terroristas de 11 de setembro pensaram da América do Norte o mesmo que Hitler pensou da Inglaterra e da América do Norte, em 1939. Fanaticos implacaveis agem com ousadia e até mesmo de forma temeraria, pois s4o cegos em relagdo aos recur- sos espirituais latentes, que as pessoas livres possuem e porque pensam que seus inimigos sao demasiadamente voltados para a luxtria e timidos, mesmo que seja para lutarem pela propria vida. Os passageiros herdis do v6o 93, que lutaram contra os terroris- tas, fazendo com que 0 aviao seqijestrado caisse numa zona rural, forneceram de forma imediata uma demonstragao dramatica de que 0s terroristas estavam completamente enganados a respeito 102 - As Perguntas Certas da América do Norte, embora pudessem estar certos a respeito de alguns dos norte-americanos. Nos proximos anos, os norte-americanos ndo irdo se preo- cupar com maneiras de abolir a fé, mas com formas de encorajar o heroismo do sacrificio pessoal, demonstrado pela policia e pelos bombeiros de Nova York, pelos militares norte-americanos e por “muitos civis no Afeganistéo. Eu nao ouvi ninguém dizer que pre- cisamos de mais tedricos niilistas ou de mais clérigos liberais, que pregam o relativismo moral. Nés certamente nao precisamos de mais lares ou de sistemas educacionais do tipo que moldaram o perfil do infame taliba americano, John Walker Lindh. Lindh esta- va disposto a se associar com aqueles que iriam cometer terriveis crimes ¢ loucuras, embora em alguns aspectos ele parega quase normal para um jovem norte-americano de sua época. Lindh iniciou sua jornada em diregao ao Islamismo radical e depois a luta contra seu proprio pais, apés ter lido A Autobiografia de Malcom X, um livro indicado e até mesmo venerado por todo 0 nosso sistema educacional multiculturalista. Seus pais o encoraja- ram, como fazem muitos, a experimentar varias crengas e estilos de vida, até que ele encontrou um que lhe fosse apropriado. Alguns meses depois do ataque terrorista, vi reportagens em jornais de escolas publicas que apresentavam o Islamismo aos estudantes de uma maneira bastante favoravel, embora es- sas mesmas escolas jamais teriam ousado apresentar algo favo- ravel sobre 0 Cristianismo. O Islamismo é adequado ao dominio ideolégico da diversidade multicultural, enquanto o Cristianismo € associado, na mentalidade dos educadores publicos, com o tipo de preconceito do qual se espera que o multiculturalismo ajude os estudantes a escaparem. Nao é surpreendente que esse tipo de cultura t&o confusa gere exemplos extremos como 0 de Lindh e uma quantidade muito maior de estudantes que se apegam 4 idéia de que as escolas piblicas estio tentando thes ensinar que o Islamismo é bome 0 Cristianismo, mau. Por que motivo seria 0 primeiro aceito nas escolas ¢ o Ultimo rigorosamente e até mesmo fanaticamente excluido? Os esforgos dos pais para ins- A Segunda Catastrofe - 103 tigar uma fé vigorosa nos seus filhos podem algumas vezes pas- sar dos limites, mas o exemplo do talib& norte-americano de- monstra 0 perigo de se deixar jovens curiosos com um vacuo espiritual no lugar onde a fé deveria estar, um espago vazio e disponivel para ser preenchido por qualquer enganador ou fana- tico que seja aceitavel e que o encontre. O Verdadeiro Poder Pouco tempo depois de 11 de setembro, 0 New York Ti- mes publicou um editorial que comentava que os terroristas ti- nham escolhido as torres do World Trade Center pelo fato de ser 0 simbolo mais visivel da riqueza do poder norte-americano. Eu ouvi esse raciocinio num editorial que foi veiculado em estagdes de radios crists por todo 0 pais: Se os terroristas pensaram que as torres do World Trade Center representavam o verdadeiro poder da América do Norte, eles estavam cometendo o mesmo erro que os militares japoneses haviam cometido sessenta anos. atras, quando eles pensaram que os navios de guerra ancorados em Pearl Harbor representavam o poder da América do Norte. E dito que o almirante japonés comentou aps 0 ataque: “Temo que nds somente tenhamos despertado um gigante adormeci- do”. Ele estava certo. O ataque de Pearl Harbor foi um bri- Ihante sucesso tatico para a marinha japonesa e um desastre estratégico tanto para o império japonés como para a Alemanha nazista. Eu previ que 0 mesmo iria ser valido em relagdo aos terroristas islimicos. O verdadeiro poder da América do Norte, eu disse, nao é material, mas espiritual; ele esta na fé e na devo- ¢40 a liberdade do nosso povo. Imediatamente depois de ter escrito essas palavras, eu me surpreendi tentando adivinhar se havia falado a verdade pura simples, sem enfeites. Apesar do heroismo de alguns, a América do Norte de 2001 nao era a América do Norte de 1941, Os anos de conforto e seguranga tiveram seu prego, resultando no fato de que as filosofias hedonistas e niilistas se tornaram dominantes entre 104 - As Perguntas Certas 0s intelectuais refugiados nas nossas universidades e centros cul- turais. Uma desmoralizacao semelhante era evidente na Inglater- ra dos anos 30, antes de Winston Churchill dar novo 4nimo a sua nag4o, bem a tempo para seu momento mais importante. O equi- valente contemporaneo da mentalidade condescendente que dre- nou a forga da Inglaterra era a filosofia do relativismo moral que, em nome da “tolerancia”, impedia o reconhecimento de qualquer diferenga entre o bem eo mal. Os pronunciamentos de alguns dos nossos religiosos e inte- lectuais mais espiritualmente imaturos, depois do episddio de 11 de setembro, deixaram-me coma impressao de que eles achavam que os terroristas tinham, ao menos em parte, uma justificativa valida para o que tinham feito. Esses “trombeteiros do negativismo”, como foram denominados por um politico dos anos 70 os derrotistas de sua época, nao aprovavam exatamente 0 ter- rorismo, mas desaprovavam quaisquer medidas eficazes que pu- dessem ser concebidas para lidar com os agressores. O que uma vez fora chamado de uma politica contraria ao anticomunismo sobreviveu na forma de uma postura contraria ao antiterrorismo. A conduta corajosa e eficaz por parte dos militares norte-ameri- canos na guerra do Afeganistao, sob a lideranga do presidente Bush, foi inspiradora, porém algumas dreas da cultura norte-ame- ricana pertenciam apenas aos inimigos da liberdade. Intelectuais e jornalistas de elite pertencentes 4 vanguarda ficaram, na maio- ria das vezes, sem a menor nog4o de como responder a nova situagao, depois do episddio de 11 de setembro, provavelmente porque sua educagao ideologicamente restrita e sua experiéncia limitada com pessoas que nao pensam exatamente como eles os tenham tornado incapazes de compreender que a situacaio tinha realmente se alterado. Tudo 0 que essas pessoas podiam fazer era reprisar os ro- teiros que jd conheciam: Vietnd, os direitos civise Watergate. Em cada uma dessas crises a midia impressa e televisionada desem- penhou um papel dominante. Na Guerra do Vietna, os gurus da A Segunda Catastrofe - 105 midia desacreditaram a lideranga militar e politica norte-america- na; nas campanhas pelos direitos civis eles tiveram a satisfagao de patrocinar uma causa nobre em diregdo a um triunfo avassalador, e no escAndalo de Watergate eles até mesmo conse- guiram tirar do poder um presidente que odiavam. Nao é surpre- endente, portanto, que os jornalistas mais influentes parecessem ansiosos em forcar os acontecimentos de 2001 dentro dos mes- mos moldes, que os anteriores gurus da midia haviam elaborado para os acontecimentos bastante diferentes dos anos 70. Assim, os gurus alertaram que qualquer guerra no A feganist&o iria aca- bar num “beco sem saida”, no qual o poder da forga aérea norte- americana seria ineficaz. Os repérteres buscavam de forma im- placavel noticias manipuladas que pudessem se adequar aos pa- drdes de “abuso de poder” e “discriminagao de minorias”. Felizmente, estavam surgindo novas formas de jornalismo, especialmente no radio e na Internet e, pela primeira vez, as elites jornalisticas se encontravam sujeitas ao tipo de critica que ha muito elas haviam assumido como algo que se dirigiria apenas aos ou- tros. Se os norte-americanos tinham aprendido a ser céticos em relagao as noticias bastante tendenciosas que dominaram tanto a midia impressa quanto a eletrnica desde 1960, os terroristas do episddio de 11 de setembro haviam nos proporcionado, sem que- rer, um beneficio para contrabalangar o mal que tinham praticado. Tenho esperangas de que talentosos escritores e oradores irdo agora se dispor a fazer as perguntas relevantes, que nao haviam sido reveladas pelos monopdlios da midia 4 opiniao publica. Pro- vavelmente apenas uma catastrofe financeira sera capaz de mo- tivar os detentores da elite jornalistica a despertarem para a reali- dade e essa catastrofe vai demorar a acontecer, enquanto os anun- ciantes estiverem vendendo seus produtos. O melhor que pode- mos esperar, a curto prazo, é o fato de que havera vastas fontes alternativas de informagao. 106 - As Perguntas Certas As Perguntas Certas Sobre Religiao e Tolerancia Numa Sociedade Pluralista 1, Qual é 0 entendimento adequado sobre religiio numa nacao pluralista como os Estados Unidos, em que um numero significative de cristéos, agnésticos e religiosos judeus e muculmanos precisam todos couviver em paz? Pouco depois do ataque de 11 de setembro, um colunista do New York Times escreveu que a guerra contra o terrorismo deve- ria ser uma guerra contra 0 que ele denomina como “totalitarismo religioso”, que quer dizer a visfio de que apenas uma Unica religiao é verdadeira e, portanto, todas as demais sao falsas, na medida em que contestam a verdadeira religido. Superficialmente, isso pode parecer uma postura “tolerante”, mas é, na verdade, uma tentativa de tornar absoluta uma Unica postura religiosa ~ 0 agnosticismo —com a finalidade de justificar a relativizagdo de todas as demais posigdes. A melhor maneira de formular o im- portante ponto em questo é perguntar: “Qual é a correta pers- pectiva metafisica, isto é, a descrigAo correta de “como as coisas realmente sio”, diante da qual todas as alegagdes de exclusivida- de ou de autenticidade religiosa devam ser avaliadas?” Para a maioria dos homens e mulheres de nivel université- rio do século 20, “a Gnica verdade metafisica” aceita provavel- mente sera 0 naturalismo cientffico ou, para usar um termo mais simples, porém mais carregado de significados, 0 modernismo. Sob qualquer que seja a nomenclatura, a perspectiva naturalistica assume que a natureza é um mundo restrito a causas e efeitos materiais, que podemos compreender por meio da investigagao cientifica e que as intervengdes sobrenaturais na ordem natural jamais ocorreram. Influentes formadores de opiniao, como aque- le colunista do New York Times, fazem sensacionalismo ao con- denarem alegagSes de exclusividade religiosa somente pelo fato de que eles aceitam uma exclusividade religiosa de uma espécie diferente. Se 0 modernismo (0 naturalismo) é a Verdade (com letra maitiscula, significando que é a alegacao de uma verdade A Segunda Catastrofe - 107 objetiva ou universal), entao Jesus ndo ressuscitou e Maomé nao recebeu diretamente de Ala porgdo alguma do alcorao. Para os modernistas, 0 Cristianismo e 0 Islamismo s&o verdades equiva- lentes, pois so igualmente falsas, ou pelo menos assim 0 so seus elementos incorrigivelmente sobrenaturais. Se o modernismo é a unica perspectiva religiosa verdadeira, ent&o as demais religides, na medida em que sejam inconsistentes com o modernismo, de- vem ser falsas. Por experiéncia propria, considero que a maioria das pessoas de nivel universitario assume exatamente isso, sem achar necessério refletir muito sobre a quest&o. Essa é a postura para a qual a mente delas foi treinada. A maioria dos modernistas sente arrepios diante da su- gestio de que o modernismo seja uma religiaio ou mesmo uma perspectiva metafisica, pois isso implicaria no fato de que o mo- dernismo é nada mais do que mais uma das formas possiveis de se conceber o mundo, e nao a Unica forma admissivel de pensa- mento para pessoas instruidas, Religido é um termo pejorativo para a metafisica modemista, possuindo uma conotacao de fan- tasia ou de ilusdo e normalmente com uma tendéncia no sentido da intolerancia ou mesmo da opressdo. Para seus fi¢is adeptos, © modernismo nfo representa uma religido ou uma filosofia opcional, mas “o modo como nés pensamos hoje em dia” —sendo que o “nds” quer dizer todas aquelas pessoas cujas opinides real- mente contam. A possibilidade de que se possa demonstrar que 0 modernismo seja falso ou substituivel de forma pacifica por algu- ma op¢ao mais persuasiva nao lhes ocorre. O modernismo é uma visdo de mundo religiosa e predominante — uma vis&o que aparen- ta ser tdo evidentemente correta que nao necessita de justifica- cao. Ela representa justamente “aquilo que todos sabem”. Clas- sificar o naturalismo como uma das varias perspectivas religiosas tornaria visiveis seus pressupostos essenciais, de forma que eles precisariam ser defendidos, justamente como acontece com os pressupostos fundamentais das demais perspectivas religiosas. A hegemonia modernista depende do fato de se evitar 0 surgimento dessa situagdo. 108 - As Perguntas Certas Os modernistas nao podem admitir o fato de terem seus pressupostos expostos a andlise porque todo mundo no sabe que © naturalismo seja verdade — nem mesmo 0s cientistas ou acadé- micos renomados. Aqueles que nao acreditam (no modernismo) foram intimidados e marginalizados por todo 0 século 20, pois as elites do conhecimento lancaram mio de uma propaganda tre- mendamente poderosa para convencer as pessoas, especialmen- te os estudantes, de que a verdade do naturalismo foi comprovada pela ciéncia, a mesma ciéncia que nos da os avides, os foguetes, as vacinas e os computadores. Divergir do naturalismo, dizem os modernistas, significa abandonar 0 saber que nos fornece tecnologia e retroceder a uma mentalidade medieval, como fize- ram os radicais islamicos. Esse é 0 motivo pelo qual os modernis- tas mais dogmati¢os véem pouca diferenga entre os n4o-moder- nistas (os fundamentalistas) crist&os e islimicos, emborao com- portamento de ambos seja completamente diferente. Aqueles que partem do pressuposto de que o futuro sera uma continuacao do presente, supdem que o modernismo sempre manterd sua posi¢&o predominante por todo o mundo, embora al- guns lugares possam ser temporariamente dominados pelo Islamismo ou por algum outro tipo de fundamentalismo. Pelo con- trario, eu prevejo que as bases do modernismo serao profunda- mente abaladas durante o século 21, 4 medida que a opiniao puibli- ca se torne consciente de que aos verdadeiros dados cientificos contrariam as ambiciosas alegagdes que os darwinistas defen- dem, acerca do poder criativo da selegAo natural, e 4 medida que ela aprenda que a melhor base metafisica, mesmo para a ciéncia, encontra-se na cria¢4o divina, e nao na fantasia de que a mente humana seja o resultado de forgas irracionais. Conforme a ver- dade sobre a criagao se torne mais difundida, mesmo dentre os mais rec6nditos refiigios das universidades, as pessoas passarao a perguntar: “Como a comunidade cientifica, supostamente capaz de corrigir seus prdprios erros, esteve tao errada, por tanto tempo, sobre um assunto de tamanha relevancia?” Elas também pergun- tarao: “De que maneira e por qual motivo a evidéncia da criagio A Segunda Catdstrofe - 109 foi omitida e distorcida por tanto tempo?” O surgimento dessas perguntas tera um efeito devastador ndo em relagdo a ciéncia, entendida como a investigacao empirica imparcial, mas sobre a lideranga da comunidade cientifica do século 20, que se distanciou bastante da verdadeira ciéncia na sua busca por fama, riqueza e dominio cultural. 2. Qual é a raiz da tolerancia e quais devem ser os seus limites? Em que momento uma aversao exagerada 4 intolerdncia e 4 postura dos que consideram a si mesmos como justos pode se tornar uma nova forma de intolerancia e uma repulsa a uma atitude favoravel 4 justiga, 4 retiddo, a integridade moral? A tolerancia é um dos topicos mais sistematicamente mal- compreendidos na cultura moderna. O erro basico consiste em supor que o relativismo leva a tolerancia, ao passo que qualquer alegagao absoluta acerca da verdade implica intolerancia. Ha um pouco de verdade superficial mesclada a esse erro. Se estou absolutamente convencido de que 2+2 =4, nem mais nem menos do que isso, ent&o posso parecer intolerante para aqueles que que- rem desperdigar meu tempo, argumentando que a resposta corre- taé5ou3. Eimprovavel que eu recorra a forga ou ao suborno para comprovar minha alegacdo, pois é mais seguro e mais barato confiar na razao para convencer aqueles que irao ouvir a voz da razdo e, ao mesmo tempo, permitir que os tolos e os provocadores sigam seu préprio caminho. Controvérsias cientificas sao solucionadas por meio da expe- riéncia, um procedimento comumente aceito por todos, razaio pela qual as controvérsias cientificas somente envolvem a violéncia sob circunstancias patolégicas, como ocorreu na Russia de Stalin. Quan- do existe uma controvérsia relevante envolvendo a ciéncia, a filoso- fia oua politica e nenhuma forma comumente aceita de soluciond- la, entdo os grupos adversarios podem recorrer a intimidago, & discriminagdo profissional e a propaganda para assegurar que suas perspectivas iro prevalecer. As universidades hoje em dia estéo 110 - As Perguntas Certas cadticas (com excegao das areas técnicas) principalmente porque a filosofia dominante admite um relativismo epistemoldgico. Essa filosofia normalmente é chamada de pés-modernismo, mas penso que um termo melhor seria hipermodernismo, isto é, uma filosofia que representa essencialmente o naturalismo cientifico levado 4 sua conclusao légica. Pelo fato dea ciéncia lidar com fatos e nao com valores, as universidades modernas carecem cada vez mais de uma base nao-arbitraria para decidir até mesmo sobre questées primari- as que envolvam valores como, por exemplo, a diferenga entre o bem eo mal. Lénin e Osama bin Laden eram realmente maus ou estavam meramente agindo segundo padrées que sao diferentes dos nossos, mas nos quais eles acreditavam sinceramente? Faca esse tipo de pergunta num dos nossos departamentos académicos hipermodernistas e esteja preparado para receber como resposta uma chuva de evasivas. A verdadeira base para a tolerancia é uma concepgao religi- osa da humanidade que exija tolerancia, pois ensina que todo tipo de autoridade tem o potencial de se tornar abusiva. Qualquer religiao dominante pode ser mais ou menos tolerante em relago a outras crengas, porém, se quer permanecer dominante, deve decidir, de acordo com seu préprio entendimento, o que tolerar e quanta tole- rancia pode conceder, Por exemplo, os naturalistas cientificos tipi- camente demonstrarao tolerancia em relagao ao Cristianismo, des- de que as doutrinas cristds estejam restritas 4 vida privada e nao sejam apresentadas como uma base para a elaboragaio de leis ou aplicadas na educagao publica, A Igreja da Inglaterra, nos séculos 17e 18, parece intolerante segundo os padrdes modernos, pois nao tolerava plenamente as minorias religiosas; porém, para os padres da sua época, o simples fato de se permitir que os dissidentes religi- osos praticassem sua fé privativamente era algo de uma tolerancia admiravel. Enquanto a Igreja Cat6lica aparentemente ainda aspira- va governar e nao apenas ser tolerada, num contexto cultural domi- nado pelo protestantismo, os protestantes eram compreensivelmen- te cautelosos em relagdo as ambig6es catdlicas. A crenga domi- nante pode aspirar a ser tolerante, porém, para permanecer toleran- A Segunda Catastrofe - 111 te, ela deve decidir, segundo seus proprias critérios, quais devem ser os limites de tolerancia apropriados. Se no ha limites para a tolerancia, ent&o n&o ha qualquer base para se combater até mes- moo homicidio oua opressao. Por que nao permitir que um Hitler ou um Stalin fagam o que bem entenderem nos “seus” territdrios, contanto que nos permitam a mesma liberdade para oprimir quem desejarmos no “nosso” territério? Devemos permitir, no nosso pais, que alguns grupos favo- recidos preguem ou pratiquem a intolerancia racial ou religiosa, enquanto exigimos que os outros obedegam a um padrao bas- tante diferente? Uma coagio exagerada ou seletiva no que se refere a tole- rancia ou a “sensibilidade” pode facilmente vir a ser um pretexto para novas formas de opressdo. A ideologia tiranica e primordial na América do Norte atualmente é chamada de “atitude politica- mente correta”, cuja base é a visdo de que os piores pecados sao aintolerancia ea insensibilidade. Em termos filoséficos, a atitude politicamente correta apresenta ligagdes com 0 Marxismo, mas prefiro dara ela o rétulo mais genérico de “vitimismo”. A premis- sa basica do vitimismo consiste no fato de que a sociedade se divide em duas classes de pessoas, as vitimas ¢ os opressores. Os opressores sempre esto errados e as vitimas, sempre certas. O objetivo da atividade politica (e se considerado tudo como poli- tico) é enfraquecer os opressores e dar poder as vitimas, de modo que elas proprias possam vir a ser um pouco opressoras. Qual- quer pessoa que tenha passado algum tempo numa das nossas grandes universidades sabera 0 que quero dizer. Os principios que anteriormente eram considerados absolutos, tais comoa li- berdade de pensamento e de expressao, so descartados sempre que os interesses das vitimas assim 0 exigirem. Um opressor que diga algo que ofenda uma determinada vitima é condenado a um treinamento de sensibilidade, mas as vitimas podem abusar o quanto quiser de seus opressores. O vitimismo supostamente se baseia numa paix4o pela tole- rancia, porém essa paixao dura apenas até que as vitimas tenham 112 - As Perguntas Certas poder suficiente para se transformar em opressores. Segundo os principios do vitimismo, tolerar os opressores é algo absurdo. Obviamente, essa filosofia é autocontraditéria. Se as vitimas fos- sem vitimas realmente, jamais receberiam as extraordindrias van- tagens que a posigao de vitima lhes confere. As ditas “vitimas”, entretanto, sAo vitimizadas, de fato, num outro sentido, freqiientemente pelo fato de que o resultado da filosofia é manter as vitimas num estado de dependéncia, de modo que possam ser manipuladas por demagogos. Pessoas que estejam se consumin- do de ressentimento por causa de injustigas reais e imaginarias, podem ser convencidas de que seu bem-estar depende de elas seguirem agitadores e chantagistas que prometem arrancar con- cesses dos opressores. Uma das perguntas certas é: “Como podemos ajudar as vitimas a entender que os manipuladores, os quais se esforgam para manté-las num estado de obstinado res- sentimento, sao seus piores inimigos?” 3. Quando temos de combater a tirania e a agressdo, quais os métodos que devemos utilizar e quais os limites que devemos respeitar? Para que o combate seja justo, os meios devem ser propor- cionais ao fim e mortes ou crueldades desnecessarias devem ser evitadas. Contudo, é necessdrio um principio mais abrangente do que simplesmente se evitar a crueldade desnecessaria. Esse prin- cipto se aplica néo somente ao verdadeiro combate, mas também aos conflitos culturais que podem ser impropriamente chamados de “guerras”, mas que sdo travados apenas com base em palavras e argumentos. Colocando em termos mais simples, em todos os ca- sos 6 to importante se conquistar a paz quanto se ganhar a guerra. Podemos ver um exemplo disso nos problemas enfrentados pelos Estados Unidos, enquanto o pais se preparava para atacar os terroristas islamicos e as nagdes que os financiavam e apoia- vam. A América do Norte possuia um potencial militar brutal para destruir todas essas nagdes com bombas nucleares. E claro que isso teria sido imoral e também acabaria numa situagao mais A Segunda Catastrofe - 113 perigosa do que aquela que havia conclamado o uso da forga. Dificilmente os Estados Unidos seriam os vencedores se derro- tassem o Afeganistao e tivessem de encarar o dio permanente de um bilh&o ou mais de muculmanos, bem como uma populagao bastante dividida no seu proprio pais. A questo aqui nao é se a forga militar deveria ter sido utili- zada. Eunio tenho dividas sobre a necessidade de se tomar uma aco ofensiva para derrotar 0 governo tirdnico do Taliba, no Afeganistaio. O problema esta em como se utilizar a forga de modo asealcancar nao somente uma vitéria militar (por si sé ja bastante dificil), mas também uma situagAo politica mais equilibrada, em vez de uma populagéio afega amargurada e um problema terrorista cons- tantemente crescente, como quer que se possa defini-lo. Evitar 0 uso da forga excessiva nao é a unica aplicagdo do principio. Também ¢ importante nao se terminar em meias-medi- das, que matam pessoas e enfurecem 0 inimigo, sem alcangar os objetivos pelos quais a batalha foi deflagrada. Isso foi o que os Estados Unidos fizeram no Vietna. Pelo fato de o presidente Lyndon Johnson no ter conseguido se decidir entre seus objeti- vos domésticos e os objetivos de seguranga internacional, ele nado teve éxito em alcancar nenhum dos dois. O exército norte-ameri- cano alcangou uma vitoria espetacular na Guerra do Golfo, mas os Estados Unidos perderam sua paz, porque o primeiro presiden- te Bush decidiu deixar no poder o tirano Saddam Hussein. Lan- gar mao de forga demais para se conquistar a paz ou forga de menos para se ganhar a guerra pode acabar num desastre. A aplicagao do meu principio bilateral vai além do conflito entre nag6es. Em escritos anteriores, descrevi minha propria luta contra a opressiva dominag@o intelectual da nossa cultura, por parte do materialismo darwinista. Essa dominagao tem se esten- dido até mesmo as faculdades crist&s, onde os professores temem desagradar os senhores intelectuais do meio secular. De vezem quando, alguém ira sugerir para mim que a maneira de se lidar com essa situagdo é pressionando as faculdades crist&s para que demitam os professores que nao estejam ensinando os principios 114 - As Perguntas Certas biblicos da maneira correta. Vejo isso como um exemplo de cura que seria pior do que a propria doenga. Ameagas de demissao iriam somente provocar a unido dos infratores em defesa uns dos outros e permitir que eles justificassem sua covardia com base na liberdade académica. O que ¢ intolerdvel nessa situagio nao vem a ser o fato de que alguns professores mantenham perspectivas equivocadas, mas sim que fagam uso de sua autoridade para ex- cluir perspectivas melhores do ambiente universitario, eliminando, assim, os processos do livre debate e da dialética, em si mesmos capazes de proporcionar a corregao dessas perspectivas. O modo de se solucionar essa situagao é abrir as faculdades cristis a ge- nuina liberdade intelectual, em vez de restringir ainda mais a liber- dade de discussao. Num dos meus livros, eu coloquei o titulo Defeating Darwinism by Opening Minds (Derrotando 0 Darwinismo pela Abertura das Mentes), e nas minhas palestras jd disse a muitos ouvintes que abrir as mentes é 0 zinico modo, apropriado de se derrotar o darwinismo. Uma filosofia opressora deveria ser der- rotada apenas pelo fato de se acabar com a opressAo, e nfio por substituj-la por uma forma diferente de opress&o. Eu insisti na postura de que nds, do movimento da cunha, derrotariamos o darwinismo pela abertura das mentes, ou nao iriamos derrota-lo de forma alguma. Por outro lado, também me neguei a dar ouvi- dos as muitas suplicas que recebi, no sentido de que me conten- tasse com meias-medidas, aceitando importantes elementos do darwinismo, desde que estivessem enfeitados por uma camada de religiosidade. Tive de golpear fundo o bastante para atingir o erro crucial, assim como empregar somente taticas que se baseassem em principios segundo os quais os melhores elementos na vida académica também serao tidos como essenciais para a pratica da busca da verdade. Os instrumentos empregados no confronto devem ser escolhidos e usados de maneira que se ganhe tanto a guerra quanto a paz. 6 S E IDENTIDADE SEXUAL O Filho Transexual: Adivinhe Quem Vem Para o Jantar Quase no final do século 20, liuma breve historia sobre vida familiar, escrita por um professor de uma de nossas universidades mais politicamente corretas. O professor e sua esposa se descre- viam como feministas contrarios a homofobia e n&o estavam sen- do hipécritas. Eles estavam bastante dispostos a aplicar sua filo- sofia a sua vida pessoal e familiar. Se seu filho tivesse dito a eles que era homossexual, por exemplo, eles teriam ocultado quais- quer receios particulares e demonstrado publicamente a aprova- ¢40 exigida. Porém, em vez disso, seu filho lhes disse que era “transexual” e as leituras que fizeram sobre a literatura sexual- mente permissiva do feminismo e do homossexualismo n&o os ti- nha preparado para entender que, na sua propria casa, pudesse surgir um desafio ainda mais radical aos tradicionais papéis sexu- ais. O didlogo resultante se parece com uma parédia daquilo que muitos pais jé passaram ao tentar, desesperadamente, compreen- der o motivo pelo qual seus filhos insistem em fazer coisas emba- ragosas, como pintar os cabelos de cores berrantes ou colocar piercings no nariz ou na lingua. 416 - As Perguntas Certas Eles perguntaram: “O que significa isso?” O filho lhes res- pondeu: “Isso quer dizer que eu sou uma garota. Eu quero usar vestidos e maquiagem e desafiar toda essa idéia patriarcal e bur- guesa sobre identidade sexual”. Essa declaragao os levou quase ao panico, pois eles esta- vam esperando convidados importantes para o jantar daquela noi- te. Eu nao estou dizendo que eles haviam convidado algum rigido modelo de responsabilidade, como um sacerdote ou um juiz, ou mesmo alguns parentes ignorantes que ainda conservavam a no- ¢o de que rapazes sao rapazes e garotas sao garotas. Nao, na- quela noite especifica eles estavam recebendo em sua casa dois dos mais célebres intelectuais do pés-modernismo da década de 90, ¢ 0 que temiam era que mesmo o senhor ea senhora Stanley Fish pudessem achar que seu filho estava fazendo a si mesmo ea seus pais de tolos. O pai descreveu seus temores: “Eu imaginava meu filho descendo sinuosamente as escadas e chegando até a mesa como uma Loretta Young, num vestido esvoacante de chiffon. De que modo eu iria explicar essa anomalia aos meus convidados, durante 0 aperitivo?” Felizmente, seu filho se vestiu de forma discreta e se restringiu a tépicos relativamente seguros, como religiao ou politica. Depois que os distintos convidados partiram, o problemati- co rapaz disse a seus pais que tinha tirado 0 conceito de transexua- lismo dos mesmos autores que seu pai indicava para seus alunos universitarios, tedricos da moda como Michel Foucault e Judith Butler. Se seu filho estava forgando um rotulo, ele o fazia com base nos pressupostos que impunham, no minimo, um consenso seméntico na cultura de final de século, um consenso implicito na difundida substituicgdo do termo sexo por identidade sexual. Osexo é um fato bioldégico, porém, a identidade sexual é 0 tipo de coisa que os substantivos tém em francés, uma designagao arbitraria que, com facilidade, poderia ser diferente. Existem apenas dois sexos, mas podem existir tantas identidades sexuais quanto a imaginagao humana possa inventar e uma pessoa, em principio, pode passar de uma para o outra conforme desejar. Partindo Génesis ¢ Identidade Sexual - 117 dessa base ideolégica, que os pais jamais questionaram, o rapaz estava simplesmente colocando em pratica o implicito convite a op¢do (ou inveng&o) da sua propria identidade sexual. Ele nao estava se rebelando contra a filosofia da familia, mas tentando viver de acordo com a mesma. Encurralado por sua propria légica, o desalentado pai rea- giu do mesmo modo que um liberal dos anos 40, que acabara de saber que uma familia de negros estava comprando a casa vizinha asua. “Subitamente, senti ddio daqueles tedricos de gabinete, que proclamavam de forma superficial essas teorias sobre género se- xual”, enfureceu-se 0 pai, sendo que ele proprio se aproximava muito daquela categoria. Nao deveriam eles prever a humilhagao que causaria a um pai decente, como ele mesmo, ver seu filho usando um vestido? Talvez ele pudesse fazer com que 0 garoto se envergonhasse daquele vestido e das roupas intimas. Mas ele nao podia e, em vez disso, expressou sua aversaio pela hipocrisia dos pais que nao tinham coragem de expor suas prdprias convicgdes. O filho transexual sentiu que tinha direito naio apenas a tolerancia, mas 4 aprovacio e, assim, comegou a insistir para que seus pais comegassem a chamé-lo de “ela”, como se fos- se uma filha. Os pais nao receberam qualquer apoio a sua timida resisténcia da parte de seus amigos, vizinhos ou parentes, que lhes disseram todos que essa era uma experiéncia comum nos dias atu- ais e que os pais nao deveriam ser tio inflexiveis em relagiio a isso. No final, eles tiveram de lidar da melhor maneira possivel com essa situacao e, logo, 0 pai estava até mesmo utilizando seu filho(a) como um exemplo positivo em suas aulas. “Afinal”, ele ponderou, “eu nao estava perdendo um filho, mas ganhando uma filha”, Uma outra perspectiva seria a de que ele estava ganhando um exibicionista bastante perturbado, que fingia ser uma filha. Encurralados por nossa pr6épria légica Seria facil fazer criticas baratas aos pais. Consigo resistir a tentacdo, pois eu também tenho sido um pai encurralado por sua 118 - As Perguntas Certas propria ldgica e sei o quanto é facil adquirir conceitos bastante tolos, quando todos a sua volta os aceitam como o melhor da cul- tura de vanguarda. Minha reag&o diante dessa histéria nao foia de ridiculariza-los, mas ter pena deles e refletir a respeito de como, tanto a confusio do pai, quanto a absurda rebelido do filho brota- ram, logicamente, das idéias tidas como to certas no mundo aca- démico que seria dificil se encontrar um professor capaz de refuta- las com vigor e de forma convincente. Nossos filhos e filhas levantam véo a partir da plataforma que lhes proporcionamos e, quando nds percebemos 0 quanto essa plataforma se tornou distorcida, é tarde demais para se comegar tudo de novo. Algo semelhante acontece aos professores, pois idéias tém conseqlién- cias. Dizemos aos estudantes que eles sé podem ser pessoas auténticas se escolherem seus préprios valores, assumindo tacita- mente que irdo escolher valores que possamos aprovar ou, ao menos, tolerar. E se nao for assim? A histéria do filho transexual ésemelhante aquela do soldado taliban norte-americano, no capi- tulo anterior, exceto pelo fato de que acabou meramente em bo- bagem, e nao em crime. As duas histérias simbolizam para mim a situagao fragmen- tada da cultura hipermoderna, particularmente em suas institui- ges educacionais, desde escolas publicas até as nossas melhores universidades. Os professores da area cientifica e tecnolégica estéio bem certos do que desejam ensinar, so bem-sucedidos em educar seus alunos nos costumes e praticas de sua ciéncia, e nao est&io nem um pouco inclinados a levar a sério um estranho qual- quer, que lhes diga que ha algo inadequado no seu modo de pen- sar. As ciéncias bioldgicas em particular séo atualmente as que mandam no mundo académico, com um amplo apoio financeiro gerado por suas promessas (em grande parte néo cumpridas) de fantasticos avangos na cura de doengas. Os bidlogos contempo- raneos invocam sua autoridade para ridicularizar qualquer suges- t&o de que os organismos vivos sejam projetados por uma inteli- géncia propositada, assim como desdenham de qualquer indicio de teologia, da idgia de que os organismos vivos, inclusive os seres Génesis e Identidade Sexual - 119 humanos, existam por uma outra finalidade que nao seja mera- mente a de sobreviver e se reproduzir. O doutrinamento filoséfico resultante tem muito a ver com o motivo pelo qual estudantes adquirem idéias t&o confusas sobre sexualidade. Por exemplo, os darwinistas insistem na idéia de que os passaros nao voam pelo fato de que foram feitos para isso, mas porque eles desenvolve- ram esse potencial por acaso e, entéo, o exploraram para sua sobrevivéncia e reprodugao. Pelos mesmos motivos, todos os professores assumem que os seres humanos nao se reproduzem com a finalidade de levar adiante algum propésito de um Criador. Os estudantes aprendem que a reproducao sexual evoluiu acidentalmente e, entio, se dis- seminou de uma espécie para outra, pelo fato de ela proporcionar algum beneficio para as espécies que, por mero acaso, tinham se reproduzido daquela forma. Uma vez que aceitamos que a vida nao tem um fim ultimo, estaremos livres para separar sexo de reprodugao e utiliza-lo inteiramente para o prazer ou para a auto- afirmagao. O fendmeno sexual pode ter na biologia as suas ori- gens, porém, a biologia darwiniana nao tem quaisquer implicagdes normativas para a maneira como devemos viver atualmente. O darwinismo possibilitou que os seres humanos declarassem sua independéncia do ensinamento biblico primordial acerca da sexu- alidade: Génesis 1.27. Criou Deus, pois, o homem 4 sua imagem; a ima- gem de Deus o criou; homem e mulher os criou. Atualmente, a substituig&éo do termo sexo por identidade sexual significa também a nossa declaragao de independéncia da biologia. Comece por Génesis e vocé esté no caminho légico corre- to, que leva 4 conclustio de que nossa sexualidade retrata 0 propé- sito de Deus para nossa vida. Por outro lado, comece pelo darwinismo e, t&o fantastica quanto a sugest&o teria parecido para Darwin ou Huxley, vocé esta no caminho légico que conduz, por fim, ao filho transexual. Pense nisso desta maneira: se para esse 120 - As Perguntas Certas rapaz fosse errada a conclusdo de que sua “identidade sexual” masculina lhe era arbitrariamente imposta pela cultura, entio onde sua légica deu errado? Acredito que ela deu errado num estagio bem inicial. Sua educacao, dentro dos moldes de uma cultura caé- tica, ocultou dele um fato fundamental sobre os seres humanos e sua sexualidade, que ele precisava saber. O que importa na vida nao é fazer as coisas a seu proprio modo, mas se tornar a pessoa que Deus pretende que vocé seja. Uma educagio que partisse de Génesis teria ensinado ao rapaz sobre esse fato e sua importancia. Na cultura moderna, os tecnocratas sabem perfeitamente bem 0 que querem alcangar e como educar os mais jovens para levar adiante seu projeto. Em contraste, os professores da area de humanas nao estéo certos sobre o que a sociedade espera deles. De mado geral, eles nao tém o apoio suficiente e teriam dificuldade em formular uma miss&o educacional defensavel, ca- paz de justificar mesmo 0 pouco apoio de que dispdem. O papel mais evidente para as ciéncias humanas seria o de fornecer 0 conhecimento sobre o valor e o propdsito da vida, os quais a cién- cia, por definig&o, exclui do seu préprio territério. Na verdade, essa era a funcao original dos cursos da area de humanas, quando as universidades pararam de ensinar teologia e precisavam de um substituto para essa matéria. Muitos professores da area de hu- manas ainda querem desempenhar esse papel, mas como devem fazer isso? A necessidade é real, pois o sucesso da tecnologia precisa ser contrabalangado por alguma forma de aquisigao de conhecimento acerca dos fins aos quais a tecnologia deve servir. O que se interpde no caminho desse projeto € a defini¢ao cultural de conhecimento, que admite uma noo apenas dos meios e nao dos fins, excluindo conceitos essenciais a qualquer compreensio sobre valores e finalidade. Por exemplo, a idéia de que exista uma nogio objetiva do certo e o errado que uma pessoa pode optar por seguir é tremen- damente contraria a ciéncia. A ciéncia nada sabe a respeito de agentes livres, racionais, cujas escolhas nao sejam determinadas por uma causa, nem sobre um dominio moral que nao seja uma Génesis ¢ Identidade Sexual - 121 inveng&o humana. Uma epistemologia estritamente cientifica (materialista) sugere que a ética ¢ baseada em ilusSes (Para mai- ores detalhes a esse respeito, veja 0 capitulo 5 do livro The Wedge of Truth). Ilusdes podem ser mantidas por um tempo, se parece- rem Uteis, mas elas se dissipam como fumaga quando seriamente desafiadas por pessoas que detém a autoridade para definir a re- alidade. Hd muito tempo, as instituigdes educacionais teriam de- legado 0 curriculo voltado para a ética aos professores de teolo- gia; que podiam se referir a suas proprias realidades fora do domi- nio da ciéncia. Naqueles dias, a ciéncia se constituia numa parte relativamente secundaria do curriculo, pois se considerava que ela era incapaz de tratar das questdes mais importantes. Contu- do, durante o século 20, quase todas as instituigdes de ensino su- perior abandonaram qualquer base teolégica para 0 conheci- mento moral, como se fosse uma causa perdida, em razdo das perceptiveis implicagdes do avango do conhecimento cientifico. O triunfo do darwinismo estabeleceu que nao poderiamos olhar para um Criador em busca de orientag4o moral, embora os homens pudessem invocar uma tradi¢ao teolégica para abengoar idéias morais que, na verdade, eram derivadas de uma fonte secu- lar. O Criador se tornou uma espécie de policial imagindrio, 14 no céu (ver capitulo | do livro The Wedge of Truth), que mantinha uma certa utilidade na manuteng&o da moral em meio aos incul- tos, mas que nao mais poderia ser levado a sério como fonte de conhecimento pelas classes mais instruidas. O que poderia ocu- par o lugar do Criador como fonte primordial do ensinamento moral? A resposta era (sob diversas formulagdes) algo como a “heranca ocidental” invocada pelo presidente Clinton, conforme foi descrito no capitulo 1 deste livro, quando ele se referiu aos “nossos valores humanos mais tradicionais e estimados”. Nas universidades, essa premissa tipicamente tomou a for- ma concreta de um curso geral sobre civilizagao ocidental, que identificava a base dos valores culturais com uma tradigao literd- ria, no lugar da revelagdo divina. Essa abordagem, na sua forma original, era um modo indireto de preservagao da base teoldgica, 122 - As Perguntas Certas pois os gigantes da tradig&o literaria ocidental (como Dante, Chaucer, Shakespeare, Milton) tiraram sua inspiragao moral da autoridade biblica. Somente depois de os céticos terem tido tem- po para mirar sua artilharia na direg4o do novo alvo, tornou-se evidente que o castelo dos valores literarios havia sido construido sobre aareia, Se encontramos valores na literatura, onde, entdo, a literatura os encontra? Se a literatura encontra esses valores apenas numa tradi- ¢4o sem fundamentos, ent&o, provavelmente, estamos confiando em superstigdes tribais, no lugar de verdades de aplicagao univer- sal. Talveznossos valores mais tradicionais ¢ estimados estejam mergulhados em males como 0 racismo, a homofobia e o especiesismo. Essa suspeita inspirou o desprezo das populagdes universitarias, que descartou o cAnon literério como sendo um bando de “homens brancos que ja morreram’” e que gritava o lema “Abaixo a civilizagdo ocidental!” Como o filho transexual, eles nao estavam se rebelando contra aquilo que lhes haviam ensina- do, mas levando um passo adiante a logica de seus mestres. Com 0 passar do tempo, os préprios rebeldes se tornaram professores € propuseram teorias niilistas baseadas no que haviam aprendido na faculdade. Se os estudos literdrios tratam fundamentalmente de valo- res e se a ciéncia nos ensina que somente é possivel 0 conheci- mento dos fatos e, nao, dos valores, ent&o, as ciéncias humanas devem logicamente se tornar uma outra forma de tecnologia, a tecnologia de como usar palavras para se alcancar objetivos gera- dos pelo desejo subjetivo. Essa é a origem do que os hipermodernos professores da area de humanas chamam de “teoria”, 0 uso da analise literéria com finalidade politica ou ideolégica. A manipula- cao semantica é realmente um recurso poderoso para lapidar a opiniao publica. O que quer que pensemos sobre essa definigao da atividade literaria, devemos reconhecer que, em alguns aspec- tos, ela tem obtido éxito. O poder de se alterar 0 cédigo da vida, presente no genoma, pode ser impressionante, mas o poder de se alterar os termos empregados por editores e escritores dificilmen- Génesis ¢ Identidade Sexual - 123 te é menos impressionante. Persuadir os escritores a usarem ter- mos repletos de ideologia, como homofobia e identidade sexual, como se fossem termos puramente descritivos, preparou 0 territé- rio do conhecimento para um cenario completamente novo, pelo qual o filho transexual avangou destemidamente, como um alpi- nista iniciante e mal-equipado que esta escalando sozinho uma montanha cheia de dificuldades. As duas ltimas décadas do século 20 produziram uma avalanche de escritos académicos sobre identidade sexual, bem como centros de pesquisa e cursos que eram orientados para os temas correlatos do feminismo e do homossexualismo. Os livros utilizados nesses cursos partiam do pressuposto de que identida- de sexual se refere aos papéis sociais atribuidos 4 realidade bio- Idgica do sexo. Dentro dessa perspectiva, a feminilidade e a mas- culinidade s4o meras criagdes sociais. Sexo se relaciona com a biologia, enquanto identidade sexual descreve 0 modo como al- guém se socializa, de acordo com algum padrao de comportamen- to associado ao sexo. Somente as mulheres podem ter filhos, porém, na cultura hipermoderna, as mulheres nao so as unicas que podem ser mies ou filhas. O que dizer sobre Génesis? A hist6ria do filho transexual me faz lembrar do livro de Génesis e de sua continua relevancia. Em meu papel como lider do movimento da Cunha da Verdade, na tentativa de conseguir uma insergdo inicial no monopédlio intelectual do naturalismo cientifico, precisei me manter afastado do livro de Génesis. Eu nao queria me envolver na batalha antiga e sem solugao travada entre a Bibliae a ciéncia. Em vez disso, eu queria destacar que a verdadeira batalha nao acontecia entre a Biblia e a ciéncia, mas entre as duas faces da ciéncia: de um lado, a ciéncia como observagao empirica e sem preconceitos, e do outro, a ciéncia como filosofia naturalista aplica- da. Para expor claramente esse tema perante o pliblico, eu me distanciei do relato da criago presente em Génesis, como parte 124 - As Perguntas Certas inicial das Escrituras e insisti para que as pessoas comegassem, em vez disso, com o ensinamento mais importante a respeito da criagaio que ha na Biblia, a introdugao do Evangelho de Jo&o. No capitulo 2 deste livro, expliquei de que maneira eu contrastava as primeiras palavras do Evangelho de Joao—“No principio era o Verbo”—com as primeiras palavras da histéria da criac&o formulada pelo materi- alismo cientifico: “No principio eram as particulas”. Eu coloquei Génesis temporariamente de lado, de forma que meus leitores pudessem focalizar sua atengAo no conflito irre- conciliavel que ha entre o darwinismo e mesmo a mais abrangente visio da criagao divina. O fato de se comegar com Génesis ten- dia a direcionar a atengo para a idade da terra, e n&éo para o mecanismo darwiniano. Isso também tendia a dar as pessoas a impressaio de que somente os primeiros capitulos da Biblia esta- vam sob ameaga, de forma que elas poderiam reconciliar a Biblia com a ciéncia evolucionista, desde que estivessem dispostas a ler Génesis figurativamente e a admitir que os “dias” da criagao fos- sem periodos geoldgicos de duragao indefinida, em vez de dias de 24 horas. Essa concessao superficial tendia a conduzir a desas- trosa adequagao, conhecida como evolucionismo tefsta, em que um verniz de interpretagao crista e biblica era adicionado para camuflar uma historia da criagdo fundamentalmente naturalista. “No principio eram as particulas” ndo representa uma mera nega- gao do relato de Génesis; é uma negagiio de toda a Biblia, do primeiro ao Ultimo versiculo. Isso implica aceitar que, embora Deus possa “existir”, ele n&o cria ou faz nada para “interferir” nos processos naturais da terra, pelo menos apés o principio fun- damental de tudo — quem sabe o big-bang. Os pressupostos naturalistas implicam que Deus é, em sintese, irrelevante. Era necessario deixar Génesis de lado para apresentar 0 verdadeiro conflito existente entre a evolugdo darwinista eo teismo crist&o, bem como para demonstrar que o mesmo nao poderia ser solucionado pela adequacao de umas poucas palavras em Génesis. Langar mao do Evangelho de Joao, no lugar de Génesis, era uma estratégia bem-sucedida para definir o conflito fundamental e, ent&o, Génesis ¢ Identidade Sexual - 125 possibilitar que eu apresentasse o total conflito que havia entre o naturalismo ¢ 0 tefsmo crist&o, sob uma dtica realista, Entretanto, infelizmente essa maneira de questionar o tema deu a alguns a impress&o de que eu estava descartando Génesis de modo per- manente, tratando-o como algo alegorico ou, no minimo, sem ne- nhum valor histérico. Se eu realmente estivesse fazendo isso, aqueles que créem na Biblia teriam tido uma boa razao para pro- testar. Génesis nao é meramente um apéndice adicional da Bi- blia; 0 livro representa uma parte essencial do todo. A pergunta certa nao é se devemos ler o livro de Génesis de forma literal, mas se devemos 1é-lo como se esperava que fosse lido e como Jesus, 0 proprio Verbo a que Joao | se refere, parece té-lo lido. Se o livro de Génesis ¢ descartado como algo completamente mistico, ent&o uma grande parcela daquilo que é essencial para o Cristianismo é colocado em risco. Como diversas pessoas destacaram, 0 livro de Romanos deixa claro a necessidade de se ter 0 primeiro Adio an- tes do segundo, cujo sacrificio salvou a humanidade das conseqiién- cias da desobediéncia do primeiro Addo. Em sintese, a questo do valor histérico de Génesis tem importancia para todo 0 arcabougo do evangelho crist&o e deve, em algum momento, ser tratada. Antes de abordarmos o ponto principal deste capitulo, isto é, como se formular as perguntas certas sobre a autenticidade de Génesis como relato histérico, preciso dizer algo sobre a continua relevancia de Génesis como uma explicagao dos elementos mais basicos da condig&o humana, tanto para os dias atuais, quanto para o passado. Ha varios preceitos morais em Génesis. Por exemplo, no capitulo 4 usei a histéria de José e seus irmaos para ilustrar como algo que parecia ser um desvio sem propésito na vida pode ser, segundo a dtica de Deus, a principal estrada para casa. Creio que hd, em particular, dois preceitos morais que se encontram no coragao dos primeiros capftulos de Génesis. Pri- meiro, ha uma historia de rebeliao. Tentar construir uma socieda- de humana perfeita ou utépica, da maneira como somos atual- mente, depois da entrada do pecado no mundo, é algo inutil. Esse plano nao tem chance de ser bem-sucedido e, mesmo que tivesse, 126 - As Perguntas Certas seu sucesso nao iria durar por muito tempo. Como se o homem ja no tivesse problemas suficientes, ele se revoltaria contra o para- iso e criaria problemas para si mesmo. Addo e Eva viviam em perfeitas condigdes de liberdade para fazer quase tudo que pu- dessem desejar, com apenas uma restrig&o, um Unico “nao”, num paraiso que era deles, em todos os outros aspectos, para que 0 aproveitassem da maneira que desejassem. Obviamente, a Unica coisa que lhes era proibida foi exatamente a que nfo puderam resistir a tentagfo de fazer. Essa desobediéncia nao representa meramente um aconte- cimento histérico nico. Ela ilustra uma caracteristica permanen- te da condi¢&o humana, também retratada na histéria do filho transexual. Aquele rapaz tinha todo 0 conforto e podia fazer pra- ticamente tudo o que queria. Ele vivia numa comunidade em que experiéncias sexuais e promiscuidade eram coisas comuns ¢ teria a aprovacao de seus pais e amigos, se tivesse quaisquer relacdes sexuais que desejasse, incluindo relagdes homossexuais. Pratica- mente nada que ele pudesse ter feito em termos sexuais iria cho- car seus pais. Ento, ele tratou de achar a nica coisa que ia além daquilo que, mesmo seus pais extremamente permissivos, esta- vam preparados para aceitar. Tendo encontrado esse proximo passo em sua ldgica, ele insistiu para que seus pais nao apenas permitissem que ele o desse, mas para que também lhe dessem a sua aprovagao. Nao era suficiente ser tolerado; ele deveria ser aplaudido por sua rebeliaio. Aqui, vemos o rebelde ego humano em agao. Se pessoas imaturas possuem algo de tangivel contra o que se rebelar, entao sua revolta pode ser racional. Porém, se elas nao esto sujeitas a qualquer restri¢&o que seja verdadeiramente opressiva, ento iro buscar algo que possam imaginar ser opressivo e insistirao em fazer 0 que quer que elas estejam, com razio, proibidas de fazer, mesmo que essa revolta leve a sua propria destruigao. Um segundo preceito fundamental de Génesis é no sentido de que a diferenga entre os sexos ¢ algo fundamental para o nos- so ser criado por Deus. “Homem e mulher os criou.” A nogao de Génesis e Identidade Sexual - 127 que a diferenga sexual é apenas uma questao de “identidade sexu- al”, algo que os seres humanos imaginaram e que pode ser alterado da forma como queiram, ¢ uma nogao estranha a Biblia. Nos dias de hoje, as pessoas esto se rebelando contra os ensinamentos bi- blicos, imaginando que fica a nosso critério, e nao a critério de Deus (um Deus supostamente imaginario), decidir qual deva ser a dife- renga fundamental da humanidade. Se vocé acha que a rebeli&io do filho transexual foi absurda e sem propésito, com base em que vocé poderia justificar essa posi¢&0? Vocé chegou a conclustio (mesmo que por mera coincidéncia), mediante uma dedugao a partir dos fatos expostos no primeiro livro da Biblia, e nao por intermédio de pressupostos do modernismo que estejam em moda. As pessoas do nosso tempo s&o to ignorantes no que diz respeito 4 ordem da criagao, que imaginam que as diferengas entre as naturezas femini- nae masculina sao algo inventado pelo homem e que pode ser por ele abolido ou modificado. Prevejo que, com o tempo, iremos per- ceber que nossa rebeliao contra a criag&o sera nociva e mesmo absurda e, entao, iremos, afinal, perceber que os ensinamentos de Génesis a respeito da humanidade permanecem tio reais e verda- deiros quanto sempre foram. As perguntas certas sobre Génesis 1. Partindo do pressuposto de que concordamos com a idéia de que 0 alicerce do teismo cristio (“No principio era 0 Verbo”) encontra muito mais fundamento, mesmo em rela- gio a evidéncia cientifica, do que 0 pressuposto basico do materialismo ou naturalismo cientificos (“No principio eram as particulas”), devemos parar nessa conclusfo ou irmos adiante, no sentido de reconsiderar passagens do Antigo Testamento que os modernistas universalmente assumiram como mitolégicas ou simplesmente falsas?_ provavel que algumas dessas passagens possam ser, afinal, verdadeiras? Eu expliquei o fato de ter evitado Génesis completamente ao determinar o ponto inicial de entrada para 0 estreito fio da 128 - As Perguntas Certas lamina da Cunha, pois comegar com Joao | permitia que meu argumento partisse do ponto mais basico em debate, em vez de afunda-lo em questdes menos fundamentais. Ja tendo exposto esse argumento anteriormente, partirei agora do pressuposto de que o leitor ja tenha conhecimento sobre os estagios preliminares e assumirei que concorda comigo em que a evidéncia cientifica demonstra que a afirmagao “no principio era o Verbo” é tao ver- dadeira em termos cientificos quanto teolégicos, bem como em relagao as Escrituras ou em qualquer outro aspecto. Além disso, assumirei que o leitor é um cristo teista, que cré plenamente na mensagem de Joao 1.1-14, inclusive na importantissima declara- 40: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nés”. O préprio Verbo, por meio do qual todas as coisas foram criadas, viveu na Terra como um homem, e essa afirmagao nao representa mera- mente uma “crenga religiosa”, mas um fato. Uma vez tendo chegado a essa conclusio, devemos levar plenamente em considerago a chocante circunstancia de que todo 0 peso da autoridade cientifica ou académica, ao longo dos ulti- mos séculos, tem sido colocado a servigo de uma filosofia enga- nosa, a filosofia do materialismo ou naturalismo cientifico. Aque- les em quem depositamos nossa confianga como mestres nos con- duziram por caminhos errados, de maneira comprometedora, numa questio de importancia capital. Comegar a histéria da criagdo com nada mais do que particulas movendo-se sem propésito, gui- adas somente pelo acaso e pelas impessoais leis da fisica, é esco- Iher um ponto de partida que n&o poderia jamais nos conduzir ao mundo em que habitamos, com sua imensuravel e maravilhosa variedade de seres vivos. Uma interpretagao adequada da evi- déncia cientifica é no sentido de que a vida é resultado de uma inteligéncia preexistente, primitiva, que nfo se desenvolveu a par- tir de processos evolucionérios: “No principio era o Verbo”, Pode- mos tomar como base, de forma confiante, essa verdade funda- mental e, se nos basearmos naquilo que lhe é contrario, iremos acabar bastante perdidos, como de fato acabamos. A histéria do filho transexual é somente um indicio do quanto nds estamos per- Génesis e Identidade Sexual - 129 didos, pelo simples fato de termos partido na diregdo errada. Se algum leitor esta inclinado a zombar dos pressupostos que estou defendendo, deixemos que ele contemple, por um instante, os ab- surdos aos quais os pressupostos materialistas nos conduziram. Em primeiro lugar, devemos compreender que a sabedoria humana, que chamamos de “ciéncia”, tem se enganado, de forma sistematica, sobre o fendmeno da criagdo e que os lideres da co- munidade cientifica tomaram, e ainda esto tomando, medidas enérgicas no sentido de suprimir entendimentos contrarios ¢ evi- tar que se tornem pUblicos os poderosos argumentos contrarios ao naturalismo evolucionista que existem ha muito tempo. Partindo dessa compreensiao, cabe a nés, logicamente, darmos 0 proximo passo e questionarmos a possibilidade de que nossa cultura aca- démica, profundamente preconceituosa, ao seguir esses mesmos pressupostos, possa ter igualmente se enganado em relegar a ca- tegoria de mito praticamente todo o livro de Génesis. Certamente, n&o podemos nos dar ao luxo de descartar a possibilidade de que ha, no livro de Génesis, muito mais verdade do que haviamos ima- ginado. O sentido da criagao é explicado de maneira mais siste- matica no livro de Jodo, mas é apenas no livro de Génesis que so explicados importantes aspectos desse fendmeno, como a origem e anatureza da sexualidade e do casamento. O equivoco radical sobre a sexualidade, retratado na histéria do filho transexual, tem suas raizes na rejeicfio da doutrina biblica da criagdo, uma doutri- na que ndo podemos ter esperanga de compreender, a menos que possamos aprender sobre ela no Génesis e no evangelho de Joao. 2. Se vamos tomar coragem suficiente para ponderar sobre a hipdtese de os primeiros capitulos de Génesis pos- sufrem valor histérico, em vez de serem lendas ou metdforas, qual o capitulo que devemos analisar em primeiro lugar? Minha pretens4o constante neste livro ndo é a de solucio- nar todos os problemas que a Biblia propSe para pessoas que, como nés, foram educadas dentro de uma perspectiva modernista de pensamento, mas somente a de poder ser o mais util possivel, 130 - As Perguntas Certas dispondo as perguntas certas numa ordem apropriada, de forma que cristéos mais altamente qualificados terao a melhor chance possivel de encontrar as respostas que eu nao consigo ver. Da mesma forma que disse que 0 livro de Génesis nao é 0 melhor lugar para se comegar quando analisamos a verdade da Biblia como um todo, também penso que Génesis | néio é 0 melhor ponto de partida quando refletimos sobre o valor histérico do relato da criagao em Génesis. Pretendo partir de alguns pontos importan- tes, em torno dos quais ha unanimidade entre os crist&os que se- guem a Biblia, embora 0 mundo secular n4o concorde com isso, € depois seguir adiante, a partir dessa base em comum, para tratar de quaisquer temas sobre os quais haja divergéncia entre os cris- tos. N&o pretendo comegar com uma divergéncia, pois isso néio levara a lugar algum. Numa conversa, meu amigo John me alertou para o ponto que estou defendendo aqui. John é um crist&o bastante dedicado, bastante instruido em geologia, que adota a posi¢ao dos criacionistas da “terra-antiga” ou progressistas, em relagdo a Génesis. A vida de John foi transformada por Cristo de uma maneira tao intensa que seria absurdo questionar tanto sua sinceridade quanto sua dis- posigdo em desafiar as tendéncias do pensamento modernista. John adota essa posi¢do pelo fato de acreditar que a evidéncia apresentada pela geologia sustenta vigorosamente essa perspec- tiva, a qual apresenta uma interpretac4o perfeitamente legitima da palavra dia, da forma como esta ultima é empregada em Génesis, e no uma interpretago moldada para escapar as obje- gdes modernistas. Na conversa que tivemos, eu, de forma descuidada me re- feri a posigéo rival dos criacionistas da terra-jovem ou criagdo recente como sendo a “posigao de Génesis” e John, com razao, chamou a minha atengao por eu ter tomado como pressuposto algo sobre cuja validade nao se tem qualquer prova. John me contou o quanto foi afetado quando cometeu, por descuido, um erro semelhante ao se referir ao Salmo 90 como sendo um “salmo de Davi”, como tantos outros. Um pastor ressaltou para ele o f F Génesis e Identidade Sexual - 131 fato de o Salmo 90 ser, na verdade, atribuido a Moisés, o que tem um significado singular, uma vez que a autoria humana de Génesis éatribuida a Moisés— nao somente por parte das tradigdes judai- cae crista, mas pelas proprias palavras de Jesus. Qualquer pes- soa que questione que Moisés é 0 autor de Génesis esta, definiti- vamente, inclinada para o liberalismo teoldgico, e nem John nem eu mesmo estavamos tomando essa direcao. Pode-se perceber a vantagem de se partir de um ponto em torno do qual haja unanimidade. A oragao de Moisés, no Salmo 90, declara: Pois mil anos, aos teus olhos, sio como o dia de ontem que se foi e como a vigilia da noite. (S1 90.4) “Com base nesse versiculo, acredito que a posi¢ao dos criacionistas da terra-antiga é a posi¢ao adotada em Génesis”, disse John. Concordei que John havia apresentado um argumento excelente, mas comecei a refletir sobre algo que Moisés havia dito um pouco mais adiante, nessa mesma oragao: Os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta. (S1 90.10) Isso me fez lembrar de que o autor de Génesis havia dito, de forma mais especifica e detalhada em Génesis 5, que os pri- meiros patriarcas viveram vidas incrivelmente longas, se compa- radas aos nossos padrées, e tiveram filhos mesmo depois de te- rem vivido mais de um século. Contudo, Moisés tinha plena cons- ciéncia de que a expectativa de vida, em sua propria época, era bem mais curta. Foram feitas algumas tentativas no sentido de se interpretar as expectativas de vida em Génesis 5 de forma figura- tiva, embora eu sempre tenha encarado essas tentativas como algo muito pouco convincente. N&o vejo motivo para que Moisés tivesse fornecido nuimeros tio especificos, a nao ser pelo fato de que eles fossem verdadeiros e ndo consigo encontrar resposta 132 - As Perguntas Certas para o motivo de Moisés acreditar que eles eram verdadeiros e por que tantas pessoas, desde ento, por séculos, os tém aceitado como auténticos, a nao ser pelo fato de possufrem uma forte ra- ziio para crer que esses nimeros eram de fato verdadeiros. Os povos antigos nao tiveram de esperar para que a ciéncia moderna determinasse a expectativa de vida normal para os seres huma- ‘nos; eles sabiam disso muito bem pela observagao e, ainda assim, acreditavam que algum povo ja havia vivido muito mais. A interpretagdo das expectativas de vida retratadas em Génesis 5 n&o representa um problema para os modernistas, que facilmente assumem que sabem mais sobre 0 passado do que as pessoas daquela época, e que sempre podem recorrer aos recur- sos modernistas da critica biblica — que é, em sua esséncia, a aplicagdo do naturalismo evolucionista a Biblia — para desvendar quaisquer mistérios. Ela representa um problema para aqueles que, como nds, rejeitam o naturalismo evolucionista como filoso- fia, quer seja ele imposto em relagao a biologia, quer em relagaoa Biblia. Ao admitirmos que Moisés foi, de fato, o autor de Génesis, proponho que consideremos seriamente a possibilidade de que ele sabia de algo que nao sabemos. A todos se tem ensinado a supor que as longas expectati- vas de vida, retratadas em Génesis 5 sio absurdas, e se concor- darmos com eles, dificilmente iremos resgatar a credibilidade do autor de Génesis pela simples reinterpretag4o de umas poucas palavras. Porém, suponha que estejamos dispostos a enfrentar corajosamente a zombaria de todos, para insistir no fato de que nos seja permitido encarar seriamente a possibilidade de os refe- ridos patriarcas terem realmente vivido tanto quanto Génesis 5 diz que viveram. Se partirmos dessa premissa, ent&o, uma grande quantidade de especulagées e teorias muito interessantes deve surgir. Por exemplo, como devem ter sido diferentes as condi- ges fisicas, naqueles tempos, para permitir que as pessoas vives- sem por tanto tempo? Quando e por que as condigées se altera- ram tanto, a ponto da expectativa de vida humana ter sido tao reduzida? Eu teria hesitado em propor essas perguntas tao auda- Génesis e Identidade Sexual - 133 ciosas até bem pouco tempo, mas me sinto encorajado a fazé-las agora, a partir do que aprendi acerca da cegueira dos preconcei- tos modernistas, por meio dos meus estudos sobre o darwinismo e sobre a consistente falta de disposig&o dos darwinistas em consi- derar evidéncias ou argumentos que sustentem conclusées ina- ceitaveis para eles. Parte do que nos tém ensinado a aceitar como incontestavel se revela como algo deduzido a partir de uma filoso- fia naturalista e jamais testado, de forma rigorosa, por meio da experiéncia, em especial, a alegagaio de que a selegdo natural de varidveis genéticas aleatérias detenha o fantastico poder criador, capaz de explicar toda a maravilhosa complexidade das plantas e dos animais. Encaradas de uma forma cientifica e sem precon- ceitos, as alegagdes darwinistas s4o muito mais fantasticas do que qualquer afirmacao retratada em Génesis 5. Com a atual perspectiva da queda do darwinismo, é hora de propor a investi- gacdo cientifica despida de preconceitos a possibilidade de que os seres humanos, ha milhares de anos atras, possam ter tido uma expectativa de vida muito mais longa do que tém hoje, ou do que tiveram na época em que o Salmo 90 foi composto. 3. possivel se conduzir, de forma produtiva, uma pes- quisa cientifica sobre as expectativas de vida em Génesis 5? Tudo o que é necessario para se pesquisar as expectativas de vida retratadas em Génesis 5 é que se coloque de lado o dogma filos6fico do uniformitarianismo e se avance, ao contrario, a partir da premissa de que as “constantes” fundamentais da fisica pos- sam ter mudado com o passar do tempo. Fazer pesquisas nessa base filosoficamente livre pode sugerir respostas para uma série de mistérios e até mesmo nos permitir retornar, em bases mais cientfficas, 4 questéo de como se interpretar a escala de tempo da criagéo. Eu nao me oponho a discussao sobre os dias de Génesis ou sobre qualquer outro tépico, porém acredito que a maioria de nés estaré mais bem preparada para isso depois de ter tido a opor- tunidade de refletir sobre as plenas implicag6es do que conclui- mosa respeito de Génesis 5. 134 - As Perguntas Certas Quando levanto questes desse tipo junto aos cientistas, sua reagéio usual é a de descartar as perguntas que os perturbam, ridicularizando-as ou negando que exista qualquer prova de que tenham ocorrido alteragdes nas constantes fisicas. Esse é um exemplo classico de como se obter a resposta antes de se fazer a pergunta. Raramente existe prova de qualquer coisa que interes- se, antes de as pessoas terem uma boa razdo para procurar por ela. O ponto de partida correto para uma pesquisa é uma hipdte- se. Que alteragdes precisariam ter acontecido para que fosse possivel que os primeiros patriarcas vivessem por tanto tempo quanto Génesis 5 diz que eles viveram? Se a teoria sugerir a existéncia de um hipotético conjunto de constantes que possibili- tariam vidas muito longas, uma vez tendo existido esse conjunto por um certo periodo, ent&o havera uma razio suficiente para se buscar evidéncia de que as constantes realmente se alteraram com 0 passar do tempo. Eu nao fago quaisquer alegagdes dogmaticas. Posso pre- ver que 0s cientistas, que estejam genuinamente se empenhando para encontrar um conjunto de condi¢ées fisicas que tornariam possiveis expectativas de vida bastante prolongadas, sero capa- zes de fazé-lo de boa fé, embora a precis&o de qualquer previsio possa ser determinada apenas a luz do que de fato acontecer. Uma vez que as perguntas corretas sejam feitas, indagacdes pos- teriores podem apontar para um modo de se defender ou nao as expectativas de vida retratadas em Génesis 5. Tudo 0 que posso dizer, antes de qualquer tentativa ser feita, é que jamais chegare- mos & resposta a menos que fagamos as perguntas corretas e, portanto, nao devemos permitir que sejamos intimidados, deixan- do de fazé-las por causa dos previsiveis acessos de firia ou das zombarias por parte dos materialistas. Uma vez que tenhamos contestado esse blefe com relagao ao proprio darwinismo, deve- mos estar livres para buscar a verdade, onde quer que ela possa ser encontrada. 7 VERDADE E LIBERDADE LIBERDADE PARA DIVERGIR E LIBERDADE PARA AGIR CORRETAMENTE John Stuart Mill e a Liberdade para Divergir No seu famoso ensaio escrito na época vitoriana, On Liberty, John Stuart Mill inicia seus argumentos com a observagdo de que as vantagens do governo democratico constitucional nfo eram adequadas para proteger as pessoas do poder coercitivo que pode ser exercido por uma maioria. Mesmo naquilo em que a maioria opta por nao impor sua vontade, por meio de restrigdes legais formais e sangdes, pessoas discordantes podem ser intimidadas pelo que Mill denominou “a tirania da opiniao e do sentimento dominantes”, que imp6e limites informais, mas ainda assim pode- rosos, sobre 0 que as pessoas podem dizer ou fazer, sem que so- fram alguma punigao, como 0 ostracismo social ou o impedimento do progresso profissional. Mill usou 0 exemplo da opiniao religiosa, sobre a qual, na sua época, as restrigdes legais formais tinham, de modo geral, sido abolidas, embora permanecessem as restrigdes baseadas nos costumes. Um homem que proferisse opinides religiosas impopu- lares nao seria preso, mas suas perspectivas de progresso social seriam afetadas. “Tao inerente a humanidade é a intolerancia em relag&o a tudo aquilo que realmente interessa aos homens”, es- 136 - As Perguntas Certas creveu Mill, “que a liberdade religiosa dificilmente tem sido exercida de forma concreta em algum lugar, exceto nos lugares em que a indiferenga religiosa, com sua aversao por ter sua paz perturbada por disputas teolégicas, tem pesado na balanga”. Em- bora Mill n&o tenha proposto esse tema, sua ldgica nos levaria 4 expectativa de que os religiosamente indiferentes fossem tao into- lerantes, A sua propria maneira, quanto os religiosamente compro- metidos, embora 0 objeto de sua intolerancia fossem aquelas opi- nides religiosas que ameagam perturbar a paz social ao levantar questdes de controvérsia teolégica. Se os indiferentes as ques- tdes religiosas se tornassem o grupo social dominante, ent&o a expresso de qualquer opiniao religiosa veemente pode vir a se tornar um tipo de transgress&o social, a qual torna certo que uma pessoa jamais sera novamente convidada para jantares de impor- tancia ou considerada adequada para assumir uma posi¢ao de res- ponsabilidade que requeira uma boa avaliag4o. Para perceber como isso pode funcionar, tente imaginar essa experiéncia. Suponha que vocé estivesse sendo considerado para assumiruma cadeira de professor assistente na Universidade de Yale, uma fungao de editor, no departamento de noticias de um jornal ou de uma rede de televisao ou um emprego de advogado num renomado escritério. Num encontro social, durante 0 pro- cesso de seleg&o, vocé se sentiria 4 vontade para revelar que freqiienta uma igreja carismatica ou que vota em candidatos poli- ticos a quem a midia descreve como integrantes da “direita religi- osa”? Ninguém nega que vocé tenha todo 0 direito de fazer essas coisas, mas é melhor que no se manifeste sobre isso, ou pode ter de aprender, da maneira mais dura, sobre a tirania da opinido e do sentimento dominantes. A opiniao dominante pode mudar de tem- pos em tempos, e pode ser diferente em San Francisco do que 6 em Peoria, porém sempre haverd uma opinido dominante e desafid- la sempre ter4 um alto custo para aqueles que querem se dar bem no mundo. Portanto, é ligeiramente divertido o fato de o eminente fildsofo John Stuart Mill haver adquirido fama duradoura ao pro- por um remédio vulgar para a sindrome universal da intolerancia Verdade e Liberdade - 137 social, como um médico que receitasse canja de galinha ou aspiri- na para todos os males do corpo. Mill escreveu (parafraseando-o ligeiramente) que seu obje- tivo era defender um principio muito simples: o unico propésito pelo qual se justifica o exercicio do poder sobre um membro qual- quer de uma sociedade civilizada, 4 revelia de sua vontade, seria para impedi-lo de prejudicar os demais. Ninguém pode ser obri- gado a fazer ou deixar de fazer algo pelo simples fato de isso deixa-lo mais feliz ou porque, aos olhos dos outros, isso 0 tornaria mais sabio, ou fosse até mesmo correto. Esses s4o bons motivos para se censurar a pessoa, ou para se discutir com ela, ou para persuadi-la ou até mesmo para ameaga-la, mas nao para obriga-la ou para lhe causar algum tipo de dano, se ela agir de outro modo. Para que isso se justificasse, a conduta que queremos impedi-la de praticar deve ser considerada prejudicial a uma terceira pes- soa. “A tinica parcela da conduta de alguém pela qual uma pes- soa é responsavel perante a sociedade é aquela que diz respeito aos demais membros. Naquilo que diz respeito apenas a si mes- mo, sua independénciaé ...absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu proprio corpo e mente, a pessoa é soberana.” Nao é assim tio simples. Como poderia ter dito recente- mente um ex-presidente, tudo depende do que vocé quer dizer por dano e também da possibilidade de que exista realmente alguma parcela da conduta de uma pessoa que “diga respeito apenas a ela mesma”, embora esteja incomodando suficientemente os demais, a ponto de eles se disporem a enfrentar todo o aborrecimento envolvido nas atitudes de censurar, discutir, ameagar e, por fim, forgar. O “principio muito simples de Mill” é, na verdade, tao amplo ¢ ilimitado a ponto de ser praticamente sem sentido e de abrir a uma discussdo interminavel sobre a possibilidade de sua aplicag4o, por exemplo, a adilteros, alcodlatras, fumantes, estre- las de cinema que fazem do fumo algo glamouroso, produtores ou leitores de material pornografico e, particularmente, para pais ou pessoas que possam vir um dia a ter responsabilidades como pais, o que significa a maioria das pessoas. 138 - As Perguntas Certas Um grande poeta escreveu que “ninguém é uma ilha” e isso certamente € verdade, especialmente para qualquer um que tenha responsabilidades para com outros, com as quais ele pode nao ser capaz de arcar se nao zelar por seu corpo, sua mente e seu patriménio. Numa democracia, todos participamos do governo, de modo que, num certo nivel, temos interesse pela satide fisica e mental dos demais. Uma vez que a paternidade irresponsavel causa uma série de males, a sociedade tem, no minimo, algum interesse em desencorajar comportamentos e opinides que possam favorecer a irresponsabilidade de qualquer de seus membros. Por exemplo, se vier a ser comum pensar a respeito do casamento como sendo um mero contrato civil, em vez de um vinculo sagrado que nao pode ser rompido, salvo sob circunstancias excepcionais, entio a incidéncia do divércio certamente aumentard, com conseqiiéncias sociais que jase tornaram evidentes em nossos tempos. Vago como 6, o principio de Mill representa um apelo a imaginagao liberal, e 0 proprio Mill é algumas vezes denominado como 0 padroeiro do liberalismo. Poderiamos dizer que seu livro, On Liberty, foi o documento que inaugurou 0 liberalismo do sécu- lo 20—e a sua decadéncia moral, se vocé desaprovar a extensaio que tomou 0 principio de Mill — assim como a obra de Darwin, Origin of Species, foi o documento que deu origem ao naturalis- mo evolucionista. Eu conheci as obras de John Stuart Mille de Sigmund Freud mais ou menos na mesma época, quando era um estudante uni- versitario. Juntos, eles encorajaram um modo de pensar que pa- rece ser natural para os jovens imaturos, que desejavam fazer tudo que dé prazer e que esteja na moda, e que pretendem apre- sentar uma racionalizagao suficientemente poderosa nao somente para justificar seu proprio comportamento, mas também para en- vergonhar aqueles que ajam de modo diferente. Nos, os estudan- tes, fomos encorajados pela idéia de que a pessoa admiravel era aquela que tinha a audacia de rejeitar a moralidade “repressora” que haviamos aprendido na infancia e que se sentia pouco afetada pela decadente coacao moral exercida pela opinido publica. Se Verdade e Liberdade - 139 fizéssemos 0 que 0 nosso corpo desejava, estavamos certos de que nao prejudicariamos ninguém, tendo descartado 0 pecado como um conceito obsoleto € ridiculo. Pensavamos, conseqiientemente, que os adultos estavam sendo tiranicos e hipdcritas se desaprovassem o que faziamos, ¢ os adultos acabaram por se dobrar diante dessa coag&o moral e pararam de desaprova-la. A revolugdo sexual da década de 70 foi profundamente encorajada por esse tipo de ldgica. Eu fui para a universidade antes da revolugao sexual, porém as idéias que a inspiraram ja estavam se tornando parte da opinido dominante imposta, Um dos legados nao-intencionais de Mill estd na atitude daqueles que, querendo impor um controle autoritario sobre a opi- niao dos demais, se revestem de uma capa ideoldgica, alegando serem céticos ou rebeldes audaciosos. Os “céticos” sao tipica- mente cinicos somente com relagao as ortodoxias do passado ou as opinides dos seus adversarios, enquanto sAo totalmente cegos com respeito a ortodoxia dominante de nosso proprio tempo. Um programa de televisaio da década de 90, intitulado Politicamente Incorreto, simbolizava essa pratica difundida da pseudodivergéncia. O programa era sempre politicamente correto e, obviamente, ele no iria atrair muita receita publicitaria para a rede de televis&o se assim nao 0 fosse. Oaspecto radical do principio de Mill nao esta simplesmen- te no fato de que o comportamento que diga respeito apenas a propria pessoa deva ser livre de sangGes legais, mas no sentido de que esse tipo de comportamento, que merece ser livre de sangdes legais, deva da mesma forma ser livre do impacto coercivo da censura publica. Essa versio radical do individualismo liberal le- vou cerca de um século para se consolidar. Por exemplo, 0 divor- cio ainda carregava um estigma social durante uma parte signifi- cativa do século 20, muito depois das restrigdes legais ao divércio haverem sido postas de lado. As pessoas casadas que estives- sem determinadas a se divorciar poderiam encontrar um modo de fazé-lo, nfo, porém, sem que arcassem com sangGes sociais signi- ficativas, Uma mulher divorciada nao seria bem aceita nos circu- 140 - As Perguntas Certas los sociais mais educados, e um homem divorciado poderia sofrer obstaculos em sua carreira, devido 4 crenga comum de que um homem que nao era capaz de lidar com sua vida familiar nao me- recia confianga para gerenciar uma empresa. Tudo isso se modificou bastante. Durante minha prépria infancia, éramos ensinados a ter pena do nico garoto da escola cujos pais eram divorciados. Que chances ele teria de crescer como deveria um jovem? Hoje, ja ouvi estudantes universitarios falarem com surpresa de amigos que sao diferentes por terem “pais casados”, isto 6, pais biolégicos que ainda permanecem ca- sados, Em alguns paises, a propria instituigdo do casamento foi posta bastante de lado. As pessoas apenas moram juntas, com parceiros hetero ou homossexuais, segundo sua preferéncia, tro- cando de parceiros conforme lhes seja conveniente. O pressu- posto que os norteia parece ser o de que todo esse exercicio de liberdade sexual refere-se a um comportamento que diz respeito apenas a propria pessoa, e que nao “prejudica os outros”. As conseqiiéncias para os filhos sao profundas, mesmo as- sumindo-se que os adultos em questao estejam fazendo o melhor, dentro do contexto de seus préprios relacionamentos liberados, para cuidar dos filhos que estejam envolvidos nessa situagio. Pode ser que Heather tenha duas mes, ou que Bobby tenha uma mae e seu namorado; todos eles, porém, tentam ser bons para Heather e Bobby, enquanto optarem por permanecer juntos nesse relacio- namento quase familiar. Se, por outro lado, eles optarem por mu- dar seus relacionamentos, nao seré dificil encontrar uma justifica- tiva, na forma de um estudo, que alega que as criangas sio sufici- entemente flexiveis para superar com bastante facilidade quais- quer efeitos prejudiciais que acompanhem essas separagées. Ex- periéncias sexuais, mesmo para os que ja tém filhos, € algo consi- derado geralmente no sé permitido, como louvavel, enquanto per- manecer num relacionamento que nao seja mais satisfatério pode significar falta de integridade pessoal. Mill classificou seu principio como absoluto com aressalva de que sua intengaio era a de aplica-lo “apenas a seres humanos ja Verdade e Liberdade - 141 maduros” ¢ n&o a jovens de qualquer idade abaixo daquela que a lei possa fixar como 0 inicio da idade adulta. “Aqueles que ainda se encontram num estado em que precisam ser cuidados por al- guém”, escreveu ele, “devem ser protegidos dos seus préprios atos, assim como dos perigos externos.” O que Mill nao explicou foi como a sociedade seria capaz de convencer os jovens de que Ihes era prejudicial 0 fato de se envolverem em atividades prazerosas proibidas, quando a sociedade aprova esse mesmo tipo de atividades para os adultos, Uma vez que a opiniao publica apdia a perspectiva de que o sexo fora do casamento é um prazer per- mitido e que as conseqiiéncias indesejaveis devem ser evitadas por meio de camisinhas e abortos, em vez da abstinéncia, entao os fogosos adolescentes tendem a considerar injusto que lhes devam ser negados tais prazeres, tao amplamente usufrufdos pelos adul- tos. Os adultos podem dizer que aquilo que é bom para eles nao o é para os adolescentes, mas por que motivo os adolescentes de- veriam acreditar neles? Adotar o comportamento proibido, quer seja sexo ou cigarro, torna-se tipicamente atrativo, como um sinal de maturidade. Manter padrées morais para os jovens que os adultos j4 abandonaram no é nada facil. Também nao é surpre- endente que, a medida que os adolescentes se tornarem em média mais imaturos, porém ansiosos por usufruir os prazeres da idade adulta, eles se organizem, com relativo sucesso, para reivindicar a redug&o da maioridade. Algumas implicagdes sinistras decorrem da no¢do de que pessoas independentes ou rebeldes tenham um direito, amplamente definido de serem livres nao somente de sangées legais, mas até mesmo da coagao moral exercida pela opiniao publica. Isso quer dizer que a maioria conformista nao tem qualquer direito de con- denar ou de expressar sua discordancia por meio de mexericos, cartas de recomendacio ou declaragdes publicas desfavoraveis? Se Mill é, num certo sentido, considerado 0 pai do individualismo liberal do século 20, ele também parece ter dado origem a nogao de que algumas pessoas tém 0 direito de serem protegidos da reprovacao alheia. Essa nogéo esta subentendida em praticas 142 - As Perguntas Certas hipermodernas, como os exercicios para desenvolvimento da sen- sibilidade, nos quais as pessoas que ofenderem esses protegidos, por meio de palavras ou expressdes faciais, sdo forgadas a reformularem seu modo de pensar. E claro que nfo era isso 0 que Mill tinha em mente, porém as idéias, uma vez postas no mundo, criam vida propria. Em sintese, Mill proclamou um direito amplamente definido e propés que lhe fosse concedida uma proteg4o dotada de um potencial extensivo, até mesmo com relac&o a censura. Ele cons- truiu essa torre de proteg%o sobre uma base filosdéfica bastante delgada. Mill foi educado por seu pai para ser um utilitarista, que julgava cada ato ou regra por suas conseqiiéncias, ou seja, por sua tendéncia em diminuir a dor ou aumentar o prazerno mundo, Este éum outro “principio muito simples” e Mill nunca se distanciou plenamente da filosofia de sua familia, mesmo quando isso teria ajudado imensamente sua argumentagdo. Conseqiientemente, ele nao fez qualquer apelo a doutrina religiosa ou aos direitos huma- nos universais. Pelo contrario, ele escreveu: “Em minha argu- mentagaio, eu renuncio a qualquer vantagem que possa derivar da idéia de um direito abstrato, como algo que independa de uma utilidade. Considero a utilidade como 0 apelo supremo em relacgao atodas as quest6es éticas, mas essa utilidade deve ser considera- da no seu sentido mais amplo, algo baseado nos interesses perma- nentes do homem, como ser em constante evolugdo”. Isso deixa tanto a liberdade de uma pessoa em fazer 0 que lhe apraz, quanto a liberdade dos demais em expressar sua censura, 4 mercé do entendimento dominante acerca dos interesses permanentes do homem, como ser em constante evolugdo. O utilitarismo é notori- amente uma doutrina radical que perturba toda regra moral estabelecida. Raskolnikov, o estudante de Dostoievski, utilizou-se dessa doutrina para justificar de modo racional um latrocinio, e filésofos utilitaristas da nossa época apoiaram o infanticidio, a eu- tandsia e 0 sexo com animais. E pouco surpreendente o fato de que uma liberdade, baseada somente na utilidade, deva se tornar um veiculo para novas formas de represstio, quando aplicada a Verdade e Liberdade - 143 uma sociedade completamente diferente daquela da época vitoriana em que Mill vivia, na Inglaterra. Eu demonstrarei algumas das conseqiiéncias contempora- neas que as idéias de Mill tiveram — quando interpretadas por mentes menos generosas que a dele prdprio —com exemplos tira- dos da area que melhor conhego no mundo, as grandes universi- dades norte-americanas. Na teoria, os princ{pios constitucionais e o princfpio da li- berdade académica garantem aos professores e até mesmo aos estudantes 0 direito de dizer praticamente tudo 0 que quiserem sobre quase todos os temas, incluindo religiao, politica e ciéncia, desde que isso nfo provoque uma revolta. Isso é correto do ponto de vista formal, a ponto de ter sido impensavel no meio académi- Co, por muitos anos, a pratica de sequer tentar mover uma agdo disciplinar contra um professor pelo fato de ele haver expressado suas convicgées, inclusive aquelas que fossem detestaveis para as autoridades académicas ¢ demais professores. Recentemen- te, porém, novos conceitos como “discurso ofensivo” e “insensibi- lidade” tém limitado até mesmo essa protegao formal a liberdade de expressaio. Se me perguntassem se as universidades de hoje prezam a liberdade de expressio, com relacio a religiao, a politica ou apreferéncia sexual, minha resposta seria algo como: a liber- dade para defender o agnosticismo e para combater o Cristianis- mo é cuidadosamente protegida e exercida, por vezes, nas salas de aula, de formas coercitivas, pelos professores universitarios, ao ridicularizarem estudantes que se apegam a perspectivas reli- giosas mais conservadoras e ao encorajarem outros estudantes a se juntarem a ridicularizagao. A liberdade para defender o teismo crist&o ou para comba- ter 0 agnosticismo nfo esta totalmente ausente do meio académi- co, mas sua protecao é muito mais ténue. Um professor que adotasse uma posi¢o ardorosamente favoravel ao teismo cristo iria, sem sombra de divida, ser acusado de estar violando a dou- trina constitucional da separagao entre Igreja e Estado. Um pro- fessor que adotasse uma posi¢ao igualmente ardorosa em favor 144 - As Perguntas Certas do ateismo, ou mesmo do Islamismo, nao iria correr o mesmo risco. Assegura-se a liberdade para se defender que a homossexualidade é, no minimo, tao valida moralmente, quanto a heterossexualidade, masa liberdade para ir contra isso é praticamente inexistente. As- segura-se a liberdade para a defesa daquilo que geralmente é cha- mado de programas politicos “liberais” (de esquerda). A liberdade para ir contra essa posigdo existe do ponto de vista formal, no en- tanto é aconselhavel que um professor, que confie nessa liberdade, atente para usar apenas linguagem cuidadosa. Lembro-me de uma platéia de estudantes de direito femi- nistas que me encarava com raiva porque eu havia, de modo pru- dente, levantado algumas dividas a respeito da moralidade de um direito ilimitado ao aborto. Na época, eu era um professor titular que havia sido especialmente convidado para discorrer sobre esse tema, portanto, nao tinha nada a temer. Contudo, o incidente ser- viu para me relembrar por que freqiientemente ¢ tao dificil, para os organizadores desse tipo de debate, encontrar um professor que esteja disposto a assumir uma posi¢ao enfaticamente rejeita- da pela comunidade legal ou universitéria. A nova ortodoxiaa que chamamos de postura politicamente correta tem um impacto até mesmo sobre os procedimentos disciplinares formais, porém nada mais direi sobre isso, pois as regras explicitas tm uma im- portancia muito menor do que a tirania informal da opiniao e do sentimento dominantes. O que os professores temem nao é a pro- babilidade de serem formalmente acusados em processos discipli- nares, mas a hipotese de virem a receber avaliagdes desfavoraveis por parte dos estudantes e duras criticas de seus colegas. Regras formais de liberdade académica nao s&o de qualquer valia para o professor ao qual se nega uma promogao pelo motivo de seus alu- nos nao gostarem de suas aulas, ou que perde seus fundos para pesquisa pelo fato de seus colegas nao gostarem de suas idéias. Aessa altura, os leitores devem supor que eu nao vejo qual- quer aspecto positivo nos escritos de Mill, mas isso esta longe da verdade. E-verdade que Mill nao apresentou algo que se pareces- se com um sistema coerente, mesmo porque isso dificilmente se- Verdade e Liberdade - 145 ria possivel a partir de seu ponto de partida, 0 utilitarismo. Algu- mas de suas idéias tiveram até mesmo um efeito pernicioso, 0 qual tenho certeza que ele nao pretendeu alcangar, mas poderia ter previsto, Fora essa ressalva, On Liberty contém passagens maravilhosas, as quais eu gostaria que as pessoas que est&o no poder prestassem mais atencéo. Mesmo a devogao escrava de Mill A utilidade o conduziu a algumas idéias maravilhosas, que proporcionariam um grande aumento da liberdade intelectual, se os professores ¢ autores mais influentes de nossa época as levas- sem a sério. Mill foi muito feliz quando defendeu um direito, definido de modo bastante abrangente, de discordar da opiniao dominante a respeito de qualquer tema, tendo-o defendido nao apenas por ser do interesse de seus opositores possuir esse direito, mas particu- larmente porque é do interesse da sociedade sujeitar mesmo as mais estimadas doutrinas a critica substancial de seus adversari- os. Mill argumentou que a maioria dominante jamais deveria ten- tar impedir uma opiniao divergente de ter a chance de ser ouvida, n&o importa o quanto esta lhes fosse detestavel ou quio certos estivessem de que ela fosse errada. Primeiro, porque a maioria deveria perceber que pode estar errada, uma vez que 0 julgamen- to humano ¢ inerentemente falivel, embora as pessoas estejam bem mais dispostas a aceitar sua falibilidade em tese do que na pratica. Sea opiniao divergente se mostrasse correta, elas teriam a oportunidade de corrigir seu erro e ficariam melhor assim. E mesmo que a opiniao divergente esteja equivocada, sua defesa pode provocar um debate, o que permite aos defensores da opi- niao ortodoxa ter uma percepgao mais clara e uma impressao mais vivida de sua verdade, alcangadas a partir de seu confronto com oerro. “Ainda que uma pessoa, que defenda vigorosamente uma opiniao, possa nao estar disposta a admitir a possibilidade de que ela seja falsa, essa pessoa deve levar em consideragfio que, ainda que essa opiniao possa ser verdadeira, se ela nao for discu- tida de forma plena, com freqtiéncia e sem medo, ela se mantera como um dogma morto, e nao como uma verdade viva.” 146 - As Perguntas Certas Como ele era cético em termos de religiao, no é surpreen- dente que Mill tenha se recusado a isentar as doutrinas da Igreja dessa necessidade de um constante escrutinio e, na verdade, ele utilizou as doutrinas crist&s como exemplo do tipo de convicgao que, com freqiiéncia, era mantida como um dogma morto, em vez de uma verdade viva, pois raramente era revigorada pelo con- fronto com um desafio. Seu mérito permanente esta mais no fato de ele haver tentado manter a ciéncia, cujas alegagdes muitos estavam comecando a aceitar de maneira inquestionavel, num patamar semelhante. “Mesmo em relago a filosofia natural (ci- éncia)”, escreveu ele, “sempre ha uma outra explicacao plausivel para os mesmos fatos; alguma teoria geocéntrica, e nao heliocéntrica; algum flogistico em vez de oxigénio.” A menos que saibamos por que uma teoria deva ser verdadeira, ao mesmo tem- po em que uma outra nao possa sé-lo, nado conhecemos as bases das nossas convicgées. Eu concedo a Mill 0 crédito por haver tentado, porém seus exemplos nao abalariam a convicgao de cientistas triunfalistas de que aquilo que hoje é conhecido pela ciéncia esteja acima de qualquer suspeita, ainda que admitam a possibilidade de ter havido muitas falsas interpretacdes no passado. Agora que as proprias doutrinas de Mill se tornaram ortodoxas, ha 0 perigo de que mui- tos irao manté-las como dogmas mortos, aplicaveis a outros que nao eles mesmos. Contudo, eu me pergunto porque um utilitarista como Mill iria esperar ou mesmo querer que as pessoas fossem t&io desinteressadas pela busca da verdade. Uma opiniao conso- lidada pode ser util, mesmo que falsa e isso devia ser suficiente para um utilitarista. Alexander Solzhenitsynea liberdade para fazer o bem Um outro ensaio que também poderia ter recebido o titulo On Liberty, embora seja inteiramente diferente do ensaio de Mill, € 0 discurso feito por Alexander Solzhenitsyn na ceriménia Verdade e Liberdade - 147 de formatura da Universidade de Harvard, em junho de 1978, posteriormente publicado com 0 titulo de A World Split Apart. Antes de fazer esse discurso, Solzhenitsyn era tido em alto con- ceito pela midia liberal, como um herdi da resisténcia contra a tirania soviética e presumia-se que fosse um grande admirador da sociedade liberal ocidental. Embora muitas pessoas concor- dassem com as criticas que foram feitas 4 sociedade norte-ame- ricana nesse discurso, posteriormente Solzhenitsyn foi bastante repudiado pelas elites intelectuais como sendo um excéntrico religioso e rabugento, que nao devia ser levado a sério. Talvez sua maior ofensa tenha sido dizer a sua platéia de Harvard, sem rodeios, que “a sociedade ocidental contemporanea revelou a desigualdade entre a liberdade de praticar o bem ea liberdade de praticar o mal”. Por volta de 1978, tragar uma nitida distingao entre 0 bem ¢ o mal parecia algo obsoleto ¢ antiliberal para a opinido em voga. Vinte e quatro anos depois, uma tendéncia igualmente relativista lamentou a referéncia feita pelo presiden- te George W. Bush a um “eixo do mal”. Ultrapassada também, segundo a ética dominante, era a alegagdo de Solzhenitsyn de que “é tempo, no Ocidente, de se defender n&o tanto os direitos humanos, mas os deveres huma- nos”. Ele prossegue: Por outro lado, foi concedido um espago ilimitado a liberdade nocivae irresponsavel. A sociedade veio a ter uma escassa defesa contra o caos da decadén- cia humana, contra o mau uso da liberdade, por exem- plo, por meio da violéncia moral contra os jovens, tal como nos filmes repletos de pornografia, crime e ter- ror. Isso tudo é considerado como parte integrante da liberdade e algo a ser contrabalangado, em teoria, pelo direito dos jovens de nao assisti-los e de nao aceitd-los, A vida, organizada de uma forma legalista, demonstrou, assim, sua incapacidade de se defender da corrup¢fo do mal. 148 - As Perguntas Certas A 6tica de Solzhenitsyn foi mais profética do que retrégra- da, como pode ser demonstrado por um de seus exemplos: “Quando um governo busca erradicar o terrorismo com determinagao, a opiniao publica imediatamente o acusa de violagao dos direitos civis dos terroristas”. Solzhenitsyn atribuiu a “inclinagao da liberdade na direg&o do mal” a um conceito humanista segundo o qual o ser humano “nao carrega em si mal algum, sendo que todas as deficiéncias da vida so causadas por sistemas sociais desorientados, que devem, portanto, ser corrigidos”. Em sintese, ele estava atacando um dos preconceitos mais profundamente mantidos por sua platéia, que parte do pressuposto de uma natureza humana benevolente. Numa outra parte do discurso, as palavras de Solzhenitsyn séio mais parecidas com as de Mill. Ele disse: Sem que haja qualquer censura no Ocidente, as correntes de pensamento e as idéias dominantes sio meticulosamente separadas daquelas que nao estéo na moda, e as tiltimas, sem jamais haverem sido proi- bidas, tém uma chance minima de encontrarem espa- go em periddicos ou livros, ou de serem ouvidas nas faculdades. Seus académicos sio livres no sentido legal da palavra, embora estejam cercados por todos os lados pelos idolos da tendéncia predominante. Nao ha uma violéncia aberta, como no Leste; entretanto, uma selegao, ditada pela tendéncia dominante e pela necessidade de acomodagéio aos padrées de massa, impede freqiientemente aquelas pessoas com opiniaio propria de contribuirem para a vida publica e dé mar- gem ao surgimento de perigosos instintos de manada, que bloqueiam o desenvolvimento bem-sucedido. Em suma, ele advertiu sua platéia sobre a tirania da opi- nido dominante. A principal diferenga entre Mill e Solzhenitsyn se encontra- va no fato de que o primeiro viveu numa nago segura e confian- Verdade e Liberdade - 149 te, que possuia um poderoso cddigo moral, algumas vezes opressi- vo. O ultimo sabia perfeitamente como a liberdade, segundo uma concepgao liberal, é ameagada, exteriormente, por poderes totali- tarios e interiormente, pela criminalidade desenfreada. Qual é0 maior perigo, que o governo venhaa falhar em seus esforgos para exterminar 0 terrorismo ou que venhaa violar os direitos civis dos terroristas? Mill nao teria entendido essa pergunta, nem tampouco o teria, eu acredito, a platéia de Solzhenitsyn, em 1978. Em 2002, estamos afinal comegando a compreendé-la. Uma dessas socie- dades deve se lembrar de nao ser excessivamente confiante e de permitir que haja espago para novas idéias. A outra necessita mais ser exortada, para que recupere sua coragem e se lembre de algumas verdades antigas. Essa é a razao da diferenga tao acen- tuada que parece existir entre nossos dois porta-vozes da liberda- de. Eles estavam se dirigindo a contextos com situagdes bastante diferentes. Compreendendo isso, vocé podera concordar que Solzhenitsyn estava fazendo exatamente aquilo que Mill exaltava. Ele estava discordando dos dogmas mortos do liberalismo de 1978 e, por meio dessa atitude, fornecendo a sua platéia um imenso beneficio, desde que esta pudesse apenas colocar de lado seus preconceitos e abrir sua mente para um tipo de sabedoria que nao lhes era familiar. As Perguntas Certas sobre Verdade e Liberdade 1. Ha alguma base sélida, de natureza religiosa ou fi- los6fica, para a concepcio liberal de liberdade? Enquanto preparava este capitulo, encontrei um artigo provocativo, escrito por Edward Skidelsky e publicado na edigéo de janeiro de 2002 da revista Prospect (enderego eletrénico: www.prospect.com), uma revista inglesa de esquerda, de inspira- 40 liberal. O titulo do artigo era “A Liberal Tragedy” e em sua sinopse lia-se que “por haver se desligado de suas raizes cristas, o liberalismo se tornou barulhento e dogmatico, embora nao haja ou- trojeito”. Skidelsky observou que os principios da igualdade, da 150 - As Perguntas Certas liberdade e da tolerancia do liberalismo haviam derivado, em sua origem, tanto da tradi¢fo crist&, quanto de supostos atributos da na- tureza humana, Ambas essas fontes tiveram de ser abandonadas. “Os direitos humanos sao tidos como um patriménio universal e nao algo pertencente apenas aos cristfos, contudo esses direitos nao mais se baseiam na crenca de uma natureza humana universal.” Skidelsky explicou essa circunstancia em termos que soardaio familiares aos que leram o primeiro capitulo deste livro, A concep- ¢o classica do homem como um animal racional, separado de ou- tros animais por um abismo intransponivel, é algo condenado como “especiesismo”. A teoria moderna predominante sobre a natureza humana é puramente biolégica; é voltada para aquelas caracteristi- cas que temos em comum com os animais. A teoria nao fornece qualquer base para os direitos humanos. A medida que mergulha- mos no novo mundo desafiador da biotecnologia e dos sistemas computadorizados, essa auséncia de qualquer fundamento para os direitos humanos deve ser considerada uma questéo de grande pre- ocupago. Skidelsky tem razao em seu pessimismo. Assim, os direitos nao mais sao deduzidos, quer teoldgica ou filosoficamente. Eles so proclamados. O decreto substituiu o argumento. A fé na nossa propria civilizagdo n&o tem qualquer fundamento ra- cional. Isso influencia 0 tom barulhento e dogmatico do liberalismo moderno. O liberalismo classico, exemplificado por Tocqueville, Mill e Isaiah Berlin, era discursivo e filoséfico, Tentava envolver seus oponentes, apelar para sua razao e humanidade. Podia dar-se ao luxo de argumentar, pois se ancora- va de maneira segura na idéia da natureza humana como algo benevolente e razoavel. O liberalismo moderno nao se baseia absolutamente nessa concep- ¢4o. O que resta é um conjunto de alegacées legais, levadas adiante de forma autoritaria, sem qualquer apelo ao senso comum. Na auséncia de qualquer Verdade e Liberdade - 151 ideal positivo em que possa se apoiar, a proclamagao liberal da liberdade individual se parece, cada vez mais, com uma mera licenga para 0 egoismo. Nao sao apenas os muculmanos que chegaram a essa con- clus&o; Alexander Solzhenitsyn disse algo semelhante. Skidelsky considera e rejeita a possibilidade de que a ruptu- ra entre 0 liberalismo e 0 Cristianismo tenha sido um infeliz aci- dente historico que, nesse caso, seria passivel de reparagdo. Nao, insiste ele, o distanciamento entre 0 liberalismo e 0 Cristianismo seguiu uma légica inexoravel. O Cristianismo deu origem ao libe- ralismo por meio de sua doutrina que afirma que o relacionamento de uma pessoa com Deus constitui uma identidade principal, em contraste com as demais identidades secundarias. “Dessarte, nao pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem ho- mem nem mulher; porque todos vés sois um em Cristo Jesus (Gl 3.28).” A grande arvore da concepgao liberal de liberdade e dos direitos humanos universais brotou dessa raiz. Se uma arvore perde sua raiz, como pode sobreviver? Skidelsky nao responde a essa pergunta, mas ele na verda- de diz que a tragica condigao do liberalismo atual nao poderia ter sido evitada, pois “o Cristianismo, para ser coerente consigo mes- mo, teve que transcender a si préprio”. O Cristianismo teve de secularizar-se (transformando-se em liberalismo), em obediéncia ao seu proprio principio fundamental da universalidade. Hoje,a esse imperativo moral se juntaram consideragées de ordem prati- ca. Com as minorias n&o-cristis vivendo dentro dos limites de suas fronteiras, os Estados ocidentais dificilmente podem retomar sua confissAo crista. Num mundo dividido por contendas religio- sas, somente uma forma secular de liberalismo é capaz de susten- tara existéncia de uma ordem internacional. Skidelsky segue sua propria ldgica até o fim tragico, embo- ra eu reconhega que ele deve odiar a conclusao a que chegou. Aqui esta seu ultimo paragrafo: 152 - As Perguntas Certas Portanto, o destino do liberalismo é — no sentido exato da palavra — tragico. Um destino tragico nao é aquele que provém de causas exteriores ou acidentais, mas que esta de acordo com uma inexoravel légica interna. Essa é pre- cisamente a situagdo do liberalismo. Ele deve se separar de suas rafzes histéricas baseadas no Cristianismo, contu- do, ao fazé-lo, ele se separa de sua propria fonte de vida. O liberalismo deve seguir um caminho que leva direta- mente a sua propria atrofia. Ele deve destruir a si mesmo. Skidelsky deixa aos crist&os e a todos os demais uma per- gunta muito dificil de ser respondida. O Cristianismo é algo uni- yersalmente valido, como a raz&o ou a ciéncia, ou é meramente um dos muitos sistemas religiosos humanos, dos quais nao ha ne- nhum que possa ser valido para todas as épocas e contextos? Na ultima hipdtese, os crist&os podem esperar que sua religifio possa sobreviver sob a protegao de uma ordem internacional, sustenta- da por uma forma secular de liberalismo, porém Skidelsky explica que é pouco provavel que um liberalismo puramente secular so- breviva por muito tempo, uma vez que estaria separado da fonte de sua prépria vida. Em outras palavras, a andlise de Skidelsky delimita a questo de forma relevante, ao considerarmos o quanto é importante que a fé crist sobreviva. Anteriormente, era possivel assumir que se 0 Cristianismo fosse definhar e morrer, uma forma secular de liberalismo poderia sobreviver indefinidamente sobre uma nova base. Se Skidelsky estiver certo, a morte do Cristianismo implica a debilitagao pro- gressiva do liberalismo, pois nao ha qualquer outra base possivel. A fim de se considerar a possibilidade de ele estar certo, imagine que a ordem internacional ser, no futuro, controlada pelas Na- des Unidas, em cooperag&o com organizagSes internacionais de direitos humanos, que seguiraio os mesmos principios que atual- mente adotam, A julgar pelo modo como reagiram as conseqiién- cias dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, vocé con- taria com essas organizagdes ou com um governo americano ba- seado nesses mesmos principios, para a protegao dos direitos hu- Verdade e Liberdade - 153 manos ¢ da liberdade por meio da lei? Por outro lado, num mundo dividido pela contenda religiosa, ha alguma alternativa? Se o tragico dilema descrito por Skidelsky for real, ent&o os destinos do Cristianismo e do liberalismo esto ligados como os destinos de uma arvore e sua raiz. Nao sou t&o pessimista a esse respeito quanto Skidelsky, pois creio que o fundamento original ainda esta vivo e passivel de ser redescoberto. Principios liberais podem subsistir, por um longo tempo, sem qualquer fundamento aparente, simplesmente por serem atrativos para a maioria das pessoas. Nessa hipotese, pessoas perspicazes irdo investigar a possibilidade da base original ter, afinal, permanecido sélida e que, talvez, seja a visio moderna da natureza humana, de inspiragio biolégica, que deva ser descartada. O que deve ser feito a respeito dessa situagio? A necessi- dade imediata nao é a de fornecer uma solugao, mas a de delimi- tar a questo de uma forma que nos permita encontrar a solugao, se existir alguma. Isso é 0 que tentei fazer no capitulo oito. 8 A PERGUNTA FUNDAMENTAL QUAL E O ACONTECIMENTO MAIS IMPORTANTE DA HISTORIA DA HUMANIDADE? O acontecimento sugere a perspectiva A resposta que se da a pergunta fundamental implicara numa resposta a pergunta que fiz num capitulo anterior: Qual é a unica perspectiva religiosa correta? Provavelmente essa pergunta ird confundir alguns leitores que, como eu, foram educados segundo modos de pensamentos naturalistas e podem, portanto, imaginar que eu deva estar sugerindo a implantagao de algum tipo de teocracia. Pelo contrario, eu me oporia a qualquer tipo de teocracia, inclusive a uma teocracia crist&, apesar de acreditar que 0 teismo crist&o seja a perspectiva religiosa correta, mas isso porgue creio no ensinamento cristéo acerca da natureza pecadora do ser hu- mano. Tenho consciéncia de que teocratas, que detenham um controle absoluto do poder, nao iraio permanecer crist&os por mui- to tempo, em todos os sentidos concebiveis desse termo. Pelas Escrituras, também sei que quando Pilatos perguntou a Jesus se ele era 0 rei dos judeus, Jesus respondeu: “Meu reino nao é deste mundo.” Maomé, Lénin ou qualquer outra pessoa deste mundo nfo teria feito uma declaragaio desse tipo. Um rei ou um presidente pode ser crist&o e 0 fato de sé-lo deveria fazer diferenga naquilo que diz ou faz. Esse é um cliché que esta muito 156 - As Perguntas Certas longe de justificar a recomendagao de uma teocracia. A aceita- go do pluralismo religioso —a separacdo entre a Igreja ¢ 0 Esta- do, no jargao da constituigo norte-americana—€é uma das manei- ras mais importantes pela qual o Cristianismo se diferencia do Islamismo, que contempla um Estado islAmico, ou do marxismo- leninismo, cujas implicagSes acabam resultando num sistema de governo materialista e ndo-teocratico (ou na ditadura do proletari- ado, segundo o jarg&o comunista), o qual € tao rigido e coercitivo quanto qualquer teocracia religiosa. Se vocé esta chocado com a sugestéio de que exista somente uma tnica perspectiva religiosa correta, isso provavelmente se da pelo fato de ter sido condicionado a considerar 0 naturalismo/mate- rialismo como “a forma como as pessoas instruidas pensam nos dias de hoje” e, assim, nao estar ciente de que o relativismo religioso 6, em si mesmo, apenas uma forma de pensar sobre a religiao que, com certeza, ndo representa a posigao adotada por todas as pesso- as instruidas. As pessoas somente sdio capazes de serem relativistas em algum aspecto, sendo absolutistas em relagao a outros. Por exemplo, aqueles que se dizem “céticos” geralmente s&o materia- listas dogmaticos e autoritarios. Eles somente sao céticos em rela- ¢4o as coisas de que nao gostam. Um cientista ateu ou um liberal agndstico, na verdade, concordam com um cristo como eu, com um hindu panteista ou um muculmana, pelo fato de acreditarem que existe somente uma tinica perspectiva religiosa correta. A diferen- ¢a se concentra na questo em torno da qual, dentre todas as possi- bilidades mutuamente excludentes, é a correta. O Cristianismo, o Islamismo, o Hinduismo e o naturalismo cientifico nao podem ser todos corretos, a menos que 0 significado de cada um deles esteja tao atenuado que apresente pouca substancia. A possibilidade de uma perspectiva religiosa estar correta é uma questéo. Uma outra questo é hipdtese do uso da forca e em que extens&o se langa mao desse recurso para se assegurar que a perspectiva religiosa de al- guém seja predominante sobre as demais. Quase todos aprovariam © uso da forga para proteger sua propria crenga e seu povo de serem dominados por assassinos opressores. A Pergunta Fundamental - 157 Talvez Gandhi tenha condenado verdadeiramente a violén- cia, sob quaisquer circunstancias, até mesmo para impedir que uma pessoa como Hitler ou Osama Bin Laden viesse a controlar o mundo, mas podemos estar certos de que os muitos admirado- res cristdos ¢ hindus de Gandhi ndo iriam segui-lo até as ultimas conseqiiéncias ¢ iriam até mesmo matd-lo (como de fato 0 fez um hindu), se achassem que essa violéncia fosse necessaria para protegé-los do dominio islamico. Eu me recordo do belo filme Gandhi, que mostrava a oferta feita por Gandhi de entregar todo 0 governo da [ndia aos mugulmanos, num esforgo desesperado para evitar um cisma violento entre hindus e muculmanos, o que ocorreu com a independéncia da fndia. Admitindo-se que a ofer- ta de Gandhi fosse realmente verdadeira e que ele tivesse autori- dade suficiente para fazer os hindus temerem que a possibilidade da dominagao da india pelos mugulmanos fosse real, vocé pode condenar, incondicionalmente, aquele assassino hindu? Gandhi é aclamado com um dos maiores santos do século 20, porém, eu me pergunto como ele sera visto, no século 22, sea indiaeo Paquistdo travarem uma guerra nuclear no século atual. Ha.um pouco de verdade no ditado dos relativistas morais, que diz que “o terrorista de um homem € 0 libertador de outro”. Lénin ndo difere de Lincoln por sua disposi¢&o em empregar a violéncia, mas pelo entusiasmo com que ele o fez ¢ pelos fins que buscou alcangar. E provavel que, aqueles que pensem que qualquer es- colha de propésitos seja algo arbitrario vejam pouca diferencga entre esses dois homens. Um homem mata milhdes de pessoas para acabar com a escravidao, o outro mata milhGes para impor a escraviddo ou apenas porque isso lhe da prazer e por desejar ser importante aos olhos do mundo. Para um relativista que nao cré em qualquer verdade universal, ou para um pacifista, cuja moralidade se restringe integralmente a condenagao da violéncia, a diferenga é apenas algo subjetivo, uma questo de preferéncia. Cada um escolhe de acordo com seu préprio gosto. Voltemos agora a pergunta fundamental. Qual é 0 aconte- cimento mais importante da Historia? Vou sugerir quatro respos- 158 - As Perguntas Certas tas possiveis. Qualquer um tem liberdade para sugerir outras res- postas, mas tenho a impressdo de que nenhuma delas ira sobrevi- ver por muito tempo a um exame minucioso por parte da opiniao publica. Os tnicos critérios eleitos, contudo, so que 0 aconteci- mento deve estar registrado na Histéria (a invencao da escrita ou da roda nao se enquadrariam nesse requisito) e deve ser relevan- te para todos, nao somente para os integrantes de uma na¢4o ou tribo em particular, ou para pessoas com alguma miss&o especial na vida, que nao seja necessariamente compartilhada por outras pessoas. A velocidade da luz no vacuo, por exemplo, representa nada mais do que um dado especifico. Esse fendmeno cientifico, relevante para os fisicos, é valido para todos, a despeito de crenga ou raga, porém ninguém alegaria que essa é a informag4o mais importante que alguém possa obter. O acontecimento mais im- portante da Hist6ria deve ser valido num sentido relevante e, tam- bém, deve ser importante para todos. Ha algum acontecimento singular que se enquadre nessa categoria? AEncarnagao Os crist&os deveriam ser capazes de responder com segu- ranga a pergunta fundamental, baseados na premissa de que os Evangelhos, sintetizados nos versiculos introdutérios do Evange- Tho de Joao, dizem a verdade. A encarnacfo e a ressurreig&o de Jesus Cristo, o Verbo que se fez carne e habitou entre nds, é, sem davida alguma, 0 acontecimento mais importante da historia da humanidade, se realmente ocorreu da forma como esta relatado na Biblia. Uma pessoa pode nao saber de tudo e nao ser pior do que as outras por causa disso, mas se Deus realmente viveu na terra como um homem e disse e fez as coisas que os Evangelhos relatam, ent&o, ignorar 0 que foi dito e feito, ou desconsiderar isso, é perder a unica explicagio-chave que pode desvendar todo o resto. Essa é a razao pela qual é de extrema importancia que as boas-novas devam se tornar acessiveis a todos, quer as pessoas decidam acreditar nelas ou nao, A Pergunta Fundamental - 159 O julgamento negativo mais intenso deve ser feito em rela- ¢4o a qualquer sistema educacional que insista, como fazem atu- almente as escolas da maioria das nag6es, na postura de que nfo se deve ensinar aos estudantes a informaco da qual necessitam, para poderem dar uma resposta esclarecida a pergunta feita por Jesus: “Quem vocés dizem que eu sou?” Nao estou dizendo que as escolas devam dar uma resposta a essa pergunta e, muito me- nos, que devam se esforgar para incutir nos estudantes quaisquer “crengas religiosas”. O que de fato estou dizendo é que os edu- cadores tém o dever de assegurar que 0s estudantes saibam qual é a resposta crista para a pergunta fundamental, assim como o que é necessdrio para compreenderem a importancia da pergunta e para avaliarem a resposta. Em especial, todos deveriam conhe- cer as palavras e as obras de Jesus, da maneira como estao rela- tadas nos quatro Evangelhos (Se Jesus efetivamente disse ou fez essas coisas é parte da questdo. Existe uma outra possibilidade, a de que alguns pescadores galileus pouco instruidos tenham inven- tado essa historia e os criticos do Evangelho tém toda a liberdade para fazer esse ou qualquer outro tipo de consideragao.). Para o presente propdsito, nao precisamos admitir que os Evangelhos sejam verdadeiros, mas é uma postura totalmente ir- responsavel assumir que eles sejam t&o flagrantemente falsos que dispensem qualquer mengao. Se as escolas na América do Nor- te, na Europa, na China, na India, em Israel e nas nagdes mugul- manas fizessem simplesmente isso que estou recomendando aqui, seria 0 suficiente para alcangar o meu propésito. O fato de todas as nacdes temerem fornecer essa educacao basica é, em si mes- mo, uma resposta implicita 4 pergunta fundamental. Uma vez que lhes seja concedida a oportunidade, a maioria das pessoas estar vida para aprender a verdade sobre 0 acontecimento mais im- portante da Historia. Pelo fato de o Verbo nfo ser apenas um conceito elaborado por seres humanos, mas sim uma pessoa, ca- paz e disposta a falar As mentes e aos coragdes que o buscam com sinceridade, provavelmente essas pessoas encontrarao a res- posta que procuram. Essa é a possibilidade aterradora que moti- 160 - As Perguntas Certas va as nacées a ocultarem, de seus sistemas educacionais, 0 con- tetido e mesmo a existéncia dos Evangelhos. O que elas temem n&o € 0 fato de que os Evangelhos sejam falsos, mas a possibilida- de de eles serem verdadeiros ou, no minimo, convincentes. O recebimento do Coraéo Os mugulmanos também podem dar uma resposta segura a pergunta fundamental. Para eles, o acontecimento mais impor- tante da Hist6ria foi o recebimento do Corao, por Maomé, direta- mente das maos do tinico e verdadeiro Deus, juntamente com a sua proclamagao por meio de Maomé para 0 mundo e a conse- qiiente formag¢ao da sociedade islamica original, um Estado su- postamente ideal que os islamitas atuais desejam ressuscitar. De fato, os calenddrios mugulmanos sao datados a partir do ano em que se deu a peregrinagaio de Maomé, ou Hijira, de Meca para Medina, o momento decisivo na carreira dele. Se de alguma maneira forem verdadeiros, os principios con- tidos no Corao sao universais, pois aqueles que nao sao mugulma- nos precisam conhecer os desejos de Ala, para que possam se sub- meter a eles, a fim de escapar da ira de Ald apds a morte, e da ira de seus seguidores, aqui na Terra. O Estado islamico nao tem lugar para aqueles que nao se submetem 4 vontade de Ala, revelada no Coriio, o que explica os maus-tratos aos infiéis, com 0 uso da opres- sao e, algumas vezes, da violéncia. O Cristianismo, por sua vez, nao possui a mesma ambigao de impor uma teocracia, embora al- guns crist@os tenham, de maneira equivocada, pensado isso, freqtientemente com conseqliéncias desastrosas. A maioria dos crist&os se contenta em viver num Estado secular, desde que esse Estado lhes garanta liberdade para praticar e professar sua religiaio. Isso explica por que a sociedade norte-americana do século 19, inteiramente crist& (protestante), recebeu de bragos abertos milhdes de imigrantes catélicos e judeus. E inconcebivel a idéia de que um Estado islAmico ou judaico, como Israel atualmente, fizesse algo semelhante. Os crist&os norte-americanos nao se sentem ameaga- A Pergunta Fundamental - 161 dos pelos imigrantes ndo-cristdos, a menos que os recém-chegados tenham a intengdo de implantar um Estado anticrist4o, sob quais- quer fundamentos— materialista, islémico ou outros. Eu nio posso falar por todos os cristéos, mas posso dizer que, ao menos por mim, considero que todos os estudantes tam- bém deveriam aprender 0 suficiente sobre as palavras e obras de Maomé, para poderem fazer um julgamento abalizado sobre a credibilidade das alegagdes do Islamismo, particularmente em comparacao com as alegagdes dos Evangelhos concernentes a Jesus. Nao temo as conseqiiéncias disso, desde que ambos os casos sejam apresentados da forma mais justa e completa possi- vel, considerando-se as circunstancias, por expositores corretos e precisos, e n&o por pessoas que buscam apresentar somente uma imagem maquiada ou demonizada. Esse é um exemplo tipico de adogao da abordagem geral que busca “ens‘nar a controvérsia”, 0 que levou a Emenda Santorum, discutida no capitulo 1, Os educa- dores devem avaliar quais s&io as controvérsias que est&o atuan- tes o suficiente para que necessitem ser ensinadas. Quando os educadores usam sua autoridade de forma preconceituosa ou ir- responsavel, como alego que os naturalistas cientificos o fizeram, ent&o suas avaliagdes devem ser revistas por meio de processos legais e governamentais. Por muitas décadas, os educadores norte-americanos as- sumiram que todos os temas, passiveis de serem classificados como “religiosos”, so suficientemente irrelevantes para a vida moderna para serem ensinados, havendo considerado desneces- sdria ou mesmo prejudicial sua inclusao nos curriculos escolares. Os educadores norte-americanos dos anos 70 podem ter conside- rado importante que os estudantes aprendessem algo sobre 0 co- munismo, pois, na época, 0 comunismo era um sério adversario na luta pelo dominio mundial. Eles teriam considerado essencial que 0s estudantes aprendessem sobre a evolugao bioldgica, pois isso é “ciéncia”; porém, geralmente n&o consideraram importante que os estudantes aprendessem sobre Jesus, Maomé ou a Biblia. De- verfamos esperar que essas prioridades mudassem com o tempo 162 - As Perguntas Certas eacredito que estejam mudando agora. Lénin e Freud est&o na lata de lixo da Histéria, enquanto os seguidores de Maomé e de Jesus estdo se tornando mais ativos por todo o mundo. Os curri- culos, em todos os niveis, terdo de refletir essas tendéncias, se os educadores tiverem a intengo de ensinar aos jovens aquilo que eles precisam saber. A Ciéncia Moderna Os cientistas naturalistas tém dito ao mundo, por muitos anos, que 0 acontecimento mais importante da Historia foi o surgimento da ciéncia moderna, por meio de génios como Galileu, Newton e Darwin. Richard Dawkins defendeu esse ponto de vista de forma brilhante. Se extraterrestres oriundos de uma civi- lizagao avangada algum dia visitarem a Terra, ele escreveu, a pri- meira pergunta que irao fazer sobre nds sera: “Eles ja sabem so- bre a evolucdo?” Cientistas naturalistas como Dawkins acredi- tam que a ciéncia nos liberta da superstigdo, associada por eles a religido e, assim, da 4 humanidade uma perspectiva de paz, rique- zae bem-estar, num mundo governado pela raziio. Para os adeptos mais visiondrios da ciéncia, esta nos pro- porciona até mesmo a promessa de uma vida indefinidamente pro- longada, 4 medida que aprendermos a baixar nosso “software” mental em computadores ¢ naves espaciais e, assim, explorarmos livremente 0 universo. Daqui a uma ou duas gerag6es, essas vi- s6es futuristas iro parecer proféticas ou absurdas, dependendo da probabilidade de as maravilhas tecnoldgicas virem a surgir da forma prevista. O mesmo pode ser dito sobre as fantasias do aperfeigoamento humano, difundidas pela propaganda que acom- panha o Projeto Genoma Humano. Se os geneticistas realizarem suas promessas, eles irdo parecer, na verdade, extremamente bri- lhantes e os escarnecedores, como eu, sero esquecidos em meio ao jubilo resultante. Nossos bisnetos terfio uma perspectiva muito melhor sobre o resultado desse processo do que é possivel atual- mente. Talvez, o cumprimento das promessas de controle do pro- A Pergunta Fundamental - 163 cesso genético trara a luz a uma nova era de liberdade humana ou de tirania ou, talvez, o grandioso projeto genoma sera lembrado apenas como uma decepgéo extremamente cara. A Reptblica da América do Norte Alguns cidadaos norte-americanos ou admiradores da Amé- rica do Norte podem responder a pergunta fundamental dizendo que 0 acontecimento mais importante da Histéria foi a implanta- go da repiblica norte-americana, com a sua garantia constituci- onal de igualdade perante a lei. Nas palavras do discurso de Lincoln, em Gettysburg, os Estados Unidos da América eram “uma nova nagao, concebida em liberdade e dedicada a premissa de que todos os homens s&o criados em igualdade”. Nao creio que essa alternativa norte-americana seja uma resposta satisfatoria para a pergunta fundamental, mas apresenta-la para considera- ¢&o nao é uma atitude tao chauvinista quanto possa parecer. A premissa nao éa de que a sociedade norte-americana seja inéren- temente superior As demais, que seus ideais fundamentais nao possuam antecedentes historicos ou que sua ordem constitucional (diferentemente da lendaria ordem do Estado islamico ideal) nao tenha sido, desde o inicio, ttemendamente imperfeita. Obviamen- te, a pratica da escravidao contradizia 0 principio de que “todos os homens sao criados em igualdade” e, assim, as sementes da Guerra Civil (e mesmo do voto feminino) estiveram presentes, desde o inicio, muito antes que os senhores escravocratas percebessem as implicagdes da Constitui¢do com a qual haviam concordado. A democracia e a igualdade existiam como ideais até mes- mo na Antiguidade, mas eram associadas as idéias de rebelido popular e desordem, como ocorreu na Revolugao Francesa. Al- gumas instituigSes e idéias norte-americanas foram emprestadas da Gra-Bretanha, no entanto, mesmo assim, a repUblica norte- americana representava uma novus ordo seclorum (“nova or- dem mundial”), para citar o lema utilizado na nossa moeda. Nao foi a invengiio da liberdade e da igualdade, mas a combinagaio 164 - As Perguntas Certas entre esses valores e o dominio da lei, um legado britanico, que representa a contribuig¢do da América do Norte para o mundo e essa conquista qualifica o exemplo americano, apesar de nossas imensas falhas, a ser considerado como algo de importancia capi- tal para o mundo todo. Os milhares de imigrantes, que vieram e ainda vém para a América do Norte em busca de liberdade e oportunidade, proporcionam um inegavel testemunho ao apelo universal do sonho norte-americano. Mesmo os terroristas mu- culmanos aspiram vir para a América, mesmo que apenas para tirarem vantagem de nossas liberdades e aprenderem a pilotar avides seqtiestrados, uma das inimeras oportunidades que jamais lhes seriam proporcionadas em qualquer pais islamico. Também existem algumas perguntas certas a serem feitas a respeito das quatro propostas apresentadas em resposta a pergunta fundamental. Cada uma dessas respostas implica numa perspecti- va religiosa ea perspectiva escolhida tem conseqiléncias importan- tes para o governo ea sociedade. Uma perspectiva islamica impli- caa existéncia de uma sociedade islamica. Uma perspectiva crist implica um tipo de sociedade diferente, ndo uma teocracia, mas certamente uma sociedade na qual os cristéios se sintam bem. Eu sustentaria que algo deu errado com as sociedades governadas por qualquer uma dessas perspectivas. O que deu errado em cada um desses casos e qual 0 motivo disso? Meu propésito neste livro é fazer perguntas em vez de respondé-las, mas essa tarefa nao esta- ra completa a menos que aquele que faga as perguntas também fornega alguma nogao sobre uma resposta possivel. Com essa fi- nalidade, eu vou propor uma hipétese para cada caso —a tentativa de uma resposta, em torno da qual se possa posteriormente organi- zar a discussao e o debate. Se alguém puder propor uma resposta melhor, estou disposto a consideré-la. O Comunismo Soviético: O que deu errado? Por questées praticas, comecarei pela andlise de uma res- posta 4 pergunta fundamental que ja foi descartada, mas que teria A Pergunta Fundamental - 165 sido uma séria concorrente ha poucos anos. O resultado da Re- voluga&o Comunista de 1917-1918 para o mundo foi o surgimento da Unido Soviética e de ditaduras semelhantes, que foram, por um longo periodo, admiradas em muitos paises, especialmente por in- telectuais, avidos para testarem experiéncias sociais ousadas, como uma tendéncia inevitavel do futuro. Hoje, sabemos que pratica- mente tudo deu errado com relagao a experiéncia comunista. Por que isso aconteceu? Podemos atribuir essa falha a pessoas mal- intencionadas, que corromperam uma boa idéia, ou a idéia em si era ruim, desde o principio? Coloco esse exemplo em primeiro lugar, pois a pergunta é facil de responder e ilustra, de forma geral, 0 ponto que pretendo destacar nos demais exemplos. Nos dias de hoje, pouquissimas pessoas fora das universidades mais elitizadas se encontram tio protegidas da realidade a ponto de poderem acreditar no marxis- mo, porém, ha somente algumas décadas atras, muitas pessoas instruidas teriam dito que a criagao do Estado soviético represen- tava 0 acontecimento mais promissor na historia da humanidade. O que ocorreu n&o foi 0 fato de o comunismo ter se desviado em algum ponto, depois de um bom comego. Stalin, Mao e Castro n&o trairam os ideais de Lénin. Antes, o que ocorreu foi que os males, que estavam implicitos, desde 0 inicio, nos princfpios mar- xistas-leninistas, floresceram de forma plena, 4 medida que o sis- tema comunista se consolidou no poder e se tornou capaz de sub- jugar, pela forga, todo palido resquicio de idéias melhores e todo escriipulo que restasse na consciéncia. Nao ha diivida de que Lénin e Stalin eram homens perversos, mas nao é nada instrutivo pararmos nessa observacao. A pergunta mais importante a ser feita é porque esses homens perversos puderam acumular tanto poder e causar tanto mal. Eu proponho ahipétese de que a falha subjacente a teoria marxista foi que essa teoria desconsiderou o pecado, que representa a tendéncia inerente 4 natureza humana de se corromper. Essa tendéncia tem a probabilidade de ser es- pecialmente perigosa em relacao a lideres governamentais, que se baseiam numa teoria que acreditam ser infalivel. A teoria co- 166 - As Perguntas Certas munista nao forneceu um remédio para essa probabilidade dos lideres comunistas virem a abusar de qualquer poder que detives- sem. Os instituidores da reptiblica da América do Norte, cuja compreensao da natureza humana era baseada na perspectiva crista, ainda que fossem deifstas, criaram um elaborado sistema administrativo de controle mutuo, pois reconheciam a tendéncia da natureza humana de se corromper, um fator que foi negligenci- ado pelos marxistas. O Islamismo: O que deu errado? Nos dias atuais, essa quest&o é normalmente feita dentro do contexto do ataque de 1] de setembro de 2001 ao World Trade Center, embora seja melhor se perguntar qual é a responsabilida- de que pode ser atribuida ao Islamismo pelo fato de os Estados mugulmanos serem consistentemente governados por tiranos cor- ruptos e cruéis. Considerando-se essa falha, é questiondvel a possibilidade de nagSes como 0 Iraque, a Siria e o Egito algum dia virem a se tornar democracias seculares, nas quais as mulheres sejam tratadas com dignidade, a menos que primeiro essas na- ges abandonem o Islamismo ou 0 modifiquem drasticamente. No periodo de repercussio do ataque, lideres politicos nacionais, com- preensivelmente determinados a nao estimularem um conflito re- ligioso de Ambito mundial, asseguram a seus cidadaos que a guer- ra ao terrorismo n&o era uma guerra ao Islamismo e que este Ultimo era uma religiao pacifica, que ndo podia ser responsabiliza- da pelo terrorismo, Em alguns casos, essas declarag6es foram to entusidsticas que um ouvinte desavisado pode ter tido a im- press&o de que o proprio Maomé havia proferido o Sermao do Monte ou, pelo menos, de que ele endossava enfaticamente os ensinamentos desse sermao. Ouvintes mais atentos ressaltaram que os proprios terroristas deram suas vidas, com base na crenca de que estavam agindo de acordo com 0 auténtico ensinamento muculmano e que multidées entusiasmadas de mugulmanos pare- ciam concordar com eles, A Pergunta Fundamental - 167 Mesmo os governos mugulmanos supostamente “modera- dos”, com os quais os governos ocidentais contaram para manter sob controle os radicais, se revelaram uma grande decepg&o. Re- petidas vezes os norte-americanos testemunharam uma figura pu- blica do mundo muculmano, aparentemente responsavel e sincera no seu empenho em prol de um bom relacionamento ecuménico enquanto viviam na América, retornar ao Oriente Médio e 14 profe- rir, na midia estatal, criticas t4o brutais contra judeus e americanos, que teriam causado vergonha a propaganda nazista. Os governos “moderados” acabaram por ser aqueles que subsidiaram os radi- cais que deveriam, supostamente, ter controlado, aparentemente com a esperanca de que esses radicais iriam praticar atos terroris- tas em Israel ena América do Norte, ¢ nao no seu prdprio pais. Mesmo depois de tudo isso ter sido revelado, alguns jorna- listas influentes continuaram a agir com base na aparente premis- sa de que os mugulmanos eram as vitimas inocentes do imperialis- mo ou do chauvinismo norte-americano e que o grande mal a ser temido n&o era 0 terrorismo, mas, sim, a discriminagao contra os muculmanos. Isso no é surpreendente; eu me lembro bem de quantos liberais pensavam (e ainda pensam) que a grande amea- gaa liberdade, nos anos 50, nao era o stalinismo, mas o macartismo. Os jornalistas, académicos e politicos, que concordaram com es- ses intelectuais, foram perspicazes ou foram enganados? Eu poderia responder a essa pergunta, mas para me ater ao propésito deste livro, prefiro dizer apenas que 0 que descrevi re- trata um classico exemplo de se dar a resposta a uma pergunta que nunca foi adequadamente formulada. Nao é 0 papel de esta- distas relativamente desinformados sobre esse assunto, como 0 Presidente George W. Bush ou 0 Primeiro-ministro Tony Blair, dizer ao mundo como os ensinamentos do Coro devem ser inter- pretados. Essa é uma tarefa que compete aos lideres mugulma- nos mais influentes c, obviamente, suas ag6es sao muito mais elo- quentes do que meras palavras. Nao vejo qualquer evidéncia de que os lideres mugulmanos estejam Avidos para fornecer uma res- posta franca 4 minha pergunta a respeito do que deu errado, portan- 168 - As Perguntas Certas to, se desejarmos receber algo mais esclarecedor do que chavSes paliativos, devemos formular a pergunta com preciso e insistir bas- tante nela. Os lideres mugulmanos que desaprovam 0 terrorismo so bastante parecidos com os darwinistas, que usam expressdes ambiguas sobre porta-vozes do mundo cientifico favoraveis ao ate- ismo. Geralmente, eles querem se distanciar do terrorismo sem dizer coisa alguma que possa aborrecer seriamente os terroristas. Para ajudar a formular uma pergunta especifica, proponho a seguinte hipdtese: os terroristas islamicos tém certeza de que no estéio pervertendo o plano do Coro, mas, sim, tentando cumpri-lo. Os lideres mucgulmanos, especialmente no Oriente Médio, podem usar de evasivas para evitar as conseqiiéncias de concordar coma minha tese, mas eles nao irdo refuta-la por meio de palavras e atos que déem credibilidade a sua recusa diante daqueles que estao nada menos do que excessivamente ansiosos para assegurar que pode- mos todos conviverem harmonia. Os mugulmanos nao so ensina- dos a conviver em paz. com os infiéis, masa lutar incansavelmente para submeté-los as leis do Cordio. Do mesmo modo que os comu- nistas algumas vezes adotavam uma politica de coexisténcia pacifi- ca, quando lhes era conveniente, é provavel que a agressao por par- te dos muculmanos seja mais aparente em certas ocasides do que em outras, mas 0 esforgo encoberto sob essa atitude é incessante. Além disso, mugulmanos fervorosos no s&o pragmaticos, um aspecto no qual muitos norte-americanos tém dificuldade em acreditar. A América do Norte é 0 bergo do pragmatismo e a ilus&o caracteristica dos Jiberais esta em acreditar, contra toda evidéncia, que as outras pessoas, inclusive os ditadores, sao, no fundo, bastante parecidas com eles préprios. Franklin Delano Roosevelt parece ter pensado que poderia atrair Stalin para uma mentalidade mais razoavel, e Lyndon Johnson pensou que poderia entrar num acordo com Ho Chi Minh. Ditadores sfio muito dife- rentes de liberais e podemos vir a descobrir que os lideres mugul- manos apresentam uma probabilidade ainda menor do que os dita- dores comunistas de responder, de forma pragmatica, a ofertas e incentivos. Um ato de jihad, tal como um bombardeio suicida, A Pergunta Fundamental - 169 num local piblico lotado de pessoas, nao tem que atingir algum propdsito supremo como a destruigdo de Israel, para que possa agradar a Ala. Atos assassinos, instintivamente descritos pelos pragmaticos como “absurdos”, sao perfeitamente logicos desde que se compreenda a forma como os mugulmanos pensam, quan- do créem realmente no Corio, Vocé pode achar que minha tese € verdadeira ou falsa, mas em ambos os casos ela confere mais dignidade aos mucgulmanos do que compara-los, de uma forma equivocada, com os presbiterianos, cujas pretensdes pacifistas foram mal-interpretadas. Se minha tese fosse ser avaliada dentro do contexto de um exemplo especifico, o melhor exemplo seria 0 da situag&o desconfor- tavel vivida pelos palestinos mugulmanos, submetidos ao governo israelense. Os palestinos, tanto crist&ios quanto mugulmanos, tém queixas reais que teriam um poderoso apoio na Europa, na América eaté mesmo em Israel, se sua verso fosse adequadamente apre- sentada. Na realidade, eles j4 gozam de apoio consideravel, embo- ra sua versao jamais seja apresentada de uma forma adequada. Seria facil planejar uma estratégia bem-sucedida para os palestinos. Tudo que os mugulmanos teriam de fazer seria partilhar da mesma causa com Os poucos crist&os remanescentes, assegurar a existén- cia de um Estado Palestino secular, dotado de uma constituigdio que proporcione igualdade de justiga perante a lei e, entéo, empregar os métodos de protesto que funcionaram tio bem para Gandhi e Martin Luther King Jr. Esses métodos seguramente iriam funcionar de forma igualmente positiva contra Israel, pois os israclenses so um povo civilizado, com uma forte tradigao moral oriunda da Biblia e também pelo fato de Israel depender do apoio de governos estran- geiros, que gostariam imensamente de ver 0 conflito solucionado. Em vez disso, os palestinos mugulmanos massacram civis, inclusive mulheres e criangas, dando a impressao de que nao estarao satis- feitos com nada menos do que a completa destruig&o do Estado de Israel e com 0 conseqliente massacre de seus cidadaos. Mesmo os norte-americanos desejando imensamente esca- par desse conflito, nds no podemos assumir a responsabilidade de 170 - As Perguntas Certas admitir um outro holocausto. Por que os palestinos mugulmanos n&o adotam uma estratégia que possa ser bem-sucedida? Essa pergunta é facil de se responder, partindo-se da premissa de que 0 que eles realmente desejam é 0 estabelecimento de um Estado pa- lestino isldmico, endo um Estado secular. Fazer uma alianga com os crist&os [hes traria vantagens de curto prazo, mas minaria seu objetivo real e contrariaria a vontade revelada de Deus. Se um mugulmano deseja entrar no paraiso, a melhor maneira para isso é morrer numa jihad em vez de ficar barganhando com infigis. Do ponto de vista do Corao, os pragmaticos ¢ liberais do Ocidente sim- plesmente n&o compreendem o verdadeiro sentido da vida. Para fins de comparagao, também quero apresentar uma tese contraria 4 minha. Contam que um professor de histéria islamica da Universidade de Harvard, que nao é mugulmano, de- fendeu, numa conferéncia realizada em 2001, que o radicalismo islamico estava diminuindo no Islamismo atual que, segundo ele, estava se tornando cada vez mais moderado e reformista. Os homens mugulmanos instruidos, disse ele [0 professor], tem muito pouco interesse pelo mundo politico. .. “E preferivel 60 anos de opressao, do que um dia de desordem” é um sentimento comum entre esses lideres, 0 que representa a prevaléncia de seu desejo de realizacao espiritual sobre as conquistas mundanas (David Brooks, “Understanding Islam”, Weekly Standard, 2 de janeiro de 2002). Muito provavelmente esses “Ifderes” existem, mas me per- gunto a quem eles estiio liderando. Certamente no s&o as multi- des nas ruas, que festejam cada ato terrorista, nem as maes, que ensinam seus filhos a almejarem o martirio na jihad. Também me pergunto como 0 professor explicaria a diferenga entre 0 com- portamento dos palestinos mugulmanos e dos palestinos cristios, no conflito com Israel. De um lado, se assumirmos que a minha hipdtese esteja correta, ent&éo, como um ilustre professor de histé- A Pergunta Fundamental - 171 ria islamica poderia estar tao fora da realidade? Também tenho uma tese para isso. Por tudo o que aprendeu, o professor estava vendo o Islamismo de uma 6tica externa, e nao vivenciando 0 Islamismo e vendo o mundo a partir dessa perspectiva. Existe uma diferenca enorme e tenho consciéncia disso por expetiéncia propria, como alguém que anteriormente via 0 Cristianismo de uma ética externa e que, agora, enxerga o mundo a partir da pers- pectiva crista. Talvez fosse vantajoso para Harvard se a univer- sidade decidisse incluir em seus quadros pessoas com esse tipo de experiéncia; chamo a isso de diversidade. Para uma andlise bem mais realista do que deu errado com o Islamismo, que também nao consegue chegar ao cerne da ques- tao, veja 0 artigo sobre esse assunto, escrito por Bernard Lewis, em janeiro de 2002, para a revista Atlantic Monthly. Lewis ad- mite que todos os paises islmicos estdo atualmente numa condi- ¢4o deploravel, mas isenta o proprio Islamismo da responsabilida- de por essa decadéncia, pelo fato de a cultura isl4mica ter sido bem mais progressista muitos séculos atras. Lewis conclui: “Para um observador ocidental, educado na teoria e na pratica da liber- dade ocidental, € exatamente a falta de liberdade — liberdade de pensamento contra a coagao e o doutrinamento, liberdade de ex- pressdo para questionar, perguntar e falar; liberdade econdmica contra a ma administragao corrupta e difundida; liberdade femini- na da opressao masculina; liberdade dos cidadaos contra a tirania —que esta implicita em tantos problemas do mundo mugulmano. Mas o caminho que conduz a democracia . . . é longo e penoso, cheio de ciladas e de obstaculos”. O que precisa de explicagao é 0 fato dos paises crist4os terem superado esses obstdculos, en- quanto os paises mugulmanos invariavelmente ndo conseguiram fazé-lo. Qual foi a diferenga, além da mentalidade isldmica? O Cristianismo: O que deu errado? A fé crista se encontra em decadéncia, sobretudo nos seus paises de origem, na Europa e na América do Norte ¢ isso pode 172 - As Perguntas Certas dar as pessoas a falsa impressiio de que a situagiio é semelhante em outros locais. Pelo contrario, uma vibrante comunidade de figis esta crescendo na Africa e na Asia e isso nao se deve pri- mordialmente ao trabalho de missionarios estrangeiros, mas ao empenho de corajosos membros locais, cuja fé tém sido refinada no fogo da perseguigao. A maioria dos crist&os comprometidos vive hoje no denominado Terceiro Mundo. A perseguigaio é par- ticularmente mais feroz nos paises mugulmanos e hindus, pois os grupos dominantes temem que 0 evangelho possa atrair seu povo oprimido de uma forma poderosa, se as pessoas tiverem a oportu- nidade de ouvi-lo. Por que vocé acha que os lideres do Taliba, por exemplo, sentem-se téo ameagados por uns poucos assistentes sociais que carregam algumas Biblias? Se considerarmos 0 mundo como um todo, a fé crist& ain- da é bastante atrativa. Coreanos e afticanos est&o até mesmo considerando a possibilidade de enviarem missiondrios para a América, para reavivar as brasas da fé que estdo se apagando nas nossas denominag6es tradicionais e espero sinceramente que fagam isso. Gosto de dizer as platéias crist&s que nossa fé flo- resce a longo prazo, quando somos perseguidos, ainda que isso possa ser doloroso para aqueles que tém de suportar a persegui- gao. O que o Cristianismo nao pode suportar é opuléncia e hon- ras. Esse fator explica por que as igrejas oficiais, particular- mente na Europa, estio tio decadentes. Elas se tornaram parte do aparato governamental e, pior ainda, do social. Eu poderia dizer, em parte a titulo de brincadeira, que a igreja que se une ao aparato social se coloca sob o dominio da segunda lei da termodinamica, o principio de que toda substancia complexa en- tra em colapso, a menos que esforgos tremendos sejam feitos constantemente no sentido de renova-la. Na Europa, o Cristia- nismo esté associado ao conformismo, a hipocrisia e ao privilé- gio social. Na China, ele est4 associado a libertagao do totalita- rismo ateu. O que mais é preciso saber? A Pergunta Fundamental - 173 A Cultura Americana: O que deu errado? O notério soldado taliba norte-americano, mencionado no capitulo 5 eo filho transexual do capitulo 6 ndo representam ex- centricidades, mas sim ricas ilustragSes sobre as conseqtiéncias ldgicas das idéias fundamentais, que sao entusiasticamente acei- tas nos circulos educacionais norte-americanos. Especificamen- te, essas idéias representam a absolutizagao da versio racial ou multicultural da “diversidade” e a ilusaio de que a diferenga entre rapazes e garotas é meramente uma questo de identidade sexu- al, construida pela sociedade e que pode ser alterada ou abolida de acordo com a nossa vontade. Para fornecer uma imagem mais completa do que deu er- rado na América do Norte, devo acrescentar um exemplo da cul- tura empresarial. Em 2001, os americanos ficaram chocados com o maior caso de faléncia corporativa que ja haviam testemunhado, quando a rica ¢ influente Enron Corporation subitamente se reve- lou como um embuste, pura aparéncia, com débitos e perdas macigas que haviam sido mascarados por truques contabeis. Ainda mais chocante, a meu ver, foi o envolvimento de contadores pro- fissionais no escandalo, por intermédio da célebre empresa Arthur Andersen & Company. Esse escdndalo ocorreu em razao de uma falta, cometida por uns poucos individuos corruptos, ou indica a existéncia de falhas implicitas na cultura empresarial americana? E evidente que havia alguns corruptos envolvidos, como sempre acontece. A pergunta pertinente (como no caso de Lénin) é por que eles puderam chegar tao longe antes de serem descobertos, de modo que sua ruina final tenha causado um prejuizo financeiro de tamanhas proporgdes. Meu pai foi s6cio da Arthur Andersen até sua morte, em 1966, e por isso eu lamentei, de uma forma pessoal, a ruina dessa firma hd tanto tempo respeitada. Eu me lembro de ouvir, durante minha infancia, meu pai falando sobre a atividade contabil e da importAncia que havia, para as firmas de contabilidade, em evitar um envolvimento atfpico com seus clientes que pudesse vir a com- 174 - As Perguntas Certas prometer sua objetividade ao analisar as declaragGes financeiras da firma do cliente. Por que esse principio elementar foi ignorado nao somente pela Arthur Andersen & Company, mas também por ou- tras empresas de prestigio? Nos anos 30, esse tipo de falha ética nos neg6cios teria tido reflexos diretos no capitalismo, levando os reformadores a pedirem uma intervengaio governamental, no senti- do de assumir 0 controle das empresas e substituir a diretoria por servidores civis assalariados. Desde entio, a experiéncia tem ensi- nado a todos aqueles que se dispdem a aprender com ela, que o controle estatal direto nado representa uma cura para os males da competigao da livre iniciativa, mas um modo de tornar esses males ainda mais graves, ao se remover a disciplina do mercado. No entanto, se culpar o capitalismo é uma postura simplista, ent&o a quem deveriamos culpar? A tese da minha resposta a essa pergunta retine todos os exemplos das recentes falhas norte- americanas. O que saiu errado foi 0 fato de os americanos, na metade do século 20, terem abandonado o profundo entendimento religioso, que havia servido perfeitamente bem a nagdo até aquela época. De modo geral, antes de 1960, a cultura norte-americana manteve duas diferentes forgas religiosas numa tensao criativa. Uma delas era a forga representada pela corrente deista/racionalista, inspirada em Thomas Jefferson e nos intelectuais europeus, e a outra representava a corrente crist evangélica, que havia surgido por obra dos evangelistas ingleses John ¢ Charles Wesley, George Whitefield e de seus diversos seguidores norte-americanos. A obra de Alexis de Toqueville, Democracy in America, descreve com elogiiéncia quao essencial era o elemento religioso para a formagaio dos tragos do cardter que era necessdrio para se responder aos desafios propostos por um nivel de liberdade pessoal jamais visto. A América teve muito a ganhar com essa mistura entre uma religi- osidade pessoal e um racionalismo secular, o que evitou que a religi- osidade atingisse niveis sufocantes, Contudo, depois do triunfo cultural do darwinismo, os racionalistas se tornaram materialistas cientificos dogmaticos ¢ se dedicaram a marginalizacfo social dos cristdos, negando-Ihes aces- A Pergunta Fundamental - 175 so a posigdes de influéncia no governo, na educagao ou na vida cultural. Os cristéos tém tanta responsabilidade por essa situagao quanto os racionalistas, pois abriram mao de suas posi¢Ges prati- camente sem lutar. Pelo fato de a ciéncia ndo fornecer qualquer base para o julgamento de valores, a cultura conseqiientemente se transformou em legalismo, 0 Unico meio de se controlar 0 com- portamento, e em filosofias de inspiragao relativista, que fizeram com que todas as normas e padrGes se assemelhassem ao uso arbitrario do poder. A falha primordial se verificava no nivel do conhecimento e, assim, os maiores danos foram sentidos nas eli- tes universitarias e nas profisses que sofriam a sua influéncia. A influéncia de um elemento crucial na mescla cultural foi enormemente reduzida, de modo que até mesmo coisas inerente- mente positivas vieram a se tornar excessivas ¢, conseqiientemente destrutivas. A ciéncia é algo positivo, mas deixa de sé-lo quando pretende dominar a religiao ea filosofia. A livre iniciativaé algo positivo, mas deixa de sé-lo quando a ambi¢ao de ganhar cada vez mais se torna o principal propésito da vida. Mesmo a infame opres- sao imposta pela postura politicamente correta foi positiva, a princi- pio. Evitar ferir os sentimentos de pessoas mais vulneraveis é algo positivo, mesmo que se pense que as “vitimas” sejam excessiva- mente sensiveis. Porém, quando elas se tornam tao poderosas que conseguem reprimir toda palavra e idéia de que nao gostem (dei- xando a idéia de vitimas poderosas de ser um paradoxo), ent&o, uma repreensao se faz extremamente necessaria. Acredito que esse processo de corregdo ja esta ocorrendo e espero que este livro possa ajudar a explicar como e por que ele se iniciou. A Ciéncia: O que deu errado? O que deu errado na ciéncia foi o fato de cientistas influen- tes se tornarem tao devotados as causas ideoldgicas, inclusive aquelas que aumentavam 0 poder e 0 prestigio da ciéncia, que acabaram negligenciando seu principal dever, o de testar com im- parcialidade todas as teorias, mesmo aquelas das quais provinham 176 - As Perguntas Certas sua fama e riqueza. Especialmente na area das ciéncias biomé- dicas, muitos cientistas nao mais se contentavam em viver com bons salarios, mas cultivavam a ambicao de possuir participagdes substanciais em empresas de biotecnologia. Perto de 2000, os edi- tores de jornais cientificos estavam seriamente preocupados com conflitos de interesse financeiro disfargados pelos autores, que po- savam de analistas cientificos imparciais. Alguns cientistas se pu- seram numa posi¢ao semelhante a das firmas de contabilidade, pouco antes do escandalo da Enron. Eu abro mao de dizer mais coisas, pois creio que os acontecimentos falarao por si mesmos. O que deu errado nos paises desenvolvidos, em que ha 0 dominio da ciéncia, foi, sobretudo, o fato de a cultura predominan- te, por meio de seus formadores de opiniao, haver desistido da busca da verdade. O que eles fizeram foi rotular todas as idéias de duas formas, como “religiao” e “ciéncia”. Entdo, conservaram tudo que fosse rotulado como “ciéncia”, mesmo contrariando as evidéncias e descartaram tudo 0 que se enquadrava no rotulo de “teligidio”, ainda que houvesse sido comprovado pela experiéncia. Isso deixou as sociedades mais tecnologicamente avan¢adas com uma definigéo de conhecimento que se restringia apenas aos mei- os, relegando ao ambito da subjetividade e da especula¢ao todas os questionamentos relativos aos fins ultimos do conhecimento. Como um viajante que nao leva um mapa ou uma bissola, essas sociedades nao tém mais qualquer nogao do lugar para onde deve- riam estar indo. Nao é nada surpreendente que tenham se perdido. — Phillip E. Johnson busca estimular o debate ptblico, sempre suprimido pela elite intelectual da nossa sociedade. Indo bem além de assuntos referentes a evolucdo e criagdo, o autor convoca os verdadeiros educadores e lideres a preocupar- se com questées ultimas, sobre o significado da Historia humana, verdade e liberdade, educacao e religiao em nossa sociedade pluralista. Quest6es sobre Deus e sobre Jesus Cristo, o Verbo de Deus. Johnson demonstra de que modo a filosofia naturalista dominante nao apenas sufoca o debate publico como também compele nossas discussées a formular as perguntas erradas. Porque, a menos que comecemos com as perguntas certas, as conclusées resultantes serao limitadas pela prépria filosofia que desejamos desafiar. Provocante, pessoal, persuasivo e profético, o livro As Perguntas Certas nos ajudara a nos libertarmos do cativeiro intelectual e espiritual. Puitup E. JOHNSON formou-se pela Harvard University e pela University of Chicago Law School. Trabalhou com o Juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, Earl Warren, e ensinou lei por mais de trinta anos na University of California. Escreveu também Como Desofiar 0 Evolucionismo com Mentes Abertas, publicado no Brasil por esta editora. Cosmovisao crista/Apologética EDITORA CULTURA CRISTA Rua Migue! Teles Junior, 394 - Cambuci ererentny f | 01540-040 - Sao Paulo ~ SP — Brasil j C.Postal 15.138 - S20 Paulo - SP - 01599-970 i Fone (0°11) 3207-7099 ~ Fax (0°*11) 3209-1255 ‘wwiw.cep.org.br — cep @cep.org.br Saeeaeeiie J

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